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4 DIARIO DA ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE

Alem d'isso as touradas infringem o preceito fundamental e humanitario de que o homem não deve maltratar os animaes, principalmente quando d'esse condemnavel recurso não tenha necessidade. E nas touradas, longe de ter necessidade de os maltratar, maltrata-os, por um lado, pela ansia egoistica do lucro avaro que leva toureiros, e por consequencia "cultores da força bruta", a morrerem milionarios, emquanto que grandes sabios, artistas sublimes, inventores benemeritos e bemfeitores da humanidade morrem na mais arffontosa pobreza, e, por outro, pelo desejo cruel e deshumano de se divertir e de dar o prazer dos sentidos aos selvagens que assistem a esses espectaculos do barbarismo antigo.

Esquecem todas essas desalmadas criaturas não só que os bois são dos animaes mais generosos, mais dóceis e mais uteis que, ao lado do homem e como os seus melhores amigos, passam a vida laborando a terra ou arrastando cargas pesadissimas, mas esquecem tambem o doce e amoravel Michelet, quando exclamava:

"O animal! doloroso mysterio! Mundo immenso de sonho e de dores silenciosas... em que ha sinaes, bem visiveis, a exprimirem as suas dores, apesar da falta da sua linguagem. Toda a Natureza protesta contra a barbaridade do homem que despreza, avilta ou tortura o seu irmão inferior!".

Com effeito, Srs. Deputados, eu lembro-me de ouvir um dia, em Paris, exprimir-se um conferente nestes termos:

"O homem completo, quer dizer, o homem dotado de todas as suas faculdades physicas e intellectuaes, será, apesar d'isso, um ser inferior, se não tiver em si o sentimento que o faça conter onde possa causar soffrimento ao seu semelhante, ou a um animal bom e util.

Este sentimento deve fazê-lo conter, não só quando se trata dos seus iguaes, mas tambem quando tenha de fazer soffrer, maltratando-os, os mais innocentes de todos os seres da criação natural e universal - os animaes chamados inferiores - os quaes, em regra, precisamente pela sua bondade, só respondem aos ataques pela paciencia, pela doçura e pela obediencia". [

Irmãos inferiores, lhes chamou Michelet, na sua linguagem cheia de encanto e doçura! Mas simplesmente nossos irmãos lhes chamam sabios da estructura mental de Hseckel, affirmando, em primeiro logar, fundados nas leis biologicas da evolução e da selecção naturaes, que, tendo todas as especies animaes, partindo de uma origem commum, cruzado toda a gamma ou escala zoologica até ao primata, e d'este até o typo hominiano, d'ahi resulta não haver animaes superiores e inferiores, mas relatividade e especialização de orgãos e funcções, e affirmando em segundo logar que, se o homem é mentalmente superior, o deve ao facto de ter sido desenvolvido no sentido da vida cerebral ou intellectual, não sendo porem superior ao pássaro que voa, ao peixe, que vive debaixo de agua, ao ca-vallo e ao cão na carreira e no olfacto (faro) e ao boi, em força, a puxar a uma nora, ou a puxar a uma carroça.

Os animaes! Quem ha ahi que se lembre da sua sympathia muda pelo homem e principalmente pelas crianças? Da sua dedicação? Da sua fidelidade a toda a prova?

Quem ha ahi que pense em que elles são a unica consolação de tantas e tantas criaturas humanas?

Sem falar do cavailo do arabe, do cão de S. Bernardo, do elefante do Cornac, do boi do lavrador, eu penso, nesta hora amorosa e doce de contemplação dos animaes, nos milhares de cães, gatos e pássaros, que são a uica alegria e a unica companhia de outras tantas criaturas humanas que estão no mundo sem outra affeição, sem esperança, sós e tristes na vida, e que não teem sequer outros confidentes das suas penas, a não serem esses por vezes intelligentes e bem dedicados e amoraveis animaes, que ellas mesmas protegem, affagam e acariciam, dir-se-hia que vivendo só para elles e porque elles vivem.

Pieguice minha?

Não, não é tal, que eu não conheça quadro mais tocante e mais commovente do que esse do homem ou da mulher privados de amor, e que fazem de um pobre animal o seu confidente, o seu amigo, o seu quasi igual.

Que quadro este: - o cão conduzindo com mil cuidados o mendigo cego!

Camões era grande psychologo:

Põe-me onde se use toda a feridade
Entre leões e tigres, e verei
Se nelles achar posso piedade
Que entre peitos humanos não achei.

Esta linda estancia do épico faz-me lembrar o conceito de Joseph de Maistre:

"Eu nunca vi a alma de um bandido. Mas desci á de um homem de bem e senti pavor. Era horrivel!".

E aqui está a razão porque alguns homens de bem vão ainda ás touradas: E por que a sua alma é horrivel.

Entre todos os prazeres, como o da caça e o da guerra - precisamos não o esquecer, Srs. Deputados - eram as touradas um dos espectaculos mais especialmente dilectos do regime monarchico, de odiosa e execravel memoria.

Por ser um prazer realmente monarchico e aristocratico, era nelle, acima de todos, que se davam rendez-vous não só os membros da familia real por nós desthronada, mas os seus acolytos suppurando cretinismo, porque a alma e a educação de sentimentos bons lhes não permit-tiam que pusessem os olhos, myopizados pelo egoismo e pela crueldade, em espectaculos mais generosos, mais uteis, mais humanos.

A sua caridade, fria, egoista, incerta, e desigual, visto que era só para os seus adeptos; bello luxo, porque lhes dava ensejo para ostentações caras; hypocrita, porque vizava a criar anjos de caridade com asas de pau e coração de pedra... de Orleans e de Bragança, - a sua caridade, em regra, procurava receitas immundas, ou á custa da tortura e da agonia de animaes nobres e bons como os bois, e lindos, amorosos e elegantes como os pombos, ou á custa do suor do povo que caia nas armadilhas, e do sangue e da vida de picadores que morriam nas arenas, como no caso tragico do cavalleiro Fernando de Oliveira.

A infamia subiu tão alto, que a monarchia chegou a pôr as suas melhores carruagens á disposição de toureiros-amadores, distincção que jamais concedeu aos socios de associações fundadas com intuitos mais civilizadores e humanitarios do que o Club Tauromachico, e honraria que, para um homem da grandeza moral e mental de Salmeron, substituiu pela iniquidade de o mandar pôr, acompanhado de um esbirro, na fronteira espanhola.

Desculpae-nos, Srs. Deputados! Não nos esqueceremos do respeito que vos devemos, do logar em que estamos, e do que devemos a nós mesmo; mas é-nos impossivel falarmos da monarchia, sem mil vezes lhe cuspirmos em cima a náusea do nosso desprezo.

As touradas, arte de praticar selvajarias, constituem, alem do mais, um perigo serio para a integridade physica e para a vida dos que nellas tomam parte activa, e até, algumas vezes, para as dos proprios espectadores.

Espectaculos sanguinarios e repugnantes, que só documentam o atraso da nossa civilização - digamos a frase, assumindo-lhe a responsabilidade - espectaculos de selvagens sem coração, sem entranhas, e sem sentimentos de humanidade, contribuem espantosamente para endurecer o coração humano, para tornarem as almas insensiveis ao soffrimento e á dor, e crueis e ferozes os instinctos do povo que os presenceia, podendo dizer-se, com segurança, que são a causa, remota e indirecta, de muitos crimes publicos e particulares.