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28 DE OUTUBRO DE 1999

gistos fonográficos. Ficam os filmes, a restituir-nos a sua imagem simultaneamente doce e forte. O ser humano, o magnífico ser humano de grande coração, onde couberam a solidariedade mais exemplar, a sensibilidade mais comovida, a arte mais sublime e a mais intocada genuinidade, esse, perdemo-lo para sempre. Perdemos "a última musa do País das lágrimas", como lhe chamou Eduardo Lourenço.
Portugueses de todas as origens, a quem ela deleitou e comoveu, choraram a sua última viagem a caminho da memória. É hoje uma recordação do Portugal que havia nela.
O poeta Manuel Alegre disse que, com Amália, morreu um pouco da alma portuguesa, a tal ponto uma porção da nossa identidade colectiva se tinha impregnado dela.
De vez em quando, a floresta produz uma árvore distinta. Não necessariamente mais alta, mas outra. Amália nasceu fadada para ser diferente. De modesta vendedeira de laranjas, subiu por mérito próprio não só ao "Olimpo" das casas de espectáculo mas à consagração universal como cantora, intérprete e até criadora das suas próprias canções. Introduziu no velho fado português, marcado pela melancolia da história trágico-marítima, poemas dos mais representativos poetas portugueses, assumindo, inclusive, o "escândalo" (à época) de cantar Camões.
De promissora cantadeira do Velho "Café Luso" supersticiosa e tímida alcandorou-se ao mais alto nível da interpretação de fados e canções, nacionais e estrangeiros, em português e outras línguas que o seu excepcional ouvido musical lhe permitiu aprender e pronunciar com impecável rigor.
Transformou-se assim num ex-libris humano da identidade portuguesa, respeitada e admirada nas sete partidas, por gente simples e senhores do Mundo. Ela foi, durante décadas, a mais talentosa embaixadora do nosso país no exterior, a tal ponto que, para os estrangeiros que nos conheciam mal, proferir o seu nome converteu-se numa outra forma de dizer Portugal.
Se permanecesse entre nós, seria a primeira a desejar que secassem as lágrimas de todos os olhos. Recordemo-la, pois, de olhos enxutos e coração inundado de orgulho por termos tido uma tão distinta compatriota, e termos agora o registo do seu talento, a memória da sua generosidade, e o estímulo do seu exemplo.
A Assembleia da República, na sua primeira reunião após a sua morte, aprovou por unanimidade um comovido voto de pesar; guardou um respeitoso minuto de silêncio; e encarregou o seu Presidente de endereçar à família enlutada respeitosas e sentidas condolências.
Tem a palavra, para uma intervenção, o Sr. Deputado Manuel Alegre.

O Sr. Manuel Alegre (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Conta Rafael Alberti que Manuel Torres, o grande cantador de flamenco que não sabia ler nem escrever, lhe disse um dia, a Lorca e a outros poetas: "No cantagondo o que há que procurar sempre, até o encontrar, é o tronco negro do faraó".Talvez seja daí que venha a voz de Amália, do tronco negro do faraó, dos olhos sem olhos das esfinges, do centro da terra ou da primeira nau que partiu e não voltou.
Ou talvez, já que nasceu na Beira Baixa, daquela linha matemática de que falava o Padre António Vieira e que é a linha da raia por onde passam os contrabandistas, aqueles que vão morrer, como no poema de Pedro Homem de Mello musicado por Alain Oulman, na própria pátria do crime.
Mas ainda que nascida aí, nessa terra de ninguém que em provençal se chama Talvera, a voz de Amália sabe a mar e a ocidente, é a expressão mais pura e genuína daquilo a que Jaime Cortesão chamava a nossa atlanticidade.
Podia cantar flamenco ou tango, espirituais negros ou jazz, podia entoar uma fuga de Bach, trautear as incomparáveis harmonias de Mozart. Mas canta isso tudo e um pouco mais: canta o fado no sentido em que dele fala Camões. Quando ela diz fado está a dizer o nosso próprio nome e pronuncia essa palavra com a mesma entoação e o mesmo sentido que, provavelmente, Camões lhe dava.
Suspeito mesmo que foi para ela que Camões escreveu alguns dos poemas que Alain Oulman transformou em fado. Para quem, senão para Amália cantar, poderia ter escrito "Erros meus má fortuna amor ardente"? E o que é o fado senão isso mesmo? Esse excesso de erros nossos e má fortuna que para nossa perdição tantas vezes se conjuraram.
Camões escreveu para ela, e Bernardim também, porque ela canta sempre, entre cuidado e cuidado, para nos repetir, caso nos não lembremos, que uma paixão não repousa em outra paixão maior.
E aposto que mesmo Alexandre O'Neill, no fundo, sabia que a "sua gaivota" só podia ser a de Amália, por ser não só uma gaivota do Tejo mas, sobretudo, a metáfora da nossa própria alma - é por isso que ela voa daquela maneira na voz de Amália. A alma Amália Rodrigues, antes e depois de Alain Oulman, antes e depois do seu encontro com os poetas, ou, mais exactamente, com o seu poeta, Luís de Camões, quando cantou (com que voz!), encontrou-se a si mesma, porque encontrou finalmente aquela outra voz de que fala Octavio Paz - a voz da poesia.
Ela é o povo que lava no rio, como, melhor do que ninguém, sabia Pedro Homem de Mello. Mas, na verdade, como revelou David Mourão Ferreira, o seu nome próprio é Maria, o seu apelido Lisboa. Quando ela canta, é sempre de conchas no vestido e algas na cabeleira. É a sua coroa de rainha, porque nós não temos outra. Temos Amália, a que consegue exprimir aquela parte de um povo que nunca ninguém tinha conseguido dizer assim.

O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Encarnação.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Cumpre-nos encontrar as palavras que não foram ditas - e tantas foram! - e, principalmente, o tom justo e certo de uma homenagem que se quer simples.
O povo que aqui nos trouxe foi o mesmo povo que a elegeu, a ela, Amália, num sufrágio diferente mas igualmente claro e indiscutível. O povo que aqui nos trouxe não perdoaria o esquecimento. É por isto que tudo quanto aqui