902 DIARIO DO GOVERNO.
do o adoptou, sem que houvesse tempo de ser e considerado em todas as suas consequencias, pelo que se vio logo embaraçada com as difficuldades da organisação de instituição tão inadquada.
Apontaremos em resumo os incovenientes deste estabelecimento, considerado pelo lado scientifico, politico, economico, que talvez devesse ser um dos primeiros, attenta a estreiteza de nossas circumstancias.
Ninguem duvida, que a Universidade de Coimbra tem sido, e, no estado em que se, acha actualmente constituida, e o corpo scienfico mais amplo, é mais completo não da monarchia, não só pelo grande numero daquelles, que professam e ensinam todos os ramos das sciencias naturaes e positivas, mas tambem daquelles, que as aprendem, pela multiplicidade de escólas, que alli se acham abertas, pelo complexo de primorosos estabelecimentos, que a adornam; em favor da qual existe uma especie de prestigio, ou de fanatismo nacional pelo seu credito, antiguidade, e grandes varões, que tem produzido.
Esta corporação no decurso de tantos seculos foi governada por conselhos compostos dos seus membros, que depois da reforma de 1772 foram substituidas pelo conselho dos decanos, congregações das faculdades, junta da fazenda, claustro pleno, e pela jurisdição e authoridade do reitor, tudo debaixo da immediata inspecção, o governo de Sua Magestade, e do protectorado nato e jurado dos Augustos. Reis de Portugal.
Tendo pois prosperado a universidade e as sciencias dela debaixo d'um regimen, ou conselho proprio, e para assim dizer domestico, não se pódia dar razão plauzivel para que seja substituido por um conselho estranha, heterogenio, e distante da principal instituição scientifica da reino. Não duvidamos chamar-lhe conselho estranho em relação á universidade, porque, poucos, ou nenhuns membros da mesma poderão tomar assento nelle; visto que os professores em exercicio mal poderão ser distrahidos das suas funções, para irem a Lisboa tomar parte nas deliberações do conselho; e os lentas jubilados menos se poderiam aproveitar neste serviço; porque de ordinario se concedem, estas jubilações, depois de longos annos de exercicio a pessoas valetudinarias, ou de avançada idade, que não trocariam seus pacificos habitos, e o ceo e clima de Coimbra pelo tumulto da capital, na declinação da idade, e na sua decrepitude.
Seguir-se-ia, que, os logares do novo conselho seriam preenchidos pelos professores das escólas maiores, ou menores de Lisboa, da quaes alguns, ha, pouco alumnos da universidade, ou recentemente graduados nella. Mancebos de talento, e de esperanças foram exercer o tirocinio do magisterio nas escólas de Lisboa; ou seriam occupados estes logares por outros dos ditos professores, que, não tendo frequentado as escolas da universidade, desconhecem praticamente o systema de estudos a estructura, e os methodos de ensino alli adoptados. Succederia pois que o conselho superior de Lisboa seria composto, ou de discipulos, e doutores moderno, derigindo scientificamente os seus mestres em Coimbra; ou de outros, que não tenham conhecimento cabal do systema scientifico daquelles, a quem deviam encaminhar, inspeccionar corregir, e talvez julgar do seu merecimento: resultaria desta organisação monstruosa a consequente desintelligencia entre a universidade e o conselho; nasceria a confusão, e lenta e progressivamente, e á força de contrariedades se iria aniquillando este instituto, privado da sua natural independencia, e bem entendida liberdade, revonvando-se com o andar do tempo as instituições filiaes contra a sua matriz, e pertendendo a arrogancia da infancia tomar o passo á virilidade.
O remedio deste mal, que seria a transferencia dos estudos da universidade de Coimbra para a capital, collocando a communidade, que tem de ser dirigida para junto dos seus directores, seria um mal muito maior que o que se pertende remediar; seria tirar a universidade da sua mui bella e commoda situação; de retiro para o tumulto; da disciplina para a insubordinação; da barateza para a carestia. As provincias do reino, principalmente as do norte, e a população de Coimbra olha para esta tentativa como de ominosa recordação e dominados todos desta popular preoccupação receiam, que, pela transferencia do conselho director para Lisboa, e pelo (privilegio de superioridade sobre a universidade, se vá preparando a sua futura mudança, ou que o nosso conselho, tão heterogenio, como estranho, se converta em instrumento permanente de destruição, e vá desmatttelando por partes este sumptuoso edificio, monumento o mais elevado da sabedoria aos nossos Reis.. Porém esta corporação conscia das intenções do auctor do additamento, e daquelles, que o approvaram, não participar destes receios; porém entendo que esta medida, menos prudentemente tomada, podera ter de futuro funestas consequencias.
A politica tambem não lucra nada com a creação deste conselho em Lisboa; porque o poder real, ou o governo de Sua Magestade, que até agora tinha immediata inspecção sobre a Universidade, nem se vigóra mais, nem se illustra com tal auxilio; por lhe he não poder subministrar os mesmos esclarecimentos de facto e de direito, que, com mais conhecimento de causa, lhe poderiam dar os conselhos da universidade, formados no seio delles; esta móla inutil não serviria a esclarecer, mas a intorpecer a inspecção da governo, sem outra differença mais que a de receber o governo algumas vezes de viva voz as informações do conselho em Lisboa, quando as do conselho da universidade lhe são dirigidas por escripto; o que parece ser mais uma ramo de conveniencia; por que em assumptos de tal natureza não carece o governo de uma acção prompta; antes o vagar das deliberações firma melhor o acerto.
O systema scientifico e do magisterio exige certa gradação hierarquica, fundada na superioridade do merito, ou na presumpção desta superioridade: é por isso que os professores mais qualificados, ou mais antigos, soffrem com reluctancia os preceitos, ou direcções, principalmente scientificas dos menos qualificados, ou mais modernos; e por consequencia a formação d'um conselho superior, composto de pessoas, que não reunissem; as qualificações de superioridade de illustração, excitaria a anarquia lilteraria, que é tão damnosa ao progresso dos estudos.
Não nos deixemos seduzir com o symbolo da denominada universidade de França, com o seu conselho e grão mestre, constituido no tempo de Buonaparte, e levantado sobre as ruinas de toda a insttrucção, que as violencias da revolução franceza haviam confundido e perturbado, por ser tida esta instituição gigantesca como concepção politica daquelle conquistador, e um instrumento de dominação tendente a subordinar todas as intelligencias, corporações de sabios, e alumnos litterarios daqualle vasto imperio, com centro commum em Paris, servindo de mola real desta grande maquina um grão mestre, e o seu conselho, que o principe ambicioso linha á sua disposição
Ainda mesmo aquelles, que são mediocremente versados na litteratura franceza, e na historia litteraria daquelle paiz, estão de accordo sobre os defeitos intrinsicos daquelle aparatoso instituto, que se poderia considerar mais como uma especie de igreja, politica, do que litteraria, sujeita a uma só cabeça, cuja maquina ficou comprimida em grande parte dos seus movimentos intellectuaes:, que perdeu a sua independencia, e liberdade scientifica, destituida das mólas da emulação, que tanto contribuem para o adiantamento das sciencias; e que de baixo d'um simulado principio, e systema de unidade ficou circumscripta em um circulo estreito de uniformidade e de rotina.
Os governos ulteriores de França, mais cordatos, que ambiciosos, deram a desvida attenção aos clamores dos sabios, que tem tractado deste assumpto, e tem feito modificações importantes no regimen desta vasta congregação, restituindo pouca a pouco a independencia aos corpos scientificos colligados, cujo aggregado moral fórma o que se chama universidade de França, conservando-lhe o centro na séde do imperio, aonde se acham fundados os mais importantes estabelecimentos litterarios e scientificos de toda a monarchia franceza: circumstancias muito differentes daquellas em que está Portugal, por se achar fóra de Lisboa o principal estabelecimento litterario do reino. Ninguem dirá, que a nação ingleza preza pouco as sciencias, ou que ellas não tenham alli um grande desenvolvimento; entretanto esta illustrada nação não tem reconhecido a necessidade d'um conselho superior para uniformar seus estudos, nem para pôr peas á liberdade, e vôos das humanas intelligencias; exemplo seguido em outros paizes do mundo civilisado.
Porém quando se entendesse, que era conveniente a creação d'um conselho superior em Lisboa com os attributos, e fôrma, que se lhe deu na camara dos srs. deputados, pela qual ficam isentas da sua jurisdicção e superioridade do conselho as escólas militares, e de marinha, bem, como os estudos theologicos, canonicos, e moraes, estabelecidos nos seminarios das differentes díoceses do reino com que razão, e sem a mais manifesta contradicção deverão ficar sujeitos áquelle conselho os amplissimos estudos da universidade, entre os quaes occupa um importante logar a arvore das sciencias theologicas e moraes, de que a religião e o estado tem colhido tão preciosos frutos? E se este projectado plano d'estudos ampliando o decreto de 5 de dezembro de 1836, na parte em creava escólas normaes de instrucção primaria, protrahiu estas escólas normaes em beneficio da instrucção feminil; porque fatalidade, ou inconsenquencia será a universidade privada da antiga e legitima regalia de ser considerada como escóla normal de ensino superior em Portugal?
Pelo que pertence ás razões d'economia, de que tanto carecemos, ellas saltam tanto aos olhos, que seria offender a prespicuidade da materia e a inlelligencia da camara o demorar sobre este assumpto. O serviço dos conselhos que regem a universidade e inteiramente gratuito, e insignificantes gratificações, que percebe o pequeno numero de vogais do conselho director, não podem ter comparação com á multiplicada despeza, que agora e com o andar do tempo, ha deter o novo conselho em capital do reino.
Não concluiremos esta franca exposição sem fallarmos sucessivamente de duas notaveis imperfeições, que contem o projecto de instrucção, principiado na outra camara consiste a primeira em se julgarem habilitados para a frequencia dos estudos superiores da universidade aquelles alumnos, que tiverem sido approvados nos estudos preparatorios, perante os respectivos lyceos, em que os frequentaram. Se a approvação geral do lyceo de coimbra, que se acha debaixo da inspecção da universidade, e cujos exames são presididos por um membro esclarecido, o escolhido della, não tem fechado a porta a uma indulgencia perniciosa, como poderá esperar-se, que lyceos, pouco inpeccionados, alguns recem-nascidos, e menos conceituados, mantenham a severidade tão necessaria em taes habilitações?
Além disto nem todos os alumnos, que frequentam os lyceos, se destinam aos estudos superiores, e seria uma sem-razão exigir de todos elles o mesmo grão de capacidade; é facil pois de ver, que os que se destinam aos estudos superiores devem fazer os seus exames perante os lyceos annexos aos estabelecimentos do instrucção superior, a que aspiram com prévia declaração do fim, a que se propõem.
Consiste a outra imperfeição na mal entendida liberalidade, com que se concede a conferencia dos gráos academicos aos alumnos das outras escolas, que não são as da faculdade de medicina da universidade. Na Europa culta não ha um instituto de sciencias medicas mais completo do que este.
As escólas medico-cirurgicas de Lisboa e Porto ainda não chegaram a esta perfeição, e nós entendemos que não devem chegar. Estas escólas foram instituidas com o fim de habilitar cirurgiões-operadores com sufficiencia de conhecimentos medicos em ordem de tornarem-se cirurgioes-intelligentes, é com a capacidade necessaria para poderem corar as molestias vulgares, que não carecem de estudos tão avançados, e podendo servir de uma maneira util ás classes menos abastadas, principalmente nas povoações ruraes.- Se naquellas academias se ensinasse como em Coimbra teriamos tres faculdades de medicina, quando uma é de sabujo para as necessidades do paiz: a despeza seria inteiramente inutil; porque ficariamos reduzidos á necessidade de instituir novas academias para crear cirurgiões, que podessem servir nos casos vulgares, e curar a gente-pobre. Parece por tanto uma medida inadquada o darem-se os graos nas academias de Lisboa e Porto, para que a qualificação dos graduados não servisse de motivo para que os cirurgiões-operamdores se sujeitassem a certos misteres de que precisam os doentes.
Voltando pórem em fim ao ponto vital desta representação, se a camara dos dignos pares entender na sua sabedoria, que os razões traçadas, como de improviso, e em poucas horas, sobre assumptos, aliás difficies, de tanta magnitude, e importancia politica literraria, e economica, carecem de maior de maeor desenvolvimento, e de mais tempo param serem cuidadosamente elaboradas, e maduramente meditados, poderia nesta hypothese extremar do projecto de lei de instrucção o principal, ou todos os tres pontos controversos, que ficam indicados, e