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2 DE JUNHO DE 1989 4531

Começarei por recordar que, quando em 1976 apoiei, com outros deputados constituintes a posição de Francisco Sá Carneiro no sentido de o PPD/PSD se abster na votação final da Constituição, queria que ficasse bem claro que as razões de conjuntura que poderiam levar ao voto favorável não se deviam sobrepor ao escamoteamento do que era evidente: a Constituição não era plenamente democrática e nela alguns direitos fundamentais da pessoa humana eram fortemente restringidos. O Estado ia adoptar uma ideologia transpersonalista e sectária e arrogava-se o «direito» de proclamar o que era bom e mau. Outras vontades e outras «legitimidades» sobrepunham-se à soberania popular. Em resumo, não havendo meias democracias, com Sá Carneiro sempre entendi que a democracia era mais uma vez uma ficção em Portugal.
Em 1982 foi conseguido o objectivo essencial da revisão da Lei Fundamental: a instauração da democracia política. A legitimidade democrática sobrepôs-se à «legitimidade» revolucionária, desapareceu um órgão de soberania não eleito, não responsável e com um mandato de duração indeterminada, que podia contrariar a vontade popular. Alguns direitos fundamentais foram consolidados e outros, como a liberdade de aprender e ensinar, obtiveram consagração.
No resto, quase tudo ficou por fazer e o texto constitucional foi envelhecendo sendo velozmente ultrapassado pela evolução da sociedade dos nossos dias, pelos avanços não só da ciência e da tecnologia mas sobretudo do pensamento, pela emergência de uma nova geração que nada tinha nem queria ter a ver com mitos rigídificados que nele se continham.
Por isso me congratulo vivamente com desdogmatização e o aggiornamento que nesta segunda revisão foram alcançados, bem como com o desaparecimento da maior parte das formulações datadas que consubstanciavam a imposição de uma ideologia dominante.
2 - O fim da ideologia crepuscular na Constituição.
A esmagadora maioria dos portugueses não queria que a Constituição continuasse a consagrar por mais tempo uma ideologia crepuscular e decadente que fazia dela um texto virado para o passado e cada vez mais estranho a Portugal. As formulações datadas envelhecidas, num caso ou outro até caricatas recolhidas da vulgata marxista que a vontade dos homens do nosso tempo já rejeitou em praticamente todo o mundo, eram uma excrecência sem sentido.
Além disso, sendo cristã a matriz cultural e ética que desde o inicio inspirou a comunidade portuguesa, tarde ou cedo haveria que erradicar o fracasso exerto daquela ideologia estrangeira.
Ora já há anos que a vontade do povo se vinha exprimindo num sentido contrário ao apontado pela Constituição. Repetida e firmemente, em sucessivos actos eleitorais, os portugueses escolheram outro caminho, repudiando o que estava consagrado e que era rejeitado por ser estranho, passadista e conduzir ao crepúsculo, como bem prova a experiência dos povos que por eles foram forçados a trilhar e do qual in extremis se tentam a todo o custo libertar.
Para mim é, por consequência, evidente que esta revisão é o triunfo da vontade soberana dos portugueses, que se impôs aos seus representantes - e que queria a rejeição dos mitos da «sociedade sem classes da apropriação colectiva dos meios de produção», em suma, do socialismo colectivista e transpersonalista,
inventado no século XIX. Ele foi sempre gerador de miséria, conduzindo necessariamente à brutal restrição ou mesmo supressão da liberdade e de toda a iniciativa criadora dos cidadãos.
3 - A queda do mito da irreversibilidade
Se, como se viu, a própria geração que o viu nascer repudiava já o modelo constitucional, que dizer da nova geração chegada à idade adulta e das que se lhe seguirão? Qual seria a sua entidade ao assumirem o cornando dos destinos pátrios perante um texto que os pretendia amarrar a uma ideologia, a um modelo, a uma utopia, talvez até a alguns fantasmas, com que nada tinham a ver? Penso que esta revisão salvou a geração que engendrou o texto constitucional inicial, em particular os membros da chamada classe política, de um total e profundo ridículo perante o futuro. Quem queria passar por um entre vários pequenos faraós, pretendendo impor aos vindouros aquela «pirâmide», produtos de um pensamento datado, que os novos inevitavelmente teriam de destruir? Estaria o povo «eternamente» condenado a submeter-se e a servir a Constituição ou esta é que devia ser instrumento político fundamental para servir o povo, logo capaz de evoluir de acordo com a evolução da vontade deste?
O fim da irreversibilidade das nacionalizações e a admissão da reversibilidade do próprio artigo 290.º, que foi alterado, puseram termo ao mito, dando ao futuro a prova do respeito que as pessoas que o irão construir e a sua total liberdade nos passaram a merecer a partir de agora.

4 - A democracia é indeterminação

Como já Tocqueville há século e meio notou a indeterminação é característica essencial da democracia. Claude Lefort acentua mesmo o que é o carácter aberto e indeterminado, marca essencial das sociedades democráticas ocidentais, que permite falar da invenção democrática.
Esta revisão foi o triunfo das concepções democráticas integralmente respeitadoras da vontade popular, incompatíveis com ideologias deterministas que pretendem conduzir a sociedades fixistas. Ora as sociedades viradas para um objectivo final são sociedades sem história, em oposição à democracia, «sociedade histórica por excelência» no dizer de Lefort, exactamente por ser uma sociedade que acolhe e preserva a indeterminação, em contraste com o totalitarismo que pretende deter a lei da sua própria organização e desenvolvimento, ou seja atingir um conhecimento «divino» sobre o futuro.
Mas não é possível idolatrar a sociedade como um deus. Como afirmou João Paulo II em Outubro passado no Parlamento Europeu «a sociedade, o Estado, o poder político pertencem ao quadro mutável e sempre aperfeiçoável deste mundo. Nenhum projecto de sociedade poderá jamais estabelecer o reino de Deus, a perfeição escatológica, sobre a terra. Os messianismos políticos desembocam quase sempre nas piores tiranias. As estruturas que as sociedades para si constróem não valem nunca definitivamente e não podem alcançar por si sós todos os bens que o homem aspira. Em particular, não podem substituir-se à consciência do Homem e à procura da verdade do absoluto».

5 - A dessacralização da política

A revisão de 1989 introduz na acção política, pela primeira vez, a consciência de que ela tem limites.

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