545 DIARIO DA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO
Depois de tanto tempo, não estar ainda concluida esta negociação, não comprehendo.
A curia romana tem sufficientes motivos para não confirmar os bispos nestas circumstancias.
Quanto á, quinta pergunta devo dizer que a rasão, porque a fiz, foi por ter visto escripto nos jornaes, mesmo nos que são affectos ao governo, que tinha havido uma grande altercação entre o sr. ministro da justiça e o sr. nuncio, por não ter querido s. exa. ceder ás pretensões do representante da curia romana em Portugal, e que o sr. ministro da justiça declarou que não tinha querido acceder; mas emfim o sr. ministro da justiça diz que nada houve, tenho obrigação de acreditar que disse a verdade.
É verdade que s. exa. pronunciou a palavra «desgosto», e eu não sei se com a escolha d’esta palavra s. exa. procurou deixar reservada qualquer pequena cousa que não chegasse a ser um desgosto, mas emfim dou-me por satisfeito nesta parte.
Passarei agora, sr. presidente, a tratar de outros dois negocios importantes, que têem relação com as questões, de que me tenho occupado: fallo das emboscadas, tambem v. exa. hontem censurou o uso desta palavra, mas eu, apesar disso, usarei d’ella para significar, que passaram por esta casa dois projectos de lei, que para a totalidade da camara, com poucas excepções, passaram desapercebidos, e que são altamente escandalosos!
Eu não sei, sr. presidente, que na lingua portugueza haja alguma palavra que signifique esta idéa: e se v. exa. sabe alguma. diga-m’a, que eu usarei d’ella, eu não a conheço, e por isso uso d’esta, que já se usa na imprensa de um e outro partido, isto é, tanto do governo como da opposição.
Vamos, pois, ás emboscadas:
A primeira seria a proposta de lei, que produziu a lei de 27 de junho de 1882.
N’esta proposta pedia o sr. ministro da justiça uma providencia legislativa para evitar o inconveniente de entregar ao arcebispado de Evora, que já tem uma avultada receita, a maior parte dos rendimentos da sé de Elvas, ficando o bispado de Portalegre, que é pobre, com uma diminuta parte desse rendimento, attendendo ao numero de frequezias do bispado de Elvas que lhe era encorporado.
A camara estará lembrada de que eu por vezes pedi ao sr. ministro da justiça que mandasse á camara os documentos relativos a estas negociações, e s. exa. nunca se dignou remettel-os. Até me recordo de que n’uma das sessões o que eu pedi mui expressamente foi a copia da bulla do Santo Padre pela qual a santa sé accedia a estas negociações, e o sr. ministro respondeu-me que a bulla estava nas mãos do sr. cardeal bispo do Porto.
Pois então o sr. ministro não deixou na sua secretaria uma copia da bulia?
Se a não tinha, telegraphasse ao sr. bispo do Porto, ou mesmo por um officio pedisse uma copia, pois estou certo de que em poucos dias lhe seria remettida.
S. exa. não quiz revelar cousa alguma ao parlamento com respeito aos meios que empregou para chegar a esta conclusão.
Depois de tudo isto eu preveni o futuro e disse n’esta camara, que previa que o sr. ministro não dava andamento áquelle projecto para entrar em discussão n’esta camara, porque queria reserval-o para a ultima hora.
Não era v. exa., sr. presidente, que occupava essa cadeira.
O governo teve a bondade, a franqueza e a lealdade de dizer-me, que podia eu estar socegado, porque o projecto não havia de ser discutido á ultima hora; e quer a camara saber o que aconteceu?
A camara fechou-se no dia 19, e tendo-me eu retirado no dia 16, confiado na declaração do governo, soube depois que o projecto tinha sido votado no dia 17; e passou, sem ninguem fallar sobre elle.
Não será isto uma emboscada, e fica bem um procedimento d’estes ao sr. ministro da justiça?
Eu entendo que não.
Ha cousas ainda de peiores consequencias.
A camara sabe, que ha um grande numero de projectos importantes, que passam aqui nas ultimas sessões, embrulhados com outros que realmente não são de gravidade.
Pois passou aqui um projecto importantissimo e que tem por fim fazer uma doação importantissima ás irmãs hospitaleiras. Fiquei surprehendido, quando pelos jornaes soube que um projecto d’esta ordem tinha sido votado sem o minimo protesto de qualquer dos membros da camara. Vou dizer o que é o tal projecto, e quaes as dificuldades em que está o governo. Concedeu-se por uma lei, filha de um projecto do sr. ministro da justiça, o convento das Trinas do Mocambo e a sua cerca ás irmãs hospitaleiras. Em primeiro logar isto é una disperdicio, e não pequeno; e é quando todos os dias se invoca o precario estado das nossas finanças, e a necessidade impreterivel do equilibrio entre a receita e a despeza, que se faz uma similhante doação?
Falla-se no déficit, que está cada vez mais vivo e mais gordo, quando o sr, presidentee do conselho promettêra exterminal-o; falla-se na situação deploravel do thesouro, e faz-se presente de um convento que era Lisboa vale bom dinheiro, e de uma cerca immensa, que tambem vale muito, e a quem? Ás irmãs hospitaleiras. Estas religiosas pertencem a uma ordem do sexo feminino, sujeitas a um prelado estrangeiro; a um prelado estrangeiro, note bem a camara. Como pôde pois passar este projecto aqui e na outra camara sem protesto, sem reclamação; e digo na outra camara porque em toda a parte existe um certo partido que, como as toupeiras, trabalha por baixo do solo.
Fique, pois, sabendo a camara que essas irmãs hospitaleiras formam uma corporação religiosa sujeita ao dominio de um prelado estrangeiro.
Formam uma instituição de caridade, é verdade, porque n’esse sentido funccionam, mas estão sujeitas a um prelado estrangeiro.
Ora, pergunto eu: é, ou não, verdade que em 1834 foram abolidas não só as ordens religiosas do sexo masculino, mas tambem as do sexo feminino que estivessem sujeitas a prelados estrangeiros e não aos bispos portuguezes?
Eu tambem fui dos perseguidos por querer estabelecer o systema liberal na nossa terra, e sei que foi aquelle um dos primeiros decretos do governo liberal, fui testemunha contemporanea d’esse facto; sei alem d’isso que os nossos antigos monarchas não descançaram emquanto não libertaram as ordens monásticas do sexo feminino da jurisdicçao dos prelados estrangeiros.
Quando isto assim é, como não estremeceria de espanto o duque de Bragança, o primeiro monarcha liberal, se agora resuscitasse e visse que um governo liberal deixava postergar uma lei, não direi fundamental, mas primordial da liberdade!
Ainda, porém, ha mais.
Têem porventura estas irmãs hospitaleiras estatutos approvados segundo as leis do reino?
Não me consta que os tenham. Se têem estatutos, são approvados por algum prelado do estrangeiro.
Como podia, pois, fazer-se uma doação áquella corporação, que como tal não póde ser considerada legalmente, não tendo por conseguinte individualidade juridica, logo não tendo tambem capacidade para acceitar a doação?
Pergunto eu ainda; reconhece o governo como corporação legal as irmãs hospitaleiras, estando ellas sujeitas a um prelado estrangeiro? Isto póde ser.
Como se póde explicar isto? Como tolera o governo este facto?! Como lhes reconhece o direito de receberem a doação?
Pergunto isto, porque me parece que o governo se está collocando em uma posição muito embaraçosa.