882 DIARIO DA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO
normal, pelo poder executivo, substituindo-se, a despeito de todos os principios, ao poder legislativo!
Não sei qual era o direito publico em que o sr. ministro da guerra, que deu aquelle despacho, se baseou; o que sei, porém, é que até hoje é axiomatico, que a interpretação e a revogação das leis, nos casos normaes e situações ordinarias, é privativa e exclusiva do poder legislativo, e assim está consignado no nosso codigo fundamental.
Eu não quero entrar profunda e detidamente na discussão d'este projecto, por não ser occasião propria; apenas de passagem, e porque as côrtes vão-se fechar, é que eu chamo a attenção do sr. ministro, para que no intervallo da sessão estude este assumpto melindroso, e apresente á camara as providencias que a necessidade do exercito reclama.
Para s. exa. poder avaliar bem como no ministerio da guerra a anarchia da legislação reinava ali, basta acrescentar que, depois do despacho dado pelo sr. Fontes, determinando que o quadro legal para a engenheria seria o do decreto de 30 de outubro de 1868, e que ficava revogado o quadro estabelecido pelo decreto de 13 de dezembro de 1869, não obstante, no orçamento do ministerio da guerra d'este anno, apparece o quadro da lei revogada, isto é, o quadro do decreto de 13 de dezembro de 1869! Que é manifesta a contradicção, e antinomicas as disposições dos dois decretos, é incontestavel e evidente, e incontestavel e evidente é tambem a necessidade do governo prover promptamente de remedio a este mal.
Para se comprehender melhor a anarchia da legislação militar, pelo que respeita á engenheria, darei alguns esclarecimentos, pelos quaes a camara ficará, até certo ponto, elucidada ácerca das causas que deram origem a estes dois decretos, diametralmente oppostos, e contradictorios nas suas disposições.
Como v. exa. sabe perfeitamente, em 1868 o sr. Calheiros organisou a engenheria civil e militar, e creou o quadro, fixando-o em 100 officiaes.
Esse decreto foi substituido em 1869 por dois outros, e portanto revogado por elles: substituido pelo decreto de 18 de dezembro de 1869, do sr. Lobo d'Avila, que reformava e organisava a engenheria civil, e pelo de 13 do mesmo mez, do sr. Maldonado, que reformava e organisava a engenheria militar.
Depois seguiu-se o ministerio do sr. duque de Saldanha, que revogou pelo decreto de 22 de junho de 1870 o decreto de 18 de dezembro de 1869, do sr. Lobo d'Avila, ficando em vigor a legislação anterior.
O decreto da organisação da engenheria civil, do sr. Lobo d'Avila, e de engenheria militar, do sr. Maldonado, completam-se; revogado um, deve ser revogado o outro, porque ficava incompleto.
Não se fez; assim, e d'aqui nasce a necessidade impreterivel de serem substituidos os dois decretos antinomicos de 30 de outubro de 1868 e de 13 de dezembro de 1869.
Parece-me ter provado á evidencia a necessidade que ha de prover de prompto, pelo que respeita a engenheria, ás contradicções d'estes dois decretos.
Emquanto ás outras armas tambem se têem dado difficuldades, e tanto que a infanteria e cavallaria queixam-se que têem sido prejudicadas nas promoções.
Em 1864 o general Passos, reconhecendo que o exercito carecia de uma verdadeira reforma, publicou em 23 de julho de 1864 o seu plano, que foi declarado em vigor para o exercito por carta de lei da mesma data.
N'esse plano o general Passos creou e fixou, clara e precisamente, os quadros das differentes armas. Ésses quadros porem têem recebido varias modificações por leis especiaes, e não só n'este ponto o plano do general Passos tem sido modificado, mas n'outros muitos, sem que haja na legislação, que o tem substituido, harmonia, nexo, e o mesmo espirito; d'aqui resulta a multiplicidade de leis, sobre pensamento diverso; a desordem e a confusão nas suas disposições, atropellando-se umas ás outras, sem se saber a que vigora!
Por outro lado, temos o decreto do sr. marquez de Sá da Bandeira, relativamente ás promoções, o qual está suspenso por dois simples avisos publicados nas ordens do exercito!
Não obstante os tribunaes militares não reconheceram como legaes esses avisos, e consideram em vigor o referido decreto.
No meio de todo este labyrintho o que acontece é não se conhecer no ministerio da guerra a legislação applicavel em taes e taes casos, e encontrar-se muitas vezes o respectivo ministro em serias difficuldades.
Em vista, pois, do exposto, parecia-me conveniente, para occorrer a este mal, que s. exa. nomeasse uma commissão de homens competentes que elaborasse um plano de organisação do exercito, no qual se estabelecessem precisamente os principios de justiça que deviam regular as promoções, de fórma que todos os officiaes tivessem a convicção o a certeza de que encontrariam ali todas as garantias para a realisação dos seus direitos, e que s. exa., discutindo com esta commissão tão melindroso e interessante assumpto, aproveitasse d'ella o trabalho esclarecido, e na futura sessão, para o anno, apresentasse as providencias que reclama a anarchica legislação militar.
É necessario que se faça justiça a todas as armas e que cada um saiba que o seu direito está bem garantido, para não succeder o que está succedendo, que é a cavallaria e infanteria queixarem-se e queixarem-se com rasão.
Se o sr., ministro da guerra attender ao meu pedido, presta um grande serviço ao exercito, porque d'esse modo põe termo ás interpretações erradas que por vezes têem sido dadas ás disposições legaes, faz cessar o arbitrio, regula o que carece de regulamento, e dando completa e inteira garantia aos militares de que os seus direitos serão mantidos e respeitados, dará um passo acertadissimo, e que multo contribuirá para a disciplina do exercito.
Sr. presidente, se as reflexões que eu tive a honra de apresentar á camara não fossem bastantes para reclamarem a attenção do sr. ministro da guerra sobre aquelle assumpto, bastaria acrescentar que nos differentes quadros ha trezentos e tantos officiaes a mais, avultando o numero dos supranumerarios nas armas scientificas. Parece-me que este facto falla bem alto e revela a errada interpretação que se tem dado á lei.
Na lei do sr. general Passos estava regulada a fórma como só deveriam fazer as promoções dos officiaes que estão exercendo commissões dentro e fóra do ministerio da guerra.
N'essa lei estavam consignados os bons principios, de fórma que, attendendo á justiça, previa o que era rasoavel, e ao mesmo tempo attendia ao pensamento de ter bons officiaes. Nossa lei considerava-se que para se sor bom militar era mister que elle só occupasse só das cousas militares, o por isso estabelecia-se que aos officiaes em commissões fóra do ministerio da guerra se contaria o tempo para a reforma e seriam graduados, mas nunca promovidos para o exercito. Pois este principio tambem está revogado! Existe hoje um sem numero de officiaes, officiaes para um exercito de 400:000 ou 500:000 homens!
Não obstante, se houvesse guerra, talvez nem para 50:000 homens chegassem.
Esta é a verdade, infelizmente, e oxalá que assim não fosse.
Em resumo, o plano de 23 de junho de 1864 está quasi todo alterado por differentes leis, em que o pensamento não é o mesmo que dictou aquelle plano, que era harmonico e coordenado; o decreto do sr. marquez de Sá, de 1868, com força de lei, ácerca das promoções, está suspenso por dois avisos do ministerio da guerra publicados nas ordens do exercito, o que não se póde admittir á face dos principios, e tanto assim que o supremo tribunal de justiça militar considerou sempre em vigor esse decreto.