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2 DE JUNHO DE 1989 4533

a política è e será irredutível a critérios científicos: o critério da acção política não é a ciência mas a prudentia, que desafia os homens a viver em liberdade, conciliando a eficácia com a justiça e a solidariedade.
Também o pragmatismo tecno-economista sai diminuído desta revisão. Não será mais possível subordinar no futuro o pensamento e a acção políticas à «solução» tecno-economista dos problemas, virada para o aspecto quantitativo e que nega a diversidade multi-dimensional da realidade humana. Com efeito, a acção tecnocrata é social e politicamente mutilada e mutiladora, pois concebe o que é vivo - homem e sociedade - segundo a lógica simplificadora das máquinas artificiais. Por isso se enganam quase sempre as previsões tecnocráticas, pois não têm em conta muito da realidade, das aspirações, dos desejos, até dos sonhos dos homens.
A importância fundamental da Revisão Constitucional de 1989 é, para mim, a de consubstanciar a ultrapassagem das fases da ideologia «sacral» marxista, do positivismo e da tecnocracia pseudo-científicos, cujos estertores têm seriamente prejudicado a projecção no mundo e o desenvolvimento integral e harmonioso de Portugal.
É importante por isso que a partir de agora os políticos revejam as suas posturas, reconhecendo que não podem fazer e muito menos conseguir em poucos anos tudo o que é necessário, reduzindo em consequência as suas promessas eleitorais; que os juristas deixem de querer regulamentar tudo e que os tecnocratas afirmem que não podem resolver todos os problemas. Numa palavra, o Estado deve deixar de querer impor à sociedade um modelo de «modernização». A sociedade é que deve modernizar o Estado burocrático e tentacular, hoje arcaico. Como nota Michel Crozier, o Estado moderno só pode ser o «Estado modesto», aquele que, nada tendo a ver com o Estado mínimo dos neo-liberais, se deve colocar ao serviço das pessoas, respeitando-as em todas as circunstâncias. Em vez de comandar e de regulamentar tudo, deve estimular e apoiar as pessoas e as comunidades locais, regionais e outras para que encontrem elas próprias as regulações que consideram melhores, mais justas e mais eficazes para a sua vida.
Tudo isto será mais fácil devido à grande brecha que foi possível abrir na muralha de dogmatismos constitucional e nos esterilizadores domínios do normativismo, positivistas e da tecnocracia, estes últimos caracterizados por uma nulidade total ao nível de pensamento político. Mas aquela abertura exige o renascimento da filosofia política, cuja inexistência foi produto das «certezas» dogmáticas que não admitiam dúvidas, de uma visão meramente quantitativa e mecânica dos fenómenos sociais e da persistente tendência para resolver todos os problemas da sociedade através da letra da lei ou do regulamento, sacralizando a norma, para além da qual nada poderia haver. Ignorou-se demasiado tempo a sabedoria dos clássicos (a excessiva abundância de leis e regulamentos é, como a febre, sintoma de comunidades adoentadas) e esqueceram-se as realidades que existem antes e para além da lei.
A verdade é que só o pensamento sobre a política pode fundamentar uma acção política consistente, que tenha em conta toda a realidade, que seja respeitadora dos valores fundamentais, e que assim possa alcançar toda a eficácia possível.
Partindo de dados adquiridos como sejam a identidade histórico-cultural dos portugueses, as ligações tecidas com outros povos e a interdependência que é crescente a nível
mundial, há que repensar os objectivos da acção política, estabelecendo claramente quais os resultados que é possível alcançar, mudando ao mesmo tempo o próprio estilo até agora dominante de fazer política, o qual, a partir de agora e numa perspectiva de integração num grande espaço europeu, não tem razão de ser. E que, a ser continuado, será cada vez mais visto como sucessão de episódios das «guerras do alecrim e mangerona»...
Se há que repensar o Estado, há que, sem pressas, reflectir sobre o que deve ser, no futuro, a própria Constituição. Por não ter sido devidamente pensada ela tem sido tratada, desde 1976, como um albergue espanhol onde cabe tudo. Muitas disposições regulamentares ou até regimentais que nela se contêm são espelho da desconfiança que tem reinado entre as várias forças políticas, que mutuamente se atribuem os mais negros desígnios de perpetuação no poder por todo e qualquer meio. Ainda nesta revisão se constitucionalizaram avanços alcançados nos últimos anos na lei ordinária, por vezes em matérias sem dignidade constitucional, cuja rigidificação é incompreensível. Isto foi incongruente com a criação de leis com valor reforçado...
É verdade que a abertura ao pensamento sobre o fenómeno político que acima referi, resultado de a Constituição ter deixado de ser fechada, dogmática e imutável, apesar de continuar a ser regulamentar, acresce a outros aspectos igualmente muito positivos: o alargamento e consolidação dos direitos fundamentais; o reforço das garantias dos administrados; a abertura à iniciativa criadora das pessoas e instituições, pondo fim aos monopólios que subsistiam do Estado na economia, no ensino, na televisão; o desaparecimento do Plano como instrumento arrogante de coordenação e disciplina da vida económica, social, e cultural, que quase pretendia programar o futuro, na sua versão, agora felizmente desaparecida, de longo prazo (a qual saía do âmbito da política para o da futurologia!); a consagração do referendo, proposta reiterada e veemente de Sá Carneiro, como forma de participação directa dos cidadãos na acção política; o alargamento do direito de petição e a consagração do direito de acção popular com vista à protecção de importantes valores da vida comunitária; etc. Tudo isto aliado ao fim das «irreversabilidades», já referido, não só põe termo ao dogma de uma Constituição imutável para sempre como permite às pessoas irem mudando livremente a sua vida de acordo com a sua vontade em cada tempo. Mas é isso que garante a subsistência de uma Constituição - a possibilidade de se adaptar e deixar campo livre à rápida evolução de todos os aspectos da vida. Sendo mais modesta, mais acolhedora à criatividade e às iniciativas das pessoas singulares e colectivas, a Constituição tem garantida a sua maior duração. Foi isto que as forças defendiam a rigidez não quiseram perceber.
Não se extraia do acima exposto que penso que a Constituição não carecerá no futuro de novos aperfeiçoamentos, para lá do corte dos remos mortos ou inúteis que nela ficaram e que tornam a sua leitura e compreensão difíceis. Pelo contrário, para ser plataforma de entendimento mínimo entre todos, para ser património comum de todos os portugueses tem de estar aberta aos contributos das novas gerações, tem de ser expressão de uma comunidade que evoluirá e que quererá manter só o que é intocável, aquilo sem o que o regime deixaria de ser democrático: os direitos da pessoa humana e os mecanismos da democracia.

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