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I SÉRIE — NÚMERO 42

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A emergência de uma soberania provinda da cidadania é obra, entre outros, do Sinédrio, que reúne a partir de 1818, no Porto. Um grupo de intelectuais e comerciantes chamou a si o ativismo revolucionário e foram eles que assumiram o poder, com o apoio do exército e de populares, com uma perspetiva de País. Foram eles que idealizaram a Revolução de 1820, depois das pesadas faturas das invasões napoleónicas e do protetorado inglês.

Tinham no próprio nome a mensagem do seu propósito. Sinédrio significa, pelo étimo grego, Assembleia, como esta em que estamos. E, por isso, há que prestar reconhecimento ao mais destacado deles todos, Manuel Fernandes Tomás. Foi o arquiteto do Vintismo e da Constituinte de 1821. Revelou-se na configuração da estrutura da Constituição e no seu catálogo de direitos individuais e gerais.

Mas relevo aqui o que é poucas vezes enaltecido: o facto de ter conseguido que a maioria da Constituinte votasse o alargamento do direito de voto aos homens empregados e não proprietários. Cito Manuel Fernandes Tomás: «O Congresso, privando os trabalhadores de votarem nas eleições, irá pôr a Nação Portuguesa em pior estado do que estava antes de se estabelecerem eleições diretas; por este modo, qualquer cidadão português não gozará do direito mais precioso que o homem pode ter na sociedade, que é o de poder escolher aquele que o há de representar. Se se admite ao rico votar, porque há de ser excluído o que não tem nada?»

Gomes Canotilho situa aqui a origem de uma lei eleitoral de janeiro de 1822, que consagraria um direito de sufrágio tendencialmente universal, apesar de ainda não incluir o sufrágio feminino. Na Carta de 1826, esse tipo de sufrágio universal será afastado em favor do voto censitário, mas o sufrágio universal, sem distinção social nem distinção de género, foi uma longa jornada que começou realmente em 1822.

Quando olhamos para a pintura deste Hemiciclo, de Veloso Salgado, é Manuel Fernandes Tomás que vemos no uso da palavra, mas reparamos também no eclesiástico que presidia aos trabalhos, o Bispo da Bahia. E aí estava a encruzilhada maior: que Brasil?

A Constituição destinava-se a ser a Lei Fundamental do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Essa projeção colonial ainda tinha guarida no Vintismo. O Rei João VI estava no Brasil e fora intimado a aceitar quer o regresso a Lisboa, quer o resultado da Constituinte, o que fez, embora com dissimuladas intenções.

Ainda antes da aceitação formal da Constituição por parte do monarca, a 1 de outubro, o Regente Pedro declarou a independência do Brasil. Era o fim do Reino Unido.

Os Braganças reagiam ao Vintismo não querendo a recolonização do Brasil (entretanto elevado a reino), nem que nele acabasse o poder da aristocracia agrária e da escravatura, o que era a opressão de classe. A independência do Brasil, sobre a qual também passam 200 anos, foi a rejeição do Vintismo.

É certo que a Constituição vintista não estava isenta de culpa; ela admitia implicitamente a existência de escravos nas colónias e do tráfico de escravos em que assentava o sistema económico brasileiro. Mas não é menos certo que a independência do Brasil, apesar de ter sido querida por muitos, inclusive pelos movimentos abolicionistas negros, manteve o poder dos escravocratas.

Esse sentido de independência incompleta seria, 60 anos mais tarde, traduzido por Joaquim Nabuco como «a vontade de unir em uma só legião os abolicionistas brasileiros para apressar, ainda que seja de uma hora, o dia em que vejamos a independência completada pela abolição e o Brasil elevado à dignidade de país livre, como o foi em 1822, à de nação soberana, perante a América e o mundo».

Voltando a Pedro, hoje tão celebrado, dissolveu pouco depois a Constituinte brasileira porque não lhe agradava o liberalismo radical que se perfilava nos representantes do povo brasileiro e outorgou uma Constituição ao Império Brasileiro.

Pedro I do Brasil quis repetir o mesmo processo em Portugal com a imposição da Carta Constitucional, rejeitando o acervo da Constituição de 1822, mas perdeu o poder para a restauração absolutista. Convém lembrar que pode sempre acontecer uma «Vilafrancada» para acabar com as democracias. Note-se, ultrapassando propaganda contrafeita e hoje muito em voga, que Pedro era hostil a quaisquer ideias de soberania popular, e podem crer que o era do coração.

A Constituição de 1838 já não foi outorgada pela Rainha Maria, mas aceite e respeitada pela dita. Pedro não teve outro remédio senão contemporizar com os liberais na guerra civil contra o absolutismo, ou não teria outro meio para ver a sua filha no trono. Contudo, isso significou que, no Portugal europeu, tinha terminado, finalmente, a monarquia de direito divino. Infelizmente, não no Brasil, onde o Império só cairá em 1889, meses depois da abolição da escravatura.