30 DE MAIO DE 2018
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projetos) procurando uma intimidação «com um exercício de especulação alarmista»1, pelo que importa, desde
já e nesta sede, desmitificá-la.
Diga-se, por um lado, que, como ficou claro da análise geral dos projetos apresentados, o que estava em
causa era a possibilidade de proporcionar a quem assim o deseje (através da expressão de uma vontade livre,
voluntária, esclarecida e reiterada) uma morte suave a quem se encontre numa fase terminal da sua vida afetado
por uma doença incurável e especialmente penosa, o que nunca se pode confundir nem com as situações (com
um lastro histórico negro) em que há eutanásia, independentemente da vontade do doente, para garantir a
supressão de vidas humanas consideradas indignas de serem vividas em nome da pureza da raça (eutanásia
eugénica), nem com as situações em que há eutanásia, independentemente da vontade do doente, com base
numa visão utilitarista do homem que visa a eliminação daqueles que representem um encargo sem qualquer
contrapartida para a sociedade.
Os projetos de lei apresentados, como demonstrei anteriormente, visavam precisamente evitar estas
situações, sacralizando a vontade do doente só limitada por válvulas de segurança que visavam assegurar a
perfeição dessa vontade e a sua expressão em termos efetivamente livres, conscientes, aceitáveis e
equilibrados, e faziam-no de modo cauteloso que evitava a introdução de uma lógica de «indústria da morte»2
ou de comercialização da morte no nosso País, já que, conforme se sublinhou, a eutanásia involuntária era
totalmente excluída, exigindo-se um conjunto de condições bem delimitadas e rigorosas para que o pedido
pudesse ser feito e concretizado e que o doente tivesse nacionalidade portuguesa ou residência legal em
território português e impedindo-se (nos projetos de lei do PS e do BE) a possibilidade de intervenção na
concretização dos profissionais que possam retirar benefício direto ou indireto da morte do doente.
Assim, através da despenalização da eutanásia ou do suicídio medicamente assistido não se pretendia
incentivar ou recomendar estas práticas. De resto, nenhum clínico deve recomendar o que quer que seja a um
doente, devendo antes, sim, informá-lo sobre as várias possibilidades, os riscos associados a cada uma delas,
para que ele, sozinho, ou acompanhado pela família e amigos, tome a decisão que achar mais válida.
Por outro lado, diga-se que é absolutamente errado considerar que estes projetos pretendiam tornar lícitos a
eutanásia ou o suicídio medicamente assistido ou incentivá-los sem limites, tratava-se, sim, de despenalizar
estas práticas quando praticadas em certas circunstâncias muito específicas e bem delimitadas e reguladas por
lei, sendo que mesmo nessas situações bem delimitadas não deixaria de haver um ilícito e um crime, o que
sucedia era que esta não seria uma prática punível — sendo que nas demais situações em que se
extravasassem os termos bem delimitados e rígidos em que esta prática não seria punível o regime atualmente
em vigor ficaria intocado, já que nenhum dos partidos propunha a alteração os artigos 134.º, n.os 1 e 2, e 135.º,
n.º 1 e 2 do Código Penal).
A segunda das críticas surge da contraposição da prestação dos cuidados paliativos à eutanásia/suicídio
medicamente assistido, considerando-se que estamos perante duas realidades inconciliáveis — só se podendo
ser a favor de uma dessas realidades — e da afirmação de que, havendo cuidados paliativos e havendo
testamento vital, já não seria necessário consagrar a possibilidade legal da eutanásia e do suicídio assistido.
Esta crítica não se me apresenta como razoável porque não cabe ao legislador nem ao médico obrigar a que
os únicos caminhos possíveis sejam, alternativamente, o dos cuidados paliativos ou o do testamento vital, cabe,
antes, ao doente, saber os caminhos que tem no final da sua vida e poder escolher o mais válido, ainda que
consciente e informado pelo médico sobre as várias possibilidades e os riscos associados a cada uma. Estamos
no plano do respeito escrupuloso da vontade do doente.
Há quem argumente que o Estado no SNS deveria investir mais em cuidados paliativos. Há, de facto,
carências neste domínio, que são supridas no sector privado para quem tem rendimentos para a ele aceder.
Porém, o argumento da necessidade de melhor resposta pública no âmbito dos cuidados paliativos em nada
tem a ver com o debate sobre a eutanásia.
A terceira das críticas apresentadas prende-se com a ideia de que a eutanásia, embora sendo ilegal, já seria
atualmente praticada pelo que não seria necessário consagrar por via legal uma despenalização desta prática.
Há aqui um paralelismo com a interrupção voluntária da gravidez (IVG). As mulheres de classes médias e altos
1 Pedro Galvão, «Ética com Razões», Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2015, página 56. 2 A expressão em José de Oliveira Ascensão, «A Terminalidade da Vida» in «Estudos de Direito da Bioética», volume IV, Almedina, 2012, página 156 (ainda que não inserida na discussão destas iniciativas).