DIARIO DA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO 901
projecto. Tanto isto assim é, que o sr. ministro, para alongar o debate, referiu-se a um decreto que foi, por assim dizer, a base da sua argumentação, que eu referendei.
Peço licença para fazer ligeiras considerações, a fim de mostrar ao illustre ministro que s. exa. está completamente enganado.
O decreto de 1852 não póde ter a interpretação que se quer attribuir.
Para comprehender bem o alcance das disposições de uma lei é necessario não só ler o texto d’essa foi mas ler o relatorio que a precede, que a fundamenta, e a discussão que a proposito d’essa mesma lei teve logar nas duas casas do parlamento.
Só d’este modo se póde comprehender o pensamento do ministro que trouxe ao parlamento a lei de i852, que tinha já sido publicada em ditadura.
Como auctor da proposta d’essa lei, e por isso que fui eu quem elaborou o relatorio que a procede, quem a defendeu em ambas as camaras, assidua-me o direito de explicar pensamento que presidiu á promulgação d’esse acto legislativo. Não quero, porém, insistir sobre similhante ponto.
A camara toda sabe que a minha idéa não podia ser outra senão a de accentuar a inconveniencia de estabelecer qualquer deducção nos titulos de divida fundada. Isso está claro no decreto, mais claro no relatorio, e eu não sei como é possivel que, depois do que ali se disse e expendeu, ainda hoje se levantem duvidas a tal respeito.
Eu entendi perfeitamente as expressões do meu amigo o sr. Antonio de Serpa quando na camara dos senhores deputados disse que podia o estado, podia a nação de vida merece representada, cercear de futuro, como entendesse conveniente, os titulos de divida publica.
Tendo eu a honra de fallar aqui, n’uma das ultimas sessões, declarei que ninguem podia contestar á nação soberana o direito do lançar impostos como julgar conveniente. Mas uma cousa é lançar imposto sobre titulos, manifestações de riqueza, que a lei considerou isentos d’esse imposto; outra cousa é ficar ao livre arbitrio dos poderes publicos tributar os titulos que de futuro se lançarem no mercado.
N’um caso temos a questão de direito, noutro a questão de conveniencia.
Emquanto á questão de conveniencia, como disse muito bem o meu amigo o sr., Carlos Bento no seu discurso sobre este assumpto, parece me que não ha nenhuma quando se emitte um titulo.
Dizer-se ao individuo: «Aqui tem estes papeis, que valem tanto, mas reservo me o direito de os fazer valer me nos», é um abuso que não utilisa em nada ao credito do paiz. Entretanto, o direito existe, é incontestavel.
As opiniões podem divergir, mas a questão de direito com relação aos titulos emittidos, em virtude do decreto ácerca d’aquella clausula, não tem contestação; não póde haver duas opiniões.
Não me satisfazem nem me convencem as opiniões do sr. ministro da fazenda com relação ao que se passa nas nações estrangeiras. N’essas nações não ha o decreto de 1852, não ha uma lei que dê garantia acertos titulos, declarando que não fica sujeito a deducção alguma o juro de certa divida.
Ha a formula geral dos titulos, mas uma lei expressa como o decreto de 1852 não ha.
Os exemplos de auctoridade são muito respeitaveis, sobretudo quando se referem a homens de governo e a estadistas illustrados; mas a maior de todas as auctoridades é a rasão humana, e por isso eu careço que me apresentem argumentos que me lerem á verdadeira realisação dos factos.
Quando se diz: «Fica isento de todo e qualquer impôs to», quer dizer que se póde lançar o imposto que só quizer? Isto é interpretação que se possa acceitar, ou que se possa apresentar? Não de certo. Não se póde acceitar, nem se póde admittir. E quando se quizesse ou podesse admittir, não apresentou o sr. ministro da fazenda o anno passado uma lei interpretativa para o decreto de 1852, porque alguem tinha duvidas a esse respeito? Póde tambem o sr. ministro dizer que as tem, mas desde que houve uma lei interpretativa não podem continuar a existir.
O parlamento fez uma lei interpretativa a outra lei, deu-lhe o verdadeiro sentido. Isto não produz, não tem effeito? Então de que vale a lei, se póde inutilisar-se n’um dia o que se fez no anterior? Destruir, porém, o que se fez, indo affectar terceiro, ainda produz muito peiores effeitos.
Todas as leis se podem revogar, mas quando uma lei produz certos effeitos; quando ha contratos realisados; quando se recebe um titulo, que á sombra de outra lei se declara que não é sujeito a imposto, e depois se lhe lança um tributo: quando se faz isto, burla-se a fé publica. Isto não é outra causa.
O estado póde ter grande necessidade de augmentar os interesses publicos, póde pedir augmento de receita, mas isso tem limites, os quaes não se devem transpor, que são os limites da boa fé e do credito publico.
E nós precisâmos viver ainda muito tempo debaixo do regimen do credito, e o credito não se sustenta assim.
A respeito dos titulos de divida fundada externa, entendo que desde que ha rasão para tributar a inscripções, a mesma rasão não póde deixar de haver para tributar aquelles titulos, mesmo pela natureza d’este imposto, que toma o caracter de dedução; não é imposto de renda, e o modo do imposto é tudo n’este caso principalmente. Se não fosse tudo o modo do imposto, estabelecia-se o imposto unico, a que não quero chamar iniquo; mas que se não estabelece, porque traria gravissimos inconvenientes debaixo do ponto de vista economico, e não se póde fazer de uma maneira precisa, justa e equitativa a sua distribuição, Seria, porém, um modo de simplificar extraordinariamente a quentão de fazenda.
Mas digo eu que em Portugal desde 1848 para cá, tem-se igualado, perante a lei, a divida publica interna com a divida publica externa.
Esta é a verdade dos factos, que está consignada nos documentos parlamentares e nas leis do estado. Por que rasão, pois, se quer fazer esta deducção só nos titulos de divida interna? Entendo que nós, ainda que carecemos muito de receita, deviamos poupar o mais possivel todos os nossos titulos de divida para não os considerarmos como fonte, de receita para o estado; mas uma vez que se quer ir ahi buscar recursos para o thesouro, acho que poupar os titulos de divida externa, não fazer n’elles, como sé pretende fazer nos de divida interna, a deducção que se propõe n’este projecto, é uma fraqueza, uma injustiça, que nunca se praticou.
Quando ouvi o outro dia aqui o meu illustre e antigo amigo o digno par o sr. Barros e Sá estar a sustentar a justiça do imposto sobre as inscripções, porque o homem rico que tem só inscripções não deve deixar de pagar imposto, como paga todo e qualquer que tenha outra, fonte de rendimento, por exemplo, bens de raiz, perguntava eu a mim mesmo; que justiça era esta em virtude da qual os titulos da divida publica que se chamam bonds pagaveis em Londres são isentos de imposto, e os titulos pagaveis em Lisboa hão de ser sujeitos a uma deducção? Que justiça é esta, perguntarei agora á camara?
Diz se, porém: são. poucos os estrangeiros que possuem titulos portuguezes de divida interna, que são poucos os casos em que póde haver essa injustiça. Basta que seja um, porque a justiça para ser justiça não carece de que sejam muito numerosos os casos em que tenha de ser applicada. A conveniencia póde preoccupar-se do maior ou menor de individuos que vão ser affectados com uma certa medida; nas a justiça, a verdadeira justiça, não se preoccupa com o ser grande ou pequeno o numero de individuos a que