24 DE SETEMBRO DE 2011
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Apesar da advertência, é, porém, esse o caminho que os proponentes insistem em trilhar… a partir de um
resultado (a riqueza sem justificação), presume-se como criminosa uma conduta que, verdadeiramente, se
desconhece (leia-se, não se sabe qual foi a conduta; no máximo, saber-se-á (?) qual não foi).
Acresce que, de igual modo, não se percebe qual o bem jurídico pretensamente tutelado pela incriminação
do «enriquecimento ilícito». Aparentemente, os seus autores invocam para tal o princípio da «transparência».
Ora, como bem recorda o Parecer do Conselho Superior da Magistratura datado de 9 de Fevereiro de 2011
(onde alertou para a inconstitucionalidade do projecto do PCP então apreciado), «Apesar de se pretender
elevar a transparência a bem jurídico, esta não constitui um bem jurídico em si, mas um instrumento para a
realização de outros bens jurídicos.» Sustentando-se na transparência que, peregrinamente, pretendem erigir
à condição de bem jurídico, também por esta via, se demonstra a falta de consistência do projecto de lei.
Finalmente, como é ou, melhor dito, deveria ser consabido — e Castanheira Neves recorda-o em O
Princípio da Legalidade Criminal. O seu problema jurídico e o seu critério dogmático, in Estudos em
Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, I, Coimbra, 1984, pág. 334 — «[…] a norma deve ser formulada
de modo ao seu conteúdo se poder impor autónoma e suficientemente, permitindo um controlo objectivo na
sua aplicação individualizada e concreta», sendo que «Averiguar da existência de uma violação do princípio da
tipicidade, enquanto expressão do princípio constitucional da legalidade, equivale a apreciar da conformidade
da norma penal aplicada com o grau de determinação exigível para que ela possa cumprir a sua função
específica, a de orientar condutas humanas, prevenindo a lesão de relevantes bens jurídicos. Se a norma
incriminadora se revela incapaz de definir com suficiente clareza o que é ou não objecto de punição, torna-se
constitucionalmente ilegítima.»
Tendo presentes estes considerandos inultrapassáveis, não podemos deixar de concluir que a
indeterminação e vacuidade da redacção do tipo legal proposto viola claramente (também) o princípio
constitucional da determinabilidade/tipicidade/legalidade consagrado no artigo 29.º, n.º 1 da Constituição.
Os seus proponentes não podem ignorar que o tipo legal de crime de enriquecimento ilícito não tem
paralelo em nenhum outro país do nosso contexto civilizacional (leia-se, Europa Ocidental e América do
Norte).
As inconstitucionalidades manifestas de que enferma — e que supradenunciamos — terão como inevitável
consequência, caso venha a ser a final aprovado, como parece decorrer da maioria parlamentar donde
provém, uma ulterior declaração de inconstitucionalidade por parte dos tribunais, nomeadamente o Tribunal
Constitucional.
Defender a criminalização do enriquecimento injustificado não pode deixar de ser assim considerado um
exercício de demagogia que só pode ter por escopo fazer com que os seus proponentes surjam agora aos
olhos da communis opinio (que bem sabem ser desconhecedora dos fundamentos e tecnicidades do Direito
Penal), como os «verdadeiros» paladinos (contra os outros, os «falsos»; os que objectam contra esta
miraculosa solução) da luta contra a corrupção para depois, quando o enriquecimento ilícito for ulteriormente
julgado inconstitucional, virem então dizer que tudo fizeram para combater a corrupção mas que foram
travados pelos tribunais (não podendo ignorar que, aos olhos dessa mesma opinião pública, os tribunais
inevitavelmente surgirão como favorecendo os corruptos e a corrupção. Não poderia, pois, ser mais
censurável o dano).
Todas as razões supra-expendidas concorrem para um veemente repúdio da demagogia e populismo
ínsitos na proposta de criminalização do enriquecimento injustificado e, como tal, não poderíamos deixar de
votar contra esta proposta.
Queremos porém, a terminar, louvar-nos nas palavras do Prof. Doutor Faria Costa, e naquilo que ele
próprio teve a oportunidade de transmitir à Assembleia da República, aquando da audição do Conselho
Superior da Magistratura, que integra: «[…] no que toca ao enriquecimento ilícito, parece-me que as coisas
foram postas de uma forma tranchant, dizendo que o que está aqui em causa é a inversão do ónus da prova.
Tudo o resto são construções, mais ou menos elaboradas mas que, verdadeiramente, só vão corresponder
àquilo que o Nietzsche dizia, que era para pôr em descanso as nossas más consciências, e não servem para
absolutamente nada, enquanto não houver uma inversão do ónus da prova.
Todavia — e este é um ponto que foi consensual, em termos do Conselho —, é evidente que isso está
impedido, não só em termos constitucionais, como também — e houve vozes que se pronunciaram claramente