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27 DE ABRIL DE 1998 2111

inacreditável que fosse - que nos leva a ratificar a Convenção.
Temos de reconhecer que Portugal, ratificando tão tardiamente esta Convenção, não seguiu, neste caso, a sua tradição humanista e pioneira.
Este atraso é contrário a nós próprios, é contrário ao que aconteceu em tantas áreas dos direitos da pessoa, desde a abolição da pena de morte - em que fomos os primeiros - até à recente participação, a vários níveis e em várias instâncias, designadamente o Conselho da Europa, na preparação da Convenção sobre os Direitos do Homem e a Bio-Medicina.
Quero afirmar, claramente, que penso tratar-se de uma responsabilidade partilhada por todos. Pessoalmente, não me excluo desta responsabilidade colectiva, que, pela minha parte, muito lamento.
É verdade que, na prática, a nossa tradição humanista triunfou. Portugal não praticou genocídios e tem ajudado vários povos vítimas de genocídio nas últimas décadas. Mas os nossos valores, a nossa própria coerência exigem-nos que desta vez ponhamos a nossa lei de acordo com a nossa prática, acabando esta incongruência.
O século XX, cujo fim se aproxima, ficará marcado por um carácter extraordinariamente paradoxal. Por um lado, o progresso científico, tecnológico e económico, de que toda a gente fala, os enormes avanços na medicina, o conhecimento das situações em tempo real em todo o mundo, graças ao desenvolvimento das comunicações e das tecnologias da informação, o acesso à sabedoria acumulada por meios rápidos e modernos e, por outro lado, a fome, a miséria e os genocídios.
Neste momento, não podemos deixar de recordar as tentativas de destruição maciça de povos ocorridas no nosso século: os judeus, os ciganos, sem esquecer o tratamento de que foram vítimas os povos eslavos pelo Estado hitleriano; vários povos, em condições e em número inimaginável, no império de Estaline; os arménios no império otomano; o povo do Cambodja vítima de um sistema demente; os povos da Bósnia; os tutsis no Ruanda, os povos nativos do continente americano; a chamada violação de Nanquim e outros massacres ocorridos no tempo do felizmente efémero império japonês.
Certos factos ocorridos no Vietname e em algumas guerras coloniais podem também cair no âmbito da noção de genocídio definida no artigo 2.º da Convenção.
As guerras contra grupos étnicos, religiosos e nacionais não tiveram conta e mancharam indelevelmente o século XX em todos os continentes. Quero ainda lembrar que hoje mesmo há situações que configuram o crime de genocídio: pensemos na situação do sul do Sudão, sobre a qual pouco nos temos debruçado; pensemos em situações nos Balcãs e noutros continentes que, potencialmente, podem engendrar novos massacres étnicos que configurem o crime de genocídio.
Para concluir, direi que tudo isto está ligado a uma outra das infelizes características do nosso século: a anarquia de valores e a ideologia positivista herdada do século XIX, que pensa que a lei nacional tudo pode regular, tudo pode fazer, sobrepondo-se aos princípios, aos valores éticos e à própria Humanidade no seu conjunto.
Penso que qualquer lei que permita o genocídio é moralmente iníqua, é um crime contra a Humanidade e não pode nem deve ser respeitada, pelo contrário, deve ser violada e combatida.

Vozes do PSD: - Muito bem!

O Orador: - Outra questão, que não tenho tempo para tratar com o desenvolvimento que merecia é a do chamado direito de ingerência. Têm ou não os outros povos o direito, que eu não aceito, ou antes o dever de ingerência, de intervir para salvar povos massacrados, ameaçados de extinção? A minha resposta é afirmativa - aliás, há alguns textos do Direito internacional que apontam nesse sentido - e julgo que há mecanismos, nomeadamente ao nível das competências do Conselho de Segurança das Nações Unidas e mesmo ao nível regional que apontam no mesmo sentido.
Penso, portanto, que o dever de ingerência para salvaguardar a Humanidade é um dever de todos.
Em qualquer caso, julgo que esta matéria mereceria um debate mais alargado.
Os genocídios acontecem devido à inexistência, no nosso século, de uma hierarquia de valores. Na verdade, os valores, sem hierarquia, anulam-se uns aos outros. O direito à vida e à integridade física, mental, espiritual e cultural da pessoa e dos povos é um valor supremo, anterior a todos os outros, embora esteja a eles ligados. Assim, afirmo aqui que este valor está muito acima da justiça, da liberdade de expressão, de manifestação, de associação e dos valores fundamentais tidos como os valores clássicos do século XIX. Todos eles são importantes mas são instrumentais, porque devem servir este valor supremo: a vida, a dignidade, o bem da pessoa e dos povos.
Nesta matéria, nunca são possíveis dois pesos e duas medidas. A Humanidade é indivisível: cada povo faz parte da mesma família humana e quero que fique bem claro que todos somos responsáveis por ela.
Nós, adoptando agora, embora tardiamente, esta Convenção, assumimos, mais uma vez, a nossa quota-parte de responsabilidade pelo direito à vida, à liberdade e bem-estar de todos os povos.
(O Orador reviu.)

Aplausos do PSD. do CDS-PP e de alguns Deputados do PS.

O Sr. Presidente (João Amara]): - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado António Filipe.

O Sr. António Filipe (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Cingir-me-ei ao que está verdadeiramente em causa com a aprovação para ratificação desta Convenção, sem deixar de reconhecer que o Sr. Deputado Pedro Roseta referiu temas cuja discussão é, sem dúvida alguma, aliciante, como sejam a última questão que colocou relativamente ao direito de ingerência, que. infelizmente, tem sido invocado não com propósitos tão nobres como o Sr. Deputado aqui referiu.
Mas essa era outra discussão, sem dúvida interessante e controversa, pelo que cingir-me-ei à ratificação desta Convenção internacional sobre o crime de genocídio.
Apetece-me dizer, ao verificar que esta Convenção foi adoptada pela Organização das Nações Unidas em 1948, que esta aprovação, para ratificação, pelo Estado português não deixa de ser uma forma simpática de comemorar as bodas de ouro dessa aprovação. De facto, é este o único aspecto verdadeiramente intrigante neste debate e neste processo: o carácter tão tardio desta aprovação.
Poderá ter havido razões para isso que não foram aqui explicitadas, para além de algumas confissões de culpa, mas, de facto, não se vislumbra razão para ter sido neces

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