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REPÚBLICA PORTUGUESA

SECRETARIADO DA ASSEMBLEIA CONSTITUINTE

DIÁRIO DA ASSEMBLEIA CONSTITUINTE

QUINTA-FEIRA, 4 DE DEZEMBRO DE 1975 * NÚMERO 89

SESSÃO N.º 88, EM 3 DE DEZEMBRO

Presidente: Ex.mo Sr. Vasco da Gama Fernandes

Secretários: Ex.mo Srs. António Duarte Arnaut
Carlos Alberto Coelho de Sousa
José Manuel Mala Nunes de Almeida

SUMÁRIO: - O Sr Presidente declarou aberta a sessão às
1O horas e 4O minutos.

Antes da ordem do dia. - Foi aprovado o n.º 85 do Diário da Assembleia Constituinte
Deu-se conta do expediente
Foi lida uma exposição apresentada na Mesa pelo Sr. Deputado Levy Baptista (MDP/CDE), em que a União de Resistentes Antifascistas Portugueses expõe ao Sr. Presidente da Assembleia Constituinte a sua preocupação pelo avanço da reacção e a necessidade de se defender a liberdade, a democracia e o socialismo de perigos claros e imediatos. O Sr Deputado Pedro Roseta (PPD) prestou homenagem ao povo português e à parte sã das suas forças armadas, que souberam derrotar os aventureiristas contra-revolucionários e antidemocráticos. Fez a análise do que denominou de golpe para instaurar uma ditadura terrorista de pseudo-esquerda e referiu a acção dos SUV, do MES, PRP/BR, FSP, MDP, LUAR e de outras forças da FUR, bem como do PCP, que com a sua política ambígua se tornou co-responsável no referido golpe. Terminou com o apelo às forças armadas e aos três partidos democráticos representados na
Camará para que tudo façam no sentido da devolução ao povo da soberania que só a ele pertence. O Sr. Deputado Vital Moreira (PCP) interpelou o orador, solicitando esclarecimentos.
O Sr. Deputado Sottomayor Cardia (PS) referiu-se à sessão antidemocrática de partidos e grupos fanatizados que como era previsível, tentaram a conquista do poder pela força. Apontou as circunstâncias que rodearam o golpe e a acção decisiva do povo, das autoridades e das forças militares na neutralização da insurreição Terminou com a afirmação de que, vencida a batalha da liberdade, se seguirá vitoriosa a batalha da economia e, consequentemente, a vitória da democracia e do socialismo em liberdade.
O Sr. Deputado Kalidás Barreto (PS) comentou a política confusionista que se vive e que de modo algum serve os interesses dos trabalhadores. Apelidou de utópicas, de toucas e contra-revolucionárias as acções manipuladoras do povo e dos soldados, que nada têm que ver com uma autêntica luta de classes, terminou afirmando que o momento é de reflexão e de trabalho, e não de alarmismo, e apelou para que as classes trabalhadoras se mantenham mobilizadas e vigilantes na construção da democracia e da liberdade, e na luta contra o fascismo e o capitalismo, mantendo uma verdadeira disciplina de esquerda, sem margens para golpismos.
O Sr. Deputado José Ferreira Júnior (PPD) fez a análise político-militar de que resultou o movimento de 25 de Abril, referindo a previsão de três grandes fases que se seguiriam no processo político português. Criticou o processo político e o seu desenvolvimento até ao momento presente e a posição do PCP nessa conjuntura. Terminou afirmando a sua confiança em que o povo português construirá uma sociedade justa, progressiva, fraterna, uma sociedade socialista democrática.

Ordem do dia. - Prosseguiu a formulação de declarações de voto, apresentadas pelos grupos parlamentares, relativas ao relatório da 5.ª Comissão (Título III - Organização do poder político). Para o efeito usaram da palavra os Srs. Deputados Levy Baptista (MDP/CDE) e Jorge Miranda (PPD). Iniciou-se, seguidamente, o debate na generalidade do referido relatório, tendo usado da palavra os Srs. Deputados Sottomayor Cardia (PS), Jorge Miranda (PPD), Fernando Roriz (PPD), Marcelo Rebelo de Sousa (PPD), Vasco da Gama Fernandes (PS), Freitas do Amaral (CDS), Nuno Cadinho de Matos (PS), Olívio França (PPD), Carlos Candal (PS), Vital Moreira (PCP) - que respondeu ainda a pedidos de esclarecimento solicitados pêlos Srs. Deputados Sottomayor Cardia (PS), Eurico Correia (PS) e Olívio França (PPD)- José Luís Nunes (PS) - que foi interpelado, para um pedido de esclarecimento, pelo Sr Deputado Coelho dos Santos (PPD) - e José Augusto Seabra (PPD).
A seguir à intervenção do Sr. Deputado Vital Moreira {PCP), foi lido pelo Sr. Deputado Carlos Candal (PS) o relatório da Comissão de Verificação de Poderes, que verificou os poderes dos candidatos Fernando Jaime Pereira de Almeida, Maria da Conceição Rocha dos Santos e Gilianes Santos Coelho, em

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substituição, respectivamente, de Fernando Alves Tomé dos Santos, Fernando José Capelo Mendes e Alberto Marques Antunes e sobre a efectivação de Deputados eleitos que hajam cegado funções no Governo por que tenham oportunamente optado.

O Sr Presidente declarou encerrada a cessão às 19 horas e 45 minutos,

O Sr Presidente: - Vai proceder-se à chamada.
Eram 10 horas e 20 minutos.

Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes
Srs. Deputados:

CDS








MDP/CDE Levy Casimiro Baptista.
Manuel Dinis Jacinto.

PCP

Eugénio de Jesus Domingues.
Fernanda Peleja Patrício.
Fernando dos Santos Pais.
Francisco Miguel Duarte.
Hilário Manuel Marcelino Teixeira.
João Terroso Neves.
José Manuel da Costa Carreira Marques.
José Manuel Maia Nunes de Almeida.
José Pedro Correia Soares.
Vital Martins Moreira.

PPD

Amândio Anes de Azevedo.
Antídio das Neves Costa.
António Coutinho Monteiro de Freitas.
António Joaquim da Silva Amado Leite de Castro
António Maria Lopes Ruano.
António Moreira Barbosa de Melo.
António Roleira Marinho.
António dos Santos Pires.
Arcanjo Nunes Luís.
Armando António Correia.
Armando Rodrigues.
Artur Videira Pinto da Cunha Leal.
Carlos Alberto Branco de Seiça Neves.
Carlos Alberto Coelho de Sousa.
Carlos Alberto da Mota Pinto.
Carlos Francisco Cerejeira Pereira Bacelar.
Custódio Costa de Matos.
Emanuel Nascimento dos Santos Rodrigues.
Fernando Adriano Pinto.
Fernando Barbosa Gonçalves.
Fernando José Sequeira Roriz.
Fernando Monteiro do Amaral.
Germano da Silva Domingos.
João Baptista Machado.
João Bosco Soares Mota Amaral.
João Manuel Ferreira.
Joaquim Coelho dos Santos.
José Carlos Rodrigues.
José Ferreira Júnior.
José Francisco Lopes.
José Theodoro de Jesus da Silva.
Luís Eugênio Filipe.
Maria Augusta da Silva Simões.
Maria Élia Mendes Brito Câmara.
Maria Helena da Costa Salema Roseta.
Nuno Aires Rodrigues dos Santos.
Olívio da Silva França.
Pedro Manuel Cruz Roseta.

PS

Adelino Teixeira de Carvalho.
Afonso de Carmo.
Agostinho Martins do Vale.
Alberto Augusto Martins da Silva Andrade.
Alcides Strecht Monteiro.
Alfredo Fernando de Carvalho.
Alfredo Pinto da Silva.
Álvaro Monteiro.
Amarino Peralta Sabino.
Amílcar de Pinho.
António Cândido Miranda Macedo.
António Duarte Arnaut.
António José Gomes Teles Grilo.
António José de Sousa Pereira.
António Mano Diogo Teles.
António Rico Calado.
Aquilino Ribeiro Machado.
Armando Assunção Soares.
Artur Manuel Carraça da Costa Pina.
Beatriz Almeida Cal Brandão.
Bento Elísio de Azevedo.
Carlos Cardoso Lage.
Casimiro Paulo dos Santos.
Domingos do Carmo Pires Pereira.
Emídio Pedro Águedo Serrano.
Etelvina Lopes de Almeida.
Eurico Manuel das Neves Henriques Mendes.
Eurico Teimo de Campos.
Flórido Adolfo da Silva Marques.
Francisco Carlos Ferreira.
Francisco Xavier Sampaio Tinoco de Faria.
Isaías Caetano Nora.
Jerónimo Silva Pereira.
João Pedro Miller de Lemos Guerra.
Joaquim Gonçalves da Cruz.
Joaquim Laranjeira Pendrelico.
Joaquim de Oliveira Rodrigues.
José Alfredo Pimenta Sousa Monteiro.
José Augusto Rosa Courinha.
José Fernando Silva Lopes.
José Luís de Amaral Nunes.
José Maria Parente Mendes Godinho.
Júlio Pereira dos Reis.
Ladislau Teles Botas.
Laura da Conceição Barraché Cardoso.
Luís Abílio da Conceição Cacito.
Luís Geordano dos Santos Covas.
Luís Maria Kalidás Costa Barreto.
Luís Patrício Rosado Gonçalves.
Manuel Ferreira Monteiro.
Manuel Ferreira dos Santos Pato.
Manuel Francisco da Costa.

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Manuel João Vieira.
Manuel Joaquim de Paiva Pereira Pires.
Manuel da Mata de Cáceres.
Manuel Pereira Dias.
Manuel de Sousa Ramos.
Maria da Assunção Viegas Vitorino.
Maria Helena Carvalho dos Santos Oliveira Lopes.
Maria Rosa Gomes.
Maria Virgínia Portela Bento Vieira
Mário Augusto Sottomayor Leal Cardia
Mário de Castro Pina Correia
Mário de Deus Branco.
Mário Manuel Cal Brandão
Pedro Manuel Natal da Luz.
Raquel Júdice de Oliveira Howell Franco
Rui António Ferreira da Cunha.
Rui Maria Malheiro de Távora de Castro Feijó
Vasco da Gama Fernandes.

O Sr. Presidente: - Mesmo à tangente. Estão presentes 126 Srs. Deputados, pelo que declaro aberta a sessão.

Eram 10 horas e 40 minutos.

ANTES DA ORDEM DO DIA

O Sr. Presidente: - Está em aprovação o n.º 85 do Diário da Assembleia Constituinte.
Ninguém se opõe, portanto considera-se aprovado.
Aceitam-se reclamações quanto aos n.ºs 86 e 87.
Vai proceder-se à leitura do

Expediente

O Sr. Secretário (António Arnaut): - Temos somente um ofício da Federação dos Bombeiros do Distrito de Leiria, que vou ler:

Pelo Diário da Assembleia Constituinte, n.º 75, de 4 de Novembro, teve esta Federação conhecimento da intervenção feita em prol dos bombeiros pelo Sr. Deputado pelo PPD João Manuel Ferreira.

Esta Federação, na sua última reunião, deliberou transmitir a V. Ex.ª a sua satisfação por tão oportuna intervenção e solicitar todo o apoio que o Sr. Presidente possa dar a tão justa e digna causa, como é, neste caso específico, a defesa das vidas e bens que estão confiados aos bombeiros.
A todos os dignos Deputados dessa Assembleia Constituinte vão igualmente os nossos agradecimentos, pois o bombeiro nas suas funções não tem qualquer credo político, religioso ou opção de raça, porque todo o ser humano é para ele, em todas as circunstâncias, merecedor da sua abnegação.

Com os meus melhores cumprimentos.

O Secretário, Joaquim Albano Teixeira de Amaral, capitão.

O Sr. Deputado Levy Baptista, do MDP/CDE, fez neste momento entrega de uma exposição que vou ler:

Exmo. Sr. Professor Henrique de Barros, Presidente da Assembleia Constituinte.
Srs. Deputados.

A União de Resistentes Antifascistas Portugueses, profundamente preocupada com o crescendo das actividades reaccionárias, com os acontecimentos dos últimos dias e com o eventual desenvolvimento da situação, vem, perante a Assembleia Constituinte, manifestar o seu sentimento de que se torna necessário defender a Liberdade, a Democracia e a via socialista de perigos claros e imediatos.
São as próprias conquistas democráticas e sociais do 25 de Abril que estão seriamente ameaçadas. Estão ameaçadas as liberdades individuais, as garantias elementares do exercício dos direitos de cidadania. A repressão renova o clima de intimidação e de desconfiança, atinge fileiras antifascistas, abre fendas por onde poderão infiltrar-se agentes de forças do fascismo e da reacção.
Cremos, na nossa qualidade de militantes e de resistentes antifascistas, que a Assembleia Constituinte tem o dever de tomar posição contra esta situação carregada de perigos e que põe em risco o curso da nossa Revolução e a existência de instituições verdadeiramente democráticas.
Permitimo-nos, igualmente, chamar a atenção da Assembleia Constituinte para a situação em que se encontram dezenas de antifascistas que foram detidos para averiguações, intencionalmente afastados das famílias e locais de residência, em flagrante contraste com o procedimento adoptado em relação aos promotores de actividades de iniludível carácter reaccionário, a inimigos do povo e da Revolução que vêm beneficiando de censuráveis facilidades e de complacentes lentidões processuais.
Consideramos, Sr. Presidente e Srs. Deputados, que a proclamada divisão do País em zonas pretensamente antagónicas, a qual chegou a ser encarada como base de uma manobra envolvente de carácter reaccionário, foi acentuada com a declaração do estado de sítio na área da Região Militar de Lisboa, que, a despeito das alegadas vantagens de operações de segurança pública, contribuiu perigosamente para manobras de reacção, particularmente porque se privou o povo de uma
completa informação.
Neste contexto, não podemos deixar de chamar a atenção do Sr. Presidente e dos Srs. Deputados para a intensa utilização, durante o estado de sítio, dos órgãos de comunicação social (rádio e televisão) numa campanha de acção psicológica que fornece uma versão unilateral dos acontecimentos.

Pelo Secretariado Provisório da União de Resistentes Antifascistas Portugueses: Joaquim Angelo Caldeira Rodrigues - José Maria do Rosário - Ramon de La Féria.

Uma voz: - O Américo Duarte tinha assinado isso.

O Sr. Secretário: - O Américo Duarte não assinou.

O Sr. Presidente: - No período de antes da ordem do dia, tem a palavra o Sr. Deputado Pedro Roseta.

O Sr. Pedro Roseta (PPD): - Sr. Presidente,
Srs. Deputados: As minhas primeiras palavras têm de ser de homenagem ao maravilhoso povo português

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e à parte sã das suas forças armadas, que souberam derrotar os aventureiros contra-revolucionários e antidemocráticos que quiseram instaurar entre nós uma nova ditadura. O povo demonstrou, como já aqui foi dito, o seu apego à democracia, nas horas difíceis, que vivemos, tomando parte activa na sua defesa, quer em Monte Real, quer em Aveiro, onde vigiou o acesso às bases aéreas de S. Jacinto e Cortegaça, quer na imponente manifestação realizada em Coimbra, no próprio dia do golpe frustrado, quer ainda pelo seu comportamento em todo o País, dentro e fora da região onde foi proclamado o estado de sítio parcial.
A esmagadora maioria das forças armadas, por seu lado, soube interpretar os desejos do povo e defender a democracia. Os homens do Regimento dos Comandos e de outras unidades ficarão na memória colectiva como aqueles que não só não atraiçoaram os seus irmãos, como defenderam a sua liberdade e a sua vontade livremente expressa. Destaco, com emoção, aqueles que ofereceram a vida ao serviço dos portugueses e pela sua liberdade. A esses, o povo consagrou-os já como heróis da Pátria.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: Muitas vezes, aqui e lá fora, o PPD chamou a atenção pública para os riscos que as forças antidemocráticas, os civis armados e certos chefes militares irresponsáveis faziam correr à democracia e ao País. Não têm conta ai vezes que o PPD denunciou os que tentavam provocar um golpe de direita, que constantemente anunciavam, para, através de um contragolpe, procurarem instaurar a sua ditadura terrorista de pseudo-esquerda.
Afirmámos sempre que essas forças não hesitariam em realizar o seu próprio golpe e tomarem o Poder em Lisboa para depois, pela força e pelo terror, tentarem dominar todo o País. Denunciámos também a subversão, o incitamento à indisciplina militar em que, em fase mais recente, essas forças se vinham empenhando. Apontámos, finalmente, o absurdo de no Governo se conterem representantes de forças que, como se veio a provar, pretendiam destruir a democracia.
Os factos, infelizmente, confirmaram o bem-fundado dos nossos avisos. Felizmente, por outro lado, não nos enganámos, também, ao prever que o povo não permitiria o triunfo de golpes antidemocráticos.
Mas, se há agora, por um lado, que dar a conhecer ao País que forças participaram na contra-revolução atentando contra a vontade da maioria do povo, há, por outro lado, que saber quais os riscos que ainda corre a democracia em Portugal.
Que forças políticas, Srs. Deputados, que forças minoritárias fizeram correr o risco de guerra civil, pretenderam instaurar uma ditadura terrorista-comunista e, no caso de não o conseguirem, quiseram abrir as portas à ditadura de extrema-direita?
Quem prefere, falando claro, logo a seguir à sua ditadura, o fascismo, e quer evitar, a todo o preço, que o povo português prossiga, seja pela social-democracia, seja por outra via democrática, a construção de um socialismo democrático? Quem tem medo que lhe seja retirado o espaço político e o pouco apoio popular que o seu falso socialismo totalitário ainda consegue recolher?

Uma voz: - Muito bem!

O Orador: - Evidentemente que não ignoramos que, além dos poucos militares que se deixaram manipular, os SUV, o MES, o PRP/BR, a FSP, o MDP, a LUAR e as outras forças da FUR se confessam implicados no golpe. Mas, atendendo a que a pouca força real dessas organizações - algumas das quais, como se sabe, não passam de meros grupúsculos mais ou menos histéricos - não seria suficiente nem para gizar nem muito menos para executar um plano desta envergadura, importa ver que força tinham por trás os revoltosos, até ao momento em que se verificou que o golpe ia falhar.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: Assistimos ontem aqui a um dos mais espantosos casos de hipocrisia política da história, só comparável à presença do célebre conspirador Lucius Catilina no Senado Romano.
O Partido Comunista, que sempre apoiou e incitou os militares e as organizações que fizeram o golpe e apesar de existirem provas notórias da sua culpabilidade, apresentou-se aqui quase como vítima e desenvolveu um arrazoado de explicações que nada adiantaram. Preocupou-se com as liberdades que diz, agora, ameaçadas, ele que acaba de tentar destruí-las! O inquérito em curso, estamos cientes, não deixai á de revelar o envolvimento desta organização. Mas já diversos factos, na sua frieza, na sua crueza, falam bem claro.
l - Em primeiro lugar, saliento a falta de apoio do PC às medidas tomadas pelo Presidente da República, pelo Conselho da Revolução e pelo Estado-Maior-General das Forças Armadas para defesa da democracia, bem como o seu silêncio altamente comprometedor, ele que em outras ocasiões era o que fazia maior alarido, desde que pudesse auto proclamar-se o salvador da Revolução.
Ora, até hoje, ainda não condenou claramente o golpe de 25 de Novembro, nem se dessolidarizou dos seus autores. Pelo contrário, a sua DORN, em comunicado de 27 do mesmo mês, deu apoio a uma manifestação no Porto favorável aos revoltosos, o que mereceu a justa condenação do Estado-Maior-General das Forças Armadas.
2-Em segundo lugar, há muito eram públicas as ligações do PC com os militares envolvidos no golpe, quer com os homens da ex-5.ª Divisão, os Paulinos, os Clementes, etc., quer com Costa Martins e outros militares da linha dita "gonçalvista", agora presos ou fugidos, quer, ainda, com o SDCI.
Quem incitava os SUV?
Quem considerava "progressistas" os bandos da Polícia Militar? Quem promoveu a subversão dos pára-quedistas, utilizando, para tal, uma célula de sargentos? Quem reclamava o saneamento dos comandantes militares que se verificou virem a ser os defensores da democracia?
3 - Mas há, ainda, que registar outros factos ocorridos durante os acontecimentos.
Na Marinha Grande, o PC mobilizou cerca de 400 militantes para irem apoiar os rebeldes que ocuparam a base de Monte Real e que apenas retiraram quando chegaram os milhares de manifestantes convocados pêlos Partidos Popular Democrático e Socialista.
Em Torres Vedras, o mesmo partido incitou a população a sair para a rua, dando apoio aos revoltosos, já depois de iniciado o recolher obrigatório.

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Em Almeirim, foram distribuídas armas a militantes daquele partido, e no Couço, outros militantes deram guarida a pára-quedistas rebeldes.
Em Benavente, o núcleo do PC mobilizou militantes e promoveu uma barragem na ponte para tentar evitar a passagem de uma coluna da Escola Prática de Cavalaria.
Em Vila Franca, houve também uma tentativa falhada de mobilização para barricar a ponte.
Na península de Setúbal, diversos factos ocorreram que demonstram a cumplicidade do PC no golpe.
4 - A actuação dos órgãos de comunicação social, de há muito controlados pelo PC, não deixa dúvida:" sobre a implicação do partido no apoio ao golpe dos revoltosos.
O clima por eles criado, as afirmações produzidas no próprio dia 25, o alarme da população, o louvor à subversão militar em curso, são prova cabal do seu empenhamento na preparação do golpe. Por exemplo, o conhecido Diário de Lisboa, no dia do golpe, dava apoio, na 1.ª página, aos "paras progressistas".
Também a RTP abriu as portas aos revoltosos e permitiu, na noite desse mesmo dia 25, que o famigerado Durant Clemente, antigo fascista que virou, naturalmente, social-fascista, viesse fazer propaganda de cobertura aos rebeldes, de que era um dos chefes visíveis.
5 - Também as organizações sindicais que o PC ainda controla - e só estas -, para além do apoio aos revoltosos, tentaram desencadear manifestações de massas é promover greves no dia 26. Foi o caso da Intersindical, da União dos Sindicatos do Porto, do Sindicato dos Metalúrgicos, etc.
Ainda no dia 24, o PC, em comunicado da sua organização regional de Lisboa, apoiou a pretensa greve geral de duas horas para apoio aos pára-quedistas e a outros militares que classificava de "progressistas". Viu-se qual era o seu progressismo.

Uma voz: - Muito bem!

O Orador: - Há ainda que investigar, também, que partido pretendeu utilizar os trabalhadores das Sociedades J. Pimenta e das Camionagens Esteves, que esse partido domina, para, através das respectivas administrações e comissões de trabalhadores, os manipular no sentido de bloquearem estradas com as suas betoneiras, evitando, assim, a passagem dos homens do Regimento de Comandos e possibilitando a continuação da ocupação abusiva do Comando da Região Aérea.
6-Por outro lado, as chamadas organizações de extrema-esquerda e seus militantes vêm dar-nos outra prova clara da implicação do Partido Comunista.
São elas as primeiras a criticá-lo, porque, segundo elas, as abandonou quando constatou que o golpe ia falhar.
7-Finalmente, pergunto: como se pode explicar que um Deputado que, apesar de ao menor pretexto, tem desempenhado aqui o papel de acusador público, de novo Fouquier-Thinville desta Revolução, que quer, ao que parece, imitar o procurador-geral Vychinski neste país...

O Sr. Vital Moreira (PCP): - Parece um procurador da PIDE num tribunal plenário.

O Orador: -... no momento exacto em que o Presidente da República declarava o estado de emergência, tenha declarado nesta Assembleia que não via qualquer motivo para suspender a sessão da passada terça-feira?

O Sr. Vital Moreira (PCP): - Até parece um polícia.

Uma voz: - Se calhar não é verdade.

O Orador: - Quem pode acreditar que tão grande número de células de empresas, locais...

Vozes de protesto.

O Sr. Presidente: - Atenção, Srs. Deputados!

O Orador:-...da informação e até a própria direcção regional do Norte, de um partido conhecida pela sua disciplina férrea, tenham resolvido desobedecer, simultaneamente, às ordens do Comité Central? Quem duvida de que aplicavam instruções superiores, que vieram a ser modificadas apenas posteriormente Sr. Presidente, Srs. Deputados: Contra aquilo que pretendia o seu secretário-geral, o PCP não teve, nem terá, o seu Outubro em Portugal. O povo está alertado para as suas características: é, sem dúvida, um pequeno partido regional rejeitado em quase todo o País, e que tinha antes do golpe, segundo algumas sondagens, cerca de 7 % de apoio no povo português; é um partido que, infelizmente, pelo menos até agora, não tem tido pejo em utilizar métodos claramente fascistas para tomar o Poder. Cumpre perguntar, para acabar: até onde, senhores, vos levarão a vossa audácia desenfreada, o vosso golpismo totalitário, a vossa sede de Poder? Quando se converterão à democracia?
Até quando abusareis da paciência do povo português?

O Sr. Vital Moreira (PCP): - Não respondemos a fascistas. Só respondemos à classe operária.

Vozes: - Muito bem!

Aplausos.

Vozes de protesto.

O Orador: - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Embora tenha falhado o golpe que visava colocar no Poder aqueles que pretendiam fazer desembocar a Revolução numa ditadura comunista - ou seja na ditadura de uma nova classe dirigente -, outros perigos a espreitam agora.
Parece haver quem pretenda substituir à pretensa vanguarda política, que agora mostrou o seu carácter antidemocrático, uma vanguarda militar que imponha ao povo o seu próprio modelo de socialismo.
O Partido Popular Democrático, logo que teve conhecimento das declarações públicas do major Melo Antunes, no sentido de conferir a essa vanguarda um poder reforçado de direcção do processo político, emitiu, em data de 27 de Novembro, e através do seu Secretariado, um comunicado do qual destaco o seguinte trecho:
É preciso que com a mesma clareza e dignidade seja dito que o povo português já ampla-

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mente demonstrou a sua maturidade. Não precisa de condutores. O povo não aceita ser marginalizado ou preterido ou convidado a posteriori a analisar um projecto. O desejo renovado de tornar o MFA movimento suprapartidário, pedindo depois a colaboração dos partidos, é uma adaptação dos modelos terceiro-mundistas. Mas as divergências partidárias não são, nem podem ser, confundidas com desinteligências tribais e nenhum ascendente político é legítimo sobrepor à capacidade e representatividade dos partidos políticos democráticos portugueses.

Uma voz: - Muito bem!

O Sr. Presidente: - Peço o favor ao Sr. Deputado para terminar, pois está na hora.

O Orador:

As forças armadas reencontraram-se no 25 de Novembro assumindo a sua face "mais sã", para reproduzir palavra? do major Melo Antunes.

De novo assumiram a sua autêntica função:

permitir ao povo que este encontre a possibilidade de, em paz e tranquilidade, vencer as dificuldades que se antepõem ao projecto colectivo.
É o povo, na Assembleia Constituinte, na próxima Assembleia Legislativa, pela actividade dos partidos, por todos os seus legítimos representantes, quem há-de e deve tomar nas mãos a escolha do seu futuro e destino.
Por minha parte, julgo dever acrescentar o seguinte: a experiência dos meses decorridos já demonstrou que a intervenção política dos militares, enquanto tais, contém em si o germe da sua própria e inevitável divisão, com os riscos de confrontação a ela inerentes. Essa divisão decorre não só da eventual partidarização dos componentes da tal pretensa "vanguarda", como do facto de as opções políticas concretas serem quotidianamente a sua fonte.
Por outro lado, entendo que a condução de qualquer processo por uma "vanguarda", seja ela qual for, não é compatível com a existência da democracia. Ou a "vanguarda" respeita a vontade popular e desiste do seu projecto próprio, para cumprir o projecto aprovado pela maioria, e acaba por admitira sua própria substituição pêlos eleitos do povo, estando, portanto, condenada a ser suplantada pelos partidos que beneficiem da confiança popular, ou, por outro lado, para manter indefinidamente a direcção do processo, tal "vanguarda" não se submete ao sufrágio popular e governa contra a vontade da maioria. Mas, para isso, terá de recorrer aos métodos ditatoriais da manipulação da opinião pública e, a curto prazo, à própria restrição das liberdades fundamentais.
A vontade de qualquer minoria, ainda que sob a capa de uma legitimidade revolucionária, não pode sobrepor-se à legitimidade democrática. Por outras palavras, os projectos de alguns não podem contrariar a vontade da maioria do povo ...

O Sr. Presidente: - O Sr. Deputado tenha a bondade ...

O Orador: - Um minuto só.

... sob pena de a Revolução, além de deixar de ser democrática, caminhar para o seu suicídio.
O facto é tanto mais grave quanto se sabe que por detrás das "vanguardas" detentoras do Poder aparecem sempre tecnocratas que se julgam iluminados, mas que não querem, no fundo, submeter nem os seus programas nem a sua prática política à apreciação popular Parece ser um risco que estamos agora a correr com um grupo de tecnocratas conhecidos por "ex-MES".
Ainda dois pontos complementares: sem a possibilidade de o povo pedir contas aos detentores do Poder não há democracia. Queria chamar a atenção para os inconvenientes, gravíssimos, em relação quer às suas funções, quer ao seu prestígio, de as forças armadas, ou de uma sua parte, virem a ser responsabilizadas pelo povo por actuações políticas que se tenham revelado erradas, ineficazes ou contrárias à vontade popular.
Finalmente, também o socialismo só se pode construir por via democrática. Os socialismos que não tiverem suficiente apoio popular correspondem, inevitavelmente, a projectos elitistas ou cupulistas e estão destinados a serem reversíveis, porque contestáveis.
A experiência das sociais-democracias prova, pelo contrário, que os avanços feitos em liberdade, por vontade do povo, esses, sim, é que são irreversíveis.
Ainda que a alternância do Poder leve partidos de índole neocapitalista ou conservadora ao governo, esses próprios partidos não podem voltar a trás das conquistas feitas pêlos sociais-democratas.

Uma voz: - Muito bem.

O Orador: - Terminarei fazendo um apelo às forças armadas e aos três partidos democráticos aqui presentes para que tudo façam no sentido da devolução ao povo da soberania que só a ele pertence, sem prejuízo da missão das forças armadas de garante da democracia, mas incluindo o poder, que também só ao povo cabe, de escolher livremente os seus governantes.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: Julgo que, apesar dos perigos que apontei, estão finalmente abertas as portas para a verdadeira revolução que o povo deseja; a construção de uma verdadeira democracia que lhe permita escolher o caminho que quer trilhar para a construção de uma sociedade nova, sem ódio, sem injustiça, verdadeiramente livre, verdadeiramente solidária, numa palavra, verdadeiramente humana.

Tenho dito.

(O orador fez a sua intervenção da tribuna.)
Aplausos.

Vozes: - Muito bem!

O Sr. Presidente: - Quero apresentar as minhas desculpas à Assembleia, porque houve aqui uma infracção regimental de cerca de dois minutos e custa-me sempre, quando as pessoas estão a expor as suas ideias, de certo modo, mutilar esse esquema.
Mas não posso continuar a consentir a violação das regras, sob pena de não se cumprir efectivamente o

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Regimento. Espero dos Srs. Deputados a compreensão suficiente para esta ajuda, que lhes peço, no sentido de cumprirmos o Regimento.
Tem a palavra o Sr. Deputado Sottomayor Cardia.

Pausa.

Um momento só

O Sr. Deputado Vital Moreira para um esclarecimento.

O Sr. Vital Moreira (PCP): - Sr. Presidente: Criou-se aqui uma prática regimental no sentido de os partidos acusados directamente na Assembleia poderem responder através de um dos seus Deputados.
Queria perguntar, Sr. Presidente, se posso fazer uso desse direito, que a prática regimental consagrou.

O Sr. Presidente: - Seria a prática de qualquer Sr. Presidente, menos a minha. Eu entendo que só podem tratar de defesa quando as defesas são feitas individualmente.

O Sr. Vital Moreira (PCP):- Sr. Presidente: De qualquer modo farei um pedido..

O Sr. Presidente: - Na altura própria inscreve-se e explana as suas ideias.

O Sr. Vital Moreira (PCP): - Queria, entretanto, fazer um pedido de esclarecimento, Sr. Presidente, que era o seguinte: queria perguntar ao Deputado que acaba de intervir se, ao falar em inquérito que será realizado, mas cujas conclusões ele desde já adiantou, falou como Deputado ou se falou como ...

O Sr. Presidente: - O Sr. Deputado dá-me licença?
É que eu quero rectificar aqui uma coisa, agora mais lembrada, porque de facto o Sr. Deputado Pedro Roseta fez referência a V. Ex.ª pessoalmente, dirigindo-se-lhe pessoalmente, e portanto tem o direito de defesa.

O Orador: - Bem, Sr. Presidente, não quero responder pessoalmente. Não fui atacado pessoalmente.

O Sr. Presidente: - Se considera que não foi atacado pessoalmente...

O Orador: - Não considero que as interferências do Sr. Deputado Pedro Roseta a meu respeito sejam consideradas como acusações pessoais. Quando muito, exprimiriam o fundo político e moral do Deputado acusador. De qualquer modo, em relação às acusações feitas ao Partido Comunista Português...

O Sr. Presidente: - Eu peço desculpa a V. Ex.ª, mas não poderá falar em nome do partido...

O Orador: -... é um pedido de esclarecimento.
Eu queria saber se o Sr. Deputado, ao referir-se à necessidade de inquérito, tirara as conclusões a respeito de envolvimento nas acções de sublevação militar do dia 25, mas cujas conclusões ele desde logo adiantou em relação ao Partido Comunista Português, queria saber se ele estava a falar como Deputado ou como qualquer acusador público num tribunal plenário e instrumentalizado pela PIDE.

(O orador não reviu.)

O Sr. Pedro Roseta (PPD): - Bom! A propósito de fundos morais e políticos de cada um, pois evidentemente que não só a Câmara, mas o País julgarão.
Bastará, aliás, ler o Diário da Assembleia e bastará sobretudo atender à prática política dos diversos Deputados e dos seus partidos.
Quanto à sua pergunta, é bem claro que assenta num lapso; certamente não terá ouvido bem o que eu disse. Eu falei na necessidade de um inquérito e não tirei quaisquer conclusões desse inquérito. Já aqui disse mais de um vez que não sou eu nem ninguém do meu partido que tem demonstrado aqui a vocação para novo inquisidor.

O Sr. Vital Moreira (PCP):- Viu-se...

O Orador: - Pelo contrário, eu apenas enumerei friamente factos. Evidentemente que me conformarei depois com as conclusões do inquérito que certamente será realizado. Em resumo, limitei-me a enumerar os factos, que são reais, que aconteceram, de que há inúmeras testemunhas, que vêm nos jornais, que vêm em comunicados de organizações políticas, algumas até de extrema-esquerda, algumas até aliadas do Partido Comunista até há poucos dias. Eu não tirei conclusões, não fiz uma "condenação" definitiva, como alguns costumam, nem me competia fazê-la.

O Sr. Barbosa Gonçalves (PPD):- E Custóias ainda é pouco; é bom de mais.

O Sr. Pedro Soares (PCP): - Fascista!

O Sr. Barbosa Gonçalves (PPD): - Já sei que sou, meu amigo.

O Sr. Pedro Soares (PCP): - Meu amigo não, meu adversário.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado
Sottomayor Cardia.

O Sr. Sottomayor Cardia (PS):- Sr. Presidente ..
Prossegue a agitação na Assembleia.

O Sr. Presidente: - Chamo a atenção da Assembleia para ouvir a intervenção do Sr. Deputado que está no uso da palavra.

O Orador: - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Como nos dias que se seguiram ao 25 de Abril a nossa convicção de hoje é simples: valeu a pena lutar!
Valeu a pena lutar contra a pressão antidemocrática de partidos e grupos fanatizados que, como previsto, tentaram a conquista total do Poder pela força.
Valeu a pena lutar contra a demagogia que se abateu sobre este povo tranquilo e moralmente o massacrou e atormentou.
Vale a pena lutar contra a anarquia esfusiante que se instalou na sociedade portuguesa e parecia predestinada a minar todas as instituições, mesmo a militar.

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Valeu a pena lutar contra o ódio, a sevícia e a prepotência que nos fizeram reviver a tradição antiga portuguesa da polícia de pensamento, da brutalidade senhorial, de vistosas potestades de pé de barro e cérebro de granito.
Valeu a pena correr o risco de dar voz, na praça pública, ao sentir geral do País.
Valeu a pena ter sofrido, durante algum tempo, o mal-estar moral de uma relativa autocensura, preço que era indispensável pagar para travar luta política no estreito campo de manobra das instituições de então. A razão pode temporariamente ser complacente quando a opressão é aventureira!
Valeu a pena despertar e educar energias e sentimentos bem radicados no povo português.
Raros exemplos regista a nossa história de tão incisiva resistência popular à opressão.
Cumpre sublinhar, nesta tribuna, o papel que a Assembleia Constituinte, antes mesmo de iniciar os seus trabalhos, desempenha na recuperação da confiança deste povo em si próprio. As eleições de 25 de Abril de 1975, realizadas inteiramente à revelia do, sistema de poder e de ideologia dominante, constituem o maior acto revolucionário praticado após o derrubamento do fascismo. Demonstram a força dos processos democráticos e a eficácia do exercício da liberdade. Sem eleições o País ter-se-ia desencontrado de si próprio. Ninguém disporia de legitimidade para fazer prevalecer a vontade popular.
O PS orgulha-se de ter sabido corresponder ao mandato de salvação nacional que o povo preferencialmente lhe confiou. Ninguém nos pode acusar de não termos sabido honrar as nossas responsabilidades.
Apraz-nos recordar que o nosso grito de libertação ecoou fundo em todo o povo, o desinibiu e determinou à resistência outros sectores de opinião e dirigentes do processo revolucionário.
A aventura comunista não se satisfaz no golpismo inicialmente planeado. Frustrada em Setembro a táctica golpista, a conquista do poder através de manobras de cúpula, sucedeu-lhe prontamente um projecto insurreccionista. Deve aqui reconhecer-se que à tentação monopolista da fase golpista se seguiu ilimitada vontade frentista na fase insurreccional. Nesta, o PCP reatou, na verdade, os hábitos da velha fidalguia portuguesa, que nos ajustes de contas também mandava à frente a criadagem ...

Risos

... como há dias me dizia um historiador amigo.

Risos.

Não é suficiente, nem interessante, que o PCP considere agora inoportuna a insurreição dos seus correligionários militares. Precisamos de saber se agora a considera também ilegítima e criminosa.
A resistência militar à insurreição comunista de 25 de Novembro restaurou o prestígio das forças armadas. Os militares fiéis foram outra vez o braço armado do povo. E o povo deu, uma vez mais, apoio directo e permanente à defesa da democracia.
E a neutralização do crime foi relativamente rápida e quase isenta de sacrifícios totais, isso deve-se tanto à competência e determinação das autoridades e forças militares como à acção de esclarecimento dos populares junto de unidades rebeldes.
Viveu-se um ano de loucura colectiva, que fará o encanto dos investigadores de psicologia social e psicopatologia política ...

Uma voz: - Apoiado!

O Orador:-...e em que quase nada de construtivo se pôde fazer senão dar combate ao vírus da destruição. Eis-nos agora perante nós próprios, mais experientes, é certo, mas mais pobres e atrasados.
O País mítico do esquerdismo alucinado acabou.
É um espectro do passado. Temos de construir esta terra, com inteligência, com informação, com respeito pela realidade.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Ontem exigiu-se que fôssemos de novo resistentes, que fôssemos de novo cavaleiros andantes da liberdade. Hoje impõe-se que sejamos bons trabalhadores, bons administradores, bons governantes, bons legisladores. É uma reconversão de atitudes espirituais que o País pede aos seus dirigentes. Seremos
determinados no estudo e solução dos problemas do investimento, da produção, do trabalho, da justiça social, do equipamento colectivo. Vencemos a batalha da liberdade. Venceremos, com realismo, a batalha da economia.
Com o descalabro do esquerdismo, a extrema direita sofreu pesada derrota e perdeu uma oportunidade histórica.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Sejamos vigilantes a todas as violações da legalidade, provenientes da extrema direita ou da extrema esquerda, mas sejamos sobretudo atentos e determinados na construção da sociedade nova.
Poderemos ainda neutralizar o reflexo nefasto destes meses na opinião pública do país vizinho. Pelo exemplo da nossa capacidade de construir um país em paz e liberdade, poderemos ainda ajudar a transformação democrática da vida política espanhola.
O caminho foi longo. A normalização, a democracia e o socialismo em liberdade vencerão. O País não suporta mais convulsões.

(O orador não reviu, tendo realizado a sua intervenção na tribuna)

Aplausos.
Vozes: - Muito bem!

O Sr. Hilário Teixeira (PCP): - Os trabalhadores trabalham, o Governo governa.

Vozes de protesto.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Kalidás Barreto.
Prossegue a agitação no hemiciclo.

O Sr. Presidente: - Atenção, Srs. Deputados.

O Sr. Kalidás Barreto (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Quando em Outubro tive ocasião de usar da palavra nesta Assembleia, procurei fazer uma

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análise sob o ponto de vista dos trabalhadores. Era uma análise política sem outra pretensão que a de ser sincera.
E porque não me limitava a falar pêlos trabalhadores ou em seu nome, mas sou trabalhador em carne e sangue, a análise, além de sincera, saiu correcta.
Dizia eu então e perdoem-me recordar: "Esta Revolução, já ninguém duvida, está a ser feita ao sabor de intrigas, com jogos palacianos, com boatos. Desmente-se descaradamente, a verdade, apregoa-se a sete ventos, com ar de autoridade, a mentira.
Políticos responsáveis ou, melhor dizendo, com responsabilidades não hesitam, perante o mundo, afirmar ao mesmo tempo e no mesmo plenário o contrário um do outro, ao referirem-se aos problemas económicos nacionais. Cada um procura superar-se em descaramento, discursos, atitudes e bocas. Campeia o vedetismo! Todos são super-revolucionários!"
E depois: "Chega a parecer que a esquerda portuguesa está atordoada com o clarão do poder!"
E mais adiante: "Afinal o que se quer? Criar a confusão, a discórdia, o caos ou o triunfo da revolução socialista? Continuar a lançar queixas uns sobre os outros e esquecermo-nos do inimigo comum, ou deixar avançar a reacção?
A confusão em que se vive não serve objectivamente os trabalhadores. A luta de classes é uma coisa, a manipulação de trabalhadores contra trabalhadores, do povo contra o povo, de soldados contra soldados, é outra. É utopia, é loucura, se não for descaradamente contra-revolução."Por detrás de um falso progressista está sempre um verdadeiro reaccionário", disse Costa Gomes, e é preciso que os trabalhadores, os soldados e o povo estejam atentos a esta verdade.
O que se quer? Que obscuros desígnios servem certas pessoas?
Os factos recentes vieram dar-me razão.
A forma como estava a decorrer o processo revolucionário teria inevitavelmente que conduzir a uma rotura. E felizmente que ela se deu com as forças armadas coesas e empenhadas nos ideais do 25 de Abril.
As forças da burguesia, a permanente contestação de pseudo-esquerdistas, o infantilismo de alguns leaders, o oportunismo aventureirista de inconscientes, a tendência golpista de sectores militares e civis, a crescente inquietação do nosso povo, a sensação de mal-estar generalizado nas massas trabalhadoras, o equilíbrio e determinação das forças que desejavam uma democracia pluralista, eram peças demasiadamente contraditórias para continuarem ajustadas no mesmo puzzle.
Certos esquerdistas, para fugirem a alguns pecadilhos de consciência (como seria interessante o filme do seu passado político), procuravam colocar-se quanto mais à esquerda melhor; mesmo que fosse um esquerdismo utópico ou infantil; mesmo que se desgarrasse da vontade do povo; mesmo que conduzisse à contra-revolução!
Com pecadilhos ou sem eles, a verdade é que alguns responsáveis (seriam?) militares e civis só se preocupavam em avançar, sem olhar como e quando; sem olhar ao País e ao povo concreto para quem era a Revolução!
Era surpreendente como estes indivíduos se intitulavam muito marxistas, mas não se preocupavam em analisar a relação de forças, o País concreto, em ver que o golpismo e os avanços demasiados e sem bases se convertem em aventuras que podem dar recuos; uma vez que à força de se querer a Revolução se estava a fazer o jogo da contra-revolução!

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - E assim sucedeu um inevitável 25 de Novembro, que por pouco não levou o País à guerra civil.
A despeito da tolerância, própria de democratas, que deverá haver com os responsáveis - admitindo que fizeram jogos inconscientes e considerando que entre eles há homens que deram boas provas no processo revolucionário do 25 de Abril -, é legítima a indignação do povo e a pergunta:
- Quem tem o direito de brincar com o povo?
O processo revolucionário, ao que se promete e acreditamos, vai voltar aos seus carris democráticos. Com segurança e disciplina. Sem margem para golpismos. Com os trabalhadores.
Fazemos ardentes votos que sim. Com liberdade para todos os que queiram a Revolução; com menos manifestações, mas mais trabalho; com segurança e ! disciplina de esquerda; falando-se menos de trabalhadores, mas conduzindo-se o processo com e para j eles; falando-se menos de socialismo, mas construindo-o.
Parece, pois, chegado o momento de se passar à fase de consolidação da democracia e de construção do socialismo - única alternativa para se fundar em Portugal uma comunidade justa e humana. O papel do PS, porque partido de trabalhadores, é o de contribuir decisivamente para essa sociedade e o de assegurar intransigentemente a independência nacional.
Entretanto, compete às massas trabalhadoras em geral - para quem é com quem a Revolução é feita - continuar vigilantes e mobilizadas. Para tirar à direita qualquer tentativa desesperada ou habilidosa de recuperação; para que se não perca nenhuma das conquistas já alcançadas pêlos trabalhadores.
O momento é de reflexão e de trabalho, não é de alarmismo. Só é alarmista quem não é revolucionário. A quem é compete-lhe mobilização e vigilância!
Pelas classes trabalhadoras! Pela democracia e a liberdade! Contra o fascismo e o capitalismo! Viva o socialismo!

Aplausos.

Vozes: - Muito bem!

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Ferreira Júnior. Tem dez minutos.

O Sr. José Ferreira Júnior (PPD): - Treze minutos?

O Sr. Presidente: - Tivemos azar, mas pode ser.

O Sr. José Ferreira Júnior (PPD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: A revolução militar de 25 de Abril

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só não era possível e desejável para quem, fazendo a análise político-militar dos últimos tempos do fascismo português, fosse observador limitado ou espartilhado pêlos esquemas ditos científicos, mas tantas vezes incompletos ou errados, do marxismo-leninismo.
Efectivamente, para os dogmáticos seguidores dessa filosofia política não era possível admitir que aquilo que chamariam um golpe militar saído do exército regular de um qualquer regime fascista pudesse alguma vez ser feito para permitir que o povo, em total liberdade e sem discriminações, escolhesse e seguisse o destino político-social que desejasse.
É fácil, pois, compreender por que recusaram dar a sua participação ao MFA antes do 25 de Abril alguns oficiais comunistas coerentes, que para tal foram convidados, pois em obediência cega ao que estava escrito nos livros de Marx e Lenine nunca tal Movimento das Forças Armadas poderia abrir as portas a uma solução verdadeiramente revolucionária e progressista e, por isso, nela não se deveriam empenhar (como não empenharam).
Este caso português tem sido, aliás, fértil, desde o início, em demonstrações claras do erro de algumas análises e das correspondentes previsões de Marx e Lenine.
Mas se a revolta militar de Abril foi para muitos fácil de prever, o mesmo já não sucedeu quanto à introdução de importantes factores que vieram marcar profundamente a sua evolução posterior.
Sempre fui dos que imaginei que ao 25 de Abril se seguiriam três grandes fases no processo político português.
Uma primeira, em que a principal organização da esquerda radical, o Partido Comunista Português, iria rapidamente apossar-se ou ficar com o controle das mais importantes estruturas sócio-políticas do País.
Isso porque é o que por regra sucede quando se sai de uma ditadura fascista, pois os partidos comunistas, pelas características da sua filosofia política e consequente actuação prática, são os que em tais situações se encontram mais bem organizados, rigidamente disciplinados e por isso mais rapidamente operacionais para a conquista do Poder.
Uma segunda fase, em que se estruturariam e desenvolveriam outras correntes políticas e se assistiria à luta entre elas e o Partido Comunista para desalojar este do excessivo predomínio de posições e influências que inicialmente conquistara.
Esta seria a fase que poderíamos chamar intermédia e é certamente a que estamos agora atravessando.
Por fim, chegaríamos ao terceiro momento, à terceira fase, em que se alcançaria o equilíbrio democrático no processo político português.
Tal como muitos dos que previam na nossa revolução estas grandes linhas evolutivas, também eu não estou ainda completamente seguro de que a terceira fase, que se anteviu ser a do equilíbrio democrático, não possa vir a ser antes a de uma nova ditadura da direita.
Na realidade, a introdução dos tais factores inicialmente imprevistos no complicado processo político português podem ainda continuar a empurrar-nos nesse sentido. Por isso vale a pena não os perder de vista.
Ao tentar identificá-los e estudar a influência e a responsabilidade que cada um tem tido nas dificuldades e desvios da nossa revolução, considero que avulta entre os demais, podendo até dizer que está na raiz de quase todos os outros, a atitude do PCP de não aceitar o jogo democrático, de não aceitar afinal a vontade da maioria do povo.
Não previ, confesso, nem antes, nem logo a seguir ao 25 de Abril, que viesse a ser esta a conduta do PCP.
Na verdade, pelas leituras de alguns documentos do PC, circulados clandestinamente nos últimos tempos - do fascismo; pelas conversas tidas ao longo de várias campanhas oposicionistas com os companheiros comunistas dessas lutas; e ainda pelo que sabia ser o pensamento sincero de alguns meus amigos comunistas, intelectuais de certo relevo, eu estava convencido e defendi sempre que o PCP seria respeitador e acatador, depois de derrubado o fascismo, do jogo e da vida democrática, tal como o faziam e fazem os partidos comunistas da Europa Ocidental.
Apesar de tudo, ainda estou em admitir que não estive enganado e que seria talvez essa a intenção de algumas cúpulas dirigentes do PCP antes e nos primeiros tempos a seguir ao 25 de Abril. Pelo menos, estou certo de que era esse o pensamento daqueles comunistas meus amigos. Como certamente o era também o daquele militante do PC, mártir de muitos anos das cadeias da PIDE/DGS, que em conversas particulares já há muito tempo que não esconde o desacordo com a orientação que os dirigentes imprimiram ao seu partido. Considera ele que o respeito e o prestígio que o PCP conseguira granjear entre grande parte do povo português, à custa principalmente dos sacrifícios sofridos por tantos militantes ao longo da noite fascista, estão já de tal maneira comprometidos que dificilmente e só a poder de muitos anos poderão vir a ser recuperados.
É, pois, minha impressão que só a partir de determinada altura houve uma clara mudança de atitude do PC quanto à aceitação das regras democráticas, do respeito, portanto, pela vontade popular das maiorias.
Julgo terem estado na 'base dessa provável viragem as inesperadas facilidades com que o próprio PC viu que conquistava, uma após outras, todas as chaves fundamentais da máquina político-administrativa do País e, a partir de dada altura, a estrutura económica e até o controle do MFA.
Não tenho dificuldade em compreender que a partir de então se tivesse apossado dos comunistas portugueses um espírito triunfalista e a convicção firme de que o processo revolucionário iria passar a ser totalmente liderado por eles.
Na lógica leninista-estalinista tinham razão para isso.
Na verdade, para os seus dogmáticos seguidores, não é nunca a falta de correcção das suas análises, dos seus esquemas explicativos e da sua moral política que leva as classes trabalhadoras a não aceitar os métodos e os objectivos que eles lhe propõem. Para um marxista-leninista, a sua verdade é científica e, por isso, não podem conceber que um povo

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não siga os caminhos que estão previstos nos seus esquemas e recuse, assim, a felicidade infalível que eles lhe oferecem.
A dificuldade para os comunistas estaria apenas em conseguir fazer chegar as suas científicas verdades junto das massas trabalhadoras, o que se obteria com a eliminação das barreiras que a isso se opõem. Barreiras várias, mas que se resumem, nos tempos modernos, numa que é a informação, constituída, fundamentalmente, pela televisão, rádio, imprensa, cinema e teatro.
São, efectivamente, estes os meios com os quais é possível influenciar de forma profunda a opinião, os hábitos e os desejos de qualquer povo.
Se, nos regimes capitalistas, vazios de mensagem moral e estética, a posse desses meios pêlos detentores do poder económico-financeiro consegue, por um processo de intoxicação psicológica, condicionar em muito a vida social, é evidente que os marxistas-leninistas, convencidos de serem possuidores de uma razão e de uma moral superiores a todas e de um modelo de vida incomparavelmente melhor para as classes trabalhadoras, não poderiam admitir dúvidas de que, conseguida a posse desses meios de informação, em pouco tempo teriam do seu lado a opinião e a vontade de amplas camadas do povo português.
Alcançado esse objectivo pêlos comunistas portugueses, o outro grande obstáculo que, numa visão leninista-estalinista, se poderia levantar à revolução por eles chamada proletária era a resistência oferecida pelas forças armadas tradicionais. Mas também, a partir de certo momento, e com uma rapidez e uma facilidade que não teria estado nem mesmo na imaginação do PCP, esse obstáculo do processo revolucionário foi por si em grande parte dominado, através do subtil controle da direcção e comando dessas forças.

É, pois, fácil compreender o triunfalismo de que se embriagou o PCP.
Tinham afinal conseguido ter nas mãos as condições essenciais para avançar a sua revolução, de acordo com a sua doutrina.
Contudo, é claro hoje para toda a agente, incluindo os próprios comunistas, que o PCP falhou nos seus objectivos de conquista do apoio do povo português.
Não só falhou como criou um clima de repulsa por parte da esmagadora maioria dele.
Não vou fazer agora análises detalhadas das razões de um tal falhanço e de uma tal repulsa.
Acabaria, aliás, sempre por chegar à conclusão de que na base do falhanço estão os erros inerentes à própria doutrina na marxista-leninista-estalinista que perfilham, e na base da repulsa as tácticas que não souberam ou não quiseram, por um lado, evitar que às fileiras do Partido tivesse aderido legião considerável de oportunistas sem qualquer ideologia e escrúpulos, por outro, demarcar-se com clareza suficiente dos grupúsculos esquerdistas e, por outro ainda, abandonar em tempo oportuno as atitudes triunfalistas e arrogantes.
Estou convencido que são agora cada dia mais os comunistas portugueses que já não alimentam esperanças de ver recuperada a hegemonia do seu partido na Revolução Portuguesa, pois é evidente que se aperceberam já, por um lado, do descrédito e da hostilidade em que caíram perante a esmagadora maioria das massas populares do nosso país, não obstante terem disposto por longo tempo (ou talvez por isso mesmo) dos grandes meios de informação, por outro, porque acabam de perder os firmes apoios de que ainda dispunham dentro das forças armadas.
Acresce ainda dizer que não posso conceber ignorarem eles a situação geo-política e o contexto mundial em que Portugal está inserido.
Interrogo-me, por isso, com a angústia do cidadão que em toda a sua vida nunca deixou de se preocupar com a sorte e o destino do povo a que pertence, quanto ao que se passa no pensamento e nas intenções dos dirigentes do PCP.
Que os pode levar a persistir na continuação de uma política e numa actuação que é para quase toda a gente certo só poder arrastar-nos para uma situação de perigosa deterioração social?
Não escondo que estas preocupações vêm-me do reconhecimento de que o PCP, mesmo pequeno, mesmo cada vez mais insignificante na sua base de apoio social, mesmo com a derrota que as forças democráticas acabam de lhe inflingir, é uma organização que, pelas características e recursos e ajudas que recebe de vária ordem e de vários lados, tem tido e terá por muito tempo ainda forte influência, boa ou trágica, no destino desta nossa pátria.
Será que os dirigentes do PCP, marcados por uma longa formação estalinista, de que não foram ou não quiseram jamais libertar-se, e traumatizados por longos anos de cadeias, de clandestinidades e exílios, continuarão obstinados em auto atribuírem-se o direito de tomar nas suas únicas mãos esta Revolução, desprezando ostensivamente a opinião e o querer de um povo quase inteiro que não os deseja seguir e até da maioria da própria classe operária, de quem se querem arvorar em vanguarda iluminada e dirigente?
Será que os dirigentes do PCP, embora sabendo que estão a fazer a autodestruição do seu partido e a comprometer a independência do seu país, têm acima de tudo em vista servir uma causa internacionalista, planeada superiormente pêlos seus correligionários da União Soviética?
Estarão assim desinteressados do destino concreto do povo português concreto, desejando acima de tudo continuar a alcançar alguns ganhos mais para o império do leste, que teimam em considerar a sua matriz?
Ou será que os dirigentes do PCP, olhando para o que tem sucedido a partidos da sua índole nos países onde se instauraram regimes da verdadeira liberdade democrática, estão decididos a impedir por todos os meios que aqui se alcance também uma democracia política?
Que prefiram, a não poderem desta vez tomar total e definitivamente conta do poder, voltar a que se reinstaure o fascismo, na convicção de que assim teriam possibilidades de poderem mais tarde triunfar e impor finalmente a sua própria ditadura? Mesmo sabendo que a voltar-se ao fascismo só os comunistas privilegiados que pudessem exilar-se ficariam livres de represálias e violências, mas não o ficariam as massas dos seus militantes que cá teriam de permanecer?
Será que tal estratégia está ao serviço de uma política internacional que obriga os dirigentes do PCP a triunfar agora ou então a fazerem com que se ins-

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tale aqui um regime Pinochet, na intenção de levar os PC europeus a abandonar o respeito pela via democrática e optarem pela do golpismo e da violência na conquista do poder?
E isto porque à classe burocrática da Rússia e dos seus satélites a continuação das democracias europeias a seu lado é motivo de constantes preocupações e perigos, porque vão mostrando às suas populações, apesar de não terem ainda eliminado formas de organização capitalista, que vão resolvendo mesmo assim melhor as necessidades materiais das classes trabalhadoras, sem lhes retirarem liberdades fundamentais?
Sejam, pois, quais forem as ideias e os planos que movem os actuais dirigentes do PCP e apesar do safanão que acabam de receber, com a vitória das forças democráticas sobre o golpe insurreccional, é-me difícil aceitar que sejam já capazes de se libertar da empedernida formação estalinista que têm revelado.
Admito, porém, que a facção dos militantes ao PCP predisposta para aceitar a democracia, tal como; os seus camaradas italianos, espanhóis e franceses, venha a crescer e reunir em determinada altura força e coragem para escolher novos dirigentes e imprimir ao seu Partido uma estratégia idêntica à daqueles países.

O Sr. Presidente: - Já passaram os dez minutos ..

O Orador: - Só um minuto. Só a partir de então a Revolução Portuguesa progredirá, sem dificuldades e riscos de maior, no caminho de uma democracia socializante.
Serão, entretanto, as sucessivas vitórias dos partidos democráticos e a consequente marginalização do PCP pelo povo português que hão-de forçar aquele a todas essas prováveis modificações quando quiser reintegrar-se na trajectória democrática que os Portugueses não vão mais abandonar.
Por isso entendo que o afastamento do PCP do VI Governo, além de ser uma medida de elementar lógica política e de respeito democrático pela vontade da maioria do povo, terá ainda o efeito de mais depressa levar a que naquele partido se desencadeiem as alterações que o façam aceitar o jogo da democracia, tal como sucede com os partidos similares europeus.
Quero terminar, afirmando a minha esperança, mais do que esperança, a minha certeza de que agora ou mais adiante, com ou sem o Partido Comunista, o povo português há-de conseguir construir uma sociedade justa, progressiva, fraterna, há-de construir uma sociedade socialista democrática.

(O orador fez a sua intervenção na tribuna.)
Aplausos

Vozes: - Muito bem!
O Sr. Presidente: - Está aberto o período da

ORDEM DO DIA

Suponho que havia ainda algumas declarações de voto.

Pausa.

Tem a palavra o Sr. Deputado Levy Baptista.

O Sr. Levy Baptista (MDP/CDE): - Sr. Presidente, Srs. Deputados:

É já do conhecimento desta Assembleia Constituinte aquilo que o MDP/CDE entende dever ser uma Constituição para vigorar num período de transição como este que vivemos em Portugal.
Talvez não seja inoportuno, no entanto, relembrar que, no nosso entender, essa Constituição terá de ter um conteúdo marcadamente popular e revolucionário, devendo integrar as conquistas fundamentais obtidas pelo povo ao longo dos meses que decorreram desde Abril de 1974. Dessa forma se obstará a qualquer paragem ou recuo no processo revolucionário a caminho da democracia socialista que nos propomos alcançar.
Por outro lado, entendemos que a Constituição deve apontar soluções e metas que façam dela, por sua vez, instrumento de arranque para posições mais avançadas.
Na relação dialéctica entre a prática revolucionária e a lei constitucional revolucionária se encontrarão os elementos que reciprocamente actuarão no sentido de surgirem as soluções progressistas para as necessidades do avanço do processo democrático.

O Sr. Presidente: - O Sr. Deputado desculpará: é uma declaração de voto?

O Orador: - É uma declaração de voto! Pensamos igualmente que a aliança do povo com o MFA, isto é, das massas trabalhadoras e dos pequenos e médios agricultores, dos pequenos e médios comerciantes e industriais com as camadas mais profundas de um MFA progressista e revolucionário, constituído por soldados, marinheiros, sargentos e oficiais progressistas - pensamos que essa aliança, base das vitórias até agora alcançadas e garantia das novas vitórias que iremos sempre alcançando, terá de ficar inscrita na Constituição.
Sempre pensámos, sem margem para dúvidas, que da Constituição devem constar os princípios fixados no Pacto Constitucional, que o MDP/CDE subscreveu, e que pensa corresponderem às profundas aspirações e aos legítimos interesses do nosso povo. Assim pensámos sempre, assim continuamos a pensar, já que consideramos nosso dever honrar os compromissos tomados.

2 - Uma vez que é na parte III (Organização do poder político) que se inserem estes temas constantes do Pacto Constitucional MFA/Partidos ...

O Sr. Presidente: - Peço a atenção da Assembleia!

O Orador: - ...vejamos, com mais algum pormenor, o que se nos oferece dizer, a título de apreciação na generalidade.
Desde logo chama-nos a atenção, de forma chocante, a extensão do articulado: mais de 100 artigos, numa só parte de Constituição a que faltam ainda os títulos VII (Tribunais) e VIII (Poder local).
Como é óbvio, o lugar de grande parte das matérias aí contidas não é a Constituição. Citam-se, a título de exemplo, o artigo 5.º do projecto, que pretende regulamentar as campanhas eleitorais em geral, e o

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artigo 72.º, que trata dos funcionários que prestam serviço na Assembleia.
Há, pois, muita matéria cujo lugar próprio será a Lei Eleitoral, o Regimento da Assembleia dos Deputados e outros diplomas legais - mas não a Constituição.
Sublinhe-se, aliás, desde já, que no nosso entender todo um título, o IX (Administração pública) pode e deve ser suprimido, por não se ver qualquer justificação na enunciação, num texto constitucional, dos princípios gerais que dele constam (apenas transferindo o artigo 5.º, referente à polícia, para o título seguinte).
3 - Passando, agora, a uma rápida apreciação sistemática da matéria dos diversos títulos, referiremos que, tal como está redigido, o artigo 1.º fica aquém do enunciado já aprovado acerca da soberania, pelo que deverá ser eliminado.
O problema das organizações populares de base que consideramos a pedra de toque para a instauração do poder popular, por que nos batemos encontra-se tratado no artigo 7.º de uma maneira tão frouxa que parece querer-se reservar-lhes um lugar de toleradas, despojando-as do fecundo papel de dinamização e democratização da vida nacional, que é o que verdadeiramente lhes cabe, como instrumento de criação da democracia directa e do poder popular.
Os títulos respeitantes aos Órgãos de Soberania, que se pautam pela Plataforma Constitucional, merecem, em geral, reparos de somenos importância, que serão feitos aquando da discussão na especialidade.
Não pode o MDP/CDE, porém, deixar de anotar a existência, no projecto (artigo 27.º), de um conselho consultivo constitucional, que nos parece demasiado excêntrico, no nosso contexto político-militar, para que se possa aceitar.
No capítulo da competência da Assembleia dos Deputados parece evidente a preocupação de, através da atribuição de competência exclusiva a este Órgão de Soberania para legislar sobre certas matérias, entregar a um órgão de funcionamento necessariamente moroso, forçosamente pesado, atribuições que, na prática, levariam a um bloqueamento do processo de democratização, pela previsível falta de capacidade de resposta da Assembleia às necessidades da transformação urgente das estruturas económicas e sociais do País.
Consideramos, por idênticas razões, excessivo o período proposto para a sessão legislativa (15 de Outubro a 15 de Junho), o que acarreta, quanto a nós, um risco de travagem do processo, pela possibilidade da mais absorvente intervenção do legislativo na esfera de órgãos dinâmicos, como devem ser os do executivo.
No que respeita ao título X "Forças armadas", entendemos que ele deve passar a designar-se "Defesa da Pátria", e nele devem considerar-se, não só as forças armadas, como as forças militarizadas (Polícia) e, bem assim, quaisquer outras organizações de defesa da Revolução, designadamente as organizações populares de base, às quais, nos termos do n.º 1.5 do Plano de Acção Política, de Junho de 1975, cabe desempenhar tarifas de autodefesa de objectivos vitais, em caso de emergência nacional, por iniciativa do MFA e sob o seu controle e enquadramento.
A tarefa patriótica da defesa da Revolução democrática e da construção do socialismo implica um conceito de "defesa da Pátria" que pressupõe a necessidade e a possibilidade da rápida mobilização de todo o povo, na luta contra aqueles que, de fora do Pais ou cá dentro, tentam sabotar as conquistas populares e fazer regressar Portugal aos tempos do fascismo.
4 - A Constituição que estamos elaborando não pode ser um travão à marcha do povo português para o progresso - pelo contrário, ela tem de ajudar essa marcha, tem de ser um instrumento da construção do futuro.
Ora, da apreciação do articulado destes diversos títulos da parte III, fica-nos a ideia de, através de uma excessiva pormenorização, pretender-se amarrar tudo e todos a bagatelas "constitucionais", para, eventualmente, amanhã se pode vir a colocar, a todo o momento, o problema da conformidade ou desconformidade de um acto, por mais que a prática revolucionária o exija, com os preceitos miudinhos da Constituição.
Nós, Deputados e militantes do MDP/CDE, temos bem consciência dos riscos que uma revolução corre, ao entrar nos terrenos do legalismo e do juridismo excessivos e mesmo obsessivos. Sobretudo, sabemos o tamanho desses riscos, quando se trata de pretender fazer uma revolução democrática de conteúdo socialista, e se é constantemente atraído para os terrenos dos métodos e dos legalismos da democracia burguesa.
Nós, Deputados e militantes do MDP/CDE, não esquecemos o Chile e a lição que para nós encerra a luta heróica, mas inglória, de um povo que também quis lutar contra aqueles que sempre tiveram na mão o domínio das leis e das técnicas de as fazer e aplicar nos tribunais sabendo-se que tais armas favorecem as classes dominantes, mais adestradas no seu manejo.
Por isso dizemos: somos por uma grande flexibilidade dos preceitos constitucionais, porque para nós a presente Constituição deve ser um instrumento que nos ajude a avançar rumo ao socialismo, e não um empecilho a atravancar-nos o caminho do futuro.
5 - Apesar das razões invocadas quanto às matérias de que discordamos, entendemos que o fulcro da matéria da parte III, proposta pela 5.ª Comissão, são os preceitos provindos da Plataforma de Acordo Constitucional - a que o MDP/CDE se mantém fiel, e que continua a poder dar resposta satisfatória às exigências do processo político -, pelo que lhe damos a nossa aprovação, na generalidade.

O Sr. Presidente: - Mais algumas declarações de voto?
Sr. Deputado Jorge Miranda, faz favor.

O Sr. Jorge Miranda (PPD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Vou ler a declaração de voto dos representantes do Partido Popular Democrático na 5.ª Comissão.
1. A Revolução do 25 de Abril propôs-se, como se lê no Programa do Movimento das Forças Armadas, tornar as instituições políticas "pela via democrática indiscutidas representantes do povo português". E, por isso, não apenas promoveu a eleição de uma Assembleia Constituinte por sufrágio universal, directo e secreto [A, 2, alínea a), como previu, uma vez feita a Constituição, a eleição "pela Nação" da Assembleia Legislativa e do Presidente da República (C, 1)].

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No entanto, circunstâncias de ordem vária levaram o MFA a afastar-se da pureza desta linha, avocando um poder de condução política que se traduziu na sua institucionalização, independentemente da Assembleia Constituinte e, mais ainda, na deliberada intenção de conservar o Poder por um período de três a cinco anos, dito período de transição. Tal ai origem do pacto ou Plataforma de Acordo Constitucional. celebrado em Abril com os principais partidos políticos, entre os quais o Partido Popular Democrático.
O pacto, ao impor a existência de órgãos não baseados na vontade popular expressa em eleições e ao manter, para além do interregno constitucional, a autonomia do poder militar relativamente ao poder civil democrático, põe em causa frontalmente alguns dos princípios fundamentais por que sempre se bateram os democratas portugueses. Ele não afecta todos os princípios da democracia, mas afecta-os suficientemente para se poder dizer que não vivemos, nem iremos viver, nos próximos anos, em Portugal, num, regime plenamente democrático. Se bem que fiquem garantidos as liberdades e o pluralismo, trata-se afinal de uma democracia limitada ou condicionada e de um parlamentarismo truncado por um sistema directorial militar.
Quais as razões que, sendo assim, conduziram o Partido Popular Democrático a assinar a Plataforma?
O PPD assinou-a por entender, na já então gravíssima situação que o País vivia, que era conveniente uma "plataforma política comum" (Pacto B, l) entre todas as forças políticas significativas do País, capaz de assegurar a evolução pacífica para a democracia e o socialismo e, antes de mais, um "projecto comum de reconstrução nacional"; por estar convencido de que, se os partidos não assinassem o pacto, poderia correr-se o risco de não haver eleições, perdendo-se, assim, a única oportunidade de conhecimento da vontade política do povo português e o factor dinamizador essencial da instauração da democracia política em Portugal, e por acreditar na força e coesão do MFA como garante do processo revolucionário democrático e socialista.
Como consta do comunicado então publicado, que se reproduz:

A Comissão Política do PPD, não obstante preferir, de acordo com o ideário do partido, um compromisso com o MFA nos termos das reservas que fez no seu documento entregue ao Conselho da Revolução em 4 de Abril de 1975, aceita a proposta do Conselho da Revolução na esperança de que esta será, de entre as possíveis, a melhor solução para a construção da democracia pluralista em Portugal, perante as circunstâncias concretas da presente situação histórica. E proclama o seu firme propósito de continuar a trabalhar, nos termos do programa do PPD aprovado em congresso por uma ordem política democrática e por uma sociedade mais justa, livre e humana, na qual sejam escrupulosamente respeitados os direitos fundamentais do homem e do cidadão.

2. De Abril até agora a situação portuguesa degradou-se consideravelmente em todos os domínios.
Realizaram-se eleições, mas os seus resultados - iniludíveis no sentido da democracia pluralista e do socialismo em liberdade - logo foram escamoteados e tentou-se contrapor-se-lhes formas artificiais ou imprecisas de poder, dito popular. Sucederam-se três Governos Provisórios, mas não puderam governar por carência de autoridade. A grande maioria dos portugueses continuou a ser agredida pêlos jornais estatizados de Lisboa, pela rádio e pela televisão, mas nada se fez para restabelecer o pluralismo.
Aumentou o sentimento de insegurança em casa, nas ruas e no trabalho e surgiu verdadeira angústia perante os problemas económicos, financeiros, administrativos, educacionais e sociais do País, mas estes tão-só se têm agravado pelo adiamento das soluções, pela instabilidade política e pela falta de confiança generalizada.
Porém, mais do que tudo, o que tem caracterizado os últimos meses é a crise do aparelho militar, corroído pela indisciplina, pela irresponsabilidade, pela infiltração partidária, pelo oportunismo, e corroído ainda, pela própria assunção de funções políticas estranhas à natureza das forças armadas. O MFA entrou em desagregação; ao mesmo tempo, e paradoxalmente, alguns dos seus sectores, desprezando o espírito e a letra do pacto, pretenderam impor fórmulas a ele contrárias e contrárias à vontade expressa do povo português (basta relembrar o chamado documento-guia, o projecto de vanguarda política de Vasco Gonçalves e o triunvirato de generais).
Por tudo isto, o Partido Popular Democrático considera necessária e urgente para defesa da unidade das forças armadas, para salvaguarda da ordem democrática, para salvação da Revolução e, porventura, até do País - uma revisão do pacto que vá ao encontro do circunstancialismo actual da vida portuguesa.
Entretanto, queremos deixar bem claro que a nossa posição é de cumprimento do pacto, tal como fizemos no projecto de Constituição apresentado a esta Assembleia e nos votos emitidos na 5.ª Comissão Respeitaremos, pois, o pacto, na medida em que os outros também o respeitarem com idêntica boa fé.

3. Documento sem precedentes em direito constitucional, a Plataforma tem de ser compreendida simultaneamente à luz do Programa do MFA - que não vem revogar, mas tão-só parcialmente suspender ou derrogar - e à luz da própria Constituição que estamos a elaborar.
Embora contenha cláusulas contrárias ao Programa, o pacto pretende ser um instrumento ao serviço dos seus princípios, supostos insusceptíveis de efectivação sem recurso a ele. Daí que expressamente fale "no cumprimento dos princípios do Programa do MFA e na consolidação e alargamento das conquistas democráticas já alcançadas" (A, 4) e na "continuação da revolução política, económica e social iniciada em 25 de Abril de 1974" (B, l) que "empenhou o País na via original para um socialismo português" (E, 2).
O pacto não se converte numa espécie de super-constituição, a que fiquem vinculados juridicamente a Assembleia Constituinte e, mais tarde, os órgãos do poder político constituído. Não paira de fora da Constituição, porquanto, muito pelo contrário, a sua função específica - e nela se esgota - consiste em integrar-se no conjunto do texto constitucional (C, 6 e E, 2).

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O cumprimento do pacto implica a sua plena constitucionalização. Não pode haver duas Constituições, uma correspondente e outra não correspondente à Plataforma. Tem de haver uma só Constituição, inspirada, senão em valores absolutos de justiça, pelo menos em valores de certeza e de coerência jurídica e política. Essa unidade, com o constante influxo sistemático entre todas as suas partes, tem de ser salvaguardada a todo o custo; ela é essencial no respeitante aos direitos, liberdades e garantias e ao exercício democrático do poder político, sempre estreitamente conexos.
De resto, nós não admitimos contradição entre Constituição e Revolução. A Constituição tem de ser democrática e socialista para ser a Constituição da Revolução democrática e socialista. Em contrapartida, a Revolução deve entrar na Constituição, a legitimidade revolucionária deve passar a legitimidade constitucional e os órgãos revolucionários do Poder devem passar a órgãos constitucionais, sujeitos à Constituição - como prescreve, aliás já, o artigo 3.º dos princípios fundamentais - com as competências que estabelecer, independentemente uns em relação aos outros e em relação aos demais Órgãos de Soberania.
Admitir o contrário seria admitir ou a ditadura disfarçada sob a capa de vanguardas pretensamente progressistas ou o anarco-militarismo, sucedâneo do Anarco-populismo; e, num caso ou noutro, abrir a porta, consciente ou inconscientemente, ao golpismo fascista.

4. O pacto tem de ser interpretado e integrado de harmonia com os princípios da democracia, e não da autocracia, dirigido ao "exercício efectivo da liberdade política dos cidadãos" [a que se refere o Programa do MFA, n.º 5, alínea a)], e não ao exercício totalitário do Poder em nome de uma pseudo-revolução ou de um pseudo-socialismo.
Considerando, pois, a sua dependência funcional (apesar de tudo) do Programa, considerando as intenções expressas de criar condições para uma sólida democracia política, social e económica no nosso país, é evidente que o pacto tem de ser, ponto por ponto, confrontado com os princípios da democracia, é evidente que as soluções não democráticas que encerra devem ser integradas tanto na sua lógica interna como na lógica de uma democracia que quer fazer brotar e revigorar.
Por outro lado, o seu conteúdo é, por definição, de duração temporária, ao passo que nenhuma Constituição (mesmo se todo o direito é necessariamente circunscrito no tempo) pode ser feita pensando a termo certo. O próprio pacto prevê a revisão da Constituição, ao fim do período de transição, e não uma Constituição inteiramente nova (B, 3, e E, 1. 2.). Assim, o contributo do pacto para a Constituição de 1975 é o contributo do transitório e não do definitivo, do precário e não do duradouro.
Pois o definitivo e o duradouro - assim acreditamos e por isso estamos dispostos a lutar - há-de ser a democracia política e não as limitações à democracia política, a supremacia do poder civil e não a supremacia do poder militar, o Estado de direito e não a legalidade" de caserna, o primado do Parlamento e não o primado do executivo.
O excepcional nesta Constituição resulta do pacto, e não do que lhe é estranho. Tal como acerca dos direitos, liberdades e garantias não aceitaríamos - nem a Assembleia aceitou - restrições por causa dos imperativos de transformação da sociedade para o socialismo ou de quaisquer outros, também acerca da organização do poder político nunca renunciaríamos a dar um passo, por pequeno que fosse, no sentido da democracia política, ou seja, da soberania do povo institucionalizada.

5. A nossa tarefa é clara e precisa: fazer uma Constituição, coisa bem diferente de fazer qualquer lei constitucional transitória. Consequentemente, justifica-se no domínio da organização política como nos domínios dos direitos e deveres fundamentais e da organização económica, dar todo o desenvolvimento e equilíbrio - este, infelizmente, nem sempre alcançado - às matérias, tratá-las com rigor (embora sem preciosismo), avançar, se possível, para o aperfeiçoamento político e técnico do direito em gestação, colhendo as lições da nossa própria experiência e da experiência revelada pelo direito comparado.
Os representantes do PPD na 5.ª Comissão trabalharam, pois, de harmonia com os seguintes critérios, que mais não são do que outros tantos corolários das ideias acima enunciadas:
a) Aproveitamento de todas as virtualidades democráticas ínsitas na plataforma, a partir da Assembleia Legislativa ou Parlamento eleito por sufrágio universal, directo e secreto (5.1.);
b) Estabelecimento de um mínimo de garantias de democracidade de funcionamento dos órgãos de soberania com titulares não saídos do sufrágio universal, designadamente os órgãos militares;
c) Definição das relações entre os órgãos em termos de separação e interdependência, de modo a evitar conflitos de competência e a conferir a todos requisitos de operacionalidade;
d) Clara sujeição dos actos e actividades dos órgãos e agentes do Estado aos princípios da legalidade e da constitucionalidade, até por se entender que as opções que fizerem deverão ser dentro do espírito da Constituição [Pacto, 3.2, alínea a)];
e) Regulamentação pela Constituição - quer em sede de princípios gerais (título I) quer em cada título - de todas as matérias reconhecidamente constitucionais (como não podia deixar de ser, pois a organização do poder político não pode ser devolvido para a lei).

6. Até aqui a declaração de voto, tal como a tínhamos elaborado há já bastantes dias. Mas os acontecimentos ocorridos na semana passada obrigam-nos a acrescentar algo mais.
Esses acontecimentos vieram desmentir - com que júbilo o dizemos! - o pessimismo em que estávamos acerca da situação das nossas forças armadas. Pois eles vieram mostrar que ainda tínhamos forças armadas, que havia verdadeiros militares portugueses com capacidade de decisão, lucidez e coragem para enfrentar todas as dificuldades e combater pela liberdade e pela democracia, até ao sacrifício da própria

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vida. Como em 25 de Abril, em 25 de Novembro as forças armadas souberam corresponder àquilo que, lhes reclamava o povo português.
Mas não foi somente uma vitória dos militares democratas. Foi, acima de tudo, uma grande vitória do nosso povo - deste povo que acorreu em massa às eleições para fazer ouvir a sua voz, que em grandiosas manifestações exigiu um Governo representativo, que soube vencer as manobras totalitárias e que, ainda no dia 25, opôs uma sólida barreira aos aventureiros extremistas. A resistência das forças armadas apenas foi possível porque se apoiou na resistência da grande maioria dos portugueses do continente e das ilhas.
Verifica-se então que foram aqueles militares que conseguiram escapar às manipulações partidárias os que puderam triunfar. Verifica-se ainda - e cada vez mais isso há-de verificar-se que só a isenção política das forças armadas lhes permite desempenhar a sua missão especifica de defesa da independência nacional. Esse o seu lugar, e não a condução dos negócios públicos, que tem de pertencer a todos os cidadãos portugueses, e não a quaisquer privilegiados.
Não pomos em causa o papel histórico do MFA, mas não podemos aceitar - especialmente depois da experiência dos últimos meses - que queira elevar-se a vanguarda nacional. Não aceitamos vanguardas civis ou militares. O único motor de uma revolução democrática e socialista é o povo e as forças armadas têm, sim, de respeitar a sua vontade livremente expressa e de garantir o cumprimento da Constituição e das leis.
Por isto e pelo que atrás ficou exposto impõe-se agora mais do que nunca - reconsiderar o pacto entre o MFA e os partidos, com vista à construção da democracia política, social e económica que os portugueses merecem e inequivocamente exigem.

Vozes:- Muito bem!
Aplausos.

O Sr. Presidente: - Vamos, portanto, entrar na discussão na generalidade da 5.ª Comissão.
Tem a palavra o Sr. Deputado Sottomayor Cardia.
Tem vinte minutos.

O Sr. Sottomayor Cardia (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Neutralizada a insurreição comunista de 25 de Novembro, consumada a derrota da ditadura que pesou sobre o País de Março a Setembro, estabelecida a disciplina nas forças armadas sob responsabilidade de oficiais democratas, recuperada a tranquilidade e a tolerância no quotidiano das pessoas, resgatado o País à revoltante poluição ideológica veiculada pela comunicação social, reunidas estão as condições para, se tal puder ser a decisão da Assembleia Constituinte, se instaurar a democracia política em Portugal.
Embora não conheça suficientemente a história militar portuguesa, creio poder afirmar que nunca as nossas forças armadas estiveram entregues em tão democráticas mãos. A humanidade, moderação e tolerância que as forças armadas leais demonstraram no combate à insurreição comunista constituem alta lição de ética militar e sentido das responsabilidades.

Uma voz: - Muito bem!

O Orador: - A moralidade e espírito democrática das forças armadas são - não o esqueçamos - importante factor de civilização política.
Após cerca de dois anos de crise política interna, as forças armadas portuguesas atingiram um momento evolutivo que se caracteriza por traços eminentemente positivos. Diversamente do que se verificou no tempo do fascismo e do gonçalvismo, não são o suporte de um sistema opressivo; são uma instituição ao serviço da defesa nacional e das conquistas democráticas. Diversamente do que se verificou após a queda do gonçalvismo governamental, não são um corpo em dissolução acelerada; são, como é timbre da instituição militar, uma organização hierarquizada e disciplinada. Diversamente do que se verificou ao longo de toda esta crise, não são um campo de batalha entre ideologias e opções políticas; estão ao serviço apartidário do povo. Não se trata de aspectos politicamente secundários, mas de conquistas decisivas da Revolução.
Ao iniciar o debate sobre a organização política do Estado, nós, constituintes livremente eleitos pelo povo, teremos de reflectir seriamente sobre uma hipoteca imposta a esta Assembleia nos piores tempos da ditadura gonçalvista. Na minha interpretação, a assinatura da plataforma de acordo constitucional por partidos democráticos foi um acto patriótico.
Se não a tivessem subscrito, era demasiado visível que as eleições se não realizariam, e já hoje viveríamos, seguramente, sob uma ditadura de direita, após termos passado por uma ditadura comunista mais severa ainda do que o gonçalvismo.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - A anuência ao ultimato dos dirigentes militares de então foi um acto de prudência. Havia a esperança de minar por meios políticos a ditadura. O presente mostra que a nossa prudência foi razoável. Perante a irresponsabilidade e o desvario dos ditadores, a prudência dos democratas correspondeu ao sacrifício moral que o País exigia.
Os ditadores caíram, os democratas continuam.
De tal modo que, se esta Assembleia consagrar no texto constitucional as disposições da Plataforma, os efeitos práticos serão substancialmente diferentes dos visados por quem impôs tais disposições há oito meses. O actual Conselho da Revolução não tem qualquer afinidade com o que em 12 de Março saiu de uma "assembleia selvagem", para usar a rigorosa expressão do brigadeiro Vasco Lourenço. Não é pró-comunista, mas esmagadoramente composto por oficiais de incontestável lealdade ao 25 de Abril.
Esse inconveniente encontra-se, pois, removido. Era sem dúvida o mais grave na prática, mas não é o único.
Às observações que já tive ocasião de expor sobre a questão, acrescentarei algumas mais, retiradas da própria experiência de poder militar sob que o País tem vivido desde 25 de Abril de 1974.
Esta revolução fez-se basicamente para restaurar a liberdade. Ora não há liberdade sem antagonismo, do mesmo modo que não há liberdade sem democracia.
O antagonismo consentido é a regra do convívio político em liberdade. A diversidade de opções - se-

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jam pontuais, conjunturais ou fundamentais - está na origem do agrupamento dos cidadãos em movimentos, tendências ou partidos. A oposição é indissociável da liberdade. A paz social exige, contudo, que a oposição de projectos políticos seja expressa por declarações, manifestações, reivindicações, votações ou actos de idêntica natureza, e não por pronunciamentos e sedições; exige, para dizer muito brevemente, que a política seja uma oposição entre civis e não entre militares. Se se institucionaliza um sistema político respeitador da liberdade, mas em que se acolhe também a expressão de oposições entre militares, mesmo se restritas a declarações e votações, imperceptivelmente se desliza na conspiração ou naquilo que a ela pode conduzir.
O pretérito envolvimento do MFA no PCP, e do PCP no MFA, deve atribuir-se, é certo, à inicial e superada ingenuidade política do MFA e à tendência da direcção do PCP para o golpismo.
Reconheça-se, contudo, que o envolvimento MFA-PCP não resultou apenas de uma ingenuidade e de um golpismo. Qualquer direcção política ou militar, mesmo madura, sofrerá também inevitável erosão interna e desprestígio externo se for chamada a desempenhar funções de colégio eleitoral do Presidente da República, senado ou tribunal constitucional.

O Sr Barbosa de Melo (PPD): - Muito bem!

O Orador: - Organizações partidárias, mesmo democráticas, poderão sofrer a tentação do intervencionismo na área político-militar. Na melhor das intenções, inicialmente e até para evitar antecipação de concorrentes, poderão dedicar-se a "trabalhar" as forças armadas. Desnecessário se afigura o desenvolvimento da hipótese. Todos entenderão que, como socialista e como democrata, não quero que, dentro de poucos meses, se diga ou oculte que as unidades A, D, J e P são PS, as unidades B, E, M, N são PPD, as unidades C, F, G e O são CDS, e as unidades L, Q, R e T são PCP. O feudalismo não é revolucionário, nem progressista, nem socialista. E acima de tudo põe em perigo a paz!

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Responder-se-á que o actual Conselho da Revolução garante o apartidarismo. Não duvido de que salvo irrelevante resíduo gonçalvista, os actuais membros do CR são rigorosamente apartidários e como tal se manterão enquanto militares.
A análise deve, porém, ser prosseguida. Podem, na verdade, admitir-se duas hipóteses: ou as divergências entre partidos são marginais aos problemas do País ou representam as diferentes opções que esses problemas admitem.
Na primeira hipótese, que, aliás, tudo desmente, e, em particular, a experiência portuguesa, os partidos devem ser marginalizados, por marginal ser a sua natureza. E deverá procurar-se quem os substitua. Cabe então decidir se, sim ou não, é a instância militar, como entidade suprapartidária e congregadora de certos partidos, independentemente de voto popular, a melhor situada para resolver os problemas do País em orientação democrática e socialista. Pessoalmente, sou de opinião que nenhum grupo profissional preenche as necessárias condições.
Nenhum ofício tem privilégio especial na arte da política.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Na segunda hipótese, que, aliás, tudo confirma e a experiência portuguesa ilustra, não se vê razão pela qual os resultados democraticamente obtidos através da concorrência pluralista interpartidária devam ser reapreciados por um órgão de soberania constituído por cooptação no seio de um sector profissional. Nem se compreende como, obrigado a decidir sobre questões essenciais, possa não reproduzir tendências consonantes com os partidos.
O MFA pode e deve ser apartidário, mas não pode nem deve ser suprapartidário. O suprapartidarismo não existe em democracia. É tentação paternalista. As experiências portuguesas oferecem-nos boas razões para recusar.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Não queremos mais vanguardas!
A democracia é o poder da maioria no respeito das minorias. Quaisquer que sejam, as maiorias devem ser aceites no poder; quaisquer que sejam, as minorias devem ser respeitadas na oposição. E tem de aceitar-se que, em novas eleições, a minoria se tome maioria e a maioria se tome minoria.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Estas coisas são evidentes e simples.
São sinónimo de civismo. Mas a verdade é que têm de ser ditas, porque há ainda muito intelectual político em vias de civilização.

Vozes: - Muito bem!
Aplausos.

O Orador: - E aqui pergunto: é lícito abrir-se constitucionalmente uma via para que a vontade da minoria acabe por prevalecer ou neutralizar a vontade da maioria através de uma intervenção política do MFA?
Vejamos.
Admita-se, por hipótese, que a maioria civil, democraticamente representativa, é minoria militar, cooptativamente formada.
Consideremos a eleição do Presidente da República. Há dois candidatos. Sabe-se que um tem o apoio da maioria popular e outro o apoio da maioria militar. Imaginemos que a diferença entre maioria e minoria é maior no sector militar do colégio eleitoral do que no sector parlamentar; pode então acontecer que seja eleito o candidato democraticamente minoritário e vencido o candidato democraticamente majoritário. Em que posição fica o Presidente da República? Em que posição fica o colégio eleitoral militar? Como reagirá a maioria democrática? Concedamos que se pode evitar uma situação dessas, prevendo-a e forçando o compromisso. Mas temos igualmente de reconhecer que poderemos não o conseguir. Com que autoridade fica o Estado? Como se fará respeitar pela Nação um Chefe de Estado assim eleito?

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Conservemos a hipótese e analisemos o processo legislativo previsto no pacto. A maioria parlamentar não atinge os dois terços. A minoria parlamentar, em sintonia com a maioria militar, pode fazer obstrução a toda a legislação do poder democrático impedindo assim de governar.
Sabemos que não é esse o espírito do MFA. Mas é a letra, e a letra e que vai vigorar e decidir dos destinos do poder político Chegados ao impasse, não o resolveremos pelo recurso ao espírito actual do MFA. que, obviamente, terá então duas leituras. Vai a maioria parlamentar declinar as suas responsabilidades e dizer ao País que não governa nem legisla por causa do MFA, mas que isso não tem importância Alguém admite que as coisas se passem assim?
As disposições pactuais a que acabo de aludir são, provavelmente, ou inúteis ou explosivas. São eventualmente explosivas para a liberdade política e para a disciplina militar, logo para a paz civil.
Se o socialismo for amanhã minoritário, nós, como democratas, não aceitamos que o socialismo prevaleça por via militar

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Nem vejo como o projecto constitucional o permitiria, porque um legislador bloqueado não pode produzir legislação socialista.
O exercício do direito de veto por segundas câmaras pode ser eficaz para garantir a conservação social, mas não para conduzir a transformação social.

O Sr. António Reis (PS) - Muito bem!

O Orador: - Devo também confessar aos partidários do socialismo militar de que duvido que as forças armadas sejam mais esquerdistas do que o povo.
Não duvido de que sejam mais direitistas, mas duvido de que sejam mais esquerdistas

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Embora exterior à instituição militar, recuso-me, como cidadão, a aceitar que, em nome dos homens que verdadeiramente compõem as forças armadas, outros homens, que os não representem, possam ter papel decisivo no futuro do País. Um exército não pode aceitar que nele esteja cindida a vontade dos operacionais e a vontade dos políticos.

O Sr António Reis (PS): - Muito bem!

O Orador: - Fala-se no MFA como portador de um projecto próprio de construção do socialismo por via pacífica. Descreio de que a instituição militar deva ou possa ser portadora de um projecto político próprio. A única política que as forças armadas devem prosseguir é a defesa da Nação e o respeito da democracia. Tais objectivos não são exclusivos das forças armadas, mas comuns a todas as correntes democráticas. Nem creio que a instituição militar esteja bem situada para definir e dirigir um processo pacífico de transformação da sociedade.
A sedição de 25 de Novembro evidencia o risco que para a paz civil se contém no exercício do poder por militares, enquanto militares. Pelo contrário, as forças armadas garantem a possibilidade de transição pacífica ao socialismo não pela intervenção no processo político, mas precisamente pela não intervenção.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Foi nesse sentido que inicialmente se sublinhou o papel do MFA na abertura de uma via pacífica e democrática para o socialismo. Tinha-se em vista evitar outro Chile - não imitar o Peru.

O MFA é agnóstico relativamente ao futuro político do País

Foi, e muito bem, o que há um ano disseram na TV os majores Melo Antunes e Vítor Alves.
O MFA regressou à pureza original. Deve, por isso, cumprir o seu pacto original com o País: o seu Programa, plataforma legitimadora do 25 de Abril.
Não proponho que isso seja feito rigidamente e à letra, mas devemos estudar formas de o realizar sem prejuízo do projecto de instaurar a democracia
Política.
Um conselho de defesa das liberdades públicas, ou um conselho de defesa da Revolução, se se preferir, ou um conselho de Estado, com atribuições próprias "de instituições" similares e sem competência legislativa, poderia talvez constituir fórmula aproveitável para reflexão.

O Sr. Pedro Roseta (PPD): - Muito bem!

O Orador: - É verdade que, pela natureza da Revolução de Abril, há neste momento em Portugal mais e melhores políticos entre os militares do que noutros países. É uma vantagem para a democratização do espírito militar, tanto mais que esses políticos são democratas ilustres. Mas, naturalmente, se não impede os que assim o pretendam de obter uma licença de serviço para solicitar o voto popular.
E muito provavelmente, mantendo-se, nesse caso, partidariamente independentes, para desempenhar cargos governamentais.
Vejo com apreensão que militares em funções participem activamente na política. Mas, sobretudo, reputo altamente perigoso que os máximos responsáveis militares, por exemplo os Chefes de Estados-Maiores, sejam obrigados a desempenhar a função de senador e de juiz constitucional e se encontrem assim envolvidos na luta pelo poder.
É frequente a acusação de que, conquistado o poder, os militares o não largam. Experiências há, na verdade, que confirmam situações dessas.
O MFA pode e, quanto a mim, deve desmentir na prática essa imagem antidemocrática dos exércitos. E pode fazê-lo sem abdicação do seu programa, mas por imposição do seu programa. Será a melhor, se não a única, maneira de conservar e reforçar a unidade das forças armadas, o respeito nacional pela instituição militar; será a melhor, se não a única, maneira de permanecer fiel a si próprio, e não a um dos seus desvios; de realizar autêntica revolução na revolução das forças arma-

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das portuguesas, promovendo a sua despartidarização depois de ter iniciado a sua democratização, ao mesmo tempo que iniciou a democratização do País.

Vozes: - Muito bem!
Aplausos.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Miranda.

O Sr. Jorge Miranda (PPD): - Sr. Presidente: Como a minha intervenção é um pouco longa, eu pediria autorização para a fazer logo à tarde.

O Sr. Presidente: - Mas ainda tem tempo. Tem vinte minutos.

O Sr. Jorge Miranda (PPD) - Mas eu quereria pedir trinta minutos, como autor do projecto.

O Sr. Presidente: - Ora, tem essa meia hora.

O Sr. Jorge Miranda (PPD): - Mesmo assim, eu preferia, se me fosse permitido, fazer a minha intervenção logo à tarde.

O Sr. Presidente: - Está suspensa a sessão até às 15 horas.

Eram 12 horas e 30 minutos.

(Assumiu a presidência o Sr. Presidente Henrique de Barros.)

O Sr. Presidente: - Está reaberta a sessão.

Eram 15 horas e 20 minutos.

O Sr. Presidente: - Antes de prosseguir a discussão em curso, a discussão na generalidade sobre o parecer da 5.ª Comissão, eu queria prestar a seguinte informação: relativamente à eleição para a vaga de Vice-Presidente, a Mesa fica aguardando a apresentação de qualquer proposta de candidatura. Quando essa proposta foi apresentada na Mesa, será marcada a sessão para se proceder à eleição. Antes disso, creio que seria prematuro e não levaria a resultado nenhum.
Ora, segundo me informam, tinha ficado inscrito para usar da palavra neste debate na generalidade o Sr. Deputado Jorge Miranda.
Portanto, dou a palavra ao Sr. Deputado Jorge Miranda.

O Sr. Jorge Miranda (PPD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Nesta primeira intervenção sobre as matérias da parte III da Constituição, pareceu-me que deveria versar, embora em linhas forçosamente muito gerais, alguns dos problemas básicos que suscita a organização de um Estado democrático e empenhado no socialismo, como queremos que seja o Estado Português.
Tratarei sucessivamente de democracia e Constituição, democracia representativa e poder popular e democracia e socialismo, procurando definir conceitos claros para que nos entendamos - quer os que estão de acordo, quer os que não estão.
E atrevo-me a pensar que muitas das conclusões a que chegarei serão igualmente subscritas por outros Deputados, além dos do Partido Popular Democrático.

Sr. Presidente, Srs. Deputados:
1. A organização do poder político consiste, em democracia, no estabelecimento de meios capazes de permitir ao povo exercer o poder, de que é titular por direito próprio; consiste na definição dos processos através dos quais a vontade política do estado se deve tornar efectivamente coincidente com a vontade popular.
Tais meios e processos não são apenas jurídicos.
Mas a Constituição de um Estado que se pretenda democrático pode dar sólido contributo - pela coerência com os princípios, pelo rigor e ousadia das soluções, pelo aperfeiçoamento dos preceitos - para a consecução desse objectivo, para a construção e o fortalecimento de verdadeiras instituições democráticas. Nem é possível um governo democrático que não esteja sujeito à Constituição, pois a formação da vontade do povo e a adequação dos órgãos do
Estado a esta vontade fazem-se em obediência às suas normas.
Governo democrático é sempre governo constitucional, neste sentido: que a Constituição é fundamento jurídico e limite do poder; que os poderes dos órgãos políticos são apenas os que constam das normas constitucionais; que eles se limitam reciprocamente uns aos outros e, sobretudo, não podem ofender os direitos fundamentais garantidos pela Constituição.
Governo de leis e não de homens, princípio da legalidade. Estado de direito - são expressões que designam outras tantas conquistas históricas que, embora anteriores ao florescimento dos sistemas democráticos, todavia, só alcançam plena expressão dentro deles e que urge preservar para construir o socialismo. Onde há arbítrio do poder, reinado da força, afastamento do pluralismo, não pode haver democracia e também não pode haver socialismo.
Um homem só ou um grupo de homens podem exercer despoticamente o poder; não um povo todo, pois o povo, para o exercer, requer uma organização jurídica em que cada cidadão possa fazer ouvir a sua voz, a maioria ditar a lei e a minoria ter os seus direitos respeitados. Um Estado abstencionista não carece de um aparelho complexo de poder e, mesmo assim, a filosofia liberal concebeu a doutrina da separação dos poderes; que dizer então de um Estado que chama a si a responsabilidade de toda a vida colectiva, sabido como os detentores de cargos públicos tendem a perpetuar-se e os burocratas a elevar-se a nova classe dominante, de cariz, aliás, conservador?
2. Democracia é poder efectivo do povo, embora não necessariamente governo directo do povo. Ao povo, ou seja, à totalidade dos cidadãos, cabe determinar as supremas decisões da política do País, mas a direcção e condução permanentes desta política não lhe podem competir nos Estados modernos por causa da extensão destes Estados, do número de cidadãos, da crescente gravidade dos problemas governativos e administrativos e da divisão de trabalho que lhes está ligada.
A democracia moderna chama-se, por isso, democracia representativa. Não porque o povo seja incapaz de governar, mas porque o povo está material-

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mente impossibilitado de o fazer. E como o povo, por si, não pode governar, é preciso que alguém governe em sua vez, naturalmente de acordo com as grandes opções feitas pelo povo. Daí a eleição política e a sua importância vital não apenas na escolha dos novos governantes como igualmente - como se viu, sobretudo no século xx, com a interferência dos partidos políticos, peças dinâmicas da democracia - na escolha das linhas fundamentais, ideológicas ou não, da política do País. Outras formas de participação directa do povo, como o referendo, são sempre complementares da eleição.
Após dois séculos de experiência não há alternativa senão entre democracia representativa e ditadura; não há alternativa senão entre democracia representativa - com instituições parlamentares, presidencialistas ou
Outras - e qualquer forma de ditadura - seja ela jacobina, cesarista, soviética ou fascista,

Vozes:- Muito bem!

O Orador: - E, caso curioso, as ditaduras, de direita ou de esquerda, quando se "constitucionalizam" acabam sempre por adoptar (formalmente, bem entendido) instituições semelhantes às provenientes da Revolução Francesa.
Em vez de denegrir a democracia representativa, apontando os seus vícios - que muitas vezes apenas são os das estruturas sociais e económicas de que é ou foi coeva -, o que importa é valorizá-la, aprofundá-la e renová-la. O que importa, neste momento, em Portugal, em que, apesar de tudo, ainda não murchou a esperança do 25 de Abril, é salvaguardar as instituições democráticas das arremetidas totalitárias, não as deixar cristalizar em circulo fechado de cooptações e influências e imprimir-lhes sentido progressista - agora que a arrancada para o socialismo irá permitir evitar os vícios das democracias dos países capitalistas e mostrar que, ao menos aqui, é possível haver socialismo e liberdade. O que importa é prestigiar as instituições representativas - a primeira das quais é esta Assembleia Constituinte -, aproximá-las do povo representado, fazê-las viver pêlos trabalhadores, torná-las, em suma, autenticamente participadas.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: -3. À democracia representativa - única para que aponta o Programa do Movimento das Forças Armadas - tem-se tentado contrapor, contudo, nos últimos tempos, entre nós, a democracia directa, que seria manifestada através das chamadas organizações populares de base (comissões de trabalhadores, associações e comissões de moradores, conselhos de aldeia, cooperativas, colectividades de cultura e recreio, etc.). Enquanto que aquela seria igual a democracia burguesa, só o poder popular, ligado a essas organizações, asseguraria o avanço rumo ao socialismo.
Repudiamos esta opinião. Não contestamos nem subestimamos o papel das organizações populares de base - desde que, evidentemente, populares e de base -, mas na sua esfera de actuação, a qual não pode ser a do exercício da soberania. Não contestamos que possam vir a ser veículos e canais de democracia, mas não vemos como possam elas próprias substituir-se aos órgãos democráticos do poder central, fruto da vontade unitária de todo o povo.
Na verdade, o que são essas organizações senão organizações criadas por certas parcelas do povo para resolver os seus problemas específicos - problemas de trabalho e empresa, de segurança social e habitação, de escolas e cultura, de tempos livres e transportes, de infra-estruturas urbanas e abastecimentos? E como seria crível privilegiar uma miríade de organizações sem quebra da unidade real e sentida do povo e do Estado?
As organizações populares de base poderão contribuir para a resolução informal, e não burocrática, de muitos problemas da vida quotidiana das pessoas e, assim, servir de verdadeiros bancos de ensaio de democracia e socialismo. Além disso, pelo conhecimento que desses problemas adquiram, os trabalhadores e cidadãos ficam habilitados à crítica da acção do Governo e da Administração e até podem chegar a supri-la, diminuindo o peso e o custo do aparelho estatal. O que não podem as organizações populares de base é representar mais do que aqueles que a elas pertencem - ao passo que os titulares dos órgãos do
Estado representam todo o povo - e passar da perspectiva fragmentária dos interesses sectoriais à perspectiva global dos interesses nacionais.
Nestas condições, de nenhum modo se justifica identificar poder popular e organizações populares de base. Nem estas organizações exercem poder, nem o poder que eventualmente exercessem mereceria ser designado poder popular.
Não exercem poder, porque não exercem quaisquer funções do Estado nem, sobretudo, dispõem de prerrogativas de autoridade; pelo contrário, faltam-lhes os meios administrativos e, por natureza, recusam as formas coercitivas. Não se trata de poder popular, porque tais organizações somente reflectem as suas bases - que nem sequer coincidem com todos os membros das comunidades a que correspondem - e, muitas vezes, não exprimem senão a vontade dos seus activistas. Ora, nem o basismo nem o activismo de grupos podem ser critérios de qualquer política coerente.

Uma voz: - Apoiado!

O Orador: - Também não é lícito falar em poder popular como poder das massas populares em contraste com poder da burguesia. Não é lícito quando as classes trabalhadoras e as mais largas camadas populares participam na democracia representativa e podem aceder ao poder, graças aos seus partidos e ao exercício de; sufrágio universal. Muito menos quando, como se verifica em Portugal, são partidos de trabalhadores e que se reclamam de socialismo os que ganham as eleições.
Tão-pouco é correcto denominar democracia directa o sistema político porventura assente nas organizações populares de base: a interferência dos cidadãos no exercício do poder político não seria aí directa, mas sim mediatizada por essas organizações.
Apenas a espantosa ignorância de alguns, explorada pelo maquiavelismo de outros que a manipulam para os seus intentos golpistas, permite explicar tanta confusão.

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Pode falar-se, porém, em democracia de base, na medida em que as organizações populares de base constituem (ou virão a constituir) excelente instrumento de participação e criatividade - pois, a participação e a criatividade são sinais distintivos da democracia. E pode falar-se ainda em contraponto ou contrapoder (ao lado de outros, numa nova e amplíssima visão da separação dos poderes) relativamente ao Parlamento, ao Governo, à Administração Central, em suma, relativamente ao sistema de órgãos supremos ou de cúpula do Estado.
Democracia de base, por conseguinte, enquanto expressão da democracia construída e vivida desde a base, enquanto expressão da democracia que começa nas pequenas comunidades bem próximas das aspirações dos homens e que, por esta via, prepara a participação dos trabalhadores e cidadãos em níveis crescentes de responsabilidade e, simultaneamente, previne os abusos de poder dos homens que ocupam os mais altos cargos do Estado. Democracia de base, mas não poder popular, porque o único poder popular não é o destes ou daqueles trabalhadores ou moradores, mas o de todos os trabalhadores e moradores de Portugal - o único poder popular é o poder democrático dos trabalhadores e cidadãos, nas formas definidas pela Constituição.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - 4. Um exemplo elucidativo da impossibilidade de passar das organizações populares de base para a organização do poder político encontra-se no chamado documento-guia da " aliança entre o MFA e as massas populares", aprovado, na generalidade, numa das últimas assembleias do MFA da época gonçalvista. Nascido de uma tentativa - felizmente malograda - de instauração de uma ditadura, esse documento-guia acabava por institucionalizar, não qualquer poder popular, antes um verdadeiro poder ditatorial.
Como se sabe, ele previa uma estrutura escalonada, desde as comissões de moradores e de trabalhadores até uma chamada assembleia popular nacional, compreendendo escalões intermédios de sucessivas assembleias populares municipais, distritais e regionais. Ora, desde logo, se debatia com duas dificuldades: a muito pequena cobertura do País - que não se confunde com os subúrbios de Lisboa - por organizações, muitas delas incipientes e sem raízes no nosso povo, e a infiltração por partidos ultraminoritários de esquerda ou extrema-esquerda, apostados em utilizá-las para impedir - como se tem visto - a normalidade da prática democrática e para subverter as liberdades públicas.
Por outro lado, a autenticidade da participação popular ficava inteiramente comprometida por se estabelecer não o voto secreto, mas o voto com o braço no ar, ao arrepio de todas as conquistas históricas da democracia e da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Tal como ficava comprometida por, a partir de certo nível, se prever a interferência nas assembleias de elementos das unidades militares da área. Em vez de eleições, haveria meras ratificações ou aclamações de candidatos previamente escolhidos e assembleias sem garantias de regular funcionamento. Como se fosse aceitável tirar ao cidadão comum - que é trabalhador - o sufrágio universal, com a possibilidade de se pronunciar sobre os grandes problemas nacionais, e, em troca, obrigá-lo a comparecer a longas, constantes e desgastastes reuniões de que não se aperceberia o efeito útil na orientação do Governo!

Vozes: - Muito bem!

O Orador - Como se fosse aceitável reconhecer aos militares, só por serem militares, mais direitos que aos restantes cidadãos ou admitir a tutela do MFA sobre os ditos órgãos da vontade popular!

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Mas, mesmo que se vencessem estes, escolhos, subsistiria sempre o obstáculo fundamental: como passar das organizações de base para as assembleias municipais, distritais e regionais e destas para a Assembleia Popular Nacional? Já nem sequer se põe a hipótese de, agora, recusar o princípio representativo, tão evidente é a necessidade de qualquer espécie de representação. Trata-se dos critérios de estruturação desses órgãos intermédios, da comunicação entre todos os escalões e da capacidade de um órgão assente no sufrágio indirecto de interesses específicos - a Assembleia Popular Nacional - decidir à luz de interesses gerais do País e nela se poderem reconhecer todos os portugueses só por serem portugueses.
Para tornar operacional o plano do documento-guia, só se poderia contar com o impulso de fora, capaz de imprimir dinamismo e unidade, quer aos órgãos intermédios, quer ao órgão superior (que são, afinal, os órgãos políticos), só se poderia contar com o impulso vindo ou do próprio aparelho de Estado ou de um movimento, frente ou partido que se autoproclamasse vanguarda da classe operária, dos trabalhadores ou da Nação. E então o "poder popular" outra coisa não seria senão o álibi de minorias que se substituiriam à totalidade dos trabalhadores e cidadãos. Aliás, por isso mesmo, e em flagrante violação do Pacto, se mantinha o MFA a longo prazo - até haver a pretensa Assembleia Popular Nacional - e se declarava o Conselho da Revolução o "órgão máximo da soberania nacional".
A fórmula não deixava de, paradoxalmente (ou talvez não ...) se aproximar do sistema corporativo de Salazar, que também tinha os seus organismos primários, intermédios e de cúpula e a sua câmara de interesses sociais (a Câmara Corporativa).

Uma voz: - Muito bem!

O Orador: - Em primeiro lugar, por destruir o sufrágio universal e directo e propor, em sua vez, uma espécie de sufrágio orgânico, em que os cidadãos nenhum modo tinham de interferir na designação dos governantes, designação esta atribuída aos órgãos de topo. Em segundo lugar, por lhe estar subjacente a hostilidade para com os partidos ou para com a "luta dos partidos", tida por causadora de todos os males públicos - e daí a estranha semelhança entre a pretensa vocação "unitária" das organizações populares

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e a qualificação do regime salazarista, com a sua "União Nacional", como "regime sem partidos".
E não deixava de revelar certas parecenças com a estrutura piramidal dos sovietes dos primeiros tempos da Revolução russa por causa da sobreposição de assembleias e conselhos, em teoria detentores de todos os poderes nos respectivos escalões. Só que, na Rússia, os sovietes de operários, soldados e marinheiros não tardaram a ser abafados à medida que a burocracia do partido se assenhoreava do Poder. Também numa primeira fase o voto era público, e foi a Constituição de 1936 que consagrou o voto secreto. Compreende-se porquê: o voto público foi aí - como seria em Portugal - uma arma dos detentores reais do Poder contra a livre expressão de discordâncias ou oposições; o voto secreto pôde, porém, ser reintroduzido quando já não havia o perigo de circulação de ideias heterodoxas.
A experiência de vários países do Terceiro Mundo é igualmente esclarecedora. Sem pôr em causa a eventual adequação do esquema do "poder popular" às condições particulares de novos Estados em construção, o certo é que, neles, a realidade do Poder não está nas massas, mas no número reduzido de dirigentes que fala em seu nome. Talvez outro sistema político não fosse praticável em Moçambique e noutros países; o que não pode ignorar-se é que se trata de sistemas de partido único, e o povo português já deu bem provas de querer uma democracia pluralista.
E são tantas as diferenças que, ao cabo e ao resto, os militares que pretendem, ou pretendiam, assimilar Portugal aos países africanos - decerto frustrados por não terem conseguido assimilar os povos de Angola, Guiné e Moçambique a Portugal, como lhes acenou Salazar -, em vez de chefes históricos de povos em libertação, não passariam, se alcançassem o Governo, de caudilhos do velho estilo sul-americano ou ditadores populistas do tipo do general Perón, já que nem forças, nem categoria, teriam para instituir um bonapartismo português.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Sr. Presidente, Srs. Deputados:

5. A democracia política é simultaneamente um conteúdo e uma forma. Ela possui um valor próprio, mas é também o instrumento determinante de realização da democracia social, económica e cultural.
É um conteúdo, por compreender dois princípios fundamentais: o reconhecimento da dignidade da pessoa humana, sujeito activo da sociedade a que pertence, e a autonomia da pessoa perante o poder político, susceptível de ser conformado através da sua livre expressão e acção como cidadão. É um conteúdo ainda porque o princípio da maioria, critério de formação da vontade geral, implica o respeito pela igualdade de todos os homens: é porque nenhum homem é mais que os outros, que as decisões colectivas têm de obter o consenso da maior parte dos homens para a todos obrigarem.
Mas a democracia é igualmente uma forma - por - que dá o quadro institucional dentro do qual cabem e podem agir todas as forças políticas, observadas as regras da Constituição e sem recurso à força; porque, no seu âmbito, são possíveis todas as concepções dirigidas à liberdade e todos os esforços de transformação económica e social. Assim, a democracia política é necessariamente pluralista, pelo menos como reflexo da sociedade plural - ideologicamente, e não só - dos nossos dias.
As grandes revoluções dos séculos XVIII e XIX - entre as quais as nossas de 1820 e 1836 - foram, sem dúvida, revoluções burguesas, em que só uma pequena minoria adquiriu poderes políticos. Mas a burguesia teve de apelar para o princípio da soberania nacional como único princípio racional numa época que se pretendia de razão e progresso e como base de uma legitimidade diferente da antiga legitimidade monárquica ou aristocrática. E este princípio viria a servir, posteriormente, de bandeira, não já da burguesia contra a aristocracia, mas dos trabalhadores do campo e da cidade contra a própria burguesia - dos trabalhadores combatendo por direitos políticos e, mais do que isso, por condições efectivas de exercício das liberdades fundamentais oferecidas pela Constituição a todos os cidadãos.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Deste modo, a luta política dos trabalhadores organizados em partidos socialistas e social-democratas, nos países com constituições democráticas, pôde fazer-se no próprio âmbito destas constituições que permitiram - e continuam a permitir - mudanças pacíficas e sucessivas da vida da sociedade, que, inevitavelmente, hão-de conduzir ao socialismo
Instituições democráticas tanto podem coexistir com sistemas económicos capitalistas quanto com sistemas económicos socialistas (já que a organização política dispõe de relativa autonomia perante a organização económica). Certo é, porém, que a experiência histórica tem comprovado dos factos:

1.º Que uma democracia capitalista não garante efectiva igualdade política, por não impedir efeitos de dominação e de alienação, e, nos países sem tradições cívicas e com mais graves problemas económico-sociais, viver em constante tensão com tendências totalitárias de direita e de esquerda;

2.º Que o socialismo, reduzido - melhor dizendo, degradado - ao elemento económico da colectivização, pôde ser realizado em ditadura - e talvez até mais rapidamente -, mas que socialismo, entendido como forma de libertação integral do Homem da necessidade, requer a liberdade política que apenas em democracia, apenas em democracia pluralista, existe.

Sr. Presidente, Srs. Deputados: Para nós, o socialismo ou é a democracia em plenitude - política, económica e social - ou não é socialismo. O socialismo ou é uma forma qualitativa e quantitativa mais avançada de democracia ou degenera em regime burocrático - quando não em regime totalitário -, tão grandes são os riscos de o Estado destruir, com a sua dinâmica de direcção e constrangimento, a liberdade e a personalidade humana; e, por isso, se justificam todos os processos de limitação de poder, incluindo os clássicos. Enfim, o socialismo ou é poder democrático dos trabalhadores - numa sociedade em que

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todos os homens vivam do seu trabalho - ou é capitalismo de Estado, e não há poder democrático dos trabalhadores se ele não se dá também ao nível dos órgãos centrais de poder, ou seja, não há poder democrático dos trabalhadores sem democracia política.
Pois bem: ser social-democrata é considerar indissociáveis o socialismo e a democracia. É acreditar que, por mais injusta que seja a realidade actual e mais perfeita a realidade ambicionada, esta não pode impor-se à força, e tão-somente pela convicção e pelo concerto da maioria dos homens, conscientes de que estão a lutar pela sua própria libertação. É afirmar que ninguém possui o monopólio da razão, por mais elaborada e científica que seja a sua análise, e que a única vanguarda admissível é a dos governantes livremente escolhidos pelo povo. É defender intransigentemente o respeito pela vontade popular e reconhecer que o socialismo tem de ser, em todos e cada um dos momentos, identificado com essa vontade expressa mediante processos democráticos e constitucionais.
Foi com esta profunda fé na democracia como modo de convivência e como único caminho para o socialismo que procurámos contribuir para que o texto da 5.ª Comissão fosse o mais democrático possível, apesar do Pacto celebrado entre o MFA e os partidos. E estamos certos de que a Assembleia Constituinte, eleita livremente pelo povo, não voltará atrás nas soluções encontradas pela Comissão, antes as saberá avançar a partir delas.

Aplausos.

O ST. Presidente: - Segue-se o Sr. Deputado Fernando Roriz, na discussão na generalidade.

O Sr. Fernando Roriz (PPD): - Sr. Presidente Srs. Deputados: Não é, naturalmente, possível perspectivar uma análise objectiva a qualquer esquema de arrumação dos princípios de "Organização do Poder Político", que a Constituição tem de consagrar, sem nela se ponderar o peso condicionante que aqui reflecte o pacto celebrado entre o MFA e a maioria dos partidos políticos portugueses.
Se não se encarar, frontalmente, a influência desse documento, do seu espírito e suas consequências em plano de tamanha importância na lei constitucional do País, e se não localizarmos umas e outras no contexto actual da vida política portuguesa, estaremos a iludir questão decisiva para o futuro imediato da nossa
Revolução e a construir vias de solução falsas e irrealistas no caminho concreto que temos de percorrer para atingir as metas a que se propôs o Movimento do 25 de Abril.
Há, pois, que descer até ao âmago desta questão, sem tibiezas, e com a verdade que importa trazer à luz do diálogo esclarecedor, porque só nele poderemos encontrar as pistas que previnam riscos comprometedores da Revolução e a esta garantam condições de avanço sem sobressaltos escusados.
Aceito que, para lá das suas conotações de ilógica democrática, o pacto MFA partidos se nutriu, na fase da sua gestação, de alguma legitimidade teórica, que terá sido a de conferir ao movimento militar responsável pelo 25 de Abril a possibilidade prática e constitucional de agir como factor de intervenção política na vida política portuguesa, nesta fase de construção de uma realidade nova em todo o contexto da nossa vida pública.
Falando mais claro e mais objectivamente, pode certamente dizer-se que o pacto assentou num pressuposto de desconfiança ou pelo menos de reserva em relação aos partidos políticos a quem competia a parte mais operacional na estruturação da nova organização política portuguesa. E, a partir de tal pressuposto, jogou esse documento, nesta clara perspectiva: se os partidos e os políticos falharem, não falhará o MFA, nele se guardando, portanto, em última análise, a pureza do 25 de Abril.
Claro que aqui se esconde uma óptica que nada tem de democrática, porque da democracia nega o mais elementar princípio: o da soberania da vontade popular, a quem o esquema retirava grande parte do seu direito natural de escolha.
Mas vamos ignorar essa aberração e aceitar a hipótese absurda de que a escolha popular estivesse já então feita, para seguir na linha de raciocínio que porventura terá inspirado os mais idealistas cultores do pacto, que abertamente jogaram, pois, na prova de coerência entre os partidos e o MFA.
Hoje temos já todo um "saber de experiência feito" que nos permite encarar, à nova e certamente mais categórica luz, as consequências práticas do pacto.
A prova de coerência foi, efectivamente, feita. O seu ciclo encerrou-se precisamente no 25 de Novembro, nos factos que o materializaram e nos seus antecedentes próximos e distantes. E essa prova diz-nos que quem falhou rotundamente na experiência ensaiada foi o MFA na sua doublé, de força militar e vanguarda política.
Sabe-se hoje, em Portugal, por um preço que não estará ainda suficientemente avaliado, mas que esteve muito próximo de atingir o nível terrível de uma guerra civil, que não é possível fazer-se política de armas na mão e jogar a supremacia das ideias, tendo atrás a inevitável tendência de acreditar nas convicções próprias como melhores que as alheias, a força de uma ou mais unidades militares. Sabe-se hoje, em Portugal, sem razões para dúvidas legítimas, que a estrutura de umas forças armadas não é compatível com a diversidade de opções políticas diferentes, quando não antagónicas, se se quiser - como é imperioso que se queira - que a força militar de um país seja o efectivo garante da ordem democrática ao serviço do povo soberano, da sua paz e tranquilidade.

Uma voz: - Muito bem!

O Orador: - A incursão do MFA pêlos caminhos da política portuguesa nesta hora de renovação revolucionária, mesmo que bem intencionada no espírito de alguns que a idealizaram e quiseram pôr em prática - e nem todos se podem dizer nessa posição de recta intenção -, que nos deu? Pois, apenas o triste espectáculo de uma atitude revolucionária de fachada em cuja ribalta se exibiram, para gáudio de todo o mundo civilizado, as momices utópicas de alguns pretensos iluminados, hoje a curtir a frustração dos seus erros e o peso do seu incomensurável ridículo.
Ficarão na nossa história incontáveis episódios desse ridículo, como lição que não poderemos esquecer, sob pena de nos desviarmos da mais elementar das nossas

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obrigações, que é a de pouparmos Portugal a novas experiências destinadas a falhar sem honra nem glória.
Sr Presidente, Srs. Deputados: O pacto MFA - partidos é, pois, neste momento, tentativa falhada por si própria, cadeia que se quebrou pelo primeiro dos citados elos Nela não funcionou a enxertia da prática política na vida militar, nem funcionará nunca nos moldes em que a quiseram fazer.
A resistência que alguns partidos ofereceram ao projecto desse pacto - e o PPD está entre os primeiros nessa atitude - compreender-se-á, agora, como prudência de bom aviso, que nunca teve em mira regatear ao MFA o seu mérito na Revolução, mas sim, apenas, preservar a viabilidade desta.
Tinham razão, pois, aqueles que, desde a primeira hora. quiseram entregar a política aos políticos mandatados pelo povo e as forças armadas aos militares.
Não cremos, portanto, que se deva persistir no perigoso erro de minar a coesão das forças armadas com tarefas políticas que não se coadunem perfeitamente com o espírito suprapartidário que as tem de informar.
Quer isto dizer que advoguemos a atitude de se rasgar pura e simplesmente esse documento? Não patrocinamos tal ideia, porque continuamos a pensar que tudo aquilo que tenha alguma coisa a ver com a Revolução do 25 de Abril e se nutra de algum merecimento, ao menos de boa intenção, no caminho de renovação da sociedade portuguesa que encetamos, não deve merecer ser rasgado como coisa inútil. Mas o que defendemos, porque o aconselha o mais elementar bom senso, é que tudo é permanentemente susceptível de revisão e aperfeiçoamento, de ajustes que aproveitem a experiência do passado, sobretudo a experiência dos erros cometidos.
Assim, e nesta linha de raciocínio, resulta claro que o pacto MFA - partidos tem de ser revisto a tempo de que a experiência da sua inadaptação à realidade política portuguesa venha a ser devidamente superada no capítulo da Constituição de que estamos a ocupar-nos. Por outras palavras, seria erro grosseiro construirmos uma das mais importantes fases do nosso edifício constitucional com materiais de solidez mais do que duvidosa.
Entender-se-á, por certo, que esta posição não visa colocar inteiramente à margem do processo o MFA. Sempre desejámos - sempre desejou o PPD - que as forças armadas sejam um elemento activo na Revolução que estamos a construir e que bem carece da participação e engenho de todos os portugueses.
Simplesmente, o esquema tentado e consubstanciado no pacto não funcionou. Logo, há que tentar outro que concilie estes dois objectivos fundamentais: por um lado, o contributo do MFA na Revolução portuguesa; por outro, a garantia de que as forças armadas se não afastarão nunca da sua missão inalienável, que é a de serem permanente garante da vontade popular, da legalidade democrática e da paz, que é substrato da democracia e para a qual se fez a Revolução do 25 de Abril.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem!

Aplausos.

O Sr. Presidente: - É um esclarecimento que deseja pedir?

O Sr. José Luís Nunes (PS): - É uma intervenção.

O Sr. Presidente: - O Sr. Deputado Marcelo Rebelo de Sousa pediu a palavra primeiro.

O Sr Marcelo Rebelo de Sousa (PPD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Iniciamos hoje o debate do texto da 5.ª Comissão referente à organização do poder político do Estado. Iniciamos este debate no momento particularmente difícil da crise político-militar que temos passado. E, dir-se-á, qual é a repercussão que o momento de crise por que passamos tem no debate de uma matéria como aquela que é a organização do poder político do Estado?
Tem necessariamente; em primeiro lugar, porque nós não concebemos uma separação entre a Constituição c o processo político em curso. Entendemos que a Constituição deve corporizar os princípios fundamentais de uma revolução democrática em direcção ao socialismo e, nessa medida, se projectarão necessariamente na feitura da Constituição e na actividade desta Assembleia Constituinte as vicissitudes do poder político e militar em Portugal. Com isto queremos lambem dizer que a Constituição, ao corporizar os princípios fundamentais de uma revolução democrática, que deve visar, no entender do PPD, o socialismo, não deve conter aquilo que muitas vezes deturpadamente se confundiu com o processo revolucionário e mais justamente deveria ser qualificado de processo golpista, durante algum tempo um processo golpista tendencialmente de direita e, a partir de Novembro de 1974 e mais claramente de 11 de Março de 1975, um processo golpista apresentado como de esquerda radical.
Ora, na matéria que nos encontramos a discutir, duas questões fundamentais avultam: Em primeiro lugar, a questão da legitimidade eleitoral e da legitimidade revolucionária; em segundo lugar, a da oportunidade ou inoportunidade da reponderação da matéria da plataforma assinada pelo MFA e por alguns partidos políticos.
Deixando para uma segunda intervenção a matéria do pacto MFA - partidos políticos, sobre o qual já pude, ontem, tornar claro o pensamento que perfilho, e que é o de as alterações supervenientes no contexto político-militar recentemente verificadas terem alterado substancialmente o contexto no qual foi celebrada a plataforma MFA - partidos, conduzindo, necessariamente, no nosso entender, à sua revisão, deixando para momento ulterior essa matéria, consagraria apenas esta curta intervenção ao tópico da legitimidade eleitoral e da legitimidade revolucionária.
Nós entendemos que a democracia, na sua concepção integral, é o "todo" indissociável de três elementos fundamentais: democracia política, democracia económica, democracia social.
É a esta democracia integral que nós entendemos que corresponde a concepção de uma sociedade socialista, de um sistema socialista.
Um dos elementos fundamentais da nossa visão integral de democracia é o elemento da democracia política na sua tripla faceta: l.ª Respeito e garantia dos direitos e liberdades fundamentais - neles avultando, necessariamente, a igualdade dos cidadãos;

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2.ª Participação dos cidadãos - no nosso caso, dos Portugueses - na escolha permanente do seu destino, na designação dos seus representantes e no controle destes representantes, por formas que vão desde a democracia de base (particularmente importante no plano de organização política local) até à democracia representativa, envolvendo os dois elementos essenciais da escolha dos governantes e da sua responsabilização e controle permanente; e, finalmente, 3.ª O pluralismo político, entendido este como possibilidade de expressão e de organização institucionalizada das várias correntes políticas aceitantes do esquema constitucional, e que se não venham prevalecer de golpismos, envolvendo o recurso à violência inconstitucional.
A legitimidade democrática é dada, portanto, por este conceito de democracia política, quer no plano das forças políticas estruturadas em partidos ou associações políticas, quer no plano do funcionamento dos mecanismos de designação dos governantes. Essa legitimidade democrática é, pois, benigna, quer nas formas que apontei de democracia de base, quer, designadamente, nas formas de democracia representativa, que esta Assembleia Constituinte é um primeiro exemplo, particularmente importante depois de quarenta e oito anos de ditadura fascista

Uma voz: - Muito bem!

O Orador: - Também no plano dos grupos políticos a legitimidade democrática é particularmente importante. E, por isso, nós repudiamos concepções vanguardistas, porque entendemos que essas concepções pretendem, directa ou indirectamente, pôr em causa o princípio do funcionamento dos mecanismos que consideramos fundamentais, no conceito da democracia política.
Sucede, como é sabido, que em várias circunstâncias se não verifica a existência de legitimidade democrática dos governantes. Um caso flagrante foi o caso do regime fascista. É nesses momentos de ruptura da legitimidade democrática ou de longo período de inexistência de legitimidade democrática, como foi o caso, que surge, como uma forma de imposição de expressão da vontade popular, um processo revolucionário, dando origem a uma forma de legitimidade diversa da legitimidade democrática de base eleitoral - a legitimidade de tipo revolucionário. O que sucedeu no 25 de Abril com o Movimento das Forças Armadas foi precisamente isso. O MFA, de alguma maneira exprimindo cabalmente a vontade do povo português contra a ditadura fascista e colonialista, veio a ser portador de uma legitimidade revolucionária.
E aqui eu notaria dois pontos fundamentais: O primeiro ponto é que o verdadeiro portador da legitimidade revolucionária do 25 de Abril foi originariamente o MFA e mais ninguém Supervenientemente, forças políticas houve que se vieram a prevalecer, partidárias ou não partidárias, de um critério de legitimidade revolucionária que não podiam invocar.

O Sr. Amaro da Costa (CDS) - Muito bem!

O Orador: - Em segundo lugar, a legitimidade revolucionária tem um conteúdo. A legitimidade revolucionária não é, não pode ser, um cheque em branco.
A legitimidade revolucionária teve um conteúdo, primeiro, definido no Programa do MFA, e teve conteúdos supervenientes, deles citando, porque me parece o documento mais representativo, o Plano de Acção Política, aprovado alguns meses atrás. E aqui quereria dizer, como já pude dizer noutra ocasião, sem ofensa para a corrente surrealista, do surrealismo que representou a recente ressurreição do documento-guia, dito da aliança MFA - partidos. Em primeiro lugar, porque é uma clara violação do pacto assinado pelo MFA e pêlos partidos; em segundo lugar, porque não é verdadeiramente representativo da vontade do MFA, e isso ficou claro em diversas, em repetidas intervenções do Sr. Presidente da República, e em repetidas intervenções e deliberações do Conselho da Revolução; em terceiro lugar, porque, por detrás desse documento, existia uma concepção organicista da sociedade, concepção organicista essa que levava a considerar que a participação política dos cidadãos se devia fazer atendendo não tanto à sua presença, à sua existência como cidadãos, mas ao seu enquadramento ou às suas qualidades enquanto moradores ou enquanto vinculados a um determinado status. E não se diga que é o status derivado da propriedade ou não dos meios de produção, porque não foi esse sequer o critério adoptado. Foi um critério que permitia muito mais facilmente a manipulação partidária, de que foram exemplo, em várias ocasiões, as organizações ditas populares de base.
Quais eram os elementos fundamentais do conteúdo da legitimidade revolucionária definida nos documentos do MFA?
Em primeiro lugar, o respeito da democracia pluralista. Não um respeito oportunista, não um respeito táctico, mas um respeito fundamental, como conteúdo de um processo político que se quer na construção da sociedade do futuro; em segundo lugar, caminho para uma sociedade socialista, caminho este que, conjugado com a aceitação da via democrática pluralista, há-de entender-se que é pelo mecanismo democrático que o povo português há-de escolher as formas, o ritmo e o processo dessa evolução de tipo socializante.
Vivemos, portanto, neste momento, em plena actividade da Assembleia Constituinte, um período de coexistência de duas legitimidades: uma legitimidade transitória, que durará até ao momento da entrada em vigor da Constituição, uma legitimidade revolucionária, e que é a legitimidade corporizada nos documentos que referi do MFA, e que tem a sua tradução em órgãos que não têm directa vinculação relativamente a esta Assembleia Constituinte; e uma legitimidade democrático-eleitoral, legitimidade essa bebida no sufrágio directo, universal e secreto, que representou a expressão da vontade dos Portugueses no dia 25 de Abril de 1975.
Numa democracia política institucionalizada, a legitimidade eleitoral tende, necessariamente, a sobrepor-se e a ganhar dimensão relativamente à legitimidade revolucionária. Por isso, entendemos que os órgãos que neste momento traduzem e corporizam a legitimidade revolucionária viverão, depois da entrada em vigor da Constituição, em função da legitimidade que lhes advém de estarem previstos na Constituição, quer dizer, da legitimidade que lhes adveio da opção de base eleitoral feita para a formação desta Câmara Constituinte.
Em segundo lugar, daqui resulta a importância das próximas eleições legislativas, e não creio que tenha sido por acaso que o Sr. Presidente da República, em recente intervenção televisionada ao País, se referiu

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às eleições legislativas como um termo de referência da vontade popular no caminho da construção do socialismo.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Queria só acrescentar alguma coisa sobre o Movimento das Forças Armadas e o seu papel no presente e no futuro próximo.
O Movimento das Forças Armadas passou, melhor dizendo, alguns sectores do Movimento das Forças Armadas conduziram a que o Movimento das Forças Armadas passasse a aparecer na vida político-militar portuguesa, designadamente a partir do 11 de Março, não tanto como garante da implantação de uma sociedade democrática a caminho do socialismo, mas como o motor político - e o motor político que depois se veria tendencialmente absorvente - do processo em curso.
Está já largamente debatida esta matéria. Ainda recentemente em livro de um analista português, Eduardo Lourenço, sobre o MFA e a política, ela é cuidadosamente escalpelizada.
O Movimento das Forças Armadas, ao ver-se passado à função de motor do processo político em curso, apresentado como uma entidade suprapartidária, pouco a pouco vai sendo mais facilmente objecto das penetrações e das tendências de orientação partidária.
Pouco a pouco, os vários partidos políticos, as várias correntes de opinião tendem a instrumentalizar sectores mais ou menos amplos do MFA, sob a cobertura política do suprapartidarismo, em benefício das orientações que preconizam. E daqui resultou um conflito interno, crescente, conflito que derivaria necessariamente de se procurar menos o que era denominador comum, e que era o conteúdo da legitimidade revolucionária de que o MFA era portador, e pôr-se acento tónico naquilo que dividia os elementos do MFA, e que eram as diversas orientações partidárias que, pouco a pouco, se iam afirmando por detrás da capa suprapartidária. Esta partidarização, esta parlamentarização do MFA, tanto mais grave quanto o Movimento das Forças Armadas, em várias ocasiões, criticava a parlamentarização da vida civil...

Uma voz: - Muitíssimo bem!

O Orador: - ... essa partidarização e parlamentarização conduziram a que se estabelecesse na vida política portuguesa esta quase anomalia política: é que era difícil estabelecer a fronteira entre as pressões legítimas ou legais exercidas dentro do MFA, relativamente ao exercício do poder, e os golpes de
Estado que porventura também tivessem o seu cabimento. Porque, havendo uma estrutura em que uma entidade, entidade que se pretende extremamente imune a criticas dos sectores civis, como se pretendeu durante algum tempo, internamente é corroída por diferentes orientações partidárias, necessariamente se torna muito difícil saber até que ponto é que as pressões internas, que muitas vezes se prevaleciam de argumentos de força, eram pressões legítimas, e a partir de que ponto é que essas pressões, como foi o caso do 25 de Novembro, se transformavam, efectivamente, em tentativas golpistas.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Por isso, está na ordem do dia a questão do repensar a missão e a estrutura do MFA.
E, por isso, apareceram necessariamente, pelo menos, duas grandes linhas quanto ao futuro próximo da missão e da estrutura do Movimento.
Uma linha, não direi de orientação, mas, pelo menos, de um sabor terceiro-mundista, que preconiza agora ultrapassadas as tendências de manipulação partidária, o refazer do MFA com um papel que subalterniza o papel dos partidos políticos, para o efeito socorrendo-se dos tecnocratas políticos sempre à espera de uma promoção de cúpula que não obtiveram por uma organização de massas ...

Vozes: - Muito bem!

Aplausos

O Orador: - ... e, por outro lado, a orientação que preconiza que o MFA é necessário durante mais algum tempo na vida política portuguesa, para levar até ao fim a sua missão, que teve, como disse, o signo de ser portadora da legitimidade revolucionária, mas que a grande missão que tem a desenvolver deverá ser desenvolvida sob a linha de um garante da implantação, da consolidação e do funcionamento de estruturas democráticas, com vista à construção de uma sociedade de transformação profunda das estruturas económicas e sociais ...

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - ... para o efeito devendo preservar a defesa da soberania popular, para o efeito devendo colaborar na manutenção da ordem pública, para o efeito devendo cooperar de forma intensa, clara e política, neste sentido, na implantação das estruturas democráticas, e na implantação de estruturas democráticas que permitam ao povo português optar livremente no sentido do caminho do futuro, que, em nosso entender, terá de ser o caminho da construção progressiva e reformista de uma sociedade socialista.
Desta opção, mais cedo ou mais tarde, feita, pelo Movimento da Forças Armadas, vão decorrer várias consequências. Mas é bom que, ao fazer-se essa opção, se pondere, de uma vez para sempre, numa escolha - que é a escolha talvez fundamental - que o MFA deve fazer e que, no fundo, todas as forças políticas portuguesas devem fazer, designadamente as forças políticas que apresentam como objectivo da sociedade do futuro portuguesa, e que é o objectivo da construção de uma sociedade socialista. Pretende-se construir a sociedade socialista à margem da vontade popular, que o mesmo quer dizer recorrendo às estruturas que, pragmaticamente ou teoricamente, se concebam como as mais adequadas para esse efeito, sejam elas vanguardas civis, sejam elas vanguardas militares, ou pretende-se construir uma sociedade socialista com o respeito pêlos mecanismos da democracia pluralista, sabendo-se que se corre o risco, e esse risco é poder haver recuos de quando em vez ou de poder haver paragens, simplesmente, sabendo-se também que não se corre o risco de, para construir mais rapidamente os elementos sociais e económicos do socialismo, se poder sacrificar a componente fundamental da democracia política.

Vozes: - Muito bem!

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O Orador: - É esta a opção que o MFA e os partidos têm de fazer. E, ou optam no sentido de, qualquer que sejam os pressupostos doutrinários de que se socorram, ainda que sejam por meras conveniências de ordem estratégica ou táctica, no sentido de respeitar os mecanismos da democracia política, com vista à construção do socialismo, ou optam por persistir, não acreditando na virtualidade do caminho democrático para o socialismo, no que, em meu entender, é um isolamento relativamente ao tão falado e efectivo bloco social de apoio de um processo para o socialismo e, por outro lado também, de alienação sistemática do respeito e da vontade de sectores crescentes da população portuguesa, de sectores fundamentais do proletariado rural, do proletariado suburbano e da pequena e média burguesia. É isto que realmente tem de ser optado quando se vai fazer a escolha entre dois caminhos no futuro do MFA.
Um caminho que será o caminho de uma democracia pluralista com vista a uma sociedade socialista e o caminho de um regime autoritário, de um regime mais ou menos iluminado, regime esse em que, rapidamente, por muito grande que seja a vontade de manter os partidos políticos, eles terão de ser radicalmente subalternizados, na medida em que mais fácil se torna em regime autoritário governar ou com "tecnocratas" ou com "apartidários", também ditos "independentes de esquerda", de alguma maneira sacrificando aquilo que no dia 25 de Abril foi objecto de uma clara expressão da vontade popular. É esta a opção que o Movimento das Forças Armadas tem de fazer. Aos partidos políticos se exige - e esta exigência interpretamo-la, no PPD, como uma exigência de coerência - que, realmente, uma vez repudiado (e temo-lo feito várias vezes) o regresso ou o retrocesso ao fascismo, ou a qualquer forma de neofascismo mais ou menos autoritário, nos empenhemos de forma clara, mas por via democrática, na construção de uma sociedade mais justa, mais igualitária, uma sociedade onde haja verdadeiramente democracia económica, social e política, que, para mim, só pode ser a sociedade socialista.

(O orador não reviu )

Vozes: - Muito bem!
Aplausos de pé.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado
Vasco da Gama Fernandes.

O Sr. Vasco da Gama Fernandes (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Eu havia pensado numa intervenção na generalidade da "Organização do poder político". Poderia ter feito o que normalmente se costuma fazer, que é deitar abaixo a minha pequena biblioteca, procurar alguns autores com muitas citações, os constitucionalistas que estivessem à mão, e trazer-vos hoje mais a opinião dos outros do que propriamente a minha opinião pessoal.
Raciocinando sobre este ponto, pareceu-me preferível ter uma conversa em família - salvo seja (risos), muito calma, discernindo como se estivesse num grupo de amigos, à volta de uma mesa comum, sobre este problema da Constituição e particularmente no que diz respeito à "Organização do poder político".
É, portanto, uma linguagem muito simples, do homem comum, daquilo que nas touradas se costuma chamar o desconhecido. Trazer simplesmente esta contribuição muito sincera, muito singela e muito humilde.
Eu tive o privilégio, Srs. Deputados e Sr. Presidente, de ter assistido, no alvor da minha mocidade, à discussão das constituintes da República Espanhola, quando ela elaborou e aprovou a sua Constituição.
Recordo-me com emoção de algumas figuras que então passaram pela minha frente e que tiveram uma intervenção decisiva na promulgação dessa Constituição do povo trabalhador espanhol, porque era assim que se denominava a Constituição da República Espanhola, mas tive ocasião também de assistir a um facto a que não assisti no meu país e que me contristou e que eu considero de certo modo um defeito extremamente grave e que já não há tempo de ser remediado.
Eu entendi desde sempre que a Constituição devia ser discutida por todo o povo português, não devia ser privilégio de uma Assembleia Constituinte, a ela devia ter acesso todo o povo português, os seus técnicos, os seus economistas, os seus sociólogos, os seus professores, os seus estudantes, os seus operários e até os seus poetas, porque não?

Aplausos do Sr. Deputado José Augusto Seabra.

A Constituição deve ser feita por tecnicismo jurídico, sem dúvida, é com ele que nos temos de governar, mas devia-se ter insuflado a esta Constituição um certo espírito de harmonia, de equilíbrio, de poesia, se assim quiserem chamar, que transformasse esta Constituição verdadeiramente numa Constituição popular. Então, em Espanha, o problema foi discutido com amplidão espantosa, recordo-me de homens como Ortega y Gasset, como Gregorio Maranon, como Araquistain e como tantos outros, proletários e homens simples do campo, com a linguagem acessível e pronta, todos trouxeram uma contribuição, maior ou menor, da elaboração da coluna vertebral, que é isso que se tratava, da coluna vertebral do Estado
Republicano Espanhol. Quer-me parecer que não exagero se disser que esta Constituição está a ser indiferentemente apreciada pelo povo português. Raras são as pessoas com quem me encontro que me falem da Constituição, poucas conhecem o que se está aqui a passar, até pelas notícias do jornal, algumas delas, até certo ponto, pelo menos até agora, defeituosas e sectariamente escritas e produzidas.

O Sr. Leite de Castro (PPD): - Infelizmente é verdade.

O Orador: - O povo português está marginalizado deste ponto; é pena que assim tenha acontecido, porque esta Constituição que estamos aqui a fazer, Srs. Deputados, não é para os constituintes, mas para todo o povo português.

Apoiados.

Vozes: - Muito bem!

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O Orador: - O meu discernimento e a minha experiência dizem-me que esta Constituição precisa de ser objectivamente vista, concretamente vista sobre alguns pontos que, até agora, a meu ver, salvo melhor opinião, não estão completamente esclarecidos.
A Constituição é a grande armadura, a grande ossatura do Estado. Temos que efectivamente fazer desta Constituição não só a carta de alforria do povo português, o sumário das suas franquias populares, mas também um documento forte, viril, seguro, que não possa permitir nunca mais, nesta pátria, a instalação de ditaduras de qualquer espécie.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Tem de ser uma Constituição moderna, uma Constituição actualizada, uma Constituição pronta, que dê ao legislador ordinário as possibilidades, depois da sua ratificação, de estruturar o Estado moderno português em bases definitivas de segurança e de êxito Num livro que andou muito pelas mãos de alguns portugueses e que eu tive, não a ocasião de traduzir, mas de quase traduzir, que é a Republique Moderne, de Mendès-France, em artigos subsequentes que escrevi então no jornal República, dei conhecimento ao povo português das linhas gerais desse pensamento.
Suponho que os nossos constituintes, a maior parte dos constituintes, não conhece este livro. É pena que assim seja. Suponho ter sido até agora o documento mais válido, mais seguro e mais concreto de uma constitucionalidade moderna, republicana e democrática. É obra adaptável do Estado moderno a todas as condições, ao mesmo tempo que o estrutura de uma forma segura a poder cumprir a sua missão.
Recordo-me, por exemplo, coisa que não vi, pelo menos, neste título de "Organização do poder político", a preocupação que esse livro teve em adaptar o Estado moderno àquilo a que chamava e chama o "contrato de legislatura", que o Governo pudesse governar, não em ditadura, não seriam esses os princípios da democracia que formavam esse documento, mas que desse a esse, ao Governo, a estabilidade governamental suficiente através de um "contrato de legislatura" de quatro anos, pois que o Estado moderno tem de ser actuante, tem de ser pronto, tem de ser disponível para poder atacar as grandes problemáticas dos nossos tempos.
Parece-me a mim, com todo o respeito pêlos constitucionalistas que vieram a esta tribuna e que aqui virão ainda, que este ponto não está suficientemente esclarecido e suficientemente fundamentado na organização do nosso poder político. A Constituição terá de ser, portanto, e neste ponto da organização do poder político, um conjunto de normas o menos teóricas possível, o mais objectivamente possível, de forma que o poder político se possa exercer em todo este país em regime de liberdade, com respeito das liberdades, mas não com uma arma que se possa voltar contra as próprias liberdades.
Dentro deste princípio, afigura-se-me que a organização do poder político merece, de uma forma geral, a minha aceitação e a minha adesão na sua generalidade. Depois terei o cuidado, se assim tiver tempo e ensejo, de fazer uma intervenção mais demorada ou intervenções mais demoradas, quando for na especialidade.
Tenho a dizer mais alguma coisa sobre este ponto, discorrendo deste pequeno papelinho que se encontra à minha frente e que foi agora quase que praticamente elaborado, dizer mais duas ou três coisas que me parecem essenciais e porque ficaria mal com a minha consciência se as não dissesse.
Nós estamos a viver numa época de grandes equívocos. O maior equívoco que estamos a viver neste momento é o atribuir ou conceder às forças armadas o privilégio de terem sido elas as únicas que realizaram o 25 de Abril. É preciso agradecer aos jovens capitães que fizeram o 25 de Abril, mas é preciso dizer também aos jovens capitães que não seria possível o 25 de Abril se atrás deles não estivesse o povo português.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - E desta maneira não concebo que possa ter havido reservas, que as houve - o pacto foi uma delas -, reservas não bilaterais. Da nossa parte não havia reservas quanto aos jovens capitães nem quanto às forças armadas, mas parece que das forças armadas havia reservas supostas contra nós. E assim nos obrigaram, sublinho o termo, a assinar um pacto com o qual eu neste momento não estou de maneira nenhuma de acordo.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Se se tratava de um momento agudo, difícil, em que, na gíria popular, se pode dizer isto: "Coitado de quem precisa"; que estaríamos num momento efectivamente agudo, em que seria indispensável estabelecer-se acordos, mesmo contra a nossa própria consciência e contra a nossa sensibilidade, admito. Mas parece-me que já chegámos à altura de poder dizer às forças armadas, com lealdade, com correcção, com ombridade, mas com coragem, aquilo que digo e repito: a democracia implantou-se em Portugal pela força das armas, mas havia-se implantado antes em Portugal pela força de todos nós, aqueles que durante quarenta e oito anos jamais claudicaram e se vergaram perante o poder da ditadura.

Vozes: - Muito bem!

Aplausos.

O Orador: - E dizer-lhes com igual cordialidade e com igual serenidade que, depois do 25 de Abril, o povo português já deu provas de uma maturidade política suficiente, que não permite de maneira nenhuma inserção de quaisquer reservas ou quaisquer desconfianças.

O Sr. Emídio Guerreiro (PPD): - Apoiado!

O Orador: - Um povo, saído como saiu das cavernas da ditadura, despolitizado, segundo se dizia, martirizado, seviciado, torturado, e que encontrou ainda em si as reservas suficientes para dar ao mundo inteiro (e eu posso ser testemunha disso, porque percorri parte desse mundo após o 25 de Abril) o exemplo espantoso das mais livres eleições que se têm

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realizado, não merece efectivamente reservas, quaisquer reservas da parte das forças armadas.

Vozes: - Muito bem! Aplausos vibrantes.

O Orador: - E um povo que teve o discernimento suficiente de ter sabido optar na altura própria e de saber que era exactamente através da organização partidária o único veículo possível para a consciencialização de um Estado moderno, escolhendo os seus partidos e votando neles da forma como fez, fazendo a sua opção, que é um acto de inteligência, que é um acto de sensibilidade, que é um acto intelectual, um povo que se portou desta forma e que recentemente e ainda há bem poucos dias deu provas de que não se encontra disposto a vergar-se perante qualquer ditadura, senhores das forças armadas, é altura de dizermos: basta, porque nós sabemos perfeitamente governar este país!

Vozes: - Muito bem! Aplausos vibrantes.

O Orador: - Tudo tem o seu tempo, Sr. Presidente e Srs. Deputados. Tudo tem o seu tempo. Acredito na inteligência dos homens, na sua boa fé, e espero que daqui por diante haja, efectivamente, uma justa reconsideração dos valores em causa e que nos possamos entender, porque não vejo nada que possa evitar que nos entendamos.

Uma voz: - Muito bem!

O Orador: - A defesa da democracia é a primeira preocupação dos nossos espíritos e das nossas consciências. Sabemos perfeitamente o que representa nessa defesa o papel das forças armadas progressivas, progressivas no bom sentido da palavra, que amem a liberdade, que respeitem os outros, que saibam cumprir a letra e a lei dos factos. Sabemos todos que a defesa da democracia será aqui e neste momento a nossa primeira preocupação.
Mas esta Assembleia Constituinte, com as críticas que se lhe possam fazer, justas ou injustas, precipitadas ou não precipitadas, deu já a este país um exemplo de uma consciencialização política tão grande que, correndo todos os riscos dentro do seu próprio edifício, se encontrava disposta a continuar a soberania fora dele. Quando uma instituição como esta se comporta como se comportou, parece-me que há razões para dizer às forças armadas que tenham confiança em nós, como nós temos nelas.

Vozes: - Muito bem! Aplausos.

O Orador: - Tudo se resume afinal em elaborar uma Constituição que dê segurança às liberdades neste país, uma Constituição que seja o reflexo da vontade popular, que seja a transmissão real da vontade popular. Tenho que dizer, com a mesma franqueza de sempre, que a Constituição, neste ponto como noutros, não representa efectivamente a vontade popular. O povo desconfia que estamos a ser coagidos em certos pontos desta Constituição. Suponho que já é altura de deixarmos de ser coagidos e de dizermos a verdade tal como ela é. O povo português e as suas instituições, a sua soberania, o seu Governo, o seu Presidente da República, são mais do que suficientes, com as suas eleições, com as suas urnas isentas, para dar a este país a estruturação moderna de que ele precisa e a que, aliás, tem direito.

Uma voz: - Já!

O Orador: - Eu não diria tanto, mas estava a apetecer-me efectivamente dizer já.

Risos.

Porquê então ainda este equívoco nacional em que se está a viver em certos sectores da vida portuguesa, em que as pessoas perguntam umas às outras: "Como e que se concebe que o poder político possa ser limitado pelo Conselho de Revolução, como é que pode haver uma duplicidade de funções legislativas dentro da mesma organização estatal?"
O que dirá o homem vulgar da rua quando olhar para nós, constituintes, e para nós, partidos políticos, e nos perguntar: "Afinal que confiança merecem vocês, que ainda precisam de ter uma tutela, porque de uma tutela se trata?" Como é que se concebe isto sem, pelo menos, uma voz - outras se seguirão, mas a minha fica já aqui - que proteste e que peça cordialmente, torno a repetir, uma justa reconsideração?
Como é que se concebe, na altura em que estamos a viver e depois da experiência política que todos vivemos e daquilo que já fizemos, daquilo que já fomos capazes de fazer, que ainda se eleja um Presidente da República num colégio misto de militares e de constituintes? Como se concebe que um Presidente da República, que é exactamente um órgão superior do Estado, o fiel da balança, não seja eleito directamente pelo seu povo? Como é que se concebe isto? Ou como é que" se pode conceber isto, pelo menos sem que se deixe de estranhar e de se pôr fundas reservas a estas soluções?

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - O papel esgotou-se, pouco mais terei que lhes dizer, nesta linguagem muito simples, muito desataviada, e insistir neste ponto: a necessidade de esta Constituição ser o garante do nosso futuro. Que seja dela que partam as linhas de rumo da preservação da nossa democracia política e as grandes linhas de rumo da reestruturação da nossa vida económica e social. Se, porventura, nas leis ordinárias ou na própria Constituição, por vezes tivermos que ser mais ríspidos, mais duros, temos o direito de o ser, porque os homens da minha geração e os homens da geração subsequente e os que a antecederam, e poucos se encontram aqui já, têm a seu favor o direito de pedir que se defenda encamincadamente as liberdades públicas nesta pátria, que não regressemos de maneira nenhuma às situações de dúvida, nem a nasserismos, nem às soluções híbridas de militares socialistas, nem a coisa nenhuma parecida com isso, que entreguemos simplesmente ao povo português, a ele só, a solução dos seus grandes problemas. Se

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tivermos de ser ríspidos, se tivermos de ser duros, na defesa daquilo que tanto nos é querido e tanto nos custou, usando a expressão de Churchill, «com sangue, suor e lágrimas», se tivermos de fazer isto, fica aqui, simplesmente para terminar, uma pequenina história que vos vou contar, de bastante sabor espanhol, e que talvez defina melhor do que tudo a essência do meu pensamento.
Em certo dia, na Constituição Espanhola, um grande jurista, chamava-se Ossario y Gallardo, atacava Manuel Azaria por causa da lei da defesa da República.
A linguagem de José Gallardo era a linguagem tecnicista. Foi um homem extraordinário que viveu as duras provações do exílio e creio que morreu dentro dele, na Argentina. Era monárquico, mesmo assim soube na altura própria definir-se por uma República que seria a República de Espanha e não por um regime fascista, que seria um regime anti-espanhol. Fez um ataque frontal ao decreto da defesa de República e terminou assim:
- Sr. Ministro, el proyecto dei Gobierno no tiene juridicidade.
E Azaria levantou-se rapidamente e disse:
- Claro que no la tiene, ipero deslumbra a Espana entera.
É o que lhes digo, meus companheiros da Constituinte e meus amigos, se tivermos alguma vez de ser ríspidos e de ser duros, se, porventura, não ligarmos uma importância excessiva ao fetichismo das leis (é preciso muito cuidado com o fetichismo das leis e com o chamado espírito jurídico à sombra do qual se fizeram as grandes ditaduras do mundo), se tivermos efectivamente a coragem de encarar os problemas com firmeza, com razão e com discernimento, então podemos dizer que alguns erros teremos praticado e alguns praticaremos, mas esses erros deslumbrarão Portugal inteiro.

Uma voz: - Muito bem! Aplausos vibrantes.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Freitas do Amaral.

O Sr. Freitas do Amaral (CDS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Na intervenção que ontem aqui fiz produzi já determinadas considerações que esclarecem bem qual a orientação do meu partido sobre a matéria que hoje estamos a discutir. Vou, portanto, agora, de uma forma muito breve, apenas sintetizar as nossas posições fundamentais.
O problema fundamental que se põe neste momento é o de saber se as soluções do projecto apresentado pela 5.ª Comissão, que é como quem diz as soluções previstas no pacto MFA-partidos, correspondem ao que presentemente é possível e conveniente incluir na Constituição Política que estamos elaborando. A celebração do pacto MFA-partidos, em 11 de Abril de 1975, correspondeu à ideia de promover a institucionalização do MFA, trazendo-o para a cena da vida política e não o deixando à margem dela. O CDS concorda com essa ideia fundamental e não advoga o regresso imediato do MFA aos quartéis. Mas, uma vez assente a ideia da presença do MFA na vida política, a forma da participação do MFA nessa mesma vida política pode ser organizada obedecendo a uma de duas concepções diferentes. Segundo uma concepção, o MFA deve ter uma função de garantia, cabendo-lhe assegurar o respeito pela democracia, mas sem intervir no governo e na administração do País, os quais deverão pertencer aos partidos, de acordo com os resultados eleitorais. Segundo outra concepção, o MFA deve ter sobretudo uma função de liderança política, cabendo-lhe dirigir e orientar a política do País rumo a um socialismo, já ele próprio definido, e levando a reboque aquelas partidos, maioritários ou não, que concordarem consigo. O CDS é partidário da primeira concepção e repudia energicamente a segunda, pois considera que só a primeira é democrática. A outra, no fundo, conduzirá fatalmente a uma ditadura militar. Entende por isso o CDS que é chegado o momento de procurar, através de um acordo bilateral a celebrar entre o MFA e os partidos, reconduzir o MFA à concepção democrática da sua participação na vida pública. Alguns perguntarão, certamente: "Porquê fazê-lo e porquê fazê-lo agora?" É fácil prever que vai haver certamente quem nos dirá que não temos o direito de o fazer, uma vez que assinámos o pacto que continha uma solução diversa. E, embora essa acusação nos seja ou venha a ser feita por aqueles que, em tantos outros casos, pouco caso fazem dos textos que votam e dos textos que assinam, ...

O Sr. Amaro da Costa (CDS): - Muito bem!

O Orador: - ... creio que vale a pena responder a essa objecção.
Temos o direito de o fazer e de o fazer neste momento, por quatro razões fundamentais: primeiro, porque o MFA, tendo violado por várias vezes o pacto que assinou com os partidos, abriu à outra parte, isto é, aos partidos, o direito ao seu não cumprimento e, portanto, por maioria de razão, o direito de pedir a revisão do pacto; segundo, porque o próprio facto dessas violações mostra que o texto acordado em 11 de Abril de 1975 está desajustado das circunstâncias políticas; terceiro, porque, não sendo o MFA do pós-25 de Novembro igual ao MFA gonçalvista que assinou o pacto, temos o direito de saber o que pensam sobre o pacto aqueles que, do lado militar, são hoje os sucessores do gonçalvismo, embora não, felizmente, os seus herdeiros;..,

Uma voz: - Muito bem!

O Orador; - ... quarto, porque o 25 de Novembro demonstrou claramente à luz do dia os perigos do envolvimento militar na política, bem como as virtudes da imunização política da instituição militar. E não temos o direito de ignorar a lição do 25 de Novembro, como foi e estava sendo ignorada a mensagem do 25 de Abril.

Uma voz: - Muito bem!

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O Orador: - Somos, pois, pela revisão do pacto MFA - partidos, de modo que Portugal possa ser mais rapidamente encaminhado pelo MFA para a democracia civil, em vez de ele ser mantido prolongadamente sobre tutela militar.
O MFA tem agora a palavra. Se optar pela concepção democrática da sua presença na vida política deste país, Portugal agradecer-lhe-á. Se optar pela concepção autoritária e militarista, os Portugueses não lhe perdoarão.
O MFA entrou gloriosamente na história deste país.
Oxalá não queira sair dela por um desaire.
Tenho dito.

Aplausos.

(O orador não reviu.)

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado
Nuno Godinho de Matos.

O Sr. Nuno Godinho de Matos (PS):- Sr. Presidente, Srs. Deputados: Iniciámos a discussão do título constitucional relativo aos órgãos do Estado. Entrámos, pois, no estudo de um dos capítulos mais importantes do diploma que devemos elaborar, dado irmos definir quais são os órgãos que institucionalizam os diferentes patamares do poder de Estado.
Pela primeira vez, após um longo período de despotismo exercido pelo poder totalitário, um órgão livremente escolhido pela população portuguesa vai discutir e criar as diferentes instâncias da estrutura do Estado. O povo português, representado por todos os Deputados reunidos nesta Assembleia, único órgão eleito e incontestavelmente representativo da vontade da Nação, vai decidir soberanamente a quem entrega o exercício do poder que lhe pertence. Por esta razão iniciámos, talvez, o debate mais significativo dos trabalhos para que fomos mandatados.
Desejo, porém, voltar a referir alguns dos princípios e normas já aprovados, devido ao seu particular relevo no conjunto das regras que integram a Constituição que elaboramos.
Quero expressar a minha total aprovação pelo primeiro artigo dos princípios fundamentais, onde se expressa a noção de que Portugal é uma república soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular, empenhada na formação de uma sociedade sem classes. Também merece particular destaque o artigo que consagra a Declaração Universal dos Direitos do Homem como um instrumento a utilizar na interpretação de todos os diplomas relativos às liberdades públicas e direitos fundamentais.
Por último, pretendo manifestar o relevo que atribuo ao conjunto de artigos que regulam o funcionamento do futuro plano económico nacional, o qual é um instrumento indispensável para pôr fim às tradicionais taras de uma economia de mercado, baseada na livre concorrência e acumulação privada dos aumentos da riqueza 'produzida. Ao consagrarmos a planificação, definimos o caminho mais seguro e directo para alterar a presente titularidade das unidades produtivas do nosso país que se entenda devam ser integradas num novo circuito.
Sr. Presidente e Srs. Deputados: A fim de poder compreender o projecto de articulado sobre o qual nós iniciamos os nossos trabalhos neste momento, é necessário dedicar algum tempo ao estudo da experiência constitucional que temos vivido e que terminará com a aprovação total da Constituição que fazemos.
O Movimento das Forças Armadas, sucessor do Movimento dos Capitães, publicou, no próprio dia 25 de Abril de 1974, o seu Programa, o qual assume especial importância, dado surgir como o veículo político e ideológico básico para a interpretação de todos os diplomas constitucionais publicados desde então.
O referido Programa é publicado como documento constitucional, pela Lei n.º 3/74, apresentando medidas imediatas e a curto prazo, mas todas elas sintetizando quatro ideias motoras, que são: a dissolução dos órgãos repressivos do regime deposto e toda a sua estrutura de apoio; a descolonização; a definição de uma nova política económica ao serviço das classes oprimidas; a criação de uma democracia política. O segundo destes princípios é mais tarde esclarecido pela Lei Constitucional n.º 6/74, a qual vem definir as bases gerais da descolonização a empreender, e revoga expressamente o artigo l.º da Constituição de 1933, já tacitamente revogado pelo Programa e pelo n.º l do artigo 1.º da Lei n.º 3/74. São estas as coordenadas políticas e ideológicas dos textos que procuram sistematizar os acontecimentos que temos vivido.
Sr. Presidente e Srs. Deputados: Até ao momento, a vida constitucional portuguesa regula-se, para lá das disposições de 1933 ainda em vigor, por mais vinte e cinco leis publicadas em 1974 e 1975. Porém, só nos preocuparemos com aquelas que interferem na definição das estruturas do poder político. Entre estas, temos de estabelecer uma distinção fundamental: encontramos textos exclusivamente interessados na dissolução e extinção jurídica da organização corporativa e demais formas organizativas do Poder Político deposto e textos cujo escopo fundamental é a criação das novas formas do Poder.
A primeira lei constitucional que organiza os órgãos da soberania portuguesa é a Lei n.º 3/74, sucessivamente alterada e actualizada consoante as mutações mais profundas da conjuntura política nacional.
O artigo 1.º da Lei n.º 3/74, nos seus três números, estabelece a recepção material de algumas normas da Constituição de 1933 e define os critérios de recepção e interpretação dessas normas, remetendo para o Programa do MFA e para os princípios consignados na própria Lei n.º 3/74.
Daqui conclui-se que os elementos fundamentais dessa Constituição estão tacitamente revogados, ficando em vigor exclusivamente algumas normas técnicas e administrativas.
Nos restantes artigos, passa-se à definição dos novos Órgãos da Soberania.
Em primeiro lugar, surge a Assembleia Constituinte, como órgão máximo da soberania nacional, à qual compete dotar o País de um novo diploma fundamental para um período transitório.
Seguidamente, recria-se a figura do Presidente da República, escolhido pela Junta de Salvação Nacional, e definem-se os seus poderes no artigo 7.º Nele se concentra, assistido pela Junta de, Salvação Nacional, a direcção do Conselho de Estado, do Governo

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Provisório e a capacidade de conduzir interna e externamente toda a vida nacional.
O terceiro órgão da soberania é a Junta de Salvação Nacional. Esta deve escolher o Presidente da República, o Chefe e Vice-Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, os restantes chefes de estado-maior dais diferentes armas e vigiar pelo cumprimento do Programa do Movimento das Forças Armadas.
A Lei Constitucional n.º 3/74 vem aumentar os seus poderes, dando-lhe competência para executar o desmantelamento da PIDE, da ANP e outras organizações do anterior regime, promover a determinação das responsabilidades dos juizes e representantes do Ministério Público, dos tribunais plenários, tomar medidas de saneamento, vigiar certas operações económicas e financeiras, empreender acções contra a corrupção e promover o julgamento dos responsáveis políticos do anterior regime.
Importa destacar que o artigo 2.º da referida lei concede à Junta de Salvação Nacional o poder de legislar por decretos leis e decretos em todas estas matérias.
Encontramos, assim, o primeiro órgão com poderes legislativos no seio das novas estruturas, tratando-se de um órgão exclusivamente militar.
A Lei n.º 4/75 também vem aumentar os seus poderes, dando-lhe competência para julgar certos recursos.
Por último, a Lei n.º 5/75, de 14 de Março, vem dissolver a Junta de Salvação Nacional e criar o Conselho da Revolução, ao qual remete todos os poderes executivos e legislativos da extinta Junta.
A quarta instituição detentora da soberania nacional, prevista na mesma Lei n.º 3 /74, é o Conselho de Estado, integrado por civis e militares.
Ao Conselho de Estado é definida a importante competência de: exercer poderes constituintes, ao abrigo dos quais ele promulgará a Lei n.º 5/75 com que se autodissolve; fiscalizar a constitucionalidade dos diplomas emanados do Governo e da Junta de Salvação Nacional, quanto a esta pelo menos a partir da publicação da Lei n.º 3/75, dado o estabelecido no seu artigo 3.º, referente aos diplomas que possam limitar as liberdades individuais. Deve-se notar que este poder de vigiar o cumprimento das normas constitucionais é exercido, em paralelo, pela Junta de Salvação Nacional e pelo Conselho de Estado. Porém, a competência do Conselho de Estado é mais ampla, dado que este vigia as normas constitucionais e as disposições legais ordinárias, enquanto aquela se restringe às normas constitucionais.
Outra atribuição é a de sancionar um importante conjunto de diplomas elaborados pelo Governo Provisório, e também autorizar o Presidente da República a fazer a guerra e pronunciar-se em todas as emergências graves para a vida da Nação, sempre que seja convocado pelo Presidente da República.
Verifica-se que se concentram no Conselho de Estado importantes poderes consultivos e legislativos, chegando mesmo a ter um direito de veto sobre os diplomas da Junta e do Governo, sempre que eles devam ser sancionados por ele. Dado que o n.º 2 do artigo 13.º da Lei n.º 3/74 estabelece que os diplomas que devam ser sancionados pelo Conselho de Estado não poderão ser promulgados pelo Presidente da República enquanto não se verificar essa mesma sanção, e que o n.º 13 do artigo 7.º da mesma lei dispõe que os textos legais não promulgados serio juridicamente inexistentes,' daqui resulta, portanto, inequivocamente a faculdade de exercer um veto.
A 14 de Março de 1975, a mesma lei que havia extinguido a Junta de Salvação Nacional dissolve também o Conselho de Estado, transmitindo todos os seus poderes para o Conselho da Revolução. Assiste-se, pois, a uma monumental concentração de poderes consultivos, legislativos e executivos no Conselho da Revolução.
A Lei n.º 3/74 prevê como quinto elemento, na hierarquia dos Órgãos de Soberania, o Governo Provisório, cuja composição e orgânica foi sucessivamente alterada pelas Leis n.º 5/74 e 6/75. Ao Governo Provisório são atribuídas funções legislativas e executivas, importando reter que os seus diplomas devem ser promulgados pelo Presidente da República e que, quando esses textos regulamentarem as matérias previstas no n.º l do artigo 13.º da Lei n.º 3/74, elas estão sujeitas à sanção do Conselho de Estado e, mais tarde, do Conselho da Revolução, a qual pode originar um veto, como dissemos anteriormente.
Por último, a Lei n.º 3/74 reconhece como órgãos de Soberania os tribunais, estabelecendo que as funções jurisdicionais serão exercidas exclusivamente por estes organismos. Garante-se, assim, o prestígio destes órgãos, ao mesmo tempo que se proíbe expressamente a criação de tribunais com competência específica para o julgamento de crimes contra a segurança do Estado, como prescreve o n.º 2 do artigo 13.º Porém, a este preceito já foi estatuída uma excepção, com a publicação da Lei n.º 9/75, de 7 de Agosto, excepção essa que, como o meu camarada José Luís Nunes ontem disse, importa efectivamente rever e importa efectivamente pôr-lhe fim.

O Sr. Jorge Miranda: - Muito bem!

O Orador: - A Lei n.º 4/74, de l de Julho, vem criar o sétimo órgão com poderes legislativos, embora não se trate de um titular da soberania nacional. Esta lei cria o Conselho dos Chefes dos Estados-Maiores das Forças Armadas e atribui-lhe competência para legislar nas matérias que respeitem à estrutura e organização das forças armadas, bem como a assuntos internos das mesmas. Porém, os poderes deste órgão, pela Lei n.º 5/75, também são concentrados no Conselho da Revolução.
Podemos, assim, concluir que até à criação do Conselho da Revolução existem em Portugal quatro entidades investidas de poderes legislativos: o Governo Provisório, a Junta de Salvação Nacional, o Conselho de Estado e o Conselho dos Chefes dos Estados-Maiores.
Assiste-se a uma proliferação e dispersão do poder legislativo, o qual, ao mesmo tempo, encontra a sua sede em instâncias do Poder que também - reúnem competência executiva e administrativa. A constatação de tal facto leva-nos à conclusão de que, durante esta l.ª fase de transitoriedade das instituições governativas, as instâncias do poder político em Portugal têm uma formulação dispersa e confusa, tendente à concentração da capacidade legis-

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lativa em órgãos que também detêm a faculdade de executar os seus diplomas.
Com o aparecimento do Conselho da Revolução diminui o número de órgãos da soberania nacional com capacidade legislativa e executiva, mas é esmagadoramente empolada a concentração de poderes numa única instância da soberania, o Conselho da Revolução, absorvendo todas as faculdades que integravam a esfera de acção do Conselho de Estado, da Junta de Salvação Nacional e do Conselho dos Chefes dos Estados-Maiores das Forças Armadas, e, como já vimos, entre elas verifica-se a própria faculdade de exercer um veto.
É necessário referir que toda esta evolução decorre num ambiente de sucessivas crises políticas, as quais facilitam a compreensão da singular estrutura da organização do Estado que nos tem regido. E é também na continuidade destas condições que devemos compreender alguns aspectos menos lineares do texto que ora se discute.
Todavia, já demos provas de um relevo extraordinário: no domínio da descolonização, das reformas económicas e da institucionalização da democracia.
Neste campo, realizámos as primeiras eleições livres, que nos mandataram, e começámos a abrir caminho para as próximas eleições legislativas, logo após a elaboração da Constituição, as quais definirão, mais uma vez e de uma forma insofismável, qual é a vontade da maioria do povo português.
Julgamos, pois, que devemos debater e criticar o presente texto, dado que ele contribui para uma definição mais elaborada da divisão dos poderes soberanos em Portugal, não esquecendo o seu carácter transitório e as diferentes malhas de poder nele definidas, bem como a necessidade da sua alteração.
Estamos perante um texto que julgamos dever ser revisto, para que possa contribuir para a sedimentação da nossa experiência, a fim de podermos passar à formulação definitiva da sociedade que os portugueses desejam. Dizemos isto porque entendemos que o legislador constitucional não cria um diploma para ele, para satisfazer exclusivamente os seus interesses e convicções, mas, pelo contrário, tem a obrigação de legislar para servir os interesses de todo o povo que representa, devendo, portanto, pautar-se pelo equilíbrio indispensável à definição do espaço necessário a todos os portugueses que, legal e legitimamente, querem contribuir para a evolução do seu País, qualquer que seja a sua orientação política e religiosa.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: É a síntese de todos estes factores já apontados, bem como a existência histórica do pacto assinado entre os diferentes partidos e o MFA, que explicam algumas das singularidades do presente texto, onde se prevêem órgãos de natureza diferente.
Encontramos uma Assembleia de Deputados, rigorosamente democrática, dado ser eleita por sufrágio directo e universal, única forma de perguntar a todos os Portugueses, sem qualquer discriminação, qual o caminho que querem imprimir ao seu país.
Surge-nos um Governo sujeito às regras da democracia, dado necessitar da confiança do Parlamento para poder governar, embora se encontre amplamente limitado.
Os tribunais, objecto da reserva de competência legislativa da Assembleia, dever-se-ão reger pela independência e inamovibilidade dos juizes, para servirem a legalidade democrática. Paralelamente, existem titulares da soberania cuja raiz se encontra numa plataforma de natureza diversa.
É aqui, portanto, Sr. Presidente e Srs. Deputados, que interessa repensarmos as linhas de definição do pacto estabelecido entre os partidos e o Movimento das Forças Armadas. É aqui que interessa perguntarmos se não terá chegado efectivamente o momento de ser a totalidade dos Portugueses, de serem os 9 milhões de portugueses a poder decidir qual o Presidente da República que querem ter, a poder escolher efectivamente o magistrado supremo deste país, a poder assim eleger por sufrágio universal e directo o seu Presidente da República.

Uma voz: - Muito bem!

O Orador: - É aqui que importa pensar também se não será chegado o momento de, tendo em consideração a excessiva concentração de poderes que se verifica na estrutura actualmente prevista para o Conselho da Revolução, se não será chegado o momento de definir de uma forma mais linear a capacidade, por exemplo, de definir a inconstitucionalidade material das leis que venham a ser promulgadas pelo Governo ou por uma Assembleia Legislativa. Efectivamente, tal capacidade não parece que possa ser remetida a um organismo político, não parece que possa ser remetida a um conselho com a estrutura e com a conformação do Conselho da Revolução, mas, pelo contrário, parece-nos que deverá ser antes cedida a tribunais judiciais, a tribunais que possam efectivamente fiscalizar essa mesma inconstitucionalidade material.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - É também, aqui o momento em que eu julgo que se deve colocar o problema de determinarmos se o Conselho da Revolução deverá exercer uma capacidade de sancionar as leis promulgadas pelo Governo e as leis promulgadas mesmo pela Assembleia Legislativa.
Se essa Assembleia Legislativa é uma emanação directa da vontade popular, expressa pelo sufrágio directo, se, consequentemente e posteriormente, o Governo é uma consequência da disposição de forças maioritárias nessa mesma Assembleia, é evidente que a legislação promulgada por essa Assembleia Legislativa, que a legislação elaborada nessa Assembleia Legislativa e elaborada por esse mesmo Governo, será a legislação que representa a vontade popular, que representa a vontade da maioria do povo português, e, portanto, não necessita de referendos alguns nem de qualquer espécie.

Uma voz: - Muito bem!

O Orador: - Por isso, Sr. Presidente e Srs. Deputados, penso poder terminar. Mas antes pretendo formular o voto de que esta Constituição seja a base das novas instituições democráticas que reinarão em Portugal, conduzindo o País, ao longo deste período

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transitório, para uma verdadeira democracia economia e política, onde irreversivelmente ré aplique ,o princípio da divisão dos perderes, o executivo, o legislativo e o judicial, objectivo constante da luta antifascista e axioma de toda a estrutura democrática da organização do Estado.
Penso, efectivamente, que Portugal só subsistirá como Nação independente se encontrar como coordenadas da sua organização aquelas que são dadas pelas instituições democráticas. E, neste ponto, desejo citar um importante discurso do meu camarada Medeiros Ferreira, que justifica a necessidade de tal modelo.

Passo a citar:

Este ano que encobre o século viu já ruir, como elementos preponderantes da construção do nosso edifício político-social, o chefe carismático, as vanguardas ditas revolucionárias e, finalmente, a tentativa pragmática de uma pseudodemocracia directa. Desta forma, a democracia política acabará por se impor em Portugal como uma necessidade. Talvez seja a necessidade o único fundamento da sua existência!
Bem ancorada em medidas socialistas que tenham o apoio das classes trabalhadoras, a democracia política é o regime capaz de institucionalizar a nova comunidade portuguesa.
Termino, pois, Sr. Presidente e Srs. Deputados, aguardando que deste nosso debate e deste nosso trabalho possa efectivamente surgir uma Constituição que dê, na íntegra e na totalidade, a todos os portugueses, a possibilidade de conduzirem o seu país e determinarem o que querem do seu país e qual a orientação que querem imprimir ao seu país.
Tenho dito.

Aplausos.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr Deputado Olívio França.
Ouviremos o Sr. Deputado e depois suspenderemos a sessão, para fazermos o nosso intervalo.

O Sr. Olívio França (PPD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Exactamente porque intervim na elaboração do projecto em discussão, entendi que devia exprimir algumas ideias sobre o que seja este projecto constitucional no ordenamento das suas regras e que, mesmo a admitir-se a injunção de muitas substituições, adicionamentos ou alterações, globalmente ele deverá manter-se sem grande afastamento das suas linhas essenciais. E, se assim for, teremos a Constituição mais estranha que veio ao mundo, na história política e constitucional de todos os tempos.
Uma promessa irrompeu com o triunfo da Revolução: entregar ao povo português o direito de construir uma sociedade democrática, pluralista, através dos seus representantes eleitos pelo sufrágio popular, em dia bem marcado-o dia 12 de Abril de 1975.
Porém, os largos meses de interregno havidos entre a proclamação e a data escolhida trouxeram variações na política e nos grupos humanos onde se detinha algum poder de influência e de decisão.
O País viera de uma ditadura longa, que já estava enfraquecida pela fractura do poder original e parcelamento entre os herdeiros. A partilha do Poder, à morte do velho ditador, não pôde ser superada pelo slogan "renovação na continuidade", o qual nem sequer tivera mérito de criação original, e, pelo contrário, vinha todo envolvido da ressequida fórmula do integralismo lusitano, continuidade na evolução, e esta, por sua vez, não era senão uma tradução mal feita do espírito de Charles Maurras.

A guerra colonial agravara-se. O grito da autodeterminação, que vinha já de 1961, ano em que muitos dos meus camaradas e a minha humilde pessoa foram encarcerados por o dizerem em voz alta, espalhou-se na amplitude geográfica da velha cidadela portuguesa.
A ditadura, em segunda mão, de Caetano quebrou-se perante o seu próprio desbaratamento e o ímpeto dos jovens capitães do 25 de Abril, e, como sempre, até que serene a Revolução, ela própria acabaria por devorar ou abater muitos dos seus filhos.
Os apetites de vária ordem cresceram, os profetas irromperam de todos os quadrantes e as grandes questões nacionais fizeram agitar os núcleos partidários incipientes e as forças militares de cariz ideológico diferenciado. Estas forças, temerosas ou afectadas por influências múltiplas, gizaram um pacto que ofereceram aos partidos. Isso assinala que as tropas não recolheriam aos quartéis e permaneceriam detendo uma grande parte do poder político.
O pacto, verdadeira distorção às promessas feitas, manietava a democracia, em nome da própria democracia, prometida e não totalmente concretizada.
A obra pseudoconstitucional aí a temos, e que, como caracterização, a podemos classificar de obra compósita, em que a Constituição nos aparece meio concebida e meio consagrada pelo voto popular.
Para dar mais energia ao processo, à remodelação das instituições, a Junta, ao tempo, de Salvação Nacional, transforma-se em Conselho da Revolução e o destino democrático é ainda mais uma vez sofreado num pacto mais rigoroso. Esse pacto é, sem dúvida, uma fórmula inventada para tolher uma autêntica ascensão da democracia e representou uma verdadeira reserva mental dos partidos e do MFA.
O pacto, pelo lado do MFA, é uma acção de defesa da instituição militar, que se quis pôr a coberto da inquietação e volubilidade dos partidos, ainda mal formados e coordenados. E a segurança dos elementos revolucionários militares, em face de uma subversão, como a realidade acabou por demonstrar, apesar do pacto, mostrou-se, nesse aspecto, inoperante.
Os partidos, pretendendo evitar os riscos graves de uma possível ditadura militar, se recusassem a assinatura do pacto, e com a certeza de que com essa assinatura as eleições viriam, optam pela aceitação de meia democracia, mas com a esperança de que os resultados das eleições seriam a força motora que resolveria a pendência que a proposta do pacto denunciava e mais depressa se conseguiria a transição para uma verdadeira democracia oferecida no programa original do MFA.
Este pacto é, como se vê, uma criação que, dirigida para um certo fim, aparentemente justo, acabou por se desenhar numa monstruosidade legal.

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Aparece, pela primeira vez, suponho eu, a existência de três órgãos legislativos: A Assembleia Legislativa, o Governo e o Conselho da Revolução.
Haverá Ministros que nada terão com o poder democrático da Assembleia e que serão intocáveis, na hipótese de um voto de desconfiança.
Por outro lado, assistiremos, a uma eleição do Presidente da República sem qualquer fórmula que lhe dê o forte cunho democrático.
A eleição será feita sempre pela estranha conjunção do reconhecimento da legitimidade democrática do povo, através dos seus representantes, e da força,
por intermédio daqueles que fizeram a Revolução. Se tudo quanto se fez quanto à fixação de um pacto tinha a explicação já dada de que as forças armadas temeriam a insipiência dos partidos e, como consequência, a queda da própria Revolução, afinal construiu-se a segurança sobre areia, e o mal surgiu exactamente nas possibilidades abertas por uma certa manipulação de uma parte do Exército, embora mínima, por certos elementos partidários, que de modo nenhum estavam dispostos a criar em Portugal uma verdadeira democracia.

Uma voz: - Muito bem!

O Orador: - Hoje surge como realidade a irresistível tendência para a construção de uma Constituição em outras bases e com a anulação de um pacto que nem é democrático nem dá qualquer garantia à segurança das forças armadas.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - A história do presente é disso uma prova que não pode ser negada e, portanto, deve ser reformulada a posição entre partidos e forças armadas. Não tenho em mente qual o processo, mas não há-de ser difícil às forças armadas e aos partidos democráticos encontrar a fórmula democrática capaz de nos indicar, em caminhos autênticos, o encontro de um socialismo democrático aceite voluntária e pacificamente.

Tenho dito.

Aplausos

(O orador não reviu.)

O Sr Presidente: - Suspendemos a sessão por meia hora.

Eram 17 horas e 20 minutos.

O Sr. Presidente: - Peço atenção. A sessão está reaberta.

Eram 18 horas e 20 minutos.

Vamos retomar os nossos trabalhos. Começo por submeter à vossa apreciação a seguinte questão: fui agora abordado por diversos Deputados que me sugeriram a conveniência de não se efectuarem sessões de manhã, amanhã e depois, em virtude de se ter de deixar tempo livre para o trabalho das Comissões, particularmente o trabalho da 6.ª Comissão, que se encontra, segundo me informam, adiantado, mas que carece ainda de algum tempo. Por consequência, eu consultaria a esse respeito a Assembleia, visto que a decisão que tomámos em reunião de representantes dos grupos parlamentares foi de que as sessões se realizassem. Precisaria, portanto, do vosso parecer a esse respeito. Alguém deseja pronunciar-se? Ou poderemos entender que estão de acordo em que as convocações se façam para a tarde?

Pausa.

Como ninguém pede a palavra, creio que poderei interpretar o vosso silêncio como anuência no sentido de reunirmos, nestes dois dias, apenas à tarde.
Por consequência, a sessão para amanhã será à hora habitual, 15 horas, e sexta-feira, conforme já se fazia anteriormente antes de haver a reunião matinal, fica
para as 14 horas. Mas haverá tempo para avisar.
Portanto, está entendido, não é verdade?

Pausa

Vamos prosseguir o nosso debate.
Tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Candal.

O Sr. Carlos Candal (PS): - Sr. Presidente, camaradas e colegas: Uma intervenção bastante breve, que mal justifica a vinda à tribuna.
Tem havido várias intervenções a propósito da discussão na generalidade do texto da 5.ª Comissão, designadamente algumas intervenções pessoais de Depurados do Partido Socialista: e porque há divergências de nuance na minha maneira de pensar &m relação a algumas afirmações que aqui foram feitas, divergências que aliás só abonam a liberdade de pensamento no Partido Socialista, que não é partido de voz única, queria abordar também a questão do pacto, a pretexto também da discussão na generalidade da matéria do "poder político".
A posição oficial do Partido Socialista, até ao momento, foi tornada pública e permito-me relembrá-la, porquanto, embora os Deputados tenham mandato directo do poro português, mandato legítimo, em termos de democracia - porventura o mais legítimo, mesmo em época revolucionária -, afinal não deixamos de ser membros de um partido, e essa preocupação assiste aos socialistas.
A posição do Partido Socialista, tomada pela comissão directiva, diz que "a comissão directiva autorizou o Secretariado Nacional a entabular conversações para a negociação do pacto MFA - partidos, se esse vier a ser o consenso das partes interessadas. A comissão directiva, entretanto, reafirma a disposição do PS de honrar os compromissos assumidos, não pondo nomeadamente em causa unilateralmente a existência do pacto".
Renegociação - não unilateral, como o próprio termo indica - do pacto.
Aliás, importa sublinhar, perante uma certa euforia que se nota em relação ao pacto, que, de todos os partidos políticos com assento neste hemiciclo, salvo erro ou omissão, o Partido Socialista foi o único que oficiosamente, pela voz de Sottomayor Cardia, pôs em causa, analisou, criticou o pacto MFA - partidos políticos.
Depois do golpe de 25 de Novembro a questão ganha nova acuidade, e porque fomos os primeiros a apontar o dedo para essa complicada contratação

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política, teremos de ter sempre, não digo a prioridade, mas uma palavra a dizer na matéria.
A posição do partido não é a de denúncia unilateral, mas de renegociação. Aliás, o problema da denúncia talvez se tivesse posto com a maior acuidade no exacto momento em que o MFA se furtou, ocasionalmente, mas em pontos essenciais, por vezes, ao cumprimento desse contrato político.
Tudo está na deformada afirmação do ponto 3) - 1 do pacto, que diz que, "durante o período de transição o poder militar manter-se-á independentemente do poder civil". Efectivamente esta é uma afirmação abstracta que não tinha correspondência no articulado do pacto. O que se verificava era uma dependência entre o poder político militar e o poder político civil com predominância para o MFA.
Essa a base em que devem, em meu entender pessoal (sublinho pessoal), ser entabuladas as renegociações sobre o pacto. Saber-se se deve continuar, ou não, a haver independência, mas independência sem predominância real de uma das forças institucionais sobre a outra, ou se deve haver dependência em que grau e a favor de qual dos poderes: do poder político militar ou do poder político civil.
Não me parece, salvo o devido respeito, muito correcto dizer-se que houve coacção aquando da assinatura do pacto. Em política, a coacção será uma figura que não existe pura; no jogo político o que existe são forças políticas determinantes em jogo que levam umas e outras a tomar ocasionalmente esta ou aquela atitude. Ora, quando foi assinado o pacto, havia uma conjugação especial que levou os partidos políticos, alguns partidos políticos, os principais partidos políticos, a assinar o pacto. Importa saber, de momento, dentro dessa mesma ideia, é se a nova equação política e militar nacional aconselha ou não, impõe ou não, a revisão desse contrato político, a renegociação desse contrato político, que pode chegar até à revogação plurilateral ou bilateral do pacto MFA - partidos. Dizer-se "basta" ao MFA é uma maneira simplista de pôr o problema, digamos que emocional, o que é preciso é saber analisar os erros que a tomada de determinadas posições no processo revolucionário pelo MFA permitiram e a maneira de obviar, tanto quanto possível, que esses erros ou outros que se congeminem possam surgir. Basta, portanto, sim, mas de manter um pacto tal e qual, sem fazer-se uma análise crítica do passado e sem se fazer uma perspectiva sobre o futuro. Essa análise poderá, repito, determinar a alteração das cláusulas do pacto ou determinar a própria supressão do pacto; passando, porventura, então, assim mais rapidamente para a construção do Estado de Direito que os partidos democráticos pretendem ver institucionalizado no nosso país. Quanto aos aspectos mais significativos da dependência do poder político-civil em relação ao poder político-militar, sublinho estes, a tutela da Assembleia Legislativa, em termos de feitura de leis pelo Conselho da Revolução. É um tema a rever necessariamente. Outro, candente, era a possibilidade consagrada no pacto da dissolução da Assembleia Legislativa eleita ao que se pressupunha, estava projectada na 5ª Comissão, por sufrágio directo e universal, a possibilidade de essa Assembleia, legitimamente democrática, ser dissolvida pelo Conselho da
Revolução. Um outro ponto crucial e que me choca, deformado talvez pelo legalismo da minha formação Jurídica, era o do controlo da constitucionalidade, ou da inconstitucionalidade das leis, possível de fazer, em exclusivo, pelo Conselho da Revolução. É uma matéria que exige revisão (salvo justificação em contrário, que não prevejo). Também o problema da eleição do Presidente da República, que neste pacto funcionava de algum modo como charneira entre o poder político civil e o poder político militar, é ponto que deve ser considerado.
Também aí, na eleição do Presidente da República, se notava a predominância do poder militar sobre o poder civil, porquanto o grande colégio eleitoral formado pela Assembleia Legislativa e pela Assembleia do MFA, em boa verdade dava supremacia ao poder militar, em detrimento do poder civil, na medida em que a base de sufrágio da Assembleia do MFA poderia ter porventura pontos de discutível democracidade, em contraposição à grande base eleitoral de uma Assembleia Legislativa; era de facto, indirectamente, uma manifestação de predominância do poder militar sobre o poder civil. Mas, mexer - permita-se o plebeísmo - neste ponto do pacto, que é um ponto importante, que é um ponto para o qual todo o País tem necessariamente os olhos abertos, talvez por razões, emocionais do traumatismo fascista (é de todo o modo ponto candente para a opinião pública nacional), mexer neste tema implica, por si só, rever todo o pacto, por isso que disse: o Presidente da República funcionaria de algum modo como charneira entre o poder militar e o poder civil. Não concretizarei esta afirmação, porque basta ler o próprio pacto e o articulado da 5.ª Comissão para retirar necessariamente esta conclusão.
E não digo mais; já agora, todavia, rematando e aproveitando quase abusivamente a minha subida à tribuna, faço votos para que prossiga a revolução socialista e possam os progressistas não abandonar o bom caminho, os que o vêm trilhando e os que se terão dele afastado.
Tenho dito.

Aplausos.

(O orador não reviu )

O Sr Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado
Vital Moreira.

O Sr. Vital Moreira (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Um observador desatento ou ignorante da divisão partidária desta Assembleia teria certamente sérias dificuldades em imaginar que hoje intervieram Deputados de três partidos - e não apenas de um. Tamanha foi na generalidade a identidade de posições, a similitude da linguagem, a consonância dos aplausos. Embora correndo o risco de ser acusado de insensibilidade perante tão tocante manifestação de unanimidade ...

O Sr. Alberto Andrade (PS): - Não apoiado!

O Orador: - ...não quero deixar de transmitir a posição - essa fundamentalmente divergente - do Grupo de Deputados do PCP no que se refere à matéria em discussão.

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Sr. Presidente, Srs. Deputados: Os Deputados do PCP dão o seu acordo na generalidade ao articulado proposto pela 5.ª Comissão, referente ao tema da "Organização do poder político". Salvo um número muito restrito de disposições as principais das quais já foram indicadas na declaração de voto ontem lida aqui -, os Deputados do PCP aprovarão também, se for caso disso, o respectivo articulado em sede de votação na especialidade.
A organização do poder do Estado é uma matéria fundamental da Constituição. Originariamente, a Constituição é o estatuto do Estado, ou seja, o estatuto da sua organização e das suas atribuições, bem como das suas relações com as restantes estruturas do sistema social.
A questão da organização do poder político é igualmente uma questão principal da revolução, na medida em que ela reflecte, ainda que indirectamente, esta outra questão: quem detém, quem exerce o poder político?
Naturalmente, a questão fundamental de toda a revolução é a questão da conquista, da detenção do exercício do poder político. Mas também é evidente que essa questão não é independente da forma de organização desse mesmo poder. Um poder político revolucionário exige órgãos revolucionários, exige uma organização do poder político adequado à natureza revolucionária do Estado.
A forma de organização do poder político constante do projecto constitucional agora submetido à apreciação da Assembleia corresponde minimamente, a nosso ver, às exigências da presente fase do complexo processo revolucionário português.
Partindo do princípio de que a Revolução subsiste, também no plano político, o projecto garante - de acordo com a Plataforma Constitucional - a permanência e o papel político dos órgãos do MFA, ou seja, desse movimento político-militar que, tendo derrubado o fascismo, contribuiu depois para o avanço e transformação, em certos casos qualitativa, do processo revolucionário.
Partindo do princípio de que há que ultrapassar a fase inicial, em que o poder político assenta exclusivamente na legitimidade revolucionária, o projecto agora em apreciação introduz na estrutura constitucional actualmente existente um sistema de "democracia representativa", fundamentalmente traduzido na existência de uma assembleia parlamentar, detentora do principal do poder legislativo e do poder de contrôle sobre o Governo, que perante ela passa a ser responsável.
Partindo do princípio ide que a Constituição não pode ignorar a realidade política constituída pelas múltiplas formas de organização popular autónoma, o projecto agora em apreciação acolhe, em certos termos, é certo, a intervenção política - embora apenas a nível da administração local e regional - das organizações populares unitárias de base.
Estes três momentos - a que, por comodidade expositiva unicamente, designarei por democrático-militar, democrático-parlamentar e democrático-popular, respectivamente - constituem as três linhas de força do sistema político proposto no projecto da Comissão, e que correspondem às necessidades do processo político português numa fase mais ou menos longa. Poderá questionar-se a síntese obtida, o balanceamento do peso de cada um desses momentos. Mas não é lícito negar a existência e a relevância política de todos e de cada um deles.
Por nossa parte entendemos que o projecto magnifica excessivamente o momento parlamentar, ao mesmo tempo que subalterniza o momento democrático-popular, que não encontra referência em mais do que dois dos cem artigos do projecto, e cuja relevância político-constitucional foi deixada em termos demasiado vagos e indecisos. Mas consideramos também que o projecto pode reclamar-se de uma diferença no sentido positivo em relação aos projectos de Constituição ide alguns partidos que privilegiariam de tal modo o aspecto parlamentar que ignoraram totalmente o aspecto democrático-popular, enquanto o aspecto democrático-militar aparecia claramente como uma excrescência constitucional.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: Apesar de tudo, continuamos inseridos num processo revolucionário. E, por mais que a complexidade, as dificuldades, os avanços e recuos desse processo convidem a tentar pôr fim à Revolução no plano político e a institucionalizá-la definitivamente de acordo com um único princípio político, não deve perder-se a perspectiva de que um processo de transformação de estruturas económicas e sociais exige paralelamente formas adequadas de organização do poder político.
E, por mais que velhos fantasmas ("ditadura militar", "ditadura das massas" e "ditadura parlamentar") povoem os espíritos de muitos e os aterrorizem de acordo com a sua situação de classe, haverá que reconhecer que um regime democrático em Portugal não poderá prescindir dos seus momentos genuinamente revolucionários, ao menos numa fase a médio prazo, rejeitando a afirmação monopolista do momento parlamentar.
No decurso de um processo revolucionário, a dinâmica política não pode ser reconduzida exclusivamente à lógica eleitoral como fundamento do poder político.
Nem o país político pode ser equiparado a um somatório de votos. Numa revolução em marcha as forças sociais interessadas na revolução têm um peso determinante. As suas próprias organizações políticas desempenham um papel decisivo no processo e podem legitimamente reclamar-se de um título político específico, que é o de emanarem da vanguarda social revolucionária. Qualquer sistema político-constitucional que não tenha este dado fundamental em conta corre sérios riscos de se ver confrontado pela dinâmica revolucionária. Qualquer força política que ignore esse dado fundamental arrisca-se a errar vergonhosamente na avaliação dos interesses da Revolução.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: O projecto constitucional agora proposto à consideração da Assembleia integra o conteúdo da plataforma de acordo constitucional oportunamente celebrada entre o MFA e alguns partidos políticos.
Uma vez que alguns desses partidos manifestaram, nesta Assembleia e fora dela, o seu desejo de ver aquela plataforma revista - se não mesmo revogada -, importa não ignorar o assunto.
A plataforma constitucional constituiu uma forma original de tentar resolver os seguintes problemas: como garantir a persistência dos órgãos revolucionários numa Constituição elaborada por uma Assembleia Constituinte? Como garantir as conquistas revolucio-

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nárias perante uma Assembleia Constituinte eventualmente disposta a não as respeitar?
Esta questão não é original na Revolução Portuguesa.
Surgiu em muitas outras revoluções. O que é original é a solução que lhe foi dada. Historicamente essa contradição entre a Revolução e a Assembleia Constituinte quando surgiu implicou o sacrifício de uma ou de outra. O que há de original no caso português é o facto de se ter procurado eliminar o problema, comprometendo os partidos, previsivelmente maioritários na Assembleia Constituinte, numa plataforma constitucional que os vinculasse a introduzir na Constituição os pontos acordados. No caso, garantiu-se a presença política dos órgãos do MFA saídos do 11 de Março, bem como as "conquistas legitimamente obtidas ao longo do processo".
Formalmente não se trata de uma limitação da competência da Assembleia Constituinte, pois a plataforma não se lhe impõe como tal. Ela impõe-se, sim, aos partidos que se comprometeram a defendê-la; na Constituinte e a fazer incluir os seus termos na Constituição. Mas, materialmente, a plataforma traduz-se numa efectiva limitação dos poderes constituintes, limitação consentida e querida pêlos partidos políticos.
Após celebrada, a plataforma foi reafirmada em documentos políticos fundamentais, como o PAP do Conselho da Revolução, constituiu elemento forçoso do mandato eleitoral dos partidos que a ele se vincularam, entrou expressamente como fundamento da plataforma política do VI Governo Provisório.
Foi respeitada - embora em alguns casos com derrogações graves - pêlos projectos de Constituição apresentados pêlos partidos a ela vinculados a esta
Assembleia Constituinte encontrou total integração no projecto constitucional elaborado pela 5.ª Comissão, encarregada de se pronunciar sobre a "Organização do poder político".
Importa ter isto em conta, quando dois partidos políticos, provavelmente apoiados por um terceiro, anunciaram a sua disposição de suspender a votação do texto vindo da Comissão para darem lugar a uma revisão da plataforma constitucional. Cabe perguntar: revisão da plataforma, porquê? E porquê neste particular momento?
Naturalmente não vou deter-me sobre o problema de saber o que é político constitucionalmente a plataforma, embora ele seja relevante para saber em que termos é que ela poderia ser revista. Recordarei apenas que a solução não é a mesma, conforme ela seja concebida como um único acordo celebrado conjuntamente por todas as partes (MFA e partidos políticos), ou como um conjunto de acordos bilaterais com conteúdo idêntico, entre o MFA e cada um dos partidos celebrantes. Entendo, contudo, que a questão pode ser taxada de politicamente irrelevante. Mas importa acentuar que a plataforma é um acordo político entre forças políticas, cujo cumprimento pode e deve ser politicamente exigido e respeitado.
Voltemos, pois, à questão inicial: revisão da plataforma, porquê? E em que termos?
Dos argumentos até agora aduzidos, dois deles sobressaem: por um lado, a plataforma seria incompatível com a "democracia política" e com o princípio da "soberania popular"; por outro lado, ao exigir a intervenção dos militares na política, implicaria uma distorção do papel das forças armadas, bem como a militarização da vida política. São expressões tiradas de algumas intervenções aqui feitas. Das declarações até agora produzidas é fácil concluir que os proponentes da "revisão" da plataforma estão a usar um solerte eufemismo, pois os objectivos pretendidos só poderiam ser conseguidos através da sua revogação integral ou pelo menos substancial.
Trata-se pura e simplesmente de eliminar o MFA como força política actuante no sistema político-constitucional, com a eliminação do Conselho da Revolução e da Assembleia do MFA como "órgãos de soberania", isto é, como figuras políticas actuantes.
Tratar-se-ia, pois, de liquidar qualquer elemento perturbador de um puro esquema liberal-parlamentar, finalmente depurado de qualquer marca do processo revolucionário decorrido desde o 25 de Abril e, particularmente, desde o 11 de Março.
Importa ter isto em conta para que não nos iludamos sobre o que realmente se pretende, bem como apreciar o seu integral significado.
Sr Presidente, Srs. Deputados: Não é a invocada "alteração de circunstâncias" que motiva a exigência da "revisão" da plataforma, pelo menos nos termos em que ela surge enunciada. Na realidade, os argumentos invocados, nomeadamente a alegada incompatibilidade entre a plataforma e a "democracia política", são tão válidos hoje como o teriam sido aquando da celebração do acordo constitucional O que se alterou foram pura e simplesmente as circunstâncias que até aqui tinham obstado a que certas forças políticas arrancassem a máscara revolucionária e se apresentassem como realmente são: liberais burgueses fascizados pelo medo do avanço do processo revolucionário.

Aplausos e apupos
Uma voz: - Fascistas são vocês.

O Orador: - O que se manifesta agora é a reserva mental e a hipocrisia com que certos partidos acordaram a plataforma. O que se revela é a deslealdade com que essas mesmas forças apoiaram o MFA sem com isso abandonar a sua estratégia de sempre, tendente à liquidação do MFA como força revolucionária.

Apupos.

As soluções da plataforma só são incompatíveis com a "democracia política", se por esta se entender um regime puramente liberal parlamentar, assente exclusivamente na competição partidária e traduzido numa oligarquia disfarçada sob vestes democráticas.

Numa situação revolucionária, visando a construção do socialismo, a permanência do papel político dos órgãos revolucionários não integrados na lógica eleitoral, não só não é incompatível com a democracia como pode ser uma condição fundamental do exercício do poder pelas massas populares. Na sua febre contra tudo o que cheire a revolução os neoliberais portugueses ultrapassam tudo o que o próprio pensamento liberal-burguês julgaria admissível ou praticável.

Risos.

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Não é tanto, ou não é apenas, a violação do princípio da "soberania popular" (ou melhor: eleitoral) que os adversários da plataforma verberam. O que eles atacam é o significado potencialmente revolucionário da plataforma. O que eles não querem admitir é a permanência dos órgãos revolucionários do MFA.
Os órgãos revolucionários - mesmo quando enfraquecidos, mesmo quando cerceados na sua capacidade de acção revolucionária - constituem sempre um perigo real - ou pelo menos potencial - para os contra-revolucionários.

Uma voz: - Ah!

O Orador: - A existência de órgãos revolucionários é sempre uma manifestação de que a Revolução continua a existir - ainda que momentaneamente travada ou sujeita a recuos transitórios.
Por isso, aqueles para quem a Revolução nem sequer deveria ter começado, ou aqueles para quem ela deveria ter terminado há muito tempo - esses estão obviamente interessados em "limpar" todas as manifestações da Revolução.
Também não tem fundamento o argumento que se refere à "intervenção militar na política"- fórmula propositadamente utilizada para concitar um reflexo negativo. Na realidade, não se trata da intervenção das Forças Armadas, enquanto tais, na vida política.
O MFA é um movimento político-militar, repito: político-militar. E não deixa de ter significado o facto de no argumento se escamotear esta diferença fundamental, falando-se normalmente em forças armadas ou instituição militar.
Dir-se-ia que as forças políticas que agora se reclamam de únicos democratas não perdoam ao MFA o ter feito o 25 de Abril, sem esperar pela sua criação e existência. Dir-se-ia, particularmente, que lhe não perdoam ter resistido à ofensiva visando a sua liquidação ou marginalização política, desde os primeiros dias após o 25 de Abril.
Dir-se-ia que, possuídas de um complexo de auto-afirmação - certamente produzido por deverem a sua existência precisamente ao 25 de Abril -, essas forças políticas querem recuperar em seu exclusivo proveito um processo para o qual pouco ou nada contribuíram.

Risos.

Na verdade, como se concebe que partidos políticos que se vincularam à plataforma constitucional achem agora inconcebíveis as suas soluções?
Como se concebe que partidos políticos que assinaram a plataforma protestem agora a incompatibilidade entre as soluções dela e o seu projecto político?
Como se concebe que partidos políticos que pugnavam pelo saneamento do Conselho da Revolução venham agora - conseguido o saneamento dos elementos por eles inaceitáveis -, venham precisamente agora propugnar a liquidação desse Conselho da Revolução?
Que exemplo mais bizarro de hipocrisia e de farsa política e de arrogância das forças da direita?

Apupos e risos.

Sr. Presidente, Srs. Deputados: Será que o projecto spinolista de liquidação do MFA revolucionário irá finalmente realizar-se em homenagem agora e mais uma vez à Revolução? Será que aqueles que dentro do MFA alinharam nas iniciativas contra a esquerda militar irão eles mesmo ser atirados pela borda fora imediatamente após a liquidação da resistência da esquerda militar? A proposta de eliminação do MFA como figura política é o último degrau da ofensiva das forças de direita contra as instituições revolucionárias

A Sr.ª Raquel Franco (PS): - Manhoso.

Risos

O Orador: - Já sabia, Sr.ª Deputada, que para si a esquerda estava no CDS.

Risos e protestos.

Após terem tentado sanear os elementos mais profundamente empenhados da estrutura superior do MFA, após terem tentado diluir o MFA nas forças armadas, agora qualificados como contra-revolucionários, tenta-se agora liquidar o que resta desse movimento revolucionário, eliminando-o da cena política.
O PCP, por seu lado, fiel à plataforma constitucional a que se vinculou ...

Risos.

... e à sua ideia fundamental de manutenção do papel
político de um movimento militar progressista ...

Uma voz: - Qual?

O Orador:- ... como estímulo e garante da acção revolucionária das massas populares.

Uma voz: - Quais?

O Orador: - Nós não excluímos certamente a possibilidade de reconsiderar algumas soluções pontuais constantes da plataforma.

Uma voz: - Ah!

O Orador: - Nós não nos furtaremos ao seu reexame se tal for solicitado pela outra parte interessada, nomeadamente o MFA.
Mas nós não consideramos de modo algum necessária uma revisão da plataforma prévia à aprovação da Constituição. A Constituição terá de prever um processo de revisão do texto constitucional. Essa será a sede própria para eventual alteração de algumas soluções hoje constantes da plataforma. Nós não consideramos que sejam necessárias alterações imediatas tão sensíveis que exijam uma revisão da plataforma prévia à elaboração da Constituição.
Para o Partido Comunista Português a questão do MFA continua a ser uma questão política e não uma questão constitucional. Essa já está decidida.

Aplausos.

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O Sr. Presidente: - O Sr. Deputado Sottomayor Cardia pediu a palavra para esclarecimentos. Tenha a bondade.

O Sr. Sottomayor Cardia (PS): - Sr. Presidente: eu desejava perguntar ao Sr. Deputado Vital Moreira o seguinte: primeiro, se do ponto de vista do PCP o actual Conselho da Revolução detém ou não a legitimidade revolucionária de 25 de Abril e de 11 de, Março. Em segundo lugar se na hipótese afirmativa, desempenha ou não a função de motor da Revolução.

O Sr. Presidente: - Também para esclarecimentos, pediram a palavra os Srs. Deputados Eurico Correia e Olívio França.

Tem a palavra o Sr. Deputado Eurico Correia.

O Sr. Eurico Correia (PS): - Queria fazer uma pergunta ao Sr. Deputado. O Sr. Deputado falou aqui que havia partidos que queriam eliminar os órgãos revolucionários do MFA. Eu queria perguntar ao Sr. Deputado como compatibiliza esta afirmação com a afirmação do seu camarada Carlos de Brito que ontem afirmou que para os postos do comando foram designados elementos reaccionários.

O Sr. Presidente: - O Sr. Deputado Olívio França, também para pedir esclarecimentos.

O Sr. Olívio França (PPD): - Não acha legítimo procurar-se a modificação do pacto, por acordo entre os partidos e o MFA, e entende que era legítimo atacar o pacto frontalmente e definitivamente, sem acordo do MFA, por meios revolucionários?

Uma voz: - Entre aspas.

O Sr. Presidente: - Mais alguns dos Srs. Deputados desejam pedir esclarecimentos?

Pausa.

Não há mais ninguém, pelo que tem a palavra o Sr. Deputado Vital Moreira para responder, se quiser.

O Sr. Vital Moreira (PCP): - Responderei, sem dúvida, Sr. Presidente.

O Sr. Deputado Sottomayor Cardia não deve ter entendido as minhas afirmações.

Risos.

Eu não falei num concreto Conselho da Revolução, e falei no Conselho da Revolução. Mantenho que o Conselho da Revolução, como instituição, é um órgão revolucionário. E, por isso mesmo, o Sr. Deputado Sottomayor Cardia o quer eliminar.
Mantenho que a formação concreta do Conselho da Revolução é de facto um 'problema político, e o facto de ele ser mais ou menos revolucionário depende exactamente de quem o compõe.

Quanto à segunda questão, nós entendemos que o motor de uma revolução são as massas populares, a classe operária e as classes trabalhadoras e as suas organizações.

O Sr. José Lopes (PS): - Então os soldados e marinheiros?

O Orador: - O papel do MFA é o de estimular, o de apoiar e o de velar para que esse motor funcione e avance.

Burburinho.

Continuamos a entender que esse papel do MFA continua a ser necessário, útil e imprescindível.
Quanto à incompatibilidade que um Deputado, pouco perspicaz, tentou ver entre as minhas afirmações e as do meu camarada Carlos de Brito, é evidente que não existe qualquer contradição.
Falo e continuo a falar em órgãos revolucionários, e isso não é incompatível com o facto evidente de que nos últimos meses, e particularmente nos últimos dias, aconteceram nomeações de elementos por nós considerados reaccionários para postos de comando.

Uma voz: - Quem?

O Sr. José Augusto Seabra (PPD): - Isso é uma contradição dialéctica.

O Orador - Ainda bem, Sr. Deputado, que aprecia a minha dialéctica.

O Sr. José Augusto Seabra (PPD): - Não. Devo dizer-lhe que, de vez em quando, não aprecio nada a sua.

O Orador: - Quanto à última pergunta, devo dizer que o Sr. Deputado Olívio França deve ter uma feliz imaginação. Na realidade, o Partido Comunista Português sempre declarou a sua fidelidade à plataforma e nunca a atacou por qualquer meio.

O Sr. Fernando Pinto (PPD): - Por isso fez o golpe de 25 de Novembro.

O Sr. Presidente: - Vamos dar a palavra ao Sr. Deputado Carlos Candal para ler uns relatórios que tem pendentes sobre substituição de Deputados.

O Sr. Carlos Candal (PS):

Comissão de Verificação de Poderes

Relatório e parecer

A) Tendo sido solicitada a substituição dos Deputados Fernando Alves Tomé dos Santos (impedido por motivos de ordem pessoal e profissional) por Fernando Jaime Pereira de Almeida; Fernando José Capelo Mendes (igualmente impedido por motivos de ordem pessoal e profissional) por Maria da Conceição Rocha dos Santos, e Alberto Marques Antunes (impedido por motivos de trabalho partidário) por Gilianes Santos Coelho, reuniu a Comissão de Verificação de Poderes da Assembleia Constituinte, aos três dias do mês de Dezembro do ano corrente, para se pronunciar sobre tais pretensões, como primeiro tema de apreciação.
l - Analisados os documentos pertinentes de que a Comissão dispunha, verificou-se que os substitutos indicados são real e actualmente os primeiros candidatos não eleitos ainda não solicitados na ordem

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de precedência das listas eleitorais apresentadas a sufrágio pelo Partido Socialista nos circuitos eleitorais do Porto, quanto ao primeiro, e de Setúbal, no que respeita ao segundo e terceiro, por onde, respectivamente, haviam sido eleitos os Deputados cujas substituições ora se apreciam.
2 - Todas as considerações e declarações formais de voto que já constam do relatório exarado a fl. 104 do Diário da Assembleia Constituinte - e que vêm sendo invocadas nas demais reuniões da Comissão - foram ora repostas e expressamente pressupostas.
3 - Foram tidas adequadamente em conta as escusas dos candidatos do círculo do Porto Joaquim da Silva Pereira, Jorge Manuel da Cruz Araújo, Rolando José Cruz Moreira e Abílio da Purificação Sampaio e, bem assim, de José Inácio Pereira Rosado e António de Faria Pimentel de Morais da Fonseca, pertencentes ao círculo de Setúbal.

4 - Assim sendo, a Comissão entende proferir o seguinte parecer:

As substituições em causa são de admitir - já que se encontram verificados os requisitos legais.

B) Porque esta é a primeira reunião que a Comissão efectua depois de, pela Mesa da Assembleia (conforme Diário, n.º 74), lhe ter sido remetida para parecer a questão indirectamente suscitada por um requerimento do Deputado Jaime Gama (conforme Diário, n.º 73) - qual seja a da efectivação ou reposição nas funções de Deputado de cidadãos para tanto eleitos e verificados que hajam optado por função incompatível no Governo, cujo desempenho tenha no entretanto cessado - importa abordar seguidamente este segundo tema, estabelecendo doutrina genérica, já que os casos concretos ao tempo em causa foram solucionadas pelas declarações que os próprios Srs. Álvaro Cunhal e Pereira de Moura apresentaram, afirmando não pretenderem tomar assento nesta Assembleia:

1 - A análise da redacção que o Decreto-Lei n.º 541-A/75, de 27 de Setembro, deu ao artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 621-A/74, convence de que a tomada de lugar na Assembleia Constituinte por cidadãos eleitos Deputados, que tenham cessado as funções de membros do Governo, por que tenham optado, não é automática, dependendo de efectivação formal pelo Plenário, precedendo parecer da Comissão de Verificação de Poderes (bem à semelhança do processado quanto ao mandato do Deputado Mário Soares).
2 - Tal conclusão abona-se sobretudo no facto de - até esse momento formal - os lugares de Deputado dos cidadãos que tenham optado pelo cargo incompatível sempre virem, estando numericamente preenchidos, em termos de pleno exercício da função, ainda quando os substituídos hajam, entretanto, perdido a qualidade de membros do Governo.
3 - Assim sendo, o n.º 2 do citado artigo 10.º não dispensará uma deliberação da própria Assembleia, tomada em termos oficiosos ou na sequência de notícia pertinente que lhe seja comunicada.
4 - Quanto à necessidade de intervenção instrumental da Comissão de Verificação de Poderes, afigura-se-nos resultar designadamente de exigências de identificação pessoal e de análise dos diplomas que determinem a cessação de funções de membros do Governo causal.
5 - Deste modo, somos de parecer que:
A tomada de assento na Assembleia Constituinte de Deputados eleitos, que hajam cessado funções de membros do Governo, por que tivessem oportunamente optado, nos termos do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 621-A/74, só se tomará efectiva e produzirá efeitos mediante acto formal da própria Assembleia.

Lisboa, 3 de Dezembro de 1975. - Artur Videira Pinto da Cunha Leal (PPD) - Diamantino de Oliveira Ferreira (ADIM) - Maria Fernanda Salgueiro Seita Paulo (PS) - Rui António Ferreira da Cunha (PS) - Manuel João Vieira (PS) - Fernando Monteiro do Amaral (PPD) - Jorge Manuel Moura Loureiro de Miranda (PPD) - Vital Martins Moreira (PCP)- Manuel Mendes Nobre de Gusmão (PCP) - António Francisco de Almeida (CDS) - Álvaro Ribeiro Monteiro (MDP/CDE) - Carlos Manuel Natividade da Costa Candal (relator) (PS).

O Sr. Presidente: - Portanto, Srs. Deputados, tomaram conhecimento deste relatório. Vamos então passar à votação.

Submetido à votação, foi aprovado por unanimidade.

O Sr. Presidente: - Segue-se no uso da palavra o Sr. Deputado José Luís Nunes.

O Sr. José Luís Nunes (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: A questão que nos ocupa põe, para além dos circunstancialismos, para além das opiniões de ocasião, alguns dos mais árduos problemas da teoria do Estado. E, se disso não estivéssemos convencidos, a intervenção do Sr. Deputado Vital Moreira veio efectivamente mostrar que assim é, quando, perante um facto desta magnitude, se pretende reagir e analisar na base de simples casuísmos ou contingências casuais.
Efectivamente, há que fazer uma opção muito clara sobre dois aspectos essenciais. Se o Conselho da Revolução e os órgãos do Movimento das Forças Armadas são formados por militares reaccionários; se o Conselho da Revolução não é Conselho da Revolução, mas da contra-revolução, como o Diário de Noticias, por exemplo, há pouco escreveu; se, efectivamente, houve saneamentos à esquerda que deram o Poder às forças da direita, como ontem, de uma forma mais ou menos clara, o que é uma maneira de dizer, de uma forma mais ou menos sibilina, foi afirmado neste hemiciclo; pura e simplesmente, se isso é efectivamente assim, as conclusões lógicas que temos a tirar é que os órgãos do MFA vão ser, pura e simplesmente, um instrumento de opressão da democracia e da vontade dos trabalhadores.

Não é (possível, como diz o povo, e perdõe-se-me o plebeísmo, comer de duas gamelas e sustentar do mesmo tempo que o Poder está nas mãos dos militares reaccionários, e definir ao mesmo tempo também que os órgãos em que esses militares reaccionários se integram se devem manter no exercício do Poder.

O Sr. António Reis (PS): - Muito bem!

O Orador: - Disse o Sr. Deputado Vital Moreira que o que interessava não era a composição do órgão,

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mas o órgão em si Abandonamos qualquer materialismo, qualquer dialéctica, caímos no mundo das ideias e nos arquétipos platónicos e, caricaturando a posição do Sr Deputado Vital Moreira, podíamos dizer que, se o que interessa é o órgão em si, a Junta revolucionária que tomou o Poder no dia 28 de Maio de 1926 era um órgão revolucionário.

O Sr. António Reis (PS): - Muito bem!

O Sr. Vital Moreira (PCP): - És de facto esperto.

O Orador: - É de família, meu querido amigo.
Risos.

Ora, nós dizemos isto porque fomos claramente acusados de sermos liberais, burgueses e fascisantes. E tendo sido acusados de sermos "liberais, burgueses, fascisantes" (sic). desejamos sublinhar que há unanimidade que, por razões diferentes, foi aqui posta da necessidade de se rever, de rever, sublinha-se, mais uma vez, de rever e não de denunciar, o pacto, a essa unanimidade nós esperávamos que, também como pluralistas que somos, por razões diferentes, se juntasse o Partido Comunista Português.

Uma voz: - És muito ingénuo.

O Orador: - É, efectivamente, difícil saber-se como é que vamos, ou como é que é possível sustentar que um órgão cuja composição é reaccionária é um órgão revolucionário. A não ser que se pense que, por métodos exteriores ao próprio órgão, é possível modificar, num prazo mais ou menos curto ou mais ou menos longo, a sua composição. Isso é o tipo de raciocínio ou o tipo de problemas que eu não considero necessário nem legítimo abordar nesta tribuna.
Assim, dizer-se que a forma de organização do poder político corresponde à necessidade do processo revolucionário e que há que ultrapassar a fase em que o poder assenta na legitimidade revolucionária, são os pressupostos que motivaram as posições que aqui defendemos. Restaria ao Sr. Deputado Vital Moreira dar um passo em frente e propor, como nós, a, renegociação do pacto, que, no fundo, acabou por proporá mas condicionada a dois aspectos: que seja o próprio MFA a fazer a proposta e que não toque, segundo bem entendi, nos seus aspectos essenciais. Quer dizer: o Partido Comunista Português admite a renegociação do pacto - não a revisão, porque essa palavra revisão tem certamente para o PC uma conotação histórica muito precisa ...

Risos e aplausos.

... desde que essa iniciativa parta de um Conselho da Revolução que é, neste momento, formado em grande parte por elementos reaccionários ou contra-revolucionários. Isto significa, pura e simplesmente, tentar meter, como já aqui tive ocasião de dizer, o cubo quadrado no buraco redondo. Não cabe. Eu quero dizer ao Sr. Deputado Vital Moreira que sempre aqui declarei e continuo a declarar que aprecio a sua inteligência e a sua obra teórica e que as incorrecções e as contradições em que entra nesta sua intervenção não se devem nem a uma nem a outra, mas à sua capacidade, que elogio, que é real, de defender posições insustentáveis e contraditórias.
Quando a contradição está nas coisas, mesmo que a inteligência e a capacidade estejam nas pessoas, o papel do indivíduo na história não é suficiente para superar umas e outras.
Passados estes dois pontos, vamo-nos debruçar, muito concretamente, sobre o problema da teoria do Estado e sobre o problema institucional que nos ocupa.
Neste momento, estamos na hora de algumas opções essenciais. Disse o Mário Sottomayor Cardia, disse o meu camarada Godinho de Matos, disse o Carlos Candal, disseram todos os camaradas socialistas que aqui subiram a esta tribuna que nós não pretendemos denunciar o pacto com o MFA e que cumpriremos tudo aquilo que efectivamente assinámos, se efectivamente a outra parte admitindo que ainda existe outra parte, ou que a outra parte que existe é a mesma que existe hoje, a não ser no nome - admitindo isso, e admitimos que existe uma continuidade ou uma certa continuidade, nós estamos dispostos a honrar os compromissos que assumimos. Simplesmente dizemos claramente que é necessário que o povo saiba as razões por que propomos uma renegociação ou uma revisão. Certamente os Srs. Deputados estão lembrados de que na altura em que o pacto foi celebrado não existia uma Assembleia Constituinte. Hoje. desta tribuna, nós podemos pôr ao povo português as razões que nos levaram a assinar e as razões que hoje nos levam a fazer reservas e a desejar a revisão daqueles documentos que assinámos.
Eu desejava tomar o artigo 1.º do articulado do parecer da Comissão.
Nesse artigo 1.º diz-se que "o poder político pertence ao povo".
Ora, essa afirmação de que "o poder político pertence ao povo" entra em confronto e em oposição directa com uma outra afirmação, que é esta, da Constituição de 1933: "A soberania reside em a Nação."
Recorda-se que a Nação, tal como a definiam os exegetas e tratadistas da Constituição de 1933, era uma entidade mítica e abstracta que não coincidia necessariamente com o povo concreto português.
Nós dizemos que esta afirmação de que "a soberania pertence ao povo", feita liminarmente e no preâmbulo da Constituição, implica necessariamente a atenuação, que o fascismo criou artificialmente, da separação existente (até que não haja separação nenhuma) entre esses duas partes de povo que compõem as diversas classes sociais e que é o povo civil e o povo fardado. Efectivamente, o poder militar ou a instituição militar não tem nenhum privilégio sobre a instituição civil. Existem funções diversas, que se interpenetram e completam, quando, em momentos de crise, os civis são chamados às fileiras para defender a sua pátria e o seu país (embora isto muito desagrade a alguns oportunistas de esquerda ou pseudo-revolucionários, de que, felizmente, esta Assembleia, creio eu, está ausente).
Ora, a defesa das instituições democráticas implica, necessariamente, a criação em Portugal de um espírito democrático. E implica necessariamente, para além dos conflitos e dos choques de classes que nos separam, a criação e a defesa daquele património comum

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que nos permite reconhecer como Nação. A aceitação desse espírito democrático e o reconhecimento, para além das divergências e dos choques, da nossa identidade nacional implica, necessariamente, o seguinte: em primeiro lugar, admitir que a legitimidade da tomada do Poder pelas forças armadas só pode ter, necessariamente, teoricamente, duas justificações.
A primeira, é a daqueles que falam na legitimidade institucional das forças armadas. O que é que isto quer dizer? Quer dizer que as forças armadas, como instituição suprema, como árbitro nacional, através dos seus órgãos próprios e eleitos, poderiam saber, exigir ou decidir quando o poder político se afasta de interesses nacionais e, por um acto de força, proceder ao seu derrube. Esta tese, nós pômo-la absolutamente em causa, porque é exactamente aquela tese que serviu de justificação ao golpe de estado de 1926, é exactamente aquela tese que serviu de justificação ao golpe de Estado de 11 de Setembro que derrubou o presidente Salvador Allende, quando ele pretendia, e isso conheciam os chefes militares, submeter a sua política a um plebiscito nacional. Nós consideramos que as forças armadas não têm uma legitimidade institucional para proceder a uma revolução. Mas consideramos, também, que as forças armadas têm uma legitimidade revolucionária, uma legitimidade democrática, para procederem a uma revolução. Essa legitimidade democrática é a que advém da consonância do acto revolucionário com a vontade da população; é essa legitimidade revolucionária que levou o general Charles De Gaulle a partir para Londres e dizer que é ele que representa o verdadeiro Governo da França contra o voto minoritário de um Parlamento de traidores e é essa legitimidade revolucionária que ressalta dos primeiros comunicados da madrugada de 25 de Abril, quando o Movimento Militar das Forças Armadas, então assim intitulado, dizia que o dia da libertação estava próximo e que estavam certos de interpretar o verdadeiro sentir do povo português. Em nome dessa legitimidade revolucionária, temos nós dito que é necessário, ou que é admissível, ou que é preciso, que as forças armadas adquiram um estatuto que lhes permita serem o garante das fronteiras da Pátria na ordem internacional, definir uma política de defesa em todos os azimutes, em relação a todos os inimigos externos que possam ameaçar o nosso país, serem o garante dentro do nosso país do livre funcionamento das instituições democráticas.

O Sr. Basílio Horta (CDS): - Muito bem!

O Orador: - Ora, dentro desta ordem de ideias, aparece um outro princípio, que diz o seguinte: não, o MFA não é um partido político, é um movimento suprapartidário. Como diz um amigo que neste momento me escuta: quando o MFA diz que é um movimento suprapartidário, o que quer dizer é que é um partido acima dos outros partidos. Quando se diz, ou quando se pretende criar movimentos suprapartidários, está subjacente a essa ideia a ideia da desconfiança, que é uma ideia reaccionária em relação aos políticos e aos partidos políticos atribuir os males da governação aos políticos e aos partidos políticos, dizer que é necessária uma unidade nacional. E da unidade nacional passamos à união nacional, e a união nacional ou se faz na divergência ou é necessariamente fascista.

Uma voz: - Muito bem!

Aplausos.

O Orador: - Ao esquematizar esta intervenção, veio-me às mãos uma revista onde vinham citados alguns textos do manifesto do primeiro número da Seara Nova. tão diferentes daquilo que hoje também alguns chamam Seara Nova.

Uma voz: - Muito bem!

O Orador: - E aí se diz: "Não comungamos no vão e pernicioso sofisma de que são os políticos os únicos culpados da nossa situação. A verdade é que os políticos não são nem melhores, nem piores do que o permitem as condições gerais da mentalidade portuguesa."
Todo o País deve aceitar a responsabilidade que lhe cabe no desastre colectivo. Ora, acontece que esta ideia de pensar que os partidos políticos ou os políticos são os responsáveis pelas situações em que se encontra o País é a mesma ideia que estava debaixo do pensamento subjacente ao pensamento de todos aqueles que, durante 48 anos, abriram o caminho ou conduziram o País àquilo que foi o fascismo de Salazar e de Marcelo Caetano. Foi ideia do programa original de 28 de Maio, onde tomaram parte tantos e tantos democratas enganados. Foi ideia dos governos militares que se sucederam. Foi ideia do Estado
Novo de Oliveira Salazar. Não o querer compreender, ou não o querer ver, é sinal de duas coisas: ou vista curta - perdoe-se-me a ironia -, ou miopia grossa.
A divisão, ou a tentativa de fazer representar os portugueses, não através de partidos políticos, aceitando as suas divergências, porque a divergência é legítima, é também uma ideia oriunda de corporativismo fascista. O integralismo lusitano estruturou-a nos chamados elementos estruturais da Nação: nos municípios, nas corporações, etc. O fascismo português prolongou-o numa Câmara Corporativa que reunia aqui nas nossas costas ...

O Sr. Barbosa de Melo (PPD): - Nas costas do povo.

O Orador:- ... e numa Assembleia que reuniu aqui, assim, nestas bancadas.
Tentativas que nós criticamos e que pseudo-esquerdistas do poder popular prolongam com iniciativas, através das chamadas organizações populares de base, das comissões de trabalhadores e das comissões de moradores.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Poder-se-á perguntar: mas é o Partido Socialista contra as comissões de trabalhadores? O Partido Socialista não é contra as comissões de trabalhadores, foi sempre, e este sempre é o nosso motivo de orgulho, a favor das comissões de trabalhadores. É o Partido Socialista contra as comissões de moradores? O PS é a favor das comissões de mo-

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radores. O que o Partido Socialista diz é que estas estruturas serão necessariamente estruturas de controle totalitário se não forem acompanhadas da necessária democracia política e da necessária estrutura política partidária. O que o Partido Socialista diz é que, pelo facto de o Sr. A, de o Sr. B e de o Sr. C morarem num determinado sítio, podem fazer reivindicações conjuntas para melhorarem o seu standard de vida, mas não podem, sob o simples facto de residência, que é casual e circunstancial, constituir uma teoria de Estado, uma estrutura de Estado, uma perspectiva política.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - O que nós dizemos é que essas organizações, essas comissões de moradores, a serem consideradas como estruturas do Estado, e não, como lhes compete, como serão, estruturas de reinvindicação local ou circunstancial que sempre existiram, correm o risco de serem utilizadas, como foram noutros países, para formarem estruturas paralelas de controle policial. E são estes riscos para os quais nós temos chamado a atenção durante este período que efectivamente temos atravessado. E é sobre estes riscos que nós temos de chamar a atenção para as perspectivas que uma determinada política abria. E foi sempre sobre estes pontos que nós chamámos a atenção em relação ao Programa - Guia do MFA. Nunca pusemos em causa essas estruturas de democracia de base.
O que pomos em causa é a teoria que pretende construir sobre elas, e só sobre elas, numa ligação directa, uma teoria de Estado, uma estrutura de Estado e um
poder político.
Sobre isto, importa dizer qual é o papel das forças armadas. E é muitas vezes com reserva e com hipocrisia que nós falamos nas forças armadas. O fascismo português criou uma separação ilegítima entre o cidadão civil e o cidadão fardado. O fascismo português criou uma Academia Militar, onde, ao contrário do que acontecia no tempo da República, se fazia todo o curso de infantaria, de cavalaria, de artilharia e, em grande parte, de engenharia, desde há pouco tempo - ainda no tempo do fascismo -, e não permitiu contacto directo entre os jovens que escolhiam a carreira das armas, que é uma carreira tão nobre e tão legítima como outra qualquer, com aqueles que pretendiam ser advogados, engenheiros ou médicos, ou escolher qualquer outra profissão, também nobre e também legítima.
Essa separação que, efectivamente, foi feita, é uma separação que nós devemos combater. Nós devemos combater tudo aquilo que sirva para separar os Portugueses e devemos dizer que o militar é um cidadão fardado, como qualquer um de nós pode ser, se tanto for necessário.
A estruturação ou a presença das forças armadas neste processo destina-se a quê? Àquilo que foi anunciado no dia 25 de Abril: a permitir que o povo português possa, através de órgãos eleitos, exercer os seus próprios direitos. Nós admitimos que fomos o primeiro partido político a defender que o MFA se institucionalizasse. Mas a institucionalização do MFA e a função das forças armadas não se confundem, necessariamente, com funções de controle ou de tutela.
A introdução da política do MFA, que não do debate político, a introdução da política partidária dentro das forças armadas implica necessariamente a divisão. A introdução da política partidária dentro das forças armadas implica necessariamente o seu esfacelamento. A introdução da política partidária dentro das forças armadas é o directo responsável por todas as intentonas que nos preocuparam desde o 25 de Abril ao 25 de Novembro.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado: Tenho de chamar a sua atenção para o facto de que tem que abreviar as suas considerações, porque o tempo está quase no termo.

O Orador: - Nós entendemos que as forças armadas não devem fazer política partidária, mas devem garantir o exercício da política partidária por todos os portugueses e, inclusive, pêlos próprios militares, que têm o direito de votar, como é óbvio, de optar pelo partido que for mais do seu agrado e, inclusive, se assim o entenderem e desejarem, seguir uma carreira político-partidária, de pedirem a sua passagem a uma situação de reserva, que lhes permita exercer legitimamente essa função. A modificação necessária, ou melhor, a revisão do pacto que preconizamos, torna-se tanto mais necessária quanto é certo que se este .pacto, com boas mãos e com boas intenções, poderia em certo momento ajudar o País, este pacto, com más mãos e com más intenções, pode ser contra o povo e contra o País.

O Sr. Amaro da Costa (CDS): - Muito bem!

O Orador: - E ligada uma outra ideia: é que não há estruturas, ou melhor, o pacto não prevê estruturas que permitam o controle directo das estruturas militares pelo povo português, nem legitimamente o podia prever.
Ao fazermos este pedido de renegociação ou de revisão, e ao apontarmos a atenção desta Assembleia para os pontos que nos parecem mais importantes, nós fazemo-lo animados por duas ordens de razões. Em primeiro lugar, permitir que as forças armadas se integrem no autêntico processo revolucionário português, no seu verdadeiro e legítimo lugar. Em segundo lugar, permitir que o povo português consiga erigir aquelas estruturas que permitam a livre expressão da sua vontade, contra a qual nada se poderá levantar, se tivermos, como teremos, como temos, umas forças armadas que legitimem, que defendam a livre expressão do povo português, as estruturas políticas que a todos nos vão representar como Nação. É preciso dizer-se que a Revolução com êxito, como ensinava alguém, é um crime impune, mas é preciso dizer-se, também, que mesmo a Revolução com êxito, como nos ensinou Salvador Allende, tem sempre e sobre si uma sanção histórica e uma sanção moral que, essa sim, é impiedosa.

Tenho dito.

Aplausos.

(O orador não reviu.)

O Sr. Presidente: - O Sr. Deputado Coelho dos Santos deseja pedir algum esclarecimento?

Pausa.

Faça favor.

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O Sr. Coelho dos Santos (PPD): - Efectivamente eu queria, Sr. Presidente e Srs. Deputados, pedir um esclarecimento ao Sr. Deputado José Luís Nunes.
Eu ouvi-o referir que um militar não era nem mais nem menos do que um cidadão fardado e, estando totalmente de acordo com isto, não aceito, não posso aceitar que ele diga que não podemos denunciar um pacto que em certo momento foi imposto aos partidos por um MFA que era uma vanguarda política das forças armadas, como ele próprio reconheceu. Agora, faço a seguinte pergunta: se a primeira afirmativa é verdadeira - que um militar é um cidadão fardado com os mesmos direitos de qualquer outro cidadão -, como podemos conceber que, neste título da Constituição, "Organização do poder político", que nem sequer é organização do poder militar, ficasse fixado um preceito que permitiria que um militar - na hipótese da eleição de um Presidente da República - tivesse um voto como qualquer civil, através da Assembleia, e outro voto como militar? Teria dois votos.

O Sr. Presidente: - Mais algum pedido de esclarecimento?

Pausa.

Creio que mais ninguém.

Portanto, tem a palavra o Sr. Deputado José Luís Nunes para responder a este pedido, se o entender.

O Sr. José Luís Nunes (PS): - Bom, os considerandos que fez eu não os disse e são considerandos que a si próprio o vinculam, não me vinculam a mim.
Quanto ao saber como é que uma disposição dessa; apareceu na Constituição é uma coisa que deve perguntar ao seu próprio partido, que, como nós, também assinou o pacto. É a única coisa que lhe posso responder.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr Deputado
José Augusto Seabra.

O Sr. José Augusto Seabra (PPD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: É pena que o meu amigo Vasco da Gama Fernandes não esteja presente, porque eu queria antes de mais saudar a sua afirmação de que na elaboração de uma Constituição também podem participar os poetas. E eu, como poeta, gostaria de fazer aqui, para amenizar talvez um pouco o ambiente, algumas considerações poéticas, mas que eu acho que são também políticas.
Foi o poeta inglês Shelley que disse que os poetas não eram apenas aqueles que faziam poemas, aqueles que faziam versos, mas também os que faziam as leis e mesmo os que faziam as constituições. Ora, o que se discute aqui é o problema da revisão do pacto que os partidos fizeram com o MFA, e essa ideia de pacto sugere-me imediatamente, como estão a pensar, o poeta Goethe, sugere-me o pacto com o Diabo. Nós devemos dizer, quanto a nós, Partido Popular
Democrático, que não fizemos um pacto com o Diabo e, portanto, não nos sentimos vinculados ad eternum por esse pacto. Talvez o Partido Comunista, em vez de querer a revisão do pacto, em vez de querer rever o pacto, se reveja nesse pacto, e se reveja nesse pacto porque, no fundo, ele desejaria ser o Diabo, isto é, ele desejaria ser simultaneamente aquele que faz o pacto com o Diabo e o próprio Diabo. E é natural que hoje o Partido Comunista, constatando que, afinal, não conseguiu ser o Diabo - e nós não o consideramos, pela nossa parte, o Diabo - e é natural que o Partido Comunista sinta a nostalgia desse pacto, é natural que o Partido Comunista se reveja no pacto.

Uma vos - És bruxo.

A Sr.ª Alda Nogueira (PCP): - Patife!

O Orador: - Para nós, o Pacto, como qualquer lei, como qualquer contrato, como qualquer constituição mesmo, o pacto é historicamente algo que se insere numa transformação. As condições, as circunstâncias mudam e, mudando as circunstâncias, é evidente que o próprio pacto tem de mudar, e é por isso mesmo que nós, sem sermos revisionistas como o Partido Comunista Português, defendemos a revisão do pacto.
É que nós temos, não uma concepção metafísica do pacto, não uma concepção ontológica do pacto, como disse aqui o meu amigo José Luís Nunes, mas uma concepção dialéctica do pacto e, portanto, mudando as circunstâncias históricas, mudando as condições, nós pensamos que o Pacto também tem de mudar. E, aqui, quero introduzir novamente um outro poeta, o nosso grande Luís de Camões. E vou contar uma história: É que eu, quando estava na União
Soviética, em Moscovo, fui um dia abordado, como poeta, para fazer um comentário sobre o Dia de Camões. E fiz um comentário, como era natural, a propósito de um soneto que todos conhecem e que começa:

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades

Pois, meus amigos, esse comentário que eu fiz foi cortado pela censura da Rádio Moscovo, porque se dizia que eu estava a fazer uma interpretação abusiva da dialéctica camoniana.

Risos.

Mas, meus amigos, eu quero realmente lembrar o começo desse soneto e o fecho, a sua chave de ouro. O soneto começa, como sabem:

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades
Muda-se o ser, muda-se a confiança,
Todo o mundo é composto de mudança.
Tomando sempre novas qualidades,

O que é pura dialéctica, como mostrou o meu amigo, o ensaísta, o crítico Jorge de Sena. Mas o fecho é este:

Mas afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto,
Que não se muda já como soía.

Isto é, a mudança sofre, ela própria, uma mudança também. A mudança já não muda do mesmo modo, a mudança muda de modo diferente. E é isso que faz

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sofrer o Partido Comunista. É que a mudança, hoje, se faz de modo diferente.

Risos e aplausos, de mistura com protestos.

E é isso, meus amigos, é isso, meus colegas Deputados, que nós estamos a ver desde ontem. O tom mudou, o terreno é outro. Hoje, os democratas estão no seu terreno, podem utilizar a sua linguagem e nós continuaremos a mudar, porque nós mudamos, mas mudamos com coerência, mudamos dialecticamente.
Nós queremos superar as contradições e não tornar essas contradições estáticas. E o Deputado Vital Moreira, esquecendo-se há pouco da dialéctica - porque eu, quando disse que a contradição era dialéctica, evidentemente, estava a fazer ironia. O Deputado Vital Moreira o que desejaria era conciliar Deus e o Diabo.
Queria ser Deus, queria ser o Diabo. Mas nem é Deus nem Diabo, felizmente para o povo português, porque uma das grandes conquistas do 25 de Abril foi a de que nós nos deixámos de bater no terreno do maniqueísmo, no terreno do bem e do mal. Hoje, a linguagem é outra, hoje nós podemos falar livremente, hoje nós podemos analisar as contradições, hoje nós podemos ser dialécticos. E é por isso que eu faço um apelo ao Partido Comunista, porque não queria terminar sem fazer um apelo. Era que o Partido Comunista, tirando a lição do fracasso da sua política, compreendesse que as condições mudaram, que as circunstâncias mudaram e que ele também tem de mudar...

Aplausos.

O Sr. Vital Moreira (PCP): - Para o fascismo, não.

O Orador: - ... que ele também tem de ser um partido democrático, e, sendo um partido democrático, tem o seu lugar na democracia portuguesa, o seu lugar natural. E nós respeitá-lo-emos, porque nós desejamos que o Partido Comunista, como o Partido Comunista Italiano, como o Partido Comunista Espanhol, como todos os partidos comunistas evoluídos, compreenda que a mudança também muda, que as condições da mudança mudam, e, portanto, nós esperamos ainda que o Partido Comunista acabe por mudar.
Porque, se o Partido Comunista não muda, se o Partido Comunista persiste numa visão maniqueísta, o Partido Comunista arrisca-se a que voltemos a uma circunstância em que haja de novo Deus e o Diabo. E nós não queremos que o PC seja o Diabo, nós não queremos que o Partido Comunista sejam também o
Deus. Queremos, simplesmente, que o Partido Comunista seja um partido humano.

Aplausos.

O Sr. Presidente: - Peço a atenção da Assembleia.
A situação, neste momento, é a seguinte: neste momento temos para participar no debate na generalidade nada menos do que onze oradores inscritos.
Todos, porém, fizeram chegar à Mesa o seu desejo de intervirem amanhã, por não terem ainda as suas intervenções preparadas.
Nestas condições, damos a sessão por encerrada e reabriremos amanhã, às 15 horas.

Eram 19 horas e 45 minutos.

Rectificação ao Diário da Assembleia Constituinte, enviada para a Mesa durante a sessão:

Peço a seguinte rectificação ao Diário da Assembleia Constituinte n.º 88, de 3 de Dezembro de 1975:

Na p. 2858, col. 2.ª, o parágrafo que começa por "no momento em que...", e termina por "... aquela solução", deve ser substituído pelo seguinte: "No momento em que os adeptos deste modelo original, procurando tirar vantagem política de uma vitória militar que pertenceu, sobretudo, aos adeptos da revolução democrática, tentam lançá-lo, o CDS deseja declarar, de uma forma muito nítida e inequívoca, que rejeita categoricamente aquela solução."

Diogo Freitas do Amaral (CDS).

Srs. Deputados que entraram durante a sessão:

ADIM - MACAU

Diamantino de Oliveira Ferreira

CDS

Adelino Manuel Lopes Amaro da Costa.
Basílio Adolfo Mendonça Horta da Franca.
Carlos Galvão de Melo.
Diogo Pinto de Freitas do Amaral.
José António Carvalho Fernandes.
Maria José Paulo Sampaio.

MDP/CDE

Álvaro Ribeiro Monteiro.

PCP

Adriano Lopes da Fonseca.
António Branco Marcos dos Santos.
António Dias Lourenço da Silva.
Avelino António Pacheco Gonçalves.
Herculano Henriques Cordeiro de Carvalho.
Hipólito Fialho dos Santos.
Jaime dos Santos Serra.
Jerónimo Carvalho de Sousa.
Joaquim Diogo Velez.
José Alves Tavares Magro.
José Manuel Marques Figueiredo.
Manuel Mendes Nobre de Gusmão.
Maria Alda Nogueira.

PPD

Abel Augusto de Almeida Carneiro.
Afonso de Sousa Freire Moura Guedes.
Alfredo António de Sousa.
Alfredo Joaquim da Silva Morgado.
Amélia Cavaleiro Monteiro de Andrade de Azevedo
António Júlio Correia Teixeira da Silva.
António Júlio Simões de Aguiar.
Cristóvão Guerreiro Norte.
Eduardo José Vieira.
Eleutério Manuel Alves.
Emídio Guerreiro.

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Eugênio Augusto Marques da Mota.
João António Martelo de Oliveira.
Jorge Manuel Moura Loureiro de Miranda.
José Angelo Ferreira Correia.
José Augusto de Almeida Oliveira Baptista.
José Augusto Baptista Lopes e Seabra.
José Casimiro Crespo dos Santos Cobra.
José Manuel Afonso Gomes de Almeida.
José Manuel Burnay.
José Manuel da Costa Bettencourt.
Luís Fernando Argel de Melo e Silva Biscaia.
Manuel Coelho Moreira.
Manuel Joaquim Moreira Moutinho.
Manuel José Veloso Coelho.
Marcelo Nuno Duarte Rebelo de Sousa.
Miguel Florentino Guedes de Macedo.
Nicolau Gregório de Freitas.
Nívea Adelaide Pereira e Cruz.
Nuno Guimarães Taveira da Gama.
Orlandino de Abreu Teixeira Varejão.
Rúben José de Almeida Martins Raposo.
Victor Manuel Freire Boga.

PS

Adelino Augusto Miranda de Andrade.
Agostinho de Jesus Domingues.
Alberto Manuel Avelino.
Alberto Marques de Oliveira e Silva.
Álvaro Neto Órfão.
António Alberto Monteiro de Aguiar.
António Carlos Ribeiro Campos.
António Fernando Marques Ribeiro Reis.
António José Sanches Esteves.
Artur Cortez Pereira dos Santos.
Carlos Alberto Andrade Neves.
Carlos Manuel Natividade da Costa Candal.
Enrico Faustino Correia.
Florival da Silva Nobre.
Francisco Igrejas Caeiro.
Gualter Viriato Nunes Basílio.
Henrique Teixeira Queiroz de Barros.
Jaime José Matos da Gama.
José Alberto Menano Cardoso do Amaral.
José Manuel Niza Antunes Mendes.
José Manuel Vassalo de Oliveira.
Luís Filipe Nascimento Madeira.
Manuel Alegre de Melo Duarte.
Manuel Amadeu Pinto de Araújo Pimenta.
Maria Emília de Melo Moreira da Silva.
Maria Fernanda Salgueiro Seita Paulo.
Maria Teresa do Vale de Matos Madeira Vidigal.
Mário António da Mota Mesquita.
Nuno Maria Monteiro Godinho de Matos.
Pedro do Canto Lagido.
Raul d'Assunção Pimenta Rego.
Rosa Maria Antunes Pereira Rainho
Vítor Manuel Brás.
Vitorino Vieira Dias.

Srs. Deputados que faltaram à sessão:

CDS
Emílio Leitão Paulo.

Francisco Manuel Lopes Vieira de Oliveira Dias.
Victor António Augusto Nunes Sá Machado.

MDP/CDE

Luís Manuel Alves de Campos Catarino.
Orlando José de Campos Marques Pinto.

PCP

António Malaquias Abalada.
Carlos Alfredo de Brito.
Dinis Fernandes Miranda.
Hermenegilda Rosa Camelas Pacheco Pereira.
José Pinheiro Lopes de Almeida.
Octávio Floriano Rodrigues Pato.

PPD

Abílio de Freitas Lourenço.
Américo Natalino Pereira de Viveiros.
Artur Morgado Ferreira dos Santos Silva
José António Camacho.
José António Valério do Couto.
José Bento Gonçalves.
José Gonçalves Sapinho.
Leonardo Eugênio Ramos Ribeiro de Almeida.
Manuel da Costa Andrade.
Mário Campos Pinto.

PS

Alberto Marques Antunes.
Carmelinda Maria dos Santos Pereira.
Fernando Alves Tomé dos Santos.
Fernando José Capelo Mendes.
João Joaquim Gomes.
João do Rosário Sarrento Henriques.
Joaquim Antero Romero Magalhães.
Joaquim da Costa Pinto.
Júlio Francisco Miranda Calha.
Mário Alberto Nobre Lopes Soares.
Mário Nunes da Silva.
Sophia de Melo Breyner Andresen de Sousa Tavares.

UDP

Américo dos Reis Duarte.

Os REDACTORES: José Alberto Pires - Filomeno Monteiro Sobreira - José Pinto.

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PREÇO DESTE NÚMERO 24$00

IMPRENSA NACIONAL - CASA DA MOEDA

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