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19 DE JANEIRO DE 1995 1159

bência de falar em nome do meu grupo parlamentar para lembrar a figura de Miguel Torga, ousei percorrer de imediato o seu Diário, para me fixar tão-só na seu primeiro verso: «Deixem passar quem vai na sua estradas». Este verso é como que um paradigma e um testemunho de uma vida inteira. Este homem, que veio de Trás-os-Montes, onde a urze cresce a custo, mordendo a rocha, comendo o pó, bebendo o sol, como diria Guerra Junqueira. Formou a sua têmpera, o seu carácter, a sua maneira dizer, os seus relacionamentos, através de uma escada na vida que fez dela estrada larga de um legado que nos deitou.
Passou por Lamego no seu semear, foi marçano pelo Porto e foi até às plagas brasileiras e daí voltou para o centro da intelectualidade portuguesa, para a Universidade de Coimbra. Fez-se escritor, autor, mas, sobretudo, poeta. E os poetas têm a facilidade de dizer Coisas que o comum dos homens não é capaz de exprimir, porque sabe lidar com as palavras, enredando-as num gosto diferente para traduzir estados de alma que o escritor vulgar é incapaz de atingir ou de conceber. Por isso, eles estão à frente, ao lado, mas sempre noutro sítio, para que a turba possa olhá-los e vigiar como caminham os poetas na descoberta dos novos mundos, na criação de um mundo novo.
Miguel Torga, que viveu por dentro a alma dos portugueses na simplicidade do que somos, que conheceu as terras e a sua gente, é bem o exemplo vivo de quanto um poeta é capaz, na beleza do seu dizer, de encontrar emoções, sensações, evidências que o comum dos homens é incapaz de traduzir, ainda que seja capaz de profundamente assentir.

Vozes do PSD: - Muito bem!

O Orador: - E Miguel Torga teve essa qualidade extraordinária que só os poetas têm na veleidade do pintar a cor do vento. E ele pintou a cor das almas. Ele soube viver por dentro a ansiedade, a angústia dos portugueses, para abrir caminhos novos de projecção de futuro. E quão admirável quando ele, na sua modéstia, refere que não quer deixar aos portugueses, como legado, os seus despojos poéticos, mas tão-só aquilo que de mais íntimo ele tem, sem a amargura, sem o testemunho da tortura do seu percurso, para nos deixar tão-só a «graça da chegada».
Que coisa admirável esta porque nos coloca em face da estatura enorme de um homem que é português e, pelo pensamento, é também universal. Não está na sua maneira de dizer, ainda que rica, bela, esplendorosa, mas, sobretudo, porque soube traduzir como ninguém o sentimento e a alma dos portugueses.
É este homem, que hoje passa a fasquia dos vivos, que estamos aqui a lembrar, com dor, com sofrimento, porque uma perda nacional, diria mesmo uma perda universal, porque é um homem que marcou um destino de solidariedade com a humanidade inteira.
A este homem, quero, neste momento, e em nome do meu grupo parlamentar, fazer votos para que os seus textos continuem a «estrada» que ele rasgou: «Deixem passar quem vai na sua estrada». A sua obra passou, passa é continuará a passar na memória, no coração dos portugueses para aquecer as ideias que ele nos deixou e, na inteligência dos portugueses, para tomar mais vivo o seu testemunho.
A este homem, quero, em nome do meu grupo parlamentar, fazer também votos para que o futuro, que é uma madrugada constante de esperança, glorifique o seu nome, faça honra à sua memória e conceda a paz à sua alma!

Aplausos gerais.

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado Manuel Sérgio

O Sr. Manuel Sérgio (Indep.)- - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Miguel Torga era um transmontano. Por isso podia cantar: «Serra!/E qualquer coisa dentro de mim se acalma.../Qualquer coisa profunda e dolorida,/Traída,/Feita de terra e alma./Uma paz de falcão na sua altura/A medir as fronteiras:/Sob a garra dos pés a fraga dura/E o pico a picar estrelas verdadeiras».
Mas transmontano e poeta e, por isso, telúrico:
«Terra, minha canção/O de polo a polo erguida,/Pela beleza que não sabe a pão,/Mas ao gosto da vida».
E sabendo que a História Universal não é senão a da consciência da liberdade:
«Deixem passar quem vai na sua estrada/Deixem passar/Quem vai cheio de noite e de luar/Deixem passar e não lhe digam nada»./Deixem que vai apenas/Beber água de sonho a qualquer fonte/Ou colher açucenas/A um jardim que ele lá sabe, ali defronte./Vem da terra de todos onde mora/E onde volta depois de amanhecer./Deixem-no pois passar, agora,/Que vai cheio de noite e solidão,/Que vai ser/Um estrela no chão».
Poeta, transmontano, telúrico e livre, faleceu ontem Miguel Torga, um dos maiores poetas da História da Literatura Portuguesa; marco inapagável da História da Literatura Universal: erguendo, na solidez vernacular dos nossos melhores clássicos, a presença de um resistente insubornado e insubornável.
Ao cultuar a figura emblemática do poeta, do escritor, do resistente e do democrata, a Assembleia da República honra-se a si mesma, pois saúda em Miguel Torga (ontem morto e hoje vivo e para todo o sempre) os valores da cultura e da liberdade, que são a sua própria razão de ser.

Aplausos gerais.

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado Eurico Figueiredo.

O Sr. Eurico Figueiredo (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: A perda de Torga é, obviamente, a perda do maior poeta existencial português, o poeta da liberdade, o poeta da revolta, o poeta da responsabilidade e o poeta da angústia perante a consciência da nossa condição de mortais. Mas é também para mim uma grande perda pessoal e daí os meus agradecimentos à direcção do meu grupo parlamentar pela incumbência de lhe fazer esta homenagem.
Torga sempre existiu na minha memória. Companheiro de República de meu pai em Coimbra, ambos médicos, ambos transmontanos, nascidos a poucos quilómetros um do outro, conheço Torga desde sempre e gostava, como memória, trazer-vos a primeira recordação que tenho dele. Depois de uma caçada na famosa Serra das Cebolas, que fica entre a minha aldeia, Justes, e a aldeia de Torga, S. Martinho de Anta, e depois de um opíparo almoço em minha casa, o poeta Torga, depois de bem almoçado, virou-se para a minha mãe e disse: «O almoço estava óptimo, mas o arroz não era grande coisa...» Esta frontalidade do poeta nunca mais a esqueci; este homem desengonçado, este homem feio, este homem rude que, na minha casa, já era «o poeta» não era um poeta, era «o poeta». Já conhecia praticamente de cor todas as histórias dos Bicílos, já conhecia o gato, o pardal, o cão e já tinha pesadelos com o abafador.
De facto, a partir daqui, o Torga esteve sempre na minha experiência de vida e sempre como um oráculo. Torga não foi um amigo no sentido habitual do termo. Devo

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