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SESSÃO N.° 11 DE 30 DE JUNHO DE 1911 5

Que differença entre esta situação e a da policia em Portugal, que encarcera sem motivo legal, mantem a prisão por tempo indefinido e contra a qual não ha effectivamente recurso algum legal!

D'esta forma o habeas corpus constitue uma legislação que limita e fiscaliza o poder executivo, como claramente o diz um publicista inglês: "A intervenção effectiva ou apenas possivel de writs de habeas corpus limita a acção do Groverno á estricta observancia da letra da lei. Em Inglaterra o Estado pode punir; o que não pode é prevenir o crime". Dicey, Lectures introductory to the law constitution).

O presente projecto de lei assenta, no seu espirito, na legislação similar inglesa, norte-americana e brasileira. Tanto porem a sua redacção como a forma de processo differem radicalmente d'essa legislação, e foram adaptadas aos costumes portugueses e á nossa jurisprudencia. E destinado a pôr um termo aos abusos do poder, a determinar claramente, effectivamente a separação de poderes, e a tornar effectiva a liberdade individual, que até hoje tem estado entregue ao arbitrio e abuso de qualquer cidadão investido em qualquer cargo publico. É inutil recordar aqui quanto a monarchia, representada por agentes policiaes sem honestidade nem escrupulos, usou e abusou dos poderes descricionarios que o poder executivo, unico que então tinha existencia real, lhe conferiu liberrimamente. Raros serão os membros d'esta Assembleia Nacional Constituinte que não lhe experimentaram os rigores, e lá fora, quer nas cidades quer nas mais remotas aldeias, o pobre e o fraco foram sempre as victimas indefesas do rico e do poderoso.

Não pode com o advento da Republica continuar a manter-se um tal estado de cousas. Não pode nem convem. A historia ensina que onde não ha liberdade não ha progresso. Se passarmos em revista as nações do mundo inteiro, é facil verificar que as mais progressivas são as que melhor comprehenderam e adaptaram os principios liberaes, não só sob o ponto de vista individual como mesmo na vida collectiva da Nação. A Inglaterra costuma ser apontada como um grande exemplo do que é e do que pode um povo livre. Ora a Inglaterra é o país em que melhor e mais efficazmente foi garantido o direito á Liberdade, sendo tambem o país clássico do habeas corpus. A par da Inglaterra caminham os Estados Unidos da America do Norte, os Estados Unidos do Brasil, mas ambas estas nações teem, na sua legislação, o habeas corpus, e á jurisprudencia que essa lei provocou devem em grande parte a reforma dos seus costumes e o grande progresso material e moral que fazem a admiração do mundo inteiro. Se examinarmos agora, embora succintamente, o estado de outros países nós verificamos que o seu progresso é tanto mais lento quanto menor é a liberdade de que gozam.

Basta comparar o estado de adeantamento dos seguintes países: Suissa, França, Espanha, Russia, Turquia, Sião e Marrocos.

Ora este projecto de lei procura remediar velhos vicios de organismo social e, pela acção lenta e continua da sua execução, educar o nosso povo na noção justa da liberdade.

Assim fica legislado, logo no artigo 2.° e seus numeros, que a privação da liberdade individual dos cidadãos se pode unicamente dar em duas hypotheses: Flagrante delicto ou despacho judicial legal que ordene e mantenha a prisão.

Estas duas disposições são essenciaes, visto que o regime de arbitrio a que a Nação tanto tempo esteve sujeita radicou nos costumes nacionaes o erro de que á autoridade tudo era licito e que ao cidadão cumpria apenas obedecer á determinação do occasional detentor da forca material.

Todos nos recordamos da chamada lei de 13 de fevereiro que, a pretexto de anarchismo, dava ao juiz de instrucção criminal a faculdade de poder ordenar a prisão de qualquer pessoa, conservando-a sob custodia por tempo indefinido e sem que o detido pudesse recorrer a qualquer meio de defesa.

Foi por este processo summario, verdadeiro crime que a Nação jamais perdoará, que para Timor foram mandados muitos pensadores, cuja intelligencia deveria antes ser aproveitada na metropole, mas de que a monarchia precisava livrar-se, porque a liberdade era a sua perda e o obscurantismo e a ignorancia a unica garantia de vida, miseravel vida! que lhe restava.

Não basta porem assentar no principio fundamental de que só o flagrante delicto ou o mandado legal podem privar o cidadão da sua liberdade. É preciso tornar effectivo esse direito, submettendo á resolução do corpo judicial os casos de duvida ou os attentados que, contra a lei, forem commettidos. A conseguir esse resultado visam os seguintes artigos de lei, pela forma nelles expressa, que nos parece garantia de effectiva execução:

O artigo 17.° estabelece que:

"Se alguem for violentado ou constrangido por vias de facto a fazer ou deixar de fazer alguma cousa, sem que isso venha disposto em lei expressa, poderá requerer ao juiz da comarca ou vara eivei da sua area para ser restituido á continuação ou ao exercicio do seu direito ou funcções".

E no § 2.°:

"Esta disposição é applicavel aos funccionarios que, contra a lei, sejam multados, suspensos, aposentados ou demittidos pelos seus superiores, hierarchicos das respectivas repartições, tribunaes ou serviços".

Estas disposições parecem-nos necessarias a fim de garantir especialmente a liberdade profissional do cidadão, contra a qual tão frequentemente se exercia o arbitrio no passado regime e para cujo remedio não havia recurso.

O artigo 23.° estabelece que:

"Em execução commum, particular ou da fazenda publica, não pode o devedor ser esbulhado do necessario para sustento da sua familia, que com elle vive, durante tres meses, nem da parte da casa e mobilia indispensaveis para com a mesma familia viver seguidamente".

E uma simples questão de humanidade a que suggeriu a introducção d'este artigo no projecto de lei.

Com effeito, é deshumana crueldade privar alguem da habitação e do sustento, para si e para sua familia, quando a desgraça lhe bate á porta. Propositadamente se deixou ao criterio do juiz a interpretação mais ou menos latitudinaria da palavra - indispensaveis - porque só circunstancias de occasião o podem guiar naquillo que for justo e equitativo.

Ainda o artigo 25.° dispõe:

"Se algum regulamento relativo a leis existentes e não votado pelo Parlamento ou posturas municipaes, contiver disposições oppostas a preceitos de lei em vigor e se quaesquer autoridades pretenderem fazer prevalecer sobre a lei esses regulamentos ou posturas municipaes ou ainda quaesquer ordens superiores recebidas por circular, portarias ou officios, todo o cidadão constrangido com esse facto poderá requerer a observancia da lei, o que pelo juiz será ordenado nos termos geraes d'este decreto".

E esta mais uma providencia que nos parece indispensavel, tirada tambem da lição dos factos observados no tempo da corrupção monarchica, quando a lei era facilmente sophismada por meio do respectivo regulamento. Dava-se mesmo por vezes o caso curioso de uma lei determinar uma cousa e o regulamento d'essa lei, outra diametralmente opposta. Era sempre o commodo regulamento que se executava, pondo-se de lado a letra e o espirito da lei.

Com a garantia do artigo 25.° d'esta proposta de lei, não mais o abuso poderá ser efficaz e impunemente commettido.