846 DIARIO DA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO
O pão, a despeito da diminuição do direito do trigo, ha de conservar o preço alto.
O pretexto não faltará, e eu estou já a prever qual ha de ser.
V. exa. sabe perfeitamente que para fabricar pão é indispensavel o mato. O consumo do mato, em Lisboa principalmente, é importantissimo, e é muito provavel que d'aqui a alguns dias esse combustivel se cote por preço superior ao actual, em virtude das obras do porto de Lisboa.
O mato, que até agora era depositado em varios pontos do Aterro, ha de ser deslocado para mais longe, e é evidente que o preço dos transportes ha de augmentar proporcionalmente á distancia percorrida, e aqui está o pretexto prompto, embora seja em parte ficticio, para a baixa do pão não corresponder á baixa do direito.
Repito, pois, que no commercio, uma vez elevado o preço de um genero, muito difficil se torna o retrocesso á cotação anterior, a não ser que se dê a concorrencia; mas esta não apparecerá de certo, porque todos os fabricantes são por igual interessados na sustentação do preço que, a pretexto do aggravamento dos direitos do trigo, fixarem ao pão.
Creio ter demonstrado que a faculdade que o governo se reserva é completamente inutil, e quer-me parecer que os clamores da agricultura portugueza não são rasão bastante para se proceder tão levianamente em assumpto tão melindroso. (Apoiados.)
Não me preoccupa a alimentação de todos os que comem pão; mas sim a d'aquelles que não comem senão pão; e ha muitos. Para esses uma differença de 10 réis em kilogramma importa uma perturbação profunda nos seus orçamentos semanaes, porque os orçamentos das classes operarias são feitos semanalmente, quando não são feitos dia a dia.
Aqui tem, pois, a camara, o que eu penso a respeito do augmento dos direitos sobre o trigo, e muito estimarei que as minhas previsões se não realisem.
Sei que na outra camara houve quem se lembrasse de aconselhar ao governo, como remedio para a crise cerealifera, o estabelecimento de uma fabrica nacional em que se moessem os trigos rijos. Folgo de ver que o governo não tenha acceitado esse alvitre, porque estou convencido que as despezas haviam de ser de tal ordem, que o estado havia de ficar sem compensação dos sacrificios que fazia.
(Interrupção que se não ouviu.}
São muito bonitos os orçamentos em livros, e as theorias são em geral magnificas, mas quando se chega á pratica vê-se que o resultado é muito diverso d'aquelle que se esperava.
Diz-se que são formidaveis os lucros da industria das moagens. Creio que são effectivamente remuneradores, mas não tão grandes como a muita gente se afigura, e sujeitos a diversas contingencias.
O lucro é grande, mas para chegar a esse resultado é necessario um enorme capital circulante, para chegar a esse lucro é necessario empate enorme em trigos e farinhas, porque, se não as venderem a credito, não têem quem lh'as compre. De um fabricante sei eu, em Lisboa, a quem um só freguez devia ha tempo constantemente 90:000$000 réis. O negociante era Manuel José Gomes e o freguez Eduardo Conceição e Silva, que tinha a fabrica de bolacha de Santo Amaro. O seu consumo mensal era na importancia de 30:000$000 réis, e como pagava a tres me-zes, o resultado era que a fabrica de Manuel José Gomes tinha um empate de 90:000$000 réis de capital, só para o consumo d'aquelle freguez. Não sei se hoje ainda succede o mesmo, mas é provavel.
As contingencias são muitas, porque embora o lucro final seja grande como é o resultado de um pequeno ganho multiplicado por um enorme coefficiente, qualquer desleixo, qualquer descuido o faz desapparecer. Nem todos que têem exercido a industria da moagem colheram esses beneficios tão cubiçados.
É negocio que depende de uma grande pratica, de conhecimentos especiaes e de uma vigilancia incessante. Não é facil achar quem o administre.
Ninguem ignora que a fabrica de Santa Iria, por exemplo, por circumstancias diversas, só ha pouco começou a dar resultados apreciaveis; um estabelecimento de caridade que por sua conta emprehendeu a moagem teve uma perda total e a fabrica de João de Brito, a mais antiga, durante muitos annos não tirou lucros, e nunca chegou ao grau de prosperidade que têem obtido Manuel José Gomes e Bellos e Formigaes.
Estes são os que despertam todas as invejas, os seus lucros são os que offuscam os lavradores.
Pois, sr. presidente, se têem sido grandes os lucros obtidos por estes industriaes, é porque reuniam qualidades difficeis de encontrar, e se as qualidades dos individuos, os seus esforços e as suas virtudes são necessarias para desculpar a sua prosperidade, ninguem como elles merece desculpa.
Manuel José Gomes foi um dos vultos mais sympathicos da nossa geração. Nasceu pobre, na ultima classe da sociedade. Era, em rapaz, garoto, de uma fragata; mas intelligentissimo, porque não podia chegar ao que chegou senão com muita intelligencia.
O barco em que navegava rio acima e rio abaixo, fazia fretes para Villa Franca, para Azambuja, para Benavente ou para Santarem. N'essas viagens com as sobras dos seus magros salarios comprava acertadamente um ou dois saccos de trigo que em Lisboa revendia com lucro, dos saccos passou aos moios e dos moios passou aos barcos.
Com o pequeno capital junto por esta fórma, foi arrendar moinhos de vento e de agua na Outra Banda. Chegou a ser proprietario ou rendeiro de quasi todos os que lá havia.
Já senhor de uma boa fortuna, mandou, o que poucos fariam, educar seus filhos em Inglaterra; mas mandou-os educar para moleiros, o que menos ainda fariam.
Quando voltaram, disseram ao pae. "Tudo que está aqui não presta para nada, é necessario deitar tudo fóra". E aquelle homem, já velho, que real a real edificára honesta e trabalhosamente a sua fortuna, aquelle homem que devia suppor-se superior na sua esphera, teve a rara coragem de obedecer ás indicações dos filhos e de comprometter quanto possuia, 200:000$000 réis, na construcção e montagem de uma nova fabrica. Quando a inaugurou, ouvi-lh'o muita vez, nada lhe restava alem do credito, que era grande. Colheu, o fructo da sua intelligencia, chegou a ter lucros annuaes, dizem, superiores a 100:000$000 réis. Santos lucros.
Homens como este, tão raros entre nós, apontam-se como exemplo do que póde valer o trabalho e a força de vontade, não se lhe regateiam os louvores, não se lhe inveja a fortuna, porque seria desanimar os que lhe queiram seguir a lição
E estes lucros que são enormes deixam de o parecer quando se provar que são obtidos com um movimento a que nunca chegou industria nenhuma em Portugal, com vendas de 240:000$000 réis de farinha por mez, não ganhando cousa alguma em metade d'essa venda. Era tal a sua freguezia que precisava mandar moer metade do que produzia, e sobre essa metade nenhum ou quasi nenhum lucro auferia.
Mas podiam todos ganhar como elle?
Manuel José Gomes, que nasceu por assim dizer a avaliar trigo e a fazer farinha, que, pegando n'um punhado de genero, dizia qual o seu rendimento, passava os dias no escriptorio, as manhãs e as noites na fabrica, dando ordens, examinando tudo que entrava e tudo que saía, não dando descanso nem a si nem aos outros; era um trabalhador incansavel.