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I SÉRIE — NÚMERO 93

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Acresce que a referida incriminação não incide sequer sobre «condutas» (contrariamente ao que o

legislador afirma), ou atos, mas sim sobre estados de coisas ou situações de facto — especialmente no caso

da detenção ou posse de património. Assim, desligadas do apuramento de factos ou comportamentos que

tenham conduzido a esse estado de coisas, parece que tais incriminações possam justificar-se. O direito penal

só se legitima se punir sobre factos ou condutas imputáveis a uma pessoa, e não estados de coisas ou

situações, presumindo aquelas condutas ou comportamentos. Um direito penal que incrimine situações de

facto ou estados de coisas não é um direito penal do facto, e de duas, uma: ou presume o facto, ou prescinde

de todo do comportamento ou conduta a que tem necessariamente de ligar-se a censura jurídico-penal.

Logo por esta razão, tendo a entender que a incriminação do «enriquecimento injustificado», pelo projeto

de lei em causa, não superou também as objeções de incompatibilidade com a presunção de inocência,

constitucionalmente consagrada no artigo 32.º, n.º 2, e resultante já do princípio do Estado de direito: mais do

que apenas a culpa, ela parece presumir logo o próprio ato, conduta ou comportamento que pode ser objeto

de incriminação.

A falta de precisão da incriminação aprovada resulta, aliás, a meu ver, também da inclusão, como elemento

da situação ou estado (e não conduta) objeto de incriminação, da referência a um «património incompatível

com os seus rendimentos e bens declarados ou que devam ser declarados». O legislador não esclarece em

que se traduz tal «incompatibilidade», embora pareça que tem em vista uma «incompatibilidade» quantitativa,

e não apenas qualitativa (relativa à composição do património), como resulta dos n.os

4 e 5 do artigo 335.º-A.

Mas além de o conceito se afigurar sumamenteimpreciso, no n.º 4 do mesmo artigo prevê-se o que são, para

este efeito, «rendimentos e bens declarados, ou que devam ser declarados»: «todos os rendimentos brutos

constantes das declarações apresentadas para efeitos fiscais, ou que delas devessem constar, bem como os

rendimentos e bens objeto de quaisquer declarações ou comunicações exigidas por lei». Parece, assim, estar

em causa a falsidade da referida declaração — o que, porém, transporta a incriminação para a órbita de

crimes fiscais, ou de titulares de cargos políticos (por falsidade na sua declaração de património e

rendimentos), afastados, pois, dos «crimes contra a realização do Estado de direito» em que o legislador os

decidiu inserir.

Ora, na prática, com tal redação do crime em causa, perante determinada(s) declaração(ões) de

rendimentos (efetuadas por qualquer cidadão, por exemplo, para efeitos de imposto sobre o rendimento), a

incriminação poderá bastar-se com a demonstração pelo Ministério Público de que o arguido possui ou detém

um ativo patrimonial, ou realiza despesas (pois também estas são consideradas «património», pese embora a

manifesta incorreção de tal qualificação à luz da noção jurídica de património), incompatíveis pelo seu

montante com a(s) referida(s) declaração(ões) fiscais. Designadamente, não se prevê na lei aprovada, sequer,

a possibilidade de o acusado provar a origem lícita de tal «património», nem se impõe a quem acusa qualquer

referência a essa origem.

Tenho, pois, sérias dúvidas de que o tipo de crime consagrado no texto final aprovado, que assenta numa

mera desconformidade do ativo patrimonial ou de «despesas» com declarações de rendimentos, respeite

também o princípio da necessidade da lei penal, resultante do artigo 18.º da Constituição. Assim configurado o

tipo de crime, o bem jurídico que ele pretende proteger será também, pelo menos para a generalidade dos

cidadãos que podem ser objeto desta incriminação, um bem jurídico fiscal. Mas não parece que para tutelar

um tal bem jurídico seja necessária a previsão de um tipo de crime próprio, de «enriquecimento injustificado»,

e muito menos que esse crime (apesar de punido apenas com prisão até três anos) possa ser ainda

qualificado (como se faz no diploma em causa) como «crime contra a realização do Estado de direito». E, com

este recorte, também não parecem poder justificar-se a inclusão do «enriquecimento injustificado» no conjunto

de crimes que justificam medidas processuais penais excecionais, como «criminalidade altamente

organizada», permitindo ações encobertas, etc., como se faz no projeto aprovado.

No plano da política criminal, e mesmo da política legislativa em geral, entendo — como resulta do que já

se disse — que a incriminação agora aprovada é inconveniente, e que, mesmo para os titulares de cargos

políticos, pode até dificultar a defesa dos bens jurídicos em nome dos quais foi aprovada.

Aliás, como referi na declaração que entreguei com a votação do texto final resultante dos projetos de lei

n.os

4/XII, 11/XII e 72/XII, que criavam o tipo de crime de enriquecimento ilícito, na qual também suscitava

dúvidas de constitucionalidade sobre esses projetos de lei, que vieram a ser objeto de pronúncia no sentido da

inconstitucionalidade, de forma quase unânime, pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 179/2012, «a

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