DIARIO DA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO 533
A l.ª emenda de que a commissão julgou dever occupar-se foi a apresentada pelo digno par marquez de Sabugosa, para que fosse alterada a redacção do artigo 2.°, declarando-se que a capacidade para o exercicio do direito de votar, reconhecida pelo facto de saber ler e escrever, só póde ficar provada quando a inscripção no recenseamento eleitoral seja solicitada pelo interessado, etc.
Esta emenda, como o digno par apresentante declarou, é de pura e simples redacção. Se fosse adoptada não alteraria nem o sentido, nem o preceito da lei; tende unicamente a tornar a redacção grammatical mais harmonica com os principios theoricos que tem presidido á redacção das nossas leis eleitoraes, segundo os quaes o exercicio do suffragio politico é concedido só e tão sómente áquelles que têem a necessaria capacidade, isto é, aos que estão nas condições de o exercerem com intelligencia, independencia e consciencia.
A commissão não contraria, antes reconhece com o nosso digno collega, que sendo o suffragio eleitoral um direito politico, e não um direito individual nem primordial, o seu exercicio não póde ter outra origem, nem outro fundamento senão a capacidade. - Luzes, independencia e espirito de ordem, são condições indispensaveis da capacidade politica, das quaes o legislador, em caso algum, póde prescindir sem risco de precipitar a sociedade na desordem ou na demagogia. Os limites d'esta capacidade podem variar e serem mais ou menos largos, mas o principio é sempre o mesmo, a capacidade, e as condições da capacidade são tambem sempre as mesmas, independencia e luzes. - Independencia que resulta da posição de fortuna e da funcção social,luzes que esta funcção testifica ou faz presumir.
A capacidade politica consiste no complexo, na reunião de todas as condições que podem dar garantia á sociedade.
Não ha profissão na sociedade que não precise e não exija garantias d'aquelle que a quer exercer. Admissivilidade igual e geral para todos, n'isto consiste o direito; admissão effectiva, isto é - exercicio do direito só e unicamente quando se dão garantias.
O suffragio politico não é direito individual e primordial; é um direito politico, uma funcção social, um munus publico. Se fosse direito individual e primordial não poderiam ser privadas d'elle as mulheres, principalmente aquellas que estão separadas e fóra do poder dos maridos, as que são solteiras, e todos áquelles que têem a disposição plena das suas pessoas e dos bens, nem os menores, nem os indignos e os incapazes, os quaes todos deveriam ter, senão o exercicio, ao menos o goso d'esse direito para ser praticado ou exercido pelos seus tutores e curadores, etc.
Em todos os tempos os legisladores exigiram condições que inhibem o exercicio do suffragio aos indignos e aos incapazes, d'onde deve concluir-se, por deducção irrecusavel, que a capacidade é o titulo unico de admissão aos direitos politicos. Os homens, na verdade, têem uma origem commum e todos nascem iguaes; o filho do nobre e o do plebeu entra no mundo nu, ao apparecer n'elle soffre immediatamente, e sua existencia denuncia-se sempre pela dor.
Sendo iguaes pelo nascimento e pelas necessidades, tendo o mesmo destino e os mesmos deveres, não se segue que devam ter, e tenham, na sociedade os mesmos direitos. Nos cargos publicos cada um deve tomar parte á medida da sua capacidade, das suas faculdades e dos seus meios. A igualdade originaria e primitiva é ephemera e fugitiva, é como um areal movediço no qual cousa alguma estavel se póde edificar. - Esta igualdade, filha de circumstancias momentaneamente similhantes, não tem duração alguma, e á idéa do direito corresponde sempre a de permanencia.
Montesquieu dizia, com rasão e com fundamento, que se os homens no estado da natureza são iguaes, não podem permanecer n'esse estado de igualdade. Desde que a personalidade principia a desenvolver-se apparecem immediatamente desigualdades, que fazem desapparecer o seu caracter primitivo. Uns são mais intelligentes, mais instruidos, mais sabedores dos negocios communs, e mais aptos para as funcções publicas; outros são mais laboriosos, menos favorecidos pela intelligencia, etc.; - e deverá porventura ser commettida a estes a direcção dos negocios do estado que elles não conhecem nem comprehendem?
O primeiro dever da sociedade é alcançar o seu fim, não compromettendo os direitos dos cidadãos por meio de qualquer legislação imprudente. - Não ha direito que possa prevalecer contra direito para o aniquilar. A lei é igual para todos, mas nem por isso se segue que haja igualdade de direitos politicos, porque as capacidades são desiguaes.
Assim pois, nem da igualdade natural dos homens, nem do principio de igualdade perante a lei se segue, nem póde deduzir-se, a igualdade de direito do suffragio. Não póde conceder-se a todos os homens os mesmos direitos eleitoraes, ou a mesma faculdade de escolher as pessoas que devem exercer o poder publico. Não póde conceder-se a todos indistinctamente, proprietarios ou proletarios, vivendo do seu trabalho ou dos soccorros publicos, domiciliados ou nomados, instruidos ou ignorantes, morigerados ou devassos, o exercicio do suffragio politico, e parte igual na direcção dos negocios do estado.
Isto posto, e estando a vossa commissão possuida da verdade dos principios que determinaram a proposta apresentada pelo nosso digno collega o sr. marquez de Sabugosa, na qual expressamente se reconhece que a capacidade é a origem e o fundamento dos direitos politicos e do suffragio; mas considerando tambem que a emenda importa unicamente differença de redacção, que não altera nem modifica a disposição do projecto, nem faz presuppor differença de doutrina e de principios fundamentaes, por isso é de parecer que não seja approvada.
As 2.ª e 3.ª emendas, que attrahiram a attenção da vossa commissão, foram apresentadas pelo digno par Vaz Preto, tendentes a declarar que nos artigos 2.° e 3.° do projecto se exija, alem das condições de saber ler e escrever e de ser chefe de familia, a prova directa e judicial de possuir a renda estabelecida pelo acto addicional.
Estas duas emendas, se fossem adoptadas, destruiriam completamente o pensamento do projecto actual. Se aos chefes de familia e aos que sabem ler e escrever se exigisse a prova directa do rendimento legal e a do censo, para nada aproveitaria a disposição dos artigos 2.° e 3.° do projecto, cujo fim é tão sómente crear em favor d'elles a presumpção legal da existencia do rendimento legal, ampliando e por este modo o exercido do voto. Se aos que sabem ler e escrever e aos que são chefes de familia se exigisse a prova directa do censo, ficariamos perfeitamente nos termos da legislação actual, a qual em nada seria ampliada quanto á extensão e ao alargamento do suffragio.
O principio determinante dos artigos 2.° e 3.° do projecto é exactamente o contrario, - é alargar o suffragio pela creação legal da presumpção do rendimento a favor dos chefes de familia e dos que sabem ler e escrever; - o fim da lei n'estes artigos é dispensar aos cidadãos, que estiverem nas circumstancias indicadas, a necessidade de prova directa e judicial, elevando-se á categoria de presumpção legal e de prova indirecta factos externos e conhecidos, d'onde por meio de uma conclusão rigorosa se deduz a certeza do rendimento legal.
E como da acceitação de qualquer das indicadas propostas resultaria a destruição do principio do projecto já acceite e votado pela camara, a commissão é de parecer que não sejam approvadas.
A 4.ª e 5.ª emendas de que a commissão se occupou foram as apresentadas pelo digno par Vaz Preto para que no projecto se declare que o domicilio politico dos empregados publicos é obrigatorio e não póde ser transferido.
O pensamento contido n'esta proposta não importa uma idéa nova tendente a supprir qualquer omissão ou lacuna existente na nossa legislação eleitoral. Pelo contrario, se fosse