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2020 I SÉRIE-NÚMERO 63

abrangente e susceptível ale de traduzir visões precipitadas ou distorcidas da realidade em presença.
E uma questão da ciência, do direito, da medicina, da ética, do social. Mas é, sobretudo, e antes de mais, uma questão do homem e da sociedade ou, se quisermos, com maior rigor e propriedade, do homem em sociedade.
Uma matéria, por isso mesmo, de indiscutível relevância e assinalável delicadeza, que importa analisar globalmente e sem precipitações; uma matéria que tem muito a ver com os sentimentos de generosidade, de solidariedade e de altruísmo do ser humano e, em particular, do povo português; uma matéria cuja discussão deve centrar-se eminentemente no plano cultural e dos valores, os valores e a cultura da fraternidade, do combate ao egoísmo e ao individualismo, da supremacia do direito e do dever de ser solidário, da obrigação de contribuir para o bem colectivo.
Trata-se do reconhecimento do valor da vida humana, da dignidade do homem. O homem como medida de todas as coisas; o homem como sujeito e destinatário da nossa acção; o homem como ser solidário; o homem na sua perspectiva emanente como na sua dimensão transcendente; o homem que tem no direito ã vida um dos seus fundamentais direitos; o mesmo homem que em tempo algum e em civilização alguma instituiu, em princípio ou em dúvida, a possibilidade de alguém viver não apenas com mas por causa de órgãos do corpo de outrem e por vontade deste.
Porque não é possível conceber o ser humano a não ser em comunidade. Ora, viver em comunidade não representa apenas o viver com outros: é, sobretudo, viver plenamente para os outros, viver através dos outros, ser capaz de sentir a presença dos outros, as suas necessidades e aspirações.
Trata-se da assunção dos valores do humanismo, da solidariedade e da generosidade. Porque talar de doação de órgãos, em vida ou após a morte, é falar de um dos maiores actos de generosidade humana. É a possibilidade de parte de nós viver depois de nós e, sobretudo, lazer viver outros depois de nós. É a superior dignidade do gesto humano que aqui se afirma, se valoriza e se desenvolve.
Mas os valores da solidariedade e da generosidade humana não fazem esquecer nem podem fazer postergar o respeito pela individualidade própria de cada um.
Se a doação é um bem solidário a potenciar e a desenvolver, o respeito pela vontade de cada um é um imperativo da sociedade que importa defender e cultivar.
Potenciar a solidariedade na doação e desenvolver o espírito da generosidade através do transplante é um imperativo mas não é uma imposição!
Sr. Presidente, Srs. Deputados: É este acto um acto nobre, objectivo ético e social, mas não pode ser uma exigência política, médica ou legal. A solidariedade e a generosidade não se decretam; bem pelo contrário, cultivam-se, estimulam-se e desenvolvem-se.
O respeito por cada indivíduo enquanto pessoa implica, por isso mesmo, que se respeite igualmente a decisão daqueles que, por motivo educacional, filosófico, religioso ou por simples medo do desconhecido, não quiseram ou não querem fazer a doação dos seus corpos ou de parte deles.
A doação é um acto de opção pessoal, consciente e livremente assumido e nunca, em caso algum, pode ser um acto de decisão imposto, que contrarie ou exista à revelia da vontade individual de cada um.
A questão não se dirime, a nosso ver, na base de saber se o mais importante é «a saúde dos vivos ou o direito dos mortos».
A dignidade da pessoa implica, reclama, exige e requer que tão importante seja a defesa, o prolongamento e a qualidade de vida do potencial receptor como o respeito devido à vontade de todo e qualquer potencial doador.
A proposta de lei do Governo, agora em debate, e sobretudo a futura lei a aprovar por esta Câmara, deve, a nosso ver, conciliar estes dois objectivos - respeitar a liberdade individual do cidadão, afirmando e desenvolvendo, ao mesmo tempo, a solidariedade inerente ao homem e à vida em sociedade.
Sr. Presidente e Srs. Deputados: A qualidade de vida e o prolongamento da vida de cada um é, cada vez mais, um dever de todos, uma exigência da sociedade e uma preocupação da ciência.
A transplantação ocupa cada vez mais um papel ímpar na obtenção de uma maior qualidade de vida. na defesa da saúde e no prolongamento da esperança de vida.
Até ao ano 2(XX) prevê-se que mais de 60% da cirurgia realizada seja uma cirurgia de reparação, utilizando tecidos e órgãos humanos.
A ciência tem registado, neste domínio, avanços surpreendentes e significativos. Importa acompanhar esta evolução e seguir os ensinamentos do desenvolvimento científico e tecnológico, quer no campo dos princípios, das técnicas assumidas com reconhecida credibilidade quer no campo dos valores que presidem a uma verdadeira política de transplantes.
Portugal não pode nem deve ser excepção a esta regra universal. Para muitos milhares de portugueses a possibilidade de um transplante é uma questão de vida e de sobrevivência.
Os números, de resto, não nos deixam margem paru dúvidas: mais de 1()(X) portugueses aguardam transplantação de rins, pelo que, ao ritmo actual, ficarão em lista de espera durante cerca de três anos: muitas pessoas aguardam a oportunidade de receber um coração novo e as estatísticas, quase sempre implacáveis, indicam que 20% destes doentes correm o sério risco de não sobreviverem por não haver dádivas suficientes para transplante; muitas pessoas aguardam a transplantação de um novo fígado, sem a qual a sobrevivência não será possível. Essa operação ainda não se faz em Portugal, embora existam perspectivas animadoras de que tal acto médico-cirúrgico se possa vir a desenvolver rapidamente, talvez nas próximas semanas ou meses. Daí que, com prejuízos económico-financeiros significativos, a única alternativa é o recurso à cirurgia no estrangeiro.
Face a este panorama os princípios da solidariedade humana e da generosidade não podem nem devem deixar de ser estimulados, potenciados e desenvolvidos.
Seria grave e dramático mesmo que, ante os avanços da ciência e os progressos da técnica, não se fizesse um esforço acrescido para despertar as energias solidárias dos Portugueses, desenvolvendo e potenciando o seu espírito altruísta, humanista e de generosidade.
E tudo isto quando os consensos e os avanços desencadeados na comunidade internacional são por demais eloquentes e significativos.
Em toda a Europa os últimos anos foram férteis na discussão em redor destes temas. A unanimidade que se tem vindo a verificar, no que se refere ao enquadramento legal destes problemas, resulta de problemas que são comuns, de civilizações com idênticos antecedentes históricos e culturais, de desafios novos que se colocam com semelhante premência e acuidade.
Portugal não pode nem deve deixar de acompanhar esta matriz, seguir esta orientação, aperfeiçoar o seu sistema, desenvolver a sua própria política de transplantes.

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