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26 DE MARÇO DE 2021

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Tais pareceres, emanados de entidades criadas com dignidade de lei, a funcionar junto da Assembleia da

República, compostas por personalidades a quem a mesma lei reconhece especiais qualificações e mérito «na

reflexão ética suscitada pelas ciências da vida», com a específica missão de «analisar os problemas éticos

suscitados pelos progressos científicos nos domínios da biologia, da medicina ou da saúde em geral e das

ciências da vida», foram manifestamente desconsiderados pelos Deputados que fizeram aprovar o texto final

submetido agora a votação.

Se os referidos pareceres não são nem poderiam ser vinculativos, isto é, não poderiam obstar ou substituir-

se à vontade do legislador, não é menos verdade que a previsão legal da sua existência (e finalidade) e a

autoridade dos seus signatários deveriam ser encarados como algo mais do que um mero pró-forma.

Ora, como bem observa o CNECV, «a decisão sobre a utilização de técnicas de PMA deve estar subordinada

ao primado do ser humano, princípio fundamental que rejeita a sua instrumentalização e consagra a dignidade

do ser humano e consequente proteção dos seus direitos, em qualquer circunstância, face às aplicações da

ciência e das tecnologias médicas».

Tal princípio não constitui mera abstração e impõe – ou deveria impor – especial atenção, nas diversas

declinações da sua concretização prática, «à condição do ser que irá nascer que, pela natureza e

vulnerabilidade, é quem é mais carecido de proteção».

É aqui que o CNECV faz questão de sublinhar – e nós acompanhamos tal sublinhado – que «do ponto de

vista ético, a mulher não é a exclusiva beneficiária, mas principalmente o/a filho/a que será gerado/a». O

interesse da criança que vai nascer deve ser valorizado acima de todos os interesses envolvidos, em

consonância, aliás, com todo o ordenamento legal português que subordina quaisquer interesses ao «princípio

do interesse superior da criança».

É aqui preocupante que o CNECV, cuja composição, repetimos, é a que acima recordamos, tenha concluído,

sem que isso tenha aparentemente impressionado os que viabilizaram o texto final, «parece ser de concluir, no

entanto, que a única justificação encontrada para a licitude da inseminação post mortem reside na tutela da

liberdade e autonomia da mulher que quer ser mãe e em quem irão ser aplicadas as técnicas de PMA. No fundo,

a intenção é a de levar até às últimas consequências a tutela da autonomia da mulher, que deve abranger,

inclusivamente, a admissibilidade da inseminação com sémen de pessoa falecida, para permitir a realização de

um projeto parental…»

O que o CNECV nos diz é assim que na ponderação que é feita entre os valores do «respeito pela vontade

da mulher» e o «respeito pelos direitos da criança que vai nascer», o projeto de lei secundariza este àquele.

E fá-lo – o projeto de lei – desconsiderando (ou dando por resolvidas questões complexas que estão longe

de o estar) a possível afetação da própria vontade da mulher pelo contexto do luto e, sobretudo, sem

conhecimento do «impacto da solução proposta no desenvolvimento psicológico na criança que vier a nascer

[…] e a noção de que foi concebida depois de o pai ter falecido.»

Esta circunstância, a da criança vir a ser (re)conhecida como «[criança] órfã de pai criada deliberadamente

nessa condição», nas palavras do Prof. Walter Osswald, cujos impactos são, como refere o CNECV,

desconhecidos, não legitima assim a equiparação que parece ser feita pelos proponentes e cujo argumento

principal parece fundar-se na pergunta: se uma mulher pode ter um filho sem paternidade estabelecida, porque

não pode ter um filho «póstumo»?”

A isso acresce, como o CNECV recorda, que, se se deixou de exigir a uma mulher um diagnóstico de

infertilidade e se permite a todas as mulheres o acesso às técnicas de PMA, tal não significa que não existam

vias diferentes de acesso «consoante esteja em causa um casal ou uma mulher só» e que as técnicas de PMA

«não constituem meios alternativos, mas subsidiários de procriação.»

Pretender assim que as técnicas de PMA constituam um meio alternativo para um casal que, para mais, já o

não é, pois deixou de existir por morte de um dos seus membros, não encontra arrimo ético.

Citando um outro parecer, subscrito por um ilustre professor catedrático aposentado da FCSH da UNL e ex-

membro do CNECV entre 1991 e 2015, «do ponto de vista ético, existe uma diferença entre um acontecimento

involuntário e um ato eticamente responsável. Quando o facto de não haver pai vivo depende de um

acontecimento não previsto, não se trata eticamente de uma situação comparável à decisão voluntária de fazer

nascer um bebé, à partida sem pai vivo. Noutros termos, na inseminação post mortem os interesses da gestante

passam à frente dos do nascituro».

Finalmente, embora in casu essa seja uma objeção meramente adjetiva face às demais, não poderíamos

deixar de manifestar aqui a nossa estranheza face à necessidade sentida pelo CNPMA de fazer recordar ao

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