DIARIO DA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO 601
mutiladas pelas primeiras, serão antes auxiliadas e robustecidas por ellas, que nenhuma repugnancia ou inconciliatilidade existe entre as funcções da jurisdicção preventiva, que pelo projecto devem ficar pertencendo ao tribunal, com as da jurisdicção fiscal propriamente dita que já tem. Ambas estas faculdades ou jurisdicções, longo de se prejudicarem, auxiliam-se, robustecem-se e completam-se.
Não desconhece a commissão que a responsabilidade ministerial pelos actos administrativos do governo, sendo o laço que prende e liga o poder executivo [...] (do mesmo modo que a eleição é tambem o laço que liga e prende o parlamento á nação), constitue a alma do systema representativo parlamentar e a de todas as instituições constitucionaes do tempo moderno; e por isso não hesita em declarar que, se da adopção da providencia proposta resultasse ficar debilitado ou enfraquecido esse principio essencial da nossa organisação politica, não deixaria de desaffrontadamente propor, á vossa sabedoria, a sua rejeição. Está porém convencida da idéa opposta, e parece-lhe que a intervenção previa do tribunal de contas no ordenamento dos pagamentos, longe de prejudicar a efficacia do principio da responsabilidade ministerial, póde facilitar ao parlamento meios mais seguros e vigorosos para exigil-a e tornal-a effectiva. Fortifica-se n'este pensar vendo o exemplo de algumas nações estrangeiras, e observando a pratica que, sem inconveniente nem reclamação, é seguida na Italia, na Belgica, e na propria Inglaterra. Nem poderá dizer-se que estes paizes não devem servir de exemplo e de modelo quanto á pratica e á sinceridade da observancia das regras e principios do systema parlamentar. - Na Belgica a necessidade do visto do tribunal de contas, e da sua intervenção previa, não se limita ás ordens de pagamento, mas abrange, tambem, os contratos de emprestimo, ás operações de conversão, os certificados de caução, e os titulos de renda vitalicia. E ainda que a recusa motivada do visto do tribunal póde ser vencida pela resolução superior do conselho de ministros, não se verificou até hoje, caso algum em que o ministerio tivesse precisão de recorrer a meio tão extremo e ultimo; o que, bem e evidentemente, prova que a intervenção da fiscalisação previa do tribunal não causa embaraço algum á acção legitima do poder executivo. As lições da experiencia estão pois accordes com os dictames da rasão. - O mesmo se póde dizer com respeito á Italia, onde este systema está estabelecido e é observado com tanto rigor como boa fé por parte do governo e do tribunal de contas, o qual ainda no anno anterior recusou visar ordens para pagamento de vencimentos a empregados illegalmente nomeados.
O tribunal de contas, na sua desenvolvida e bem elaborada consulta de 21 de outubro de 1879, acceita e reconhece a conveniencia de haver uma fiscalisação previa sobre a legalidade de todas as ordens de pagamento determinadas pelos ministros a fim de que estes possam, a tempo util, ser esclarecidos e advertidos; mas entende que essa fiscalisação não deve pertencer ao tribunal de contas, e que conviria antes que fosse exercida por algum empregado superior e especial em cada ministerio, podendo o ministro respectivo recorrer ainda á resolução do conselho de ministros, ou á consulta do procurador geral da corôa nos casos duvidosos.
O systema indicado pelo tribunal de contas talvez possa ser considerado como approximadamente similhante ao que desde tempos antigos é seguido na Inglaterra, aonde effectivamente existe uma auctoridade especial e privativa - do controller-general - com attribuições analogas aquellas de que tratamos agora; mas alem d'esse funccionario, na Inglaterra, estar absolutamente independente do governo, porque é um mero delegado do parlamento para fiscalisar a observancia das leis financeiras, as suas decisões não podem ser alteradas nem revogadas pelo ministerio, e em caso algum estão subordinadas ao parecer e opinião dos advogados da corôa, no que tudo vae differença essencial entre o systema indicado pelo nosso tribunal de contas e o executado na Inglaterra.
As bases e alicerces em que assenta o systema de legislação ingleza, em materia de administração da fazenda da nação, são tão diversas das que estão geralmente adoptadas no continente, que entre umas e outras não póde haver parallelo, e por isso tambem não póde haver analogia, nem similhança, nas consequencias que de umas e outras se derivam.
É sabido que na Inglaterra não ha lei geral do orçamento propriamente dito; - que a lei annual de receita e da despeza não comprehende, nem a generalidade das receitas, nem a das despezas; - que os impostos que têem uma base certa (e são os mais productivos), os que alimentam o fundo consolidado e que constituem a reunião os subsidios concedidos ao governo para fazer marchar os serviços são permanentes e obrigatorios, nunca sujeitos á votação annual, e não podem ser augmentados nem diminuidos senão por virtude de uma lei especial. - Do mesmo modo, é certo que todas as despezas consideradas como tendo caracter de obrigação nacional, v. gr. os juros da divida publica, a lista civil, os ordenados dos juizes, os do corpo diplomatico e mais funccionarios que existem por lei, tambem não podem ser objecto de votação annual do parlamento, de modo tal que, se um logar é supprimido, ou se mesmo só se lhe diminue o ordenado, é forçoso conceder uma indemnisação pecuniaria ao funccionario actual prejudicado. As despezas unicas que estão sujeitas á votação annual do parlamento são aquellas que não têem caracter permanente, taes como as das obras publicas, as do exercito e da marinha, porque a força militar precisa constitucionalmente ser votada e fixada em cada anno e por isso tambem a despeza precisa ser annualmente votada e auctorisada. Entram igualmente n'este numero as despezas com a percepção dos impostos, as das escolas de instrucção, as da beneficencia, etc., etc.
Depois de votada a lei annual da receita o controller-general do thesouro, grande funccionario do estado, independente do executivo e responsavel só ante o parlamento, faz abrir creditos ao governo no banco de Inglaterra (no qual se recebem as contribuições e são lançadas em conta corrente com o contador geral do thesouro e não com o governo) por conta de cada verba do orçamento, em especial e separadamente. - Para que o controller mande abrir algum credito aos ministros é necessaria ordem especial assignada pela rainha. Os ministros não podem, em caso algum, introduzir a minima modificação nas assignações do orçamento nem em verba alguma d'elle, as quaes ficam invariavelmente separadas e distinctas umas das outras, e nunca podem ser excedidas. Ha uma unica excepção, n'este rigoroso systema da especialidade, no que respeita aos creditos para as despezas do exercito e da marinha, nas quaes é licito transferir as verbas, mas nunca excedel-as. Alem dos creditos e verbas especiaes, tem o governo inglez a somma de 100:000 libras para despezas eventuaes e urgentes, o emprego das quaes não está sujeito á fiscalisação parlamentar. - Se, esgotada essa verba, occorre alguma eventualidade que demande o emprego dos dinheiros do estado, por pequena que seja essa quantia, é urgente, forçoso, indispensavel convocar o parlamento para a auctorisar, como aconteceu por occasião das despezas para os funeraes do duque de Wellington.
Indicada, assim, a largos traços a differença que ha entre o systema financeiro inglez e o praticado entre nós, torna-se claro que o exemplo do controller-general ali existente não póde proveitosamente ser invocado para auctorisar a creação de um empregado especial, superior ou subalterno, em cada ministerio para fiscalisar, com a necessaria auctoridade moral e independencia, as ordens de pagamento determinadas pelo ministro, seu superior, e de quem está absolutamente dependente.
Em vista do exposto, parece á commissão que, ou ha que
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