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Sábado, 22 de Fevereiro de 1997

II Série-A — Número 23

DIÁRIO

da Assembleia da República

VII LEGISLATURA

2.ª SESSÃO LEGISLATIVA (1996-1997)

SUPLEMENTO

SUMÁRIO

Projectos de lei (n.º 177/VII, 235/VII e 236/VII):

N* 177/V11 (Interrupção voluntária da gravidez):

Relatório e parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias................. 358-(2)

N.° 235/VII (Altera os prazos de exclusão da ilicitude nos casos de interrupção voluntária da gravidez):

Idem 358-(2)

N.º 236/VII (Interrupção voluntária da gravidez):

Idem 358-)2)

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PROJECTO DE LEI N.º 177/VII (INTERRUPÇÃO VOLUNTÁRIA DA GRAVIDEZ)

PROJECTO DE LEI N.º 235/VII

(ALTERA OS PRAZOS DE EXCLUSÃO DA ILICITUDE NOS CASOS DE INTERRUPÇÃO VOLUNTÁRIA DA GRAVIDEZ)

PROJECTO DE LEI N.9 236/VII (INTERRUPÇÃO VOLUNTÁRIA DA GRAVIDEZ)

Relatório e parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias

Por despacho de S. Ex."o Presidente da Assembleia da República, baixaram à 1." Comissão os seguintes projectos de lei sobre interrupção voluntária da gravidez: n.° 177/VII, do PCP; n.° 235/VTJ, subscrito pelo Deputado Manuel Stre-cht Monteiro; n.0236/VTJ, de que é primeiro subscritor o Deputado Sérgio Sousa Pinto.

Nos termos regimentais, os projectos de lei foram distribuídos com vista à elaboração de parecer.

Determinou-se concentrar num só relatório a apreciação das questões suscitadas pelas iniciativas apresentadas. Foi designado relator o Deputado José Magalhães.

No dia 19 de Fevereiro de 1997, a 1." Comissão discutiu e aprovou o seguinte relatório e parecer:

Relatório I — Introdução

1 — Cada mulher que, por vicissitudes da vida humana, seja algum dia levada a ter de ponderar a interrupção de uma gravidez é colocada, de forma inevitável, perante complexas e dramáticas interrogações.

A resposta final pode fundar-se em muitos e diferentes critérios, em função de convicções, valores éticos, crenças religiosas e distintas representações do mundo e da lei. Poucas serão especialistas em direito, em filosofia ou em ética das ciências da vida, mas a nenhuma é poupado o acto de decidir.

Só raramente a opção estará imune a pressões psicológicas, sociais, culturais e económicas. Demasiadas vezes, poderá faltar o acesso à melhor informação e o bom aconselhamento na hora em que seria necessário.

Tocando o que de mais profundo caracteriza a existência humana, uma tal ponderação, mesmo que por desventura se repita, nunca se torna mais simples ou mais fácil. É sempre uma dolorosa teia de Penélope, demasiado bem conhecida de milhões de mulheres que em todo o mundo e em todas as épocas experimentaram esse desfazer e refazer dos mais graves conflitos de valores e emoções humanamente possíveis, num «choque de absolutos», incessantemente renovado.

Cada decisão, duramente sujeita à ampulheta do tempo — e seguramente das mais difíceis para a mulher —, é in-delegável, pessoal. Tão concreta que não pode ser considerada em abstracto, nem estar tomada de antemão. Tão única que, uma vez assumida, vale para essa vez, não para todas as circunstâncias e tempos.

2 — Bem ao invés, o legisladpr de um Estado de direito democrático, quando tenha de decidir em consciência sobre o quadro jurídico aplicável à interrupção voluntária da gravidez, não carece de recomeçar sempre a partir do ponto zero a avaliação de todas as múltiplas questões que a problemática do aborto suscita desde os mais distantes tempos.

Antes pode e deve — retendo a memória do seu tempo e das suas anteriores decisões — avaliar rigorosamente a forma como as mesmas foram executadas ou rejeitadas e, se necessário e possível, tomar as adequadas medidas de correcção na sede própria.

Tratando-se de uma matéria que forçosamente divide

— e pode dividir muito — as sociedades e a opinião pública, afigura-se razoável e mesmo indispensável que nesse pro1 cesso de decisão sejam exploradas todas as formas de não criar fracturas aí onde as mesmas possam ser evitadas. E haverá, sobretudo, que evitar o cavar de trincheiras, a partir das quais a irredutibilidade e a intolerância se tornem semente de violência, como notoriamente ocorre nos EUA e em diversos países do nosso continente (cf., sobre a inquietante evolução deste fenómeno, Fiametta Venner, L'Opposition à l'Avortement — Du Lobby au Commando, Berg Internacional, Editeurs, 1995.

E há que buscar, o mais possível, denominadores comuns, solidariedades e esforços conjuntos, aí onde estes relevem para defesa de interesses sociais importantes, desde logo os suscitados pelos perigos que ameaçam a saúde das mulheres.

Quanto às questões que não dispensem o apuramento de uma maioria de decisão, importa que sejam cuidadosamente equacionadas, por forma a evitar esse mal maior que são os acesos debates jurídicos centrados sobre propostas inexistentes ou os violentos afrontamentos de valores e convicções

— que, enquanto tais, ninguém tem legitimidade cara pôr em questão — a propósito (ou a pretexto) de soluções legais que não suscitam relevante rejeição social.

3 — O presente relatório parte do princípio de que em pleno ano de 1997 não faz sentido — nem é, em rigor, possível — reeditar o tom e o conteúdo dos debates que Gon-duziram à aprovação, promulgação e publicação da Lei n.° 6/ 84, de 11 de Maio.

Não se trata só da natural e muito evidente diferença oe protagonistas e de contextos. A verdade é que hoje em dia:

Ninguém propõe a revogação do quadro legal gerado em 1984 e o regresso.ao proibicionismo típico do Código Penal de 1886;

Ninguém propõe a proscrição do planeamento familiar e da educação sexual e o regresso ao tempos distantes em que, num Portugal amordaçado, a lei proibia a divulgação de contraceptivos;

Ninguém sustenta a aplicação, em Portugal, de políticas de Estado coercivas tendentes a impor à mu/fier e aos casais seja a limitação seja o aumento do número de filhos (seriam, de resto, inteiramente inconstitucionais e contrárias aos compromissos internacionais assumidos pela República Portuguesa) — casos como o da índia revelam a ineficácia desse tipo de políticas. A experiência da ex-URSS veio comprovar igualmente os limites das políticas de Estado neste domínio sensível: a legalização operada em 1920, como resposta ao flagelo do aborto clandestino, foi limitaria em 1936, sob Estaline, numa óptica pró-natalista, sem alteração signiScativa das taxas de natalidade mas com elevação do número de mortes por aborto clandestino; em 1955 foi reintroduzida a possibilidade de aborto legal, mas tão-só por razões terapêuticas-, a, çaflir

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de 1968 foi de novo admitido o aborto a pedido da mulher, continuando, porém, a revelar-se um grave flagelo e a ser usado como método de regulação da fertilidade à falta de adequado planeamento familiar (Progress Postponed. Abortion in Europe in the )990s, International Planned Parenthood Federation, Europe Region, 1991, p.79); Não faz nenhum sentido reduzir o debate a um cruzar violento de acusações de «indiferença perante as questões fulcrais da vida» ou de «insensibilidade ao enorme sofrimento causado às mulheres portuguesas pela persistência do aborto clandestino», como se fosse possível ao legislador reconhecer a alguém um monopólio da sensibilidade, da verdade e da razão ou tornar-se ele próprio militante desse cruzar de cruzadas.

Aliás, adversários e opositores da ampliação do actual quadro legal podem encontrar-se, sem quebra de convicções recíprocas, no tocante a temas cruciais.

Estão neste caso as questões de prevenção do aborto e do seu não uso como meio contraceptivo, a definição de medidas tendentes ao cumprimento das disposições que protegem a maternidade livre, consciente e voluntária ou a adopção de soluções que ponham fim à penúria de indicadores sobre aspectos relevantes da situação nacional em matéria de saúde feminina. Essa penúria é grave e não apenas por diminuir os instrumentos de decisão a usar pelos órgãos de poder. Ela lesa também o direito à informação objectiva e verdadeira, essencial para mobilizar a opinião pública, incentivar a livre iniciativa e assegurar a participação esclarecida dos cidadãos na tomada de decisões públicas.

4 — Fundamental é que sejam exactamente delimitadas e discutidas, de forma pluralista e democrática, as questões que verdadeiramente carecem de ser decididas.

De facto, desde 1984, as soluções legais então aprovadas, em Portugal, viram alteradas as fronteiras da sua aceitação e rejeição social. Ampliou-se muito a primeira, mas diminuiu a segunda. Na óptica apontada, a seguinte declaração de Paulo Portas é perfeitamente paradigmática do referido «reajustamento de fronteiras» ocorrido entre 1984 e 1997:

Eu sou contrário à liberalização total do aborto, porque entendo que o princípio da protecção do direito à vida deve prevalecer sobre circunstâncias que sejam manifestamente menores face a esse princípio. Eu não gostaria de viver num Estado que dá como sinal à sociedade o seguinte: abortar é como trocar de camisa, é tão simples como ir ao supermercado fazer uma compra. Não! Há aqui uma questão de valores, profunda, onde é preciso equilibrar com humanidade o que está em causa. Não gostaria, portanto, de uma banalização do aborto. Sou favorável, em certo sentido, à actual lei. Por isso, considero este debate um debate errado. Ou seja, dito de forma clara que defendo a protecção do direito à vida, quero confessar que intimamente eu não sou capaz de condenar uma mulher que aborta porque escolhe, no caso de opção de vida da mãe e do feto. Reconheço a heroicidade das mães que morrem para salvar a vida de um filho, mas não acho que o Estado possa impor isso como comportamento geral. Segundo caso, a violação. Um filho . é um acto de amor. Não consigo condenar uma mulher que, além da violação, se faz um aborto nessas circunstâncias tenha ainda uma pena. E, em terceiro lugar, a malformação do feto.

Estes são os três casos — malformação do feto, violação, opção de vida entre a mãe e o feto — em que eu aceito uma não penalização.

Portanto, gostaria que este debate atingisse graus de humanidade importantes, que não fosse demagógico e que atingisse também elevados padrões éticos, científicos e de cidadania. Porque o que está aqui em causa é importante, é relevante, é uma ideia da sociedade que nós temos. [Telejornal da SIC, 3 de Fevereiro de 1997.]

Nos muitos anos já decorridos desde a entrada em vigor da reforma legislativa ocorreram tantas e tão fundas mudanças que o fim do século ocorreu antecipadamente. Para além das desejáveis e inevitáveis diferenças de opiniões, existe hoje uma cultura comum a diferentes correntes de pensamento em tomo de questões que outrora eram tabu e, só por si, ajudavam a definir com clareza as várias famílias políticas.

E assim que ninguém pensará hoje em memorizar ou valorizar o sofrimento humano em função da origem de classe da mulher que sofre ou da cor da sua pele, nem razoavelmente se fundará neste ponto o traçar das grandes fronteiras político-ideológicas do nosso tempo.

Faz, sem dúvida, parte da história aquele certeiro verso com que a Deputada Natália Correia assinalou o dobrar de paginada nossa vida legislativa em 1984. Ainda bem, porém, que não pode com justiça ser repetido no presente e tudo indica que no futuro do Parlamento Português.

II — Metodologia adoptada

1 — Nos termos regimentais, o relator procurou obter dados públicos sobre os aspectos em causa, tendo dirigido a diversas entidades pedidos tendentes a apurar a evolução dos principais indicadores em matéria de saúde materna, a situação do País em matéria de planeamento familiar, educação sexual e aborto.

2 — Por outro lado, em cooperação entre as Comissões de Saúde e da Paridade e a Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, foi. organizado um importante ciclo de audições públicas que permitiram uma espécie de «primeira leitura» das iniciativas pendentes e facultaram a transmissão à Assembleia da República de relevantes contribuições tanto para a presente fase de debate como para as subsequentes.

Nessas audições — as audições tiveram lugar nos dias 30 de Janeiro (Ordem dos Médicos, Ordem dos Advogados, Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, Di-recção-Geraí da Saúde), 3 de Fevereiro (alta-comissária para as Questões da Promoção da Igualdade e da Família, Associação Portuguesa de Diagnóstico Pré-Natal, Associação para o Planeamento da Família, Comissão para a Igualdade è para os Direitos das Mulheres, Conferência Episcopal Portuguesa, Associação de Juristas Católicos, Associação dos Médicos Católicos Portugueses, Prof. Daniel Serrão, Movimento Democrático das Mulheres, Comissão Nacional de Saúde da Mulher e da Criança; Movimento para a Defesa da Vida), 4 de Fevereiro (Departamento das Mulheres da CGTP/TN, Associação O Ninho) e 6 de Fevereiro (Prof. Agostinho Almeida Santos, da Faculdade de Medicina de Coimbra; Prof. Pereira Leite, da Faculdade de Medicina do Porto; Profs. Luís Graça e Miguel de Oliveira, da Faculdade de Medicina de Lisboa; Prof.* Purificação Tavares, directora do Centro de Genética da Clínica Professor Amândio Tavares)—, que foram integralmente registadas e devem ser publicadas e devidamente divulgadas, tomou-se patente que

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a poucos anos do terceiro milénio Portugal continua a não dispor de indicadores rigorosos sobre aspectos essenciais da saúde pública, nem de estudos de sociologia legal e de criminologia capazes de fornecerem à opinião pública e ao

legislador respostas suficientemente esclarecedoras sobre a realidade em tomo da qual se ponderam alterações de quadro jurídico.

3 — As perguntas apresentadas na primeira fase do processo preparatório e às feitas por Deputadas e Deputados participantes em audições respondeu a Administração Pública com zelo que se assinala, oferecendo o mérito dos dados que tem. Mas os dados que tem — como seguidamente se poderá avaliar, ao analisá-los — estão bem longe dos que devia ter.

O mesmo pode dizer-se de outras entidades consultadas, incluindo a Ordem dos Médicos, cuja contribuição primou pela extrema correcção institucional, sem, todavia, dispor de estudos sobre relevantes aspectos da realidade médica e sanitárias. Segundo o Sr. Bastonário, não há também teses de doutoramento e mestrado portuguesas na área da medicina que lancem luz sobre fenómenos sobre os quais foram feitas perguntas no decurso da audição parlamentar (incluindo o impacte do RU 486 e de outras novas técnicas abortivas).

Forçoso é concluir que o processo serviu para detectar graves lacunas, que urge superar.

Avultou também, no que ao Parlamento diz respeito, a inexistência de sistemas de informação que permitam o acompanhamento regular e sistemático do processo de cumprimento de leis aprovadas pela Assembleia da República.

Importará criá-los para os casos mais relevantes — como é certamente o vertente — e, do mesmo passo, instituir mecanismos eficazes de divulgação periódica dos resultados dessa avaliação.

4 — É devida uma palavra de agradecimento aos serviços de apoio parlamentar, cuja acção neste caso comprova, mais uma vez, o bem fundado da linha de reforço da qualidade do apoio encetada na última reforma parlamentar e a necessidade de a executar plenamente.

Agradece-se, em especial, à DILP e à Biblioteca a colaboração prestada, e às Dr.M Ana Vargas e Susana Amador o apoio sem o qual teria sido impossível completar o presente documento no prazo disponível.

Ill —1984-1997: balanço da aplicação do quadro legal 1 — Um balanço limitado e provisório

1.1 — Trts lala, nâo uma

Em 1984, a Assembleia da República não aprovou apenas uma lei sobre interrupção voluntária da gravidez: definiu um complexo de instrumentos legais tendentes a assegurar uma maternidade livre, consciente e voluntária.

Ao contrário de outros países, de que o exemplo mais flagrante é o dos EUA — onde a regulação da questão do aborto surgiu e se mantém dissociada de opções legais articuladas em matéria de política de família ou de protecção da maternidade —, em Portugal foi deliberadamente criado um edifício legislativo composto por três elementos, com múltiplas e desejáveis zonas de interpenetração.

A cuidadosa combinação desses três elementos teve em conta a experiência de outros países que alteraram os seus quadros legais nas décadas anteriores e foi programada para acarretar valor superior à mera soma das partes, consoante recomendam os melhores especialistas — Mary Ann Glen-don, Abortion and Divorce in Western Law, Harvard Uni-versity Press, Cambridge, Massachusetts-London, England, pp. 18 e segs.

No que especificamente diz. respeito aos pressupostos económicos, financeiros e de solidariedade social associados à protecção activa da maternidade, a legislação publicada desde então é abundante, complexa, elaborada em ciclos políticos distintos.

A mera enumeração dos diplomas permite medir o que falta fazer em matéria de apreciação do respectivo grau de cumprimento e (re)avaliação do seu alcance nos múltiplos sectores que abrange:

Decreto-Lei n.° 194/96, de 16 Outubro, que regulamentou a Lei n." 4/84, de 5 de Abril, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.° 17/95, de 9 de Junho, na parte em que a lei é aplicável aos trabalhadores da administração pública central, regional e local, institutos públicos, dos serviços públicos com autonomia administrativa e financeira e demais pessoas colectivas. Dispõe sobre a licença por maternidade, assim como sobre as faltas e licenças por paternidade,

' a licença para consultas, a dispensa para amamentação e licença para assistência a filhos menores doentes e deficientes. Insere ainda disposições sobre a concessão de horários de trabalho especiais, assim como dispensas parciais de trabalho;

Decreto-Lei n.° 333/95, de 23 de Dezembro, que altera o Decreto-Lei n.° 154/88, de 29 de Abril (regulamenta a protecção na maternidade, paternidade e adopção, no âmbito dos regimes de segurança social), na sequência do disposto na Directiva n.°92/85/CEE, do Conselho, de 19 de Outubro. Alarga, por essa razão, o esquema de prestações na maternidade, passando esta eventualidade a abranger também a protecção das trabalhadoras grávidas, puérperas e lactantes contra riscos específicos de exposição a agentes ou a certas condições de trabalho, através de um subsídio por riscos específicos e criando subsídios para assistência a deficientes doentes, descendentes do beneficiário. Flexibiliza, ainda, a concessão do subsídio para assistência na doença a . descendentes ou equiparados de idade inferior a JOanos;

Decreto-Lei n.° 332795, de 23 de Dezembro, que altera o Decreto-Lei n.° 136/85, de 3 de Maio (regu\ametv-ta a Lei n.°4/84, de 5 de Abril), dispondo sobre o regime de protecção das referidas eventualidades, no âmbito das relações de trabalho de direito privado;

Lei n.° 17/95, de 9 de Junho, que altera a Lei n.°4/84, de 5 de Abril, no que se refere às licenças por na-ternidade (que passa de 90 para 98 dias), paternidade, adopção, bem como a assistência e acompanhamento de deficientes. Altera igua\meme algumas disposições da referida lei no que respeita às condições especiais da prestação de trabalho, regime às. licenças, faltas e dispensas (contemplando as situações de despedimento de trabalhadoras por parte da entidade empregadora), bem como no que se refere aos subsídios de maternidade e paternidade. Previu a aprovação por parte do Governo, no prazo de 90 dias, da regulamentação necessária a execução das inovações aprovadas;

Decreto-Lei n.° 154/85, de 29 de Abril, sobre protecção na maternidade, paternidade e adopção (com rectificação publicada no Diário da República, 1.* série, n.° 145, suplemento) — alterada a redacção dos artigos 1.° a 3o, 7.°, 12.°, 14.° e 20° e aditados os artigos 12.°-A, 15.°-A e 22.°-A pelo Decreto-Lei n.° 333/95, de 23 de Dezembro;

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Decreto-Lei n.° 136/85, de 3 de Maio, que regulamenta a Lei n.°4/84, de 5 de Abril (protecção da maternidade e da paternidade), na parte em que é aplicável aos trabalhadores abrangidos pelo regime jurídico do contrato individual de trabalho, incluindo os trabalhadores agrícolas e do serviço doméstico, independentemente do desempenho de funções em regime de tempo completo ou parcial, por tempo indeterminado ou a prazo.

Sendo a matriz deste complexo legal anterior à adesão de Portugal à Comunidade Europeia, a apreciação a fazer tem de inserir-se no âmbito mais vasto da reflexão em curso sobre a reforma do Estado providência e não pode deixar de ter em conta os regulamentos e directivas aplicáveis, bem como as perspectivas em aberto no tocante à dimensão social da União Europeia, desde logo o papel que nela importa que seja reconhecido às mulheres.

1.2 — o balanço possível

Decorridos mais de 12 anos sobre o momento de mudança legal, desejável seria que o balanço da aplicação do quadro legal fosse feito em todas as suas componentes para permitir, designadamente, indagar os contornos do referido «efeito de conjunto» desejado pelo legislador, ainda não atingido.

Não é possível, contudo, realizar adequadamente tal objectivo nesta sede e no presente momento. Não porque os projectos em apreciação não o facultassem. De facto, todos pressupõem a manutenção da filosofia global de tratamento integrado das questões da maternidade livre, consciente e voluntária.

Mas se é impraticável — neste contexto e pelas razões já assinaladas — o apuramento satisfatório da realidade social em matéria de planeamento familiar, educação sexual e aborto, mais o seria o levantamento nesta sede de todas as questões suscitadas pela avaliação da aplicação da Lei n.°4/84, de 5 de Abril, e diplomas complementares.

Afigura-se, todavia, de registar a imprescindibilidade desse esforço, a realizar em cooperação institucional entre as comissões parlamentares competentes, o Governo e todas as organizações sociais interessadas.

Iniciativas nesse sentido serão tanto mais úteis quanto é público que estão em curso processos de reestruturação dos sistemas de segurança social e de saúde, no âmbito dos quais podem ser aventadas significativas alterações do quadro gizado em 1984. A mera enumeração de diplomas produzidos sobre a matéria permite medir a dimensão (e a enorme utilidade) da tarefa de avaliação a que se alude. Em 1995, a Assembleia da República modificou a lei, mas não desencadeou a avaliação global que se sugere.

Consideram-se, seguidamente, alguns dados solicitados e obtidos da forma já descrita — a oportuna transcrição do registo integra) das audições parlamentares realizadas em tomo dos projectos em apreciação facultará elementos complementares e, designadamente, permitirá documentar com rigor as diferentes «visões da época».

1.3 —Aspectos penais

1.3.1 —Tendo sido solicitada ao Ministério Público informação sobre o exercício da acção penal no tocante ao aborto praticado fora das condições previstas na lei, foram remetidos à Assembleia da República (através do ofício n.° 16 947, de 16 de Dezembro de 1996, no processo

n.° 1164/96-L." 115) dados segundo os quais «terão sido registados, nos últimos sete anos, nos serviços do Ministério Público, a níve) nacional, um total de 97 processos relativos à possível ocorrência de crimes de aborto», com a seguinte distribuição pelos quatro distritos judiciais:

Lisboa — 46; Porto — 34; Coimbra— 10; Évora — 7.

Aludindo a um pedido de informação desagregado e de uma série cronológica 1984-1996 solicitados pelo relator, refere o Sr. Procurador-Geral da República:

Esclareço V. Ex.° que com o carácter de urgência atribuído à resposta, não foi possível satisfazer integralmente a totalidade dos itens em que se desdobrava o pedido de informação e, nomeadamente, estabelecer um quadro credível da evolução cronológica do crime de aborto nos últimos anos. Os números relativos a Lisboa (comarca) referem-se aos últimos quatro anos.

Lisboa — 46; Porto —34; Coimbra—10; Évora — 7.

Pode, no entanto, adiantar-se que o número de casos de crime de aborto investigados pela Polícia Judiciária sofreu a seguinte evolução, nos últimos cinco anos:

1990 —

17;

1991 —

24;

1992 —

29;

1994 —

21;

1995 —

19;

1996 —

11.

Os 11 casos registados em 1996 ocorreram até 30 de Junho e representam um acréscimo de seis casos relativamente ao mesmo período do ano anterior.

Quanto à Guarda Nacional Republicana, os números disponíveis datam de 1993 e tiveram a seguinte evolução:

1993—4;

1994 — 4;

1995 — 12;

1996 — 3.

Os três casos registados em 1996 ocorreram até 30 de Junho e traduzem uma diminuição de três casos relativamente ao mesmo período do ano anterior.

1.3.2 — Não dispondo a Procuradoria-Geral da República de dados relativos à PSP, foram os mesmos solicitados ao MAL Nos anos indicados foram registados naquela força de segurança os seguintes casos (ofício n.°55, processo n.° 43/97, registo n.° 97/97, de 10 de Janeiro de 1997, do Gabinete do Ministro da Administração Interna, dirigido ao relator);

1994—12; . 1995 — 4; 1996—1 (até 30 de Novembro).

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1.3.3—Dá diligência realizada junto da Polícia Judiciária resultaram as seguintes informações (ofício n.° 001258 SEC/DG, de 27 de Dezembro de 1996):

Não há referência estatística relativamente à distribuição etária, constatando-se, sob reserva, uma maior incidência entre os 22 e 26 anos de idade.

De acordo com os conhecimentos adquiridos na investigação deste tipo de crime, constata-se grande diversidade neste fenómeno social. A maior parte destes crimes não é denunciada às autoridades e, consequentemente, poderemos estar perante um elevado número de «cifras negras».

Igualmente se esclarece que à investigação não se suscitam quaisquer obstáculos ou dificuldades interpretativas e práticas pela aplicação de disposições legais, visto ser esta questão da competência da autoridade judiciária.

No que concerne à competência da Polícia Judiciária, verificam-se dificuldades na recolha da prova face à falta de colaboração de quase todas os intervenientes.

1.3.4 — O Gabinete de Estudos e Planeamento do Ministério da Justiça remeteu à 1." Comissão os seguintes dados sobre os processos crime findos nos tribunais judiciais de 1." instância:

Processos crime na fase de julgamento findos nos tribunais judiciais de 1.* instância— Crimes contra a vida intra-uterina [processos e condenados, segundo as penas aplicadas (1985-1995)]

"VER DIÁRIO ORIGINAL"

Crimes de aborto registados pelas autoridades policiais (1993-1995)

"VER DIÁRIO ORIGINAL"

Em anexo foi enviada a seguinte relação dos inquéritos entrados na Polícia Judiciária no tocante à infracção aborto:

"VER DIÁRIO ORIGINAL"

1.3.5 — Não sendo possíveis, por definição, estatísticas rigorosas sobre uma realidade clandestina, os dados relativos ao funcionamento do sistema de justiça são — esses sim — mensuráveis com exactidão.

Os elementos em apreço são inequívocos quanto aos (muito baixos) níveis de aplicação efectiva do quadro penal.

Apesar da sua natureza fragmentária e dos desiguais critérios usados — em certos casos os dados sobre a actividade da mesma força de segurança variam consoante a fonte e a amostra é reveladora de conhecidas carências sistémicas, os dados confirmam o que revela a experiência comum.

Afigura-se igualmente patente que não existe reclamação social, nem institucional, junto das polícias e das magistraturas tendente a uma alteração do padrão de comportamento retratado.

Se a «mecânica» da parca eficácia dos sistemas de justiça não é difícil de explicar — cf. a síntese da Polícia Judiciária, no ofício citado — pouco é possível inferir a partir dela, salvo que continua a existir um Portugal desconhecido e silencioso onde, de forma desigual e diversa, subsiste o aborto clandestino.

Mas com que dimensão actual?

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E com que evolução desde as reformas legais de 1984? Retratar o País como se fosse idêntico ao que erá quando se aboliu o regime vindo do Código de 1852 (para, porventura, obter munições retóricas e despertar emoção) é um procedimento que, por um lado, desvaloriza demasiado o passo histórico dado na década de 80 e alargado em 1994--1995 e, por outro, não ajuda a perceber o que há de específico na situação actual. Tal retrato não foi, felizmente, trazido à Assembleia da República por qualquer dos partidos que nela têm assento

Mais concretamente: qual foi (e é) o impacte das regras inovadoras adaptadas a partir de 1985 em matéria de planeamento familiar?

Quais as implicações dos avanços entretanto ocorridos no campo das ciências médicas (v. g. expansão do diagnóstico pré-natal, novos produtos químicos como o RU 486 e o methotrexato)?

Que factores impedem realmente o eficaz funcionamento dos serviços de saúde públicos e privados? Que parte dessa ineficácia se deve à lei vigente e que parte se deve atribuir a elementos orgânicos, sociais e culturais susceptíveis de induzirem formas de bloqueamento de qualquer outro re-l§gime legal, qualquer que seja a respectiva letra? E, num plano diferente mas não menos essencial, qual deve ser, neste domínio, o papel da lei (a quem muito, mas certamente não tudo, pode ser pedido)? Como fazer uma lei que respeite, simultaneamente, as consciências diversas, todas as religiões ou nenhuma religião, todas as convicções, todos os possíveis direitos de interrupção da gravidez e todos os possíveis direitos de objecção? Onde agir «cirurgicamente» para lograr os objectivos desejados? Feitas em 1997, estas interrogações não encontram o legislador português posto perante uma página em branco (cf. n.° 1 deste relatório), mas é um facto que as páginas preenchidas não fornecem todas as respostas. Donde a importância de seriar exactamente as questões a decidir e as soluções a ponderar.

Qual a repercussão das muitas alterações de hábitos e atitudes culturais ocorridas ao longo de mais de uma década?

Como evoluiu neste ponto um país que, em pouco tempo, quebrou tabus de séculos e se habituou a ver discutidas à hora do jantar, no ecrã, quando não à volta da mesa, as mais melindrosas questões íntimas — essas mesmas cuja abordagem na simultânea presença de pais e filhos foi impensável para os portugueses de todas as anteriores gerações?

Quais as consequências da nova liberdade de circulação, que relativiza, mais facilmente do que no passado, as fronteiras da Europa (embora, manifestamente, as coloque mais próximas ou mais distantes em função de critérios económicos)?

Qual o impacte concreto da proliferação da sida, que veio colocar a mulher perante um novo tipo de dilema ético? Abortar para evitar um filho possivelmente condenado ou querer sobreviver através de um filho (fazendo-o, todavia, correr risco mortal de contaminação)?

Os trabalhos preparatórios não fornecem, evidentemente, respostas para todas estas perguntas, mas fazê-las gerou já esforços de pesquisa e começos de resposta que se espera possam contribuir utilmente para o debate.

2 — Um olhar sobre o sistema de saúde

2. í —A primeira interrogação deve, logicamente, incidir «tare o sistema de planeamento familiar e educação sexual para ponderar a sua eficácia.

A expansão dos serviços de planeamento familiar e a promoção pública do uso de contraceptivos têm, sem dúvida, permitido o aumento das situaçõesde gravidez desejada e planeada e a realização do aborto em menos casos do que os típicos de épocas históricas passadas. De facto, para muitas gerações de mulheres e por todo o mundo o aborto funcionou — e, infelizmente, funciona ainda — como método anticoncepcional (por vezes único).

Ao fim de mais de uma década de aplicação do quadro legal de 1984, a situação portuguesa pode ser sintetizada nos traços seguintes — ci. Avaliação das Actividades de Planeamento Familiar — Resultados da Colheita de Dados por Visitação Domiciliária, Direcção-Geral da Saúde, 1993. Nada indica alteração das tendências reveladas por este estudo, dirigido à população feminina com idade compreendida entre os 15 e os 49 anos, por visita domiciliária a uma amostra aleatória de 3194 mulheres em idade fértil em oito distritos (Beja, Braga, Bragança, Castelo Branco, Coimbra, Évora, Santarém e Viseu), mas afigura-se indispensável, porém, a sua actualização e a especial atenção às particularidades da situação das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto:

Crescimento do uso de métodos contraceptivos, acompanhada de expansão de métodos mais seguros — (Avaliação p.21): «Aumentou significativamente o número de mulheres sexualmente activas que responderam 'fazer qualquer coisa para evitar ter filhos' e cresceu também a utilização dos métodos mais eficazes em todos os grupos etários»;

A pílula é o método mais usado pelo conjunto das mulheres, atingindo valores superiores nos grupos etários mais jovens — o estudo referido revela ser. a pílula o método mais usado até aos 39 anos; a partir desta idade, o coito interrompido ocupa o primeiro lugar (p. 19). Já se referiram as graves consequências deste perfil de uso, numa óptica de defesa da mulher contra a sida;

O coito interrompido, que tecnicamente não pode considerar-se, sequer, meio de contracepção, embora em diminuição (cf. comparação entre 1993 e o período de 1986-1988: na faixa etária dos 35-44 anos era de 40 % nos anos 80, passando a cerca de 20 % no início da década de 90), continua a ser a segunda prática mais frequente, aumentando a sua frequência com a idade e podendo atingir valores superiores a 50 % das utilizadoras nas idades superiores aos 45 anos;

O DIU é mais usado no grupo etário dos 40-44 anos;

Os centros de saúde são usados por parte significativa das mulheres para controlo do método escolhido (sendo menor o número das que recorrem a médico privado ou a controlo por iniciativa própria);

O controlo por iniciativa própria é mais frequente à medida que aumenta a idade das mulheres;

A redução dos partos por grupos etários de maior risco e do número de partos por mulher apontam para o papel importante que o planeamento familiar tem desempenhado, mas o défice de contracepção continua a pesar nos indicadores de saúde materna — Maria da Purificação Araújo, Mortes Maternas em Portugal — J979/93, Direcção-Geral da Saúde, 1993, p.8;

O uso do preservativo é muito limitado, incluindo entre as faixas etárias mais jovens. Embora os preços se situem dentro da média europeia e os preservati-

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vos sejam objecto de controlo de qualidade pelo Laboratório Militar de Produtos Químicos e Farmacêuticos, nem está assegurado o fácil acesso, nem o sistema de distribuição pública é eficaz, nem uma rede de venda adequada. Num produto que propicia cerca de 800 % de lucro incorporado, a discussão de uma redução dessas margens é crucial. Relevante é, igualmente, o alargamento dos circuitos e formas de distribuição (aos quais falta hoje dimensão bastante e maior variedade da oferta). Sobre a matéria está em apreciação no Ministério da Saúde uma proposta da Comissão Nacional de Luta contra a Sida (CNLCS);

A educação sexual carece ainda de um impulso eficaz quer no sistema escolar quer junto de outros jovens (não escolarizados e em formação profissional) e da opinião pública. A CNLCS tem contribuído para um melhor conhecimento das opiniões, atitudes e comportamento sexual em Portugal. A análise de três sondagens realizadas entre Abril de 1993 e Novembro de 1994 revela uma. enorme frequência de comportamentos de risco. Segundo os indicadores relativos à última vez que os inquiridos tiveram relações sexuais, só 40 % dos homens e 29 % das mulheres responderam ter usado preservativo nessa circunstância. As relações ocorreram com parceiros diferentes do companheiro (a) habitual no caso de 19,5 % dos inquiridos e 3,3 % das mulheres, o que revela uma desigual repartição de riscos de contaminação e um perfil de risco muito acentuado nos homens — mais sexo ocasional, maior número de parceiras sexuais, sexo desprotegido em mais casos, mais casos de sexo no próprio dia do primeiro encontro com a parceira (Fausto Amaro, Os Portugueses e a Sida, CNLCS, Dezembro de 1994). Apesar dos esforços meritórios de entidades privadas e da criação de novas estruturas como a CNLCS, há um défice de acção, designadamente através de meios de grande impacte como a televisão. No entanto, a campanha «Europa contra a Sida» teve bom impacte, não suscitou conflitos sociais relevantes e terá agradado, sobretudo, à população jovem, embora só 25 % dos homens e 11 % das mulheres que responderam ao inquérito referido tenham dito que a campanha os levara a usar preservativos. Apesar de haver quatro canais de TV nacionais, onde o sexo tem, sem excepções, lugar destacado nas estratégias de disputa de audiências, faltam neles por completo espaços onde as questões de educação sexual sejam abordadas adequadamente. Embora certamente impulsionadoras da quebra de tabus, as populares telenovelas não podem realizar todos os objectivos...

Porém, ao contrário do que ocorria em 1984, existe hoje (embora seja insuficientemente divulgado) um quadro legal claramente favorável ao planeamento familiar e à educação sexual.

É, sobretudo, no plano administrativo e político que se jogam muitos dos impulsos decisivos: opções de carácter financeiro, medidas de (re)estruturação e direcção de serviços, definição de prioridades (v. g. intensa divulgação e distribuição pública de preservativos).

Os traços da situação portuguesa descrita — decorrentes de íntimas opções, hábitos arreigados e factores culturais profundos — não são magicamente alteráveis por via de lei desacompanhada de medidas como as atrás mencionadas e de um significativo reforço da própria iniciativa dos cidadãos.

Importa, todavia, ponderar se há soluções cuja adopção em sede legislativa — sem incorrer no vício de reeditar ou glosar comandos legais já existentes — possa ser vantajosa, face ao que se afigura ser a evolução registada e os riscos que ela comporta. E o que se fará em sede de apreciação concreta de soluções constantes de projectos de lei apresentados. Resta acrescentar que nada impede o legislador de velar pela execução das suas leis, divulgando-as mediáticamente, sem que, com desgaste da sua autoridade, tenha periodicamente de rescrevê-las e republicá-las no Diário da República. Se reduzido a esse «mérito», tal acto teria, de resto, modestas consequências, dada a diminuta tiragem e o fechamento do Diário da República à divulgação mediante novas tecnologias.

2.2 — A interrupção voluntária da gravidez em Portugal:

A — Apesar das diligências atempadamente feitas e dos esforços que a nível da Administração Pública foram desenvolvidos, não foi possível obter os dados que se afiguravam desejáveis, designadamente por forma a conhecer melhor as expressões do fenómeno a nível regional e em cada uma das faixas etárias.

Isso mesmo foi reconhecido pelo Governo perante a 1 .* Comissão:

Na sequência dos contactos estabelecidos entre V. Ex.a e a Direcção-Geral da Saúde, encarrega-me S. Ex.° a Ministra da Saúde de reiterar junto de V. Ex.° que, apesar de todos os esforços nesse sentido, não foi possível obter, do levantamento feito junto dos estabelecimentos hospitalares e maternidades, elementos possibilitando dados fiáveis e válidos sobre as questões por V. Ex." colocadas. [Ofício n.° 1331, àe Yi de Fevereiro de 1996, do Ministério da Saúde, recebido no dia 14 de Fevereiro, às 18 horas.]

Não deixaram, contudo, de ser feitos esforços para, a partir de bases de dados públicas existentes para outras finalidades, procurar lançar luz sobre os actos praticados nos serviços do Serviço Nacional de Saúde (SNS) em matéria de aborto.

É o que se explica em documento remetido à 1.* Comissão pela Sr." Ministra da Saúde:

Dadas estas circunstâncias, a Direcção-Geral da Saúde tentou, a partir dos grupos de diagnóstico homogéneos (GDH) e utilizando as bases de dados do Instituto de Gestão Informática e Financeira da Saúde, coligir, em 6 de Fevereiro de 1997, os dados abaixo indicados, que, como certamente poderá verificar, contêm algumas imprecisões na apologia adoptada e que, por esse facto, só podem ser utilizados sob reserva.

B — Os dados reflectem, obviamente, uma parte da realidade (a «visível») e, mesmo quanto a esta, te^uerem precisões — e dizem apenas respeito ao território nacional. São, porém, desagregados regionalmente, comprovam uma dimensão preocupante e podem funcionar como indiciários.

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Quanto ao ano de 1994 são os seguintes os dados sobre a distribuição dos episódios de internamento nos hospitais do SNS referentes a abortos, por distritos e regiões de saúde:

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A evolução é, em síntese, a seguinte, para o período de

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C — A análise destes indicadores comporta diversas reservas:

A classificação de cada acto para efeitos de inclusão numa das categorias está sempre sujeita a flutuações de critérios;

Há problemas insuperáveis de subnotificação, decorrente da reserva das interessadas e do entendimento corrente do sigilo profissional;

Não foram feitos ensaios com séries mais vastas e não foi feito cruzamento com outras fontes.

O grosso dos casos distribui-se, significativamente (mas não surpreendentemente), entre abortos «espontâneos» e «não especificados». Este fenómeno é ainda mais difícil de captar do que o relativo aos casos de morte materna. Mesmo nestes há subnotificação, tanto por incorrecta classificação das causas da morte como devido a incompleta informação prestada pelo médico que assina a certidão de óbito. «Alguns certificados de óbito de mulheres em idade reprodutiva que morreram em serviços de cuidados intensivos não mencionam a sua condição prévia de gravidez, parto ou aborto. Por vezes são razões de ordem social ou religiosa que levam a não mencionar um aborto como causa de morte.» (Maria da Purificação Araújo, Mortes Maternas em Portugal —1979/93, edição da Direcção-Geral da Saúde, 1995, p. 24). É escasso o número de actos classificados como «abortos ilegais», «abortos legais» ou «tentativas de aborto».

A distribuição registada inculca que os hospitais públicos continuam a funcionar como «local de acesso final» de actos praticados no seu exterior. O bastonário da Ordem dos Médicos assinalou, no decurso de audição parlamentar, que em situações de urgência e emergência médica é o SNS que está mais adequadamente apetrechado para as respostas adequadas.

É de notar ainda que:

Há um aumento do número de casos entre 1994 e 1995;

As distribuições regionais parecem indicar uma igualdade tendencial entre a situação no Sul e no Norte do País, faltando, porém, dados para reconstituir uma série estatística que permitisse avaliar a evolução desde a década de 80;

Para obter uma imagem mais rigorosa seria necessário que, quanto a cada uma das zonas, se dispusesse de dados sobre a natureza e o número de casos tratados no âmbito de clínicas privadas. De facto, só a sobreposição dos dois mapas permite perceber por que é que em certos casos (cf. Aveiro) é tão escasso o número de episódios de internamento nos hospitais do SNS;

As audições realizadas em sede de comissão parlamentar confirmaram a surpreendente realidade da «inexistência» de estabelecimentos de saúde privados licenciados para os efeitos dá Lei n.° 6/84.

Em contraste com o que ocorre na vizinha Espanha e em muitos outros países da União Europeia, em Portugal nenhum estabelecimento de saúde privado requereu habilitação para praticar actos de interrupção voluntária de gravidez. A possibilidade de aborto legal no sector privado admitida pela Lei n.°6/84 nunca se efectivou ao longo de mais de uma década. O facto foi assinalado no «Relatório sobre a situação da interrupção voluntária da gravidez», divulgado pela Associação para o Planeamento da Família, 1993, p. 26. Mas sem extrair consequências (v. g. quanto à qualidade e à evasão fiscal). O relatório propõe que se institua a obrigação de comunicar a realização de actos de IVG e a comparticipação pelo Estado dos abortos praticados, numa fórmula de medicina convencionada. Sucede, porém, que a obrigação de transparência já decorre da Lei n.° 6/84, que é manifestamente violada. Quanto à ideia de um trade off com o sector (cessação da violação da lei a troco de uma comparticipação do Estado), coloca melindrosos problemas, cuja apreciação não pode fazer-se em registo «técnico», uma vez que coloca o legislador perante sérias questões éticas e de autoridade do Estado.

É um ponto que merece consideração atenta.

D — Quanto aos serviços de saúde públicos, as audições realizadas corroboram a existência de numerosas disfunções:

Embora a lei tenha determinado inequivocamente que os serviços de saúde devem organizar-se «de forma adequada» para cumprir a lei, há grande disparidade de organização e significativa distinção de atitudes no tocante à interpretação do quadro legal — não foi sequer possível obter um mapa oficial e credível das unidades do sistema, descritas em função da frequência com que praticaram (ou não) actos de IVG. Trata-se, todavia, de dados objectivos e não pessoais, cuja revelação pública facultará uma «imagem de situação», sem a qual nenhuma coordenação é possível;

Há quem entenda que o legislador não fez ainda a definição do que seja um «estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido», nem se encontra clarificado para cada hospital o procedimento a seguir face a todos os casos de «abortamentos consentidos» que ali surjam — Comissão de Ética do Hospital de São João, parecer sobre IVG, Arquivos de Medicina, n.° 10 (supl. 3), 15-17, ISSN 0871--3413, 1996 (relator: Augusto Lopes Cardoso), p. 17. O caso em si mesmo, rigorosamente relatado, é um notável exemplo do incrível labirinto burocrático gerador de papel e, sobretudo, de longas horas de penoso sofrimento humano;

A malha de estruturas existente, pelo mero jogo «natural» da burocracia, responde mal a situações complexas de conflito entre o direito de objecção e o aborto legal, devolvendo de patamar em patamar o dirimir do conflito e gerando uma parecença em espiral — escreve Lopes Cardoso que «o sentido de responsabilidade médica, bem como dos princípios éticos que norteiam o seu exercício, não podem permitir que as assimetrias de natureza confessional, política, económica, social ou simplesmente razões burocráticas comprometam a liberdade individual ou

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colectiva, seja qual for o lado da fronteira em que cada um se situe» (op. cit., p. 17). Tal é precisamente o sentido da lei, mas não a prática em todos os casos;

Por défice de coordenação inter-hospitalar surgem situações em que se toma inexequível a prática atempada de actos de interrupção autorizados pela lei;

É insuficiente o aconselhamento propiciado pelo sistema;

A articulação entre os diversos níveis de cuidados de saúde é deficiente;

Os serviços não contribuem de forma bastante para colmatar o défice de informação pública sobre os exactos contornos da lei.

E — Os indicadores relativos a mortes maternas revelam «uma redução significativa do total do número de mortes [Purificação Araújo, Mortes Maternas em Portugal, 1979-1993, p. 6, em que diz que no período de 1979-1983 registaram-se 166 mortes; entre 1989 e 1993 houve 59. As três principais causas são: complicações de aborto, hemorragia e pré-èclampsia/eclampsia. No mesmo estudo refere--se que, «em particular, as complicações do aborto não têm tido a redução ambicionada, embora em números absolutos tenha havido uma diminuição de 38 casos, em 1979-1983, para 14, em 1989-1993» (p. 7), e isto é tanto mais grave quanto ocorre num contexto dé decréscimo da taxa de natalidade e de diminuição do número de partos (d. Mortalidade Infantil Perinatal e Materna, 1990-1994, Direcção-Geral da Saúde, 1996)] entre a década de 80 e a década de 90, mas também uma clara incapacidade de reduzir as sequelas e complicações do aborto na proporção que o legislador desejou e que decorre da lei.

A Comissão Nacional de Saúde da Mulher e da Criança sublinhou no decurso de audição parlamentar:

Estes números são para nós, profissionais de saúde, extremamente chocantes. Além de que estas mortes entram dentro da classificação das mortes evitáveis, classificação esta bastante desenvolvida pela Organização Mundial de Saúde ultimamente. Apesar de, recentemente, o número de mortes ter diminuído no seu conjunto, em 1994 ocorreram 10 mortes — 3 delas provocadas por aborto, o que significa que um terço dessas mortes teve como causa o aborto. E, embora ainda não o tenha dito, é óbvio que estou a referir-me ao aborto clandestino. Em nenhum país europeu — e eu tenho estado a trabalhar num estudo de mortalidade e de morbilidade materna a nível da União Europeia — o peso das complicações pelo aborto é semelhante ou aproximado do nosso. Por isso, embora as taxas de mortalidade materna tenham melhorado, continuamos a ocupar um lugar muito desfavorecido em relação aos outros países europeus, precisamente porque temos este peso em cima de nós — as complicações resultantes do aborto clandestino.

O problema é extraordinariamente mais grave no que diz respeito aos grupos de maior risco, os das adolescentes. Verificamos, por exemplo, a partir de estudos realizados a nível da Direcção-Geral da Saúde, nos quais me empenhei, que num período de cinco anos, entre 1979 e 1983, realizaram-se 38 abortos, 8 dos quais no grupo etário dos 15 aos 19 anos. Penso que isto não pode acontecer, isto é, que 8 jovens, entre os 15 e os 19 anos, morram por causa das complicações de um aborto!

Foram precisamente diagnósticos tão inquietantes como o agora citado que estiveram na base do movimento que conduziu à reforma de 1984.

Útil será sintetizar os objectivos que o legislador se propôs e a visão global que fundou a reforma para podermos suscitar interrogações sobre o que produziu resultados positivos e o que fracassou.

IV — Da L«i n.° 6/84 à reforma penal de 1994-1995

1 — O fim do sistema vindo do Código Penal de 1852

Em 1984, Portugal alterou um regime de incriminação plena do aborto que, em substância, atravessou intacto o estertor da monarquia, a I República, o hiato ditatorial e um decénio de regime democrático.

A norma incriminadora do Código Penal de 1852 transitou, com ligeira alteração de dosimetria, para o Código Penal que vigorou a partir de 1886 — numa linguagem reveladora, o preceito punia «aquele que, de propósito, fizer abortar uma mulher pejada, empregando para este fim violência ou bebidas, ou medicamentos ou qualquer outro meio».

Quase um século depois, a reforma penal de 1982 manteve os contornos do regime punitivo.

Não tiveram projecção legal os esforços doutrinais desenvolvidos desde os anos 60, no sentido de salvaguardar a licitude do aborto terapêutico, por forma a proteger a vida ou a integridade da mãe [Boaventura Sousa Santos, «L'interruption de la grossesse sur indication médicale en droit penal portugais», Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, 1967; Jorge Figueiredo Dias, «Lei criminal e controlo da criminalidade», Revista da Ordem dos Advogados, n.° 39, 1979; Manuel Costa Andrade, «O aborto como problema de política criminal», Revista da Ordem dos Advogados, n.°39, de 1979. No seu ensino na Faculdade de Direito de Lisboa, Fernanda Palma procurou estruturar a protecção da mulher a partir do conceito de estado de necessidade previsto na parte geral do Código. Em sentido distinto e rejeitando essa abordagem, Teresa Beleza pronunciou-se a favor da despenalização da interrupção voluntária de gravidez, «acompanhada de todo o necessário investimento político e financeiro» para propiciar a igualdade mulher-homem no controlo da capacidade reprodutiva (Mulheres, Direito e Crime ou a Perplexidade de Cassandra, tese de doutoramento, Lisboa, FDL, 1990, p. 493)], apesar do significativo debate público já então encetado sobre as implicações da situação existente e os tabus que sobre ela pesavam.

O debate foi desencadeado na sequência da apresentação pelo PCP de três projectos de lei: n.re 307/TJ (Protecção e defesa da maternidade), 308/TJ (Garantia do direito ao planeamento familiar e educação sexual) e 309/n (Interrupção voluntária da gravidez) — Diário da Assembleia da República, n.°50, de 6 de Fevereiro de 1982. Inovador em relação a anteriores delimitações do problema, foi o tratamento conjunto e integrado das três matérias e o esforço para centrar o debate em tomo da maternidade livre consciente e voluntária (sendo o aborto visto sempre como um último recurso e não como direito absoluto ou substituto da contracepção). Recusou-se a hipervalorização do papel da tutela penal, com um argumento mais tarde melhor desenvolvido pelo conselheiro José Magalhães Godinho: «sob um ponto de vista jurídico-constitucional, a tutela penal há-de ser a última ratio das medidas culturais, económicas, sociais, sanitárias, e não um sucedâneo para a falta delas» (Acórdão do Tribunal Constitucional n.°91/85, de 19 de Junho). Donde a prioridade dada a medidas de carácter social e mesmo cultura] (v. g. valorização da intervenção e dos deveres do pai), com preocupação de abrangência.

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Mais tarde, o PSD apresentou também um projecto (o projecto de lei n.° 374/11) sobre direito ao planeamento familiar. Entre 9 e 11 de Novembro de 1982 {Diário da Assembleia da República, 1." série, n.™ 10 a 12) foram discutidos os diplomas, tendo sido aprovados na generalidade e descendo à Comissão de Saúde, Segurança Social e Família somente os projectos n.05 307/11 e 374/0, sobre defesa da maternidade e planeamento familiar, respectivamente. O projecto de lei n.° 308/TI foi rejeitado. Rejeitado também foi o projecto de lei n.° 309/n, sobre interrupção voluntária da gravidez, depois de discutido na sessão parlamentar de 11 de Novembro.

Aquando da apresentação e discussão da proposta de autorização legislativa relativa ao novo Código Penal, diversas intervenções tiveram lugar sobre o crime de aborto nele previsto (Diário, 1.a série, n.re 114, 121 e 122, de 7, 17 e 20 de Julho de 1982). Sem eco, porém, dado o ciclo político em curso.

Na sessão legislativa subsequente, o processo legislativo foi reaberto, mas num quadro político distinto: renovação das iniciativas do PCP (Diário, 2.a série, n.° 1, de 1 de Julho de 1983) e, do lado do Partido Socialista, claro empenhamento político na aprovação da. sua solução própria nos domínios em causa (projecto de lei n.° 265/UI, Diário, 2." série, n.° 73, dé 14 de Janeiro de 1984).

A discussão em Plenário (Diário, n.06 67 e 68, de 26 e 27 de Janeiro de 1984) conduziu à aprovação, na generalidade, do projecto de lei n.° 256/m e de mais dois projectos do PS e do PSD sobre educação sexual e planeamento familiar e protecção da maternidade e paternidade (projectos de lei n.<* 267/ni e 272/m, respectivamente), com rejeição dos projectos n.08 5/UI, 6/JJI e 7/TU, que o PCP apresentara também sobre as matérias referidas em último lugar.

A matéria relativa à interrupção voluntária da gravidez foi discutida, na especialidade, pela Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias e foi aí aprovada com alterações. O debate, de grande extensão e qualidade, mas pouco conhecido, foi registado integralmente. Está publicado no Diário da Assembleia da República, 2.a série ( n.05 81,82, 83, suplemento, 84, suplemento, 85 e 86, de 2 a 8 de Fevereiro de 1984).

O debate fornece preciosos elementos para a interpretação da lei, tanto pelo que foi aprovado como pelas soluções limitativas e penalizações que foram rejeitadas. A título de exemplo, a lei:

Consagra a irrelevância penal dos actos impeditivos da gravidez depois da fecundação mas antes da nidação, bem como a irrelevância dos actos abortivos em . caso de gravidez condenada (v. g. ectópica, extra--uterina ou cancro no útero) ou de feto inviável, sem prazo;

Não definiu, premeditadamente, o sistema de contagem dos prazos da gravidez, remetendo para as leges artis da medicina essa tarefa;

Consagrou em termos latos o aborto ao abrigo da indicação psíquica;

Não criminaliza os actos respeitantes a fetos inviáveis, nem lhes fixa prazos, por, por definição, não poderem tê-los;

Não penaliza — deixando ao critério do médico— os actos que em qualquer estádio da gravidez sejam o único meio de salvar a vida da mãe (o que posiciona claramente o legislador português perante a problemática, hoje muito discutida em outros países, em torno da late term abortion ou pardal birth).

Por outro lado, foram rejeitadas, entre outras alterações propostas, soluções legais tendentes a.

Limitar o aborto terapêutico;

Aditar exigências de reconhecimento notarial para validade do consentimento da mulher;

Circunscrever os actos de IVG a médicos especialmente credenciados;

Permitir a quebra do sigilo profissional para apurar o cumprimento pelos médicos dos limites legais;

Tomar mais difícil o regime de prova participação criminal como requisito para aborto por violação. Na sequência desta rejeição o CDS viria a abandonar os trabalhos da Comissão (suplemento ao Diário da Assembleia da República, Ia série, n.° 83).

O diploma obteve aprovação final global (Diário, 1 .* série, n.°75, de 15 de Fevereiro de 1984) por maioria simples. O mesmo se diga dos projectos relativos à educação sexual e planeamento familiar e à defesa da maternidade e da paternidade, também objecto de aprovação final global na mesma sessão, depois de prévia discussão e votação na especialidade na respectiva comissão parlamentar.

Sujeito a fiscalização preventiva, o diploma não foi declarado inconstitucional pelo Tribunal Constitucional — Acórdão do Tribunal Constitucional n.° 25/84, de 19 de Março — e veio a ser promulgado e publicado como lei. Posteriormente, o Provedor de Justiça requereu a fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade dos artigos 140." e 141.° do Código Penal, na redacção que lhes foi dada pelo artigo 1.° da Lei n.° 6/84, de 11 de Maio, bem como dos artigos 2.° e 3.° dessa mesma lei, que excluem a ilicitude em certos casos de interrupção voluntária da gravidez.

O Tribunal Constitucional, mais uma vez, não se pronunciou pela inconstitucionalidade dessas normas — cf. Maria da Conceição Ferreira da Cunha, Constituição e Crime, UCP ed., Porto, 1995, p.391.

As soluções aprovadas serão ainda examinadas — não apenas por razões de brevidade mas de perspectiva, claramente enunciadas na parte i deste relatório. De facto, em 1984, o quadro constitucional não fora «testado» e tratava--se de fazer ex novo um regime que rompia com a solução tradicional. Agora é conhecida a jurisprudência constitucional. As alterações propostas não viram impugnada a sua admissão com fundamento em inconstitucionalidade — quando se apreciarem as alterações agora aventadas pelos proponentes.

2 — Reforma penal de 1994: a discreta ampliação da lei do aborto

2.1 — A questão da interrupção voluntária da gravidez não esteve no centro do processo de debate da reforma penal de 1994 nem foi objecto de relevante discussão pública, quer suscitada por partidos políticos quer por qualquer das entidades que sobre a matéria foram chamadas a tomar posição durante o processo legislativo.

Não esteve, porém, dele ausente.

O quadro legal respeitante ao aborto foi significativamente flexibilizado em diversos pontos, de forma tão discreta que não ocasionou controvérsia, pór défice de visibilidade, nem parece ter tido impacte social relevante, pela mesma exacta razão.

Não deixa, porém, de suscitar alguma perplexidade o facto de as alterações legais geradas nesse contexto serem praticamente desconhecidas, tendo merecido escassa atenção a nível científico e nenhuma em termos de apreciação pública

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corrente. É mesmo regra comum a alusão ao quadro legal formado em 1984 como se o mesmo vigorasse hoje ainda «intacto». Não é assim, contudo.

2.2— A «perplexidade renovada de Cassandra» ou «o estranho caso da revisão invisível», Teresa Beleza:

A — Um processo legislativo singular. — Situar-se-ia fora do escopo do presente relatório apreciar o fenómeno descri-•to numa óptica de sociologia política, mas importa reconstituir sumariamente a cadeia de factos que conduziram ao referido efeito de invisibilização social e política para procurar caracterizar depois com rigor as mudanças operadas.

O primeiro facto relevante a assinalar decorre da já mencionada opção política deliberada por uma inclusão da temática do aborto no contexto de dezenas de alterações da lei penal (diluição pela vastidão do enquadramento), sob o lema da «inalteração no essencial» (diminuição da relevância).

Escrevendo sobre as opções mais significativas assumidas pela comissão revisora, Figueiredo Dias sintetizou assim essa postura:

Entendeu a comissão deixar inalterado, no essencial, o estado do direito vigente em matéria de interrupção voluntária da gravidez. A razão terá estado em que sobre essa questão havia recaído ainda não há muito tempo uma decisão político-legislad va do Parlamento; e, depois, valha a verdade dizer, o sistema existente de estritas indicações médica, ética e eugéni-ca não parece ter funcionado mal, nem dado origem a grande criticismo na opinião pública como leiga. [Jorge Figueiredo Dias, «O Código Penal Português de 1982 e a sua reforma», Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 3, n." 2.° a 4.°, Abril a Dezembro de 1993, p. 193.]

A asserção é desacompanhada de qualquer suporte estatístico ou sociológico quanto ao funcionamento do sistema, mas contribuiu certamente para. a formação da «representação social» que deste foi divulgada.

O segundo factor explicativo resulta, porventura, em alguma medida, de o Parlamento não ter sido chamado a redigir uma lei material, mas, sim, uma autorização legislativa, ainda que especificada nos termos constitucionais.

Contudo, o mais importante efeito de limitação do debate adveio das atitudes conjugadas do Governo e dos Deputados no tratamento da matéria (diluição por fixação de debate no secundário). De facto, na ínfima parte em que incidiu sobre a interrupção voluntária da gravidez, a apreciação parlamentar e pública foi dominada pela questão do não acolhimento pelo Governo e pela maioria da proposta da comissão de revisão do Código Penal no sentido de alargar de 16 para 22 semanas o prazo legal para o aborto eu-génico.

No debate em Plenário, o Ministro da Justiça foi interrogado fundamentalmente sobre esse ponto, nos seguintes termos:

Sobre a interrupção voluntária da gravidez, sabe-se que, apesar da Lei n.° 6/84 — a do actual Código Penal —, o número legal de abortos ocupa uma parte não significativa dos abortos provocados em Portugal. Por várias razões, entre elas, porque as mulheres continuam a confrontar-se com falta de informação, falta de organização dos serviços, falta de comparticipação convencionada, incapacidade de resposta dos serviços quando surgem situações de objecção de consciência, falta de cobertura legal para situações de necessidade de IVG contempladas na maior parte dos países da Comunidade Europeia. Perante as alterações propos-

tas, faço a seguinte pergunta, Sr. Ministro: onde andou o Governo nestes últimos 10 anos? Não se apercebeu da realidade social? Não ligou aos estudos efectuados, nomeadamente os coordenados pela Associação de Planeamento Familiar? A proposta de alteração do Código Penal nesta matéria surge como se não tivesse havido 10 anos de experiência, de estudos, de propostas, bem como de sofrimento e de riscos escusados para muitas mulheres.

Assim sendo, pergunto-lhe ainda: se a maioria das malformações do feto só se pode detectar, segundo estudos efectuados, em exames posteriores às 16 semanas, por que permanecem estas como limite para o IVG? Se as causas económico-psicossociais são responsáveis por um grande número de IVG, por que não são tidas em conta? Por que não se alarga para 22 semanas o prazo de IVG por violação, atendendo à morosidade característica desta situação? Já agora, está o Sr. Ministro atento ao que se passou recentemente na Espanha dos Reis Católicos, em que a IVG nas primeiras 12 semanas passará a depender da decisão soberana da grávida? Porquê, contrariando o sentido das suas palavras introdutórias, Sr. Ministro, se continua a impor a condenação ao ilícito a quem apenas precisa de medidas e de legislação à altura dos tempos que vivemos, à altura da própria Comunidade Europeia? [Deputado Mário Tomé, Diário da Assembleia da República, 1° série, n.°85, de 30 de Junho de 1994, p. 2749.]

Em resposta, o Ministro da Justiça fundamentou a omissão proposta e alargou mesmo o âmbito do diálogo:

V. Ex." sabe — e eu próprio tive ocasião de dizê-lo em várias intervenções — que estamos num domínio que é extraordinariamente melindroso em todos os sentidos, nomeadamente naqueles que acabou de referir, e que releva, sobretudo, da intimidade da vida privada. Entendo que não há suficiente conhecimento científico para poder pronunciar-se acerca do prazo de 22 semanas. Aliás, ainda há relativamente pouco tempo a Sr.° Deputada Odete Santos falava em 24 semanas.

A Sr." Odete Santos (PCP): — Não é verdade!

O Orador: —V. Ex.° falava em 24 semanas!

A Sr." Odete Santos (PCP): — Sr. Ministro, ouvimos médicos, em sede de Comissão, que disseram que, até às 16 semanas, é como não estar nada!

O Orador: — Mas é ou não verdade que, ainda há relativamente pouco tempo, V. Ex.° disse que deveriam ser 24 semanas?

Sr.° Deputada, não estou a dizer que não haja conhecimentos nesse sentido, estou é a dizer que podemos ir progressivamente, de conhecimento em conhecimento, entrando num domínio que, a meu ver, já não fica entregue exclusivamente à decisão política. [Diário da Assembleia da República, 1." série, n.°85, p. 2750.]

Na mesma intervenção ainda, o Ministro da Justiça lançou luz sobrè a metodologia que julgava adequada para dirimir o problema em referência, aventando a possibilidade de um referendo nacional sobre a matéria:

Creio que a matéria da interrupção voluntária da gravidez, tal como a matéria da eutanásia, a ser feita qualquer intervenção legislativa sobre ela, deverá pas-

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sar por um tipo diferente de consulta à população. São posições relativamente às quais entendo que estamos no domínio de uma profunda intimidade individual, pelo que um outro tipo de consulta à população pode legitimar, de forma mais clara, ou a omissão de intervir ou a intervenção [...] [Diário da Assembleia da República, 1." série, n.°85, p. 2751.]

Em diálogo com o ora relator, o Ministro da Justiça foi ainda mais preciso quanto ao tipo de consulta a realizar, excluindo que pudesse ter lugar ainda no âmbito do processo de reforma penal,.que em tal circunstância teria de sofrer longa interrupção para enxerto de um momento referendário:

O Sr. José Magalhães (PS): — Sr. Ministro, admitiu, então, um referendo sobre o aborto? .

O Orador: — Admiti que essa é uma área na qual é possível uma consulta à população. A única forma que conheço de consultas desse tipo à população é o referendo. O que entendo é que se formos para uma situação desse tipo, ela deve ser definida aqui, nesta Casa, com a oposição. É importante que se viermos a fazê-lo, não façamos um referendo que seja, ele próprio, motivo de contradição.

Sr. José Magalhães (PS): — Fá-lo-emos em sede de Código Penal?

O Orador:—Não, não! Fora do Código Penal, como é evidente.

V. Ex.* fez um esforço para não deixar sair um sorriso, mas eu antevi-o; sei o que V. Ex.* pretendia. Claro que é fora do Código Penal. [Diário da Assembleia da República, 1." série, n.° 85, p. 2751.]

A declaração em causa não teve qualquer eco público, nem foi seguida de qualquer iniciativa política subsequente.

A autorização legislativa para a reforma penal foi aprovada, com os votos dos Deputados do PSD e do PSN, dando origem à Lei n.° 35/94, de 15 de Setembro. O Decreto-Lei 48/.85, de 15 de Março, aprovado ao abrigo da autorização em causa, foi sujeito a fiscalização parlamentar — ratificação n.° 138/V1 (Diário da Assembleia da República, 2." série, n.° 36, p. 126), debate no Diário da Assembleia da República, 1." série, n.°76, pp. 2463 e seguintes.

Nessa sede, e no âmbito da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, Deputados do PS apresentaram uma proposta tendente a introduzir a aventada correcção técnica quanto ao aborto eugénico, mas propuseram ainda duas outras flexibilizações de regime:

A primeira tendente a tornar não punível o aborto em caso de gravidez resultante de qualquer «crime contra a liberdade e autodeterminação sexuais ou contra a.liberdade de procriação», (a acrescer às situações de violação já previstas na fei);

A segunda com vista a proteger a saúde da mulher e combater a burocracia na certificação de actos em casos de urgência.

O preceito proposto em sede de artigo 142».°, n.° 1, sob a epígrafe «Interrupção da gravidez não punível», era do seguinte teor:

1 — ........................................................................

a) ......................................................................

b) ......................................................................

c) Houver seguros motivos para prever que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável, de grave doença ou malformação e for realizada na primeiras 22 semanas de gravidez; ou

d) Houver sérios indícios de que a gravidez resultou de crime contra a liberdade e autodeterminação sexuais ou contra a liberdade de procriação e for realizada nas primeiras 12 semanas de gravidez.

2— ........................................................................

3 — O médico que efectuar a interrupção da gravidez nas circunstâncias previstas no n.° 1 sem se pré--munir do atestado referido no n.° 2 deste artigo é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias;

4 — (Actual n.°3.)

5 -r- A interrupção da gravidez efectuada nas circunstâncias previstas nas alíneas a) e b) do n.° 1 sem o consentimento prestado nos termos do n.°4 deste artigo não será punível quando o consentimento só puder ser obtido com adiamento que implique perigo para a vida ou perigo grave para o corpo ou para a saúde da mulher grávida.

Por sua vez, os Deputados do PCP aventaram um conjunto de alterações de sentido similar, mas propuseram, ademais, a não punibilidade do aborto a pedido da mulher durante as primeiras 12 semanas de gravidez:

1 — Não é punível a interrupção da gravidez efectuada por médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido, a pedido da mulher grávida, durante as primeiras 12 semanas de gravidez.

2 — De igual modo não é punível a interrupção da gravidez efectuada nas condições descritas no n.° 1, com o consentimento da mulher grávida, quando, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina:

íj) Constituir o único meio de remover petiço de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida;

b) Se mostrar indicada para evitar perigo de morte ou de grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida e for realizada nas primeiras 12 semanas de gravidez;

c) Houver seguros motivos para crer que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável, àe grave doença ou malformação e for realizada nas primeiras 22 semanas de gravidez; ou

d) Houver sérios indícios de que a gravidez resultou de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual e for realizada nas primeiras 16 semanas de gravidez.

3 — A verificação das circunstâncias descritas no n.° 2 é certificada em atestado médico, escrito e assinado antes da intervenção por médico diferente daquele pes ejse-m, ou sob cuja direcção, a interrupção é realizada.

4 — (Igual ao n." 3, na redacção do Decreto-Lei n.°48J95.)

5 — (Igual ao n."4, na redacção do Decreto-Lei n.°4&95.) ■

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O desfecho do processo ocorreu em conformidade com orientação de não abertura a alterações, sintetizada durante o debate em Plenário:

A posição do Governo é muito clara: face a este Código não altera, sequer, uma palavra. [Ministro da

Justiça, Diário da Assembleia da República, 1 .* série, n.° 76, p. 2468.]

Não ocorreu consulta pública em matéria de interrupção

voluntária da gravidez nem foram notórias formas de mobilização social a favor ou contra a alteração do quadro legal.

As propostas do PS e do PCP mencionadas foram — como todas as demais — rejeitadas em Comissão, pondo termo ao breve momento de fiscalização parlamentar.

B — Conteúdo da reforma de 1994-1995. —Todavia, a nova redacção adveniente da reforma penal veio introduzir diversas alterações ao regime jurídico português do aborto (e deixou intactos outros aspectos, apesar de ter sido aventada a sua mudança), com relevância distinta mas significativa em certos casos.

Em síntese:

A) Eliminou-se o aborto como crime contra a integridade física da mulher grávida (foi mantido tão-só como crime contra a vida intra-uterina).

Na reforma penal de 1982, ao prever o aborto como crime contra a integridade física da mulher (na alínea c) do artigo 143.°e, por remissão, nos artigos 145°, n.K 1 e 2, 146.°, n.°2, e 148.°, n.°3], o legislador suscitou um intrincado problema de interpretação jurídica, assim eliminado. Com alcance prático: quem fere mulher grávida, que, na sequência, venha a abortar, é punível nos termos do artigo 139.°? Ou, antes, nos termos do artigo 143.°? Ou é punível, em concurso verdadeiro ideal heterogéneo, pela prática de dois crimes? No termo de longa análise, um especialista pronunciou-se pela seguinte solução:

O único modo de garantir a efectiva aplicabilidade das duas incriminações consistirá em atender à orientação principal do dolo do agente. Se este visar em primeira linha (por exemplo, a título de dolo directo) a ofensa corporal e só acessoriamente a ofensa contra a vida intra-uterina (a título de dolo necessário ou eventual), será punível pela prática do crime previsto na alínea c) do artigo 143." do Código Penal. Se, pelo contrário, o agente dirigir a sua acção contra a vida intra-uterina e só instrumental ou consequencialmente contra a integridade física da mulher grávida, apenas será punível pela prática do crime previsto no artigo 139." [Rui Pereira, O Crime de Aborto e a Reforma Penal. AAFDL, 1995, p.43).

Teresa Beleza, descrevendo a reforma penal de 1994--1995, dá breve notícia da «eliminação do aborto como caso de ofensas corporais graves» nos termos seguintes: «absurdo legislativo» irresolúvel, apesar de tentativas várias (por exemplo. Rui Pereira, O Crime de Aborto, 1994); «tipo doloso com um caso preterintencional «enxertado», a história /egislativa parece ser essa».

A solução adoptada em 1982 tem génese difícil de explicar: não constava do anteprojecto da parte especial do Código Penal nem se menciona a questão nas actas das sessões da comissão revisora do Código Penal — parte especial (1979), pp. 61 e segs. Nos debates na especialidade da Lei n." 6/84 foi aceite sem discussão a dualidade de incriminações. No caso do Deputado ora relator, tal aceitação decorreu do facto de não parecer vantajoso — segundo critérios

de impacte político — sugerir uma diminuição da protecção à mulher grávida. Mas nem tal deveras decorre da eliminação, nem a argumentação fundada no receio do perverso impacte mediático de certas opções penais é um critério saudável de legiferação. No caso, a nova opção não teve, de resto, qualquer impacte.

A diferente punição do aborto consentido e não consentido assegura suficientemente a protecção da integridade física e da liberdade da mulher e a agravação pelo resultado

tutela a mulher face a riscos físicos criados pelo acto de abortar (artigo 141.°), pelo que teve plena justificação a alteração adoptada.

B) A «exclusão da ilicitude da interrupção voluntária da gravidez» por indicações de carácter terapêutico, eugénico e ético foi substituída pela sua «não punibilidade».

No âmbito académico foram suscitadas dúvidas sobre se não se teria pretendido «deixar em aberto a questão de saber se nas hipóteses previstas o aborto não é punível por ser atípico (em nome da ideia de inexigibilidade de que se prevalece a jurisprudência alemã), ou por ser justificado (não sendo passível de censura penal), ou por ser desculpável (não sendo passível de censura penal), ou, finalmente, por faltar uma condição objectiva de punibilidade (ditada por razões de mera oportunidade político-criminal)» — Rui Pereira, op. cit., p. 105. Interrogando-se sobre o mesmo tema, Teresa Beleza: «Os casos de licitude de interrupção voluntária de gravidez foram rebaptizados de 'exclusão de punibilidade'; poderá haver legítima defesa, contra a vontade da mulher grávida?» («Como uma manta de Penélope»: sentido e oportunidade da revisão do Código Penal, 1995, acessível via Internet em httpv://www.smmp.pt/Penal.htrn/).

A solução foi, porém, adoptada pelos diversos intervenientes (incluindo os que, como os Deputados do PS e PCP, apresentaram propostas próprias nas quais integraram uma epígrafe contendo essa expressão), sem que dela fluísse qualquer modificação das consequências jurídicas das soluções em vigor. Dentro dos limites consabidos, a lei continua a conceder autorização para que a interrupção voluntária da gravidez seja praticada em estabelecimentos de saúde com determinadas características. O médico que a executa não está sujeito a legítima defesa alheia quando age nos termos da lei (como estaria se a «não punibilidade» fosse tomada como mera causa de desculpa ou de impunibilidade na acepção mais estrita destas expressões). A alteração não propicia, pois, qualquer habilitação jurídica para iniciativas como as que em certos estados norte-americanos têm conduzido a graves episódios de alvejamento de médicos que executam abortos, a título de «legítima defesa alheia». O artigo 3.° da Lei n.°6/84, ainda em vigor, reconhece, de resto, à mulher o direito de «solicitar a interrupção da gravidez em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido», devendo entregar «logo o seu consentimento escrito e, até ao momento da intervenção, os documentos ou atestados médicos legalmente exigidos».

Q Foi significativamente alargado o âmbito da indicação ética

A Lei n°6/84 consagrou essa indicação nos termos seguintes:

1 — Não é punível o aborto efectuado por médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido e com o consentimento da mulher grávida quando, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina:

d) Haja sérios indícios de que a gravidez resultou de violação da mulher e seja realizado nas primeiras 12 semanas de gravidez.

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A lei fez depender da «existência de participação criminai da violação» a «verificação da circunstância referida na alínea d) do n.° 1. Esta última exigência, extremamente polémica, subsistiu, apesar de terem sido apresentadas em comissão propostas em sentido contrário no decurso da discussão na especialidade. Igualmente rejeitadas foram as sugestões tendentes a contemplar situações de conflito ético decorrentes de graves formas de agressão à liberdade sexual da mulher não susceptíveis de serem tecnicamente consideradas «violação» (Diário da Assembleia da República, 2° série, n.° 83, suplemento, de 4 de Fevereiro de-1984) — cf. especialmente o debate transcrito a p. 454 da antologia publicada sob o título Questões de Bioética/Interrupção Voluntária da Gravidez, vol. 2, DILP, 1997).

O texto decorrente da reforma penal de 1994-1995:

Assegura que, verificados as demais condições da lei, a interrupção voluntária da gravidez não seja punível quando «houver sérios indícios de que a gravidez resultou de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual e for realizada nas primeiras 12 semanas de gravidez»;

Elimina .qualquer exigência de queixa policial como requisito de invocabilidade tanto da violação como de qualquer dos demais crimes contra a liberdade e autodeterminação social.

Assinalando o alcance da primeira alteração, pôde escrever-se com razão:

Se no caso de gravidez resultante de inseminação artificial não consentido (já) era legítimo identificar, antes de 1995, uma causa de justificação supralegal (através de um argumento de analogia com a violação), na hipótese de estupro o alargamento é mais significativo. Pode entender-se que, nesta última solução, estará em causa materialmente uma indicação social, assente no reconhecimento da imaturidade da mulher grávida (nesses casos de estupro)» — Rui Pereira, «Aborto», in «Código Penal — Revisão de 1995», revista Sub Júdice, n.° 11, 1996, p. 175.

A segunda alteração corresponde à supressão de uma das soluções restritivas mais polémicas emergentes do processo legislativo de 1984 — cf. Diário da Assembleia da República, 2.° série, n.° 83, suplemento, de 4 de Fevereiro de 1984. As críticas foram feitas tanto pelo ângulo da dúbia operatividade no sentido restritivo (dado o facto de os opositores da alteração da proibição recearem escassa eficácia dos médicos na verificação de requisitos policiais), quer, na óptica oposta, pela previsão de que o requisito poderia exercer uma função burocrático-punitiva, desincentivando a invocação em caso em que esta se justificaria ou agravando a pressão social sobre a mulher violada, sujeita à via crucis de esquadras especialmente impreparadas para o acolhimento de vítimas desse tipo de crimes.

D) O regime do consentimento da interrupção voluntária da gravidez foi simplificado (artigo 142.°, n.™ 3 e 4).

E) Foi eliminado o tipo criminal aborto «para ocultar a desonra» ou «para evitar a reprovação social» previsto no anterior artigo 139.°, n.° 4, Eduardo Maia Costa refere:

Finalmente, na vertente criminalizadora, há ainda a referir a eliminação da circunstância para ocultar a desonra» ou «para evitar a reprovação social» presente em alguns tipos de crimes cometidos por mulheres, na versão originária do Código Penal: infanticídio (artigo 137.°); exposição ou abandono (artigo 138.°, n.°4); aborto (artigo 139.°, n.°4).

E comenta:

Se a eliminação da referência à «honra» é de saudar, por razões obvias, já no que se refere à «reprovação social» é de questionar se essa previsão não correspondia (ou não corresponde ainda) a situações de efectiva e «insustentável» pressão social de forma a diminuir sensivelmente a culpa do agente em termos atendíveis.

Os factores de tratamento mais favorável da mulher decorrentes da anterior redacção continuam, no entanto, a relevar como circunstâncias exculpadoras nos termos previstos na parte geral do Código.

F) A tentativa de aborto consentido deixou de ser punível.

A reforma definiu-se também por ter mantido soluções cuja alteração chegou a ser aventada:

Não revogou a norma da Lei n.° 6/84 (artigo 2.°), que sanciona o médico que não se premunir ou não obtiver posteriormente os documentos comprovativos da impunibilidade da interrupção voluntária da gravidez;

Não introduziu qualquer norma similar ao n.° 1 do § 218 do Código Penal alemão (que define qual o momento que deve ter-se como o início da gravidez);

Manteve o prazo de 16 semanas como limite legal para a realização da interrupção da gravidez por razões eugénicas.

É este e não outro o quadro legal agora sujeito a reexame. Os projectos apresentados são de distinta natureza e aventam essa reavaliação em termos distintos. Cumpre agora analisá-los.

V — As questões em apreciação

1 — Enquadramento

No debate público em curso é frequentemente mencionado o contraste entre a situação portuguesa e a de outros países.

É o que sublinham também proponentes das iniciativas em apreço:

Em termos de direito comparado das legislações existentes nos países da União Europeia, a legislação portuguesa é das legislações menos abrangentes quer em relação aos prazos para a PVG quer em relação aos motivos/causas de exclusão da ilicitude. (Projecto de lei n.°235/VII.:]

O direito comparado das legislações existentes ria União Europeia situa a legislação portuguesa nas \e-gislações menos abrangentes, quer no referente aos motivos, quer em relação aos prazos para a IVG. Em particular, os prazos para uma IVG nos casos de malformação do feto são muitas vezes impraticáveis face ao tempo de gravidez exigido legalmente, o quai tão permite claramente a comprovação daquele facto.

Assim, em termos de legislação comparada, podemos constatar que na Dinamarca, França e Grécia é permitida a IVG a simples pedido da mulher, sem invocação de motivos, até às 12 semanas.

Por outro lado, assiste-se desde a década de 70 à despenalização da IVG por indicações sociais na Dinamarca, Alemanha, Itália, Luxemburgo e Inglaterra, oscilando os prazos entre as 12 e 28 semanas.

A Holanda e a Bélgica incluem, ainda, no seu ordenamento jurídico a possibilidade de prática de IVG por situação intolerável ou por angústia até às 12 e 24 semanas, respectivamente. (Projecto de lei n.° 236/VI.]

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Para captar devidamente ordenamentos jurídicos distintos é, no entanto, necessário um esforço mais intenso e uma perspectiva que transcenda a comparação tabelar e «a histórica» de textos.

0 «funcionamento» mais eficaz (ou menos eficaz) das leis decorre sempre em alguma medida de factores culturais específicos ou de uma engenharia social formada por vários instrumentos e não apenas por um. Existem complexas interacções entre a lei, a realidade e a realidade (ou irrealidade) da lei é delas fruto.

No caso em apreço, uma lei cuja letra é mais restritiva que a portuguesa conduziu em Espanha à elevação do número de abortos tanto em meio hospitalar como no sistema de saúde privado. Mulheres portuguesas recorrem, de resto, a essas clínicas do outro lado da antiga fronteira, em condições de sigilo e segurança razoáveis, no quadro das regras europeias em matéria de liberdade de circulação. Aí encontram o que, com letra de lei menos restritiva, o sector privado não lhes propicia e o sector público lhes recusa em Portugal.

Por outro lado, os quadros apresentados, sendo uma su-persíntese, não podem transmitir nem a complexidade da evolução ao longo de decénios, nem grandes mudanças (v. g. as decorrentes do fim da RDA, muito complexas em matéria de aborto), nem o exacto estado do problema em cada país referido.

Nos EUA, por exemplo, o Supremo Tribunal, no caso Planned Parenthood of Southeastern Pennsylvania vs. Casey (1992) (texto integral em http://pilot.msu.edu/user/schwenkl/ abrrbng/50 5us833.htm), manteve o precedente estabelecido em Roe vs. Wade (1973), segundo o qual os estados não podem estabelecer limites à interrupção voluntária de gravidez na primeira fase da vida intra-uterina (até à «viabilidade»), mas reconheceu aos estados competência para estabelecerem limitações desde que não excessivas (não geradoras de um undue burden para a mulher). Foi, assim, viabilizada a imposição à mulher de obrigações de receber informação específica sobre aborto ou de esperar determinado período antes da decisão, o não pagamento de despesas médicas (salvo quando esteja em causa a vida da grávida ou na sequência de violação), a possibilidade de notificar parentes quando se trate de menores ...

Após 1994, aumentou significativamente o número de estados que aprovaram legislação restritiva — cf. síntese no relatório publicado em http://www.naral.org/publications/ vshod97key2.html/—, o Congresso operou polémicos cortes de dotações orçamentais e aprovou o Partial-Birth Abortion Ban Act, tendente a proibir técnicas médicas de intervenção em fase adiantada de gravidez. O diploma foi vetado, porém, em 1996 pelo Presidente Clinton. Um lamentável ciclo de bombas contra clínicas, invasões, piquetes, ataques a tiro e muitos outros actos de violência e intolerância pesa sobre o quotidiano norte-americano, suscitando novas reflexões sobre as estratégias capazes de assegurar uma tutela legal equilibrada.

Fenómenos de violência similares ocorrem em.diversos países europeus, desde Jogo em França, verificando-se uma globalização nas actuações de certas organizações fundamentalistas.

Quase no fim da década de 90, a ponderação de todos estes complexos factores é certamente relevante quando se discute a correcção do quadro legal.

Não havendo «respostas feitas» e soluções «pronto-a-ves-tÍD>, só a consideração em concreto das propostas apresentadas permitirá e/encar as questões principais sujeitas à decisão da Assembleia da República e equacionar os problemas Que as mesmas suscitam.

2 — As questões a decidir

2.1 — Conttddo dos projecto*

A — O projecto do PCP visa (síntese dos autores):

A exclusão da ilicitude da interrupção voluntária da gravidez, quando realizada nas primeiras 12 semanas a pedido da mulher.

Nos casos de mãe toxicodependente, o alargamento do período atrás referido para as 16 semanas;

O alargamento de 16 para 22 semanas nos casos de aborto eugénico, especificando-se que o risco de o nascituro vir a ser afectado pelo síndroma de imunodeficiência adquirida constitui um dos casos em que pode ser praticado o aborto;

O alargamento de 12 para 16 semanas do prazo dentro do qual a interrupção voluntária da gravidez pode ser praticada, sem punição, nos casos em que a mesma se mostre indicada para evitar perigo de morte ou de grave lesão para o corpo ou saúde física ou psíquica da mulher grávida;

O alargamento de 12 para 16 semanas no caso de vítimas de crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual e, quando menores de 16 anos ou incapazes por anomalia psíquica, o alargamento para 22 semanas;

A obrigação de organização dos serviços hospitalares distritais, por forma que respondam às solicitações de prática da interrupção voluntária da gravidez;

A impossibilidade de obstruir o recurso à interrupção voluntária da gravidez através da previsão da obrigação de encaminhar a mulher grávida para outro médico não objector de consciência ou para outro estabelecimento hospitalar que disponha das condições necessárias à prática da interrupção voluntária da gravidez;

A despenalização da conduta da mulher que consinta na interrupção voluntária da gravidez fora dos prazos e das condições estabelecidos na lei;

Assegurar o acesso a consultas de planeamento familiar.

B — O projecto de lei n.° 235/VTJ visa («Exposição de motivos»):

Exclusão da ilicitude da interrupção voluntária da gravidez sem limite gestacional nas situações de feto inviável;

Alargamento de 16 para 24 semanas, comprovadas ecograficamente, nos casos de aborto eugénico;

Alargamento de 12 para 16 semanas do prazo dentro do qual a ÍVG pode ser praticada sem punição no caso de vítimas de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual e quando menores de 16 anos ou incapazes por anomalia psíquica;

Criação de comissões técnicas de avaliação de defeitos congénitos, com competências para a emissão de parecer prévio quando se esteja perante rVG por malformação ou doença grave do embrião ou feto, a instituir em todos os estabelecimentos autorizados a praticar a IVG, nos termos regulamentares e nomeada anualmente pelo conselho de gerência de cada estabelecimento de saúde;

Obrigação de reorganização dos serviços hospitalares para que estejam dotados de estruturas adequadas à prática da IVG;

Acesso e apoio pré e pós-IVG, bem como o direito a consultas de planeamento familiar.

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C — 0 projecto de lei n.° 236ATI visa (síntese dos autores):

A exclusão da ilicitude da interrupção voluntária da gravidez quando realizada nas primeiras 12 semanas a pedido da mulher, nos casos em que esta considere não poder exercer a maternidade consciente, tal como constitucionalmente consagrada no artigo 67." da Constituição da República Portuguesa;

Alargamento do prazo de 16 para 24 semanas de gravidez, quando haja seguros motivos para crer que o nascituro virá a sofrer de forma incurável de doença grave ou malformação congénita;

Alargamento do prazo de 12 para 16 semanas quando a P/G se mostre indicada para evitar perigo de morte ou de grave lesão para o corpo ou saúde física e psíquica da mulher grávida;

Alargamento do prazo de 12 para 16 semanas no caso de vítimas de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, aumentando-se aquele prazo para as 18 semanas quando praticados contra menores de 16 anos ou incapazes por anomalia psíquica;

Penalizar a propaganda à interrupção voluntária de gravidez com uma pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias;

Desenvolver no âmbito da rede pública de cuidados de saúde a valência de aconselhamento familiar, que deverá organizar-se distritalmente, devendo os mesmos ser de fácil acesso a todas as mulheres grávidas, quer numa fase de pré-aborto quer em fase pós--abortiva;

Organizar de forma adequada os estabelecimentos públicos de saúde ou convencionados à prática da IVG, de molde a que.esta se verifique nas condições e nos prazos legalmente estatuídos;

Assegurar um direito à objecção de consciência que não colida com o direito da mulher à interrupção voluntária da gravidez, estabelecendo-se regras claras e exigindo-se que o médico objector inclua no documento onde fundamenta a sua objecção o nome de outro profissional do foro, que assegurará a prática da IVG;

Estabelecimento do dever de sigilo dos médicos, demais profissionais de saúde e restante pessoal de saúde pública ou convencionada em que se pratique a IVG.

2.2 — Pareceres emitidos

Sobre os projectos de lei em debate recaíram múltiplas tomadas de posição, transmitidas ao Parlamento no decurso das audições públicas levadas a cabo com a participação da 1 .* Comissão ou em momentos anteriores e posteriores (sugere-se que sejam integralmente transcritos e integrados, para leitura pública, no arquivo digital gratuito da Assembleia da República). Não se transcrevem integralmente em anexo, mas serão objecto de referência a propósito de cada uma das questões relevantes.

Tendo o Presidente da Assembleia da República solicitado,, em 18 de Novembro de 1996, ao CNECV a emissão do parecer requerido pelo Grupo Parlamentar do Partido Social-Democrata, ao abrigo do disposto na alínea b) do artigo?.0 da Lei n.° 14/90, foi o mesmo elaborado e discutido em audição pública. É mencionado nas sedes próprias, ao longo do parecer, e considerado concretamente.

2.3 — Apreciação

Os projectos de lei suscitam numerosas questões, com relevo e natureza muito diferentes, decorrendo tanto de pro-

jectadas normas de direito penal como também de outros ramos do direito (v. g. direito administrativo, direito civil, regime de exercício da medicina), com carácter programático em certos casos.

A sua apreciação só ganhará, pois, com uma distinção e graduação em função da natureza das questões suscitadas. Por outro lado, em relação a cada uma das questões, poderão formar-se certamente maiorias de voto distintas.

A — Opção quanto ao regime aplicável face a fetos inviáveis. — A clarificação aventada pelo projecto de lei n." 235/VTI suscitou apreciável consenso.

Como sublinhou o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, no seu parecer e em audição parlamentar, «o abortamento de fetos inviáveis, que seguramente não sobreviverão senão horas ou poucos dias à separação do organismo materno causada pelo nascimento, poderia ser interpretado como uma espécie de eutanásia (obviamente involuntária) pré-natal* uma vez que dele resultará o apressar da morte do feto. Todavia, muito difícil será para a mãe manter até ao fim uma gravidez sem esperança, passar pelo traumatismo do trabalho de parto, adiar o luto, sofrer o impacte eventual de ver um filho aparentemente perfeito mas incapaz de sobreviver por lhe faltar o funcionamento de um órgão vital. Nestas circunstâncias, não se afigura eticamente correcto defender umá vida sem projecto, e que seguramente se vai extinguir à custa de um sofrimento materno acentuado e que poderá deixar sequelas permanentes».

No seu correcto entendimento, a legislação em vigor previu:

Regimes e prazos aplicáveis a fetos viáveis, cuja protecção deva sofrer excepção em certos casos limite; Regimes e prazos aplicáveis a fetos com malformação.

Sendo o direito criminal regido pelo princípio da tipicidade, a lei definiu tipos criminais (apenas os nela previstos). Não elencou — ou seja, não penalizou, nem fazia sentido que penalizasse — os actos médicos tomados necessários pela detecção de um feto inviável, tal como não elencou outras situações.

A adoptar-se uma espécie de tipificação negativa de condutas («não são crimes»), mesmo que redigida com o cuidado de surgir a -título exemplificativo («norma exemplo»), para evidenciar a opção legal, haverá que acautelar o princípio estrutural característico do quadro legal.

B—Aborto terapêutico.—Alargamento de 12 para 16 semanas do prazo dentro do qual a interrupção voluntária da gravidez pode ser praticada, sem punição, nos casos em que a mesma se mostre indicada para evitar perigo de morte ou de grave lesão para o corpo ou saúde física ou psíquica da mulher.

Trata-se de uma flexibilização da actual indicação \m-pêutica, assente na apreciação de factores culturais e sociais e na necessidade de responder a disfunções sistémicas já descritas. Como sublinhou a CNECV, «o facto de se não atribuir significado ético à adopção de prazos não quer dizer que estes não possam ter justificação, se o entendimento do legislador for o da existência de gradual idade na evolução fetal, como parece ter sido o do Tribuna/' Constitucional que afirma: «sendo certo que não é indiferente, à luz da consciência cultural e jurídica, a fase de desenvolvimento do feto, reclamando este uma tuteta vanto maior quanto mais próximo estiver o seu nascimento» (Acórdão n.° 85/85, de 28 de Maio de 1985). Mas não se vislumbram os fundamentos de tal asserção, nem eles são mencionados no referido acórdão. A referência a aspectos culturais (?) sugere que a verdadeira motivação da tendên-

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porventura integrados com recurso a legislação diversa, incluindo de extracção parlamentar) — esforço dificultado por não se aludir a publicidade comercial, mas a qualquer forma de publicidade —, a solução, formulada em termos absolutos e indeterminados, implicaria a proibição da divulgação dos serviços públicos onde a IVG pode ser praticada legalmente e, no limite, suscitaria dificuldades ao próprio debate aberto e livre de novos e velhos meios abortivos, sobre os quais há, aliás, grande défice de informação e propaganda.

3 — Objecção de consciência. — Sem deixarem de reconhecer a necessidade de assegurar o direito à objecção de consciência como direito fundamental da classe médica, os projectos pendentes introduzem obrigações tendentes a acautelar a situação da mulher por forma a impedir a diluição dos seus direitos face ao direito de objecção dos médicos.

Assim, o profissional que se recuse praticar a IVG terá que o manifestar em documento fundamentado (a lei actual não exigia tal fundamentação) e deverá indicar, desde logo, o profissional que praticará a IVG (artigo 4.° do projecto de lei n.° 235/Vrj).

Este mecanismo de salvaguarda consta igualmente, e em termos similares, no artigo 7.° do projecto de lei n.° 236/VII (JS) e no artigo 3.°, n.05 2 e 3, do projecto de lei n° 177/VTI (PCP).

As propostas foram objecto de significativas críticas. O Conselho Nacional de Ética considerou inaceitável a obrigação de fundamentação — já que a objecção de consciência só faz sentido «por se invocar a própria consciência e nada mais: o objector declara que o é e não deve nem pode ir além desta declaração», bem como as propostas que vão no sentido de obrigar o objector a indicar quem praticará a ÍVG.

Na opinião do CNECV, ao objector nunca poderá ser cometido o encargo de indicar um colega disposto a praticar a intervenção abortiva.

Igualmente o bastonário da Ordem dos Médicos manifestou, na audição parlamentar de 30

Em bom rigor não se vislumbra como possa o médico dispor de informação que durante mais de uma década o Estado não foi capaz de centralizar (e descentralizar!) para facultar aos interessados e suprir atomísticamente o que uma máquina super-hierarquizada, burocratizada e ineficaz bloqueia. É da reforma desta que depende o êxito, neste como em muitos outros pontos.

4 — Dever de sigilo profissional. — Os diplomas mantêm neste ponto, na íntegra, as normas da lei vigente — a solução pode ter servido para acautelar a visibilidade de bons princípios, embora tal possa fazer-se mais convenientemente em sede preambular. Trata-se, porém, de reedição indesejável em termos de higiene legislativa.

5 — Criação de novas estruturas e procedimentos. — No âmbito do projecto de lei n.0235/VÜ a verificação das circunstâncias que tomam não punível a IVG é certificada em relatório médico e assinado, antes de intervenção pelos médicos que compõem a Comissão Técnica de Avaliação de Defeitos Congénitos.

O artigo 2.° deste projecto de lei identifica a composição da Comissão, remetendo para lei própria a constituição e respectivos estatutos da Comissão. Pretende-se garantir rigor técnico à verificação das circunstâncias da alínea c) do artigo 142.° A Associação de Diagnóstico Pré-Natal defende a criação das comissões previstas no projecto de lei t\.° 235/VTJ, mas nas audições parlamentares foi frequente o

ponto de vista segundo o qual as comissões em causa poderiam introduzir alguma burocratização e complexidade a um processo que não se compadece com delongas, dada a saúde psíquica da mulher e física do feto e o estado de ansiedade que um processo desta natureza desde sempre suscita.

A estes argumentos acrescem outros, que se poderão prender com uma inevitável intromissão no sistema de saúde e na competência dos médicos obstetras e geneticistas.

É líquido, porém, que o sistema actual carece de ser tornado mais adequado, eficaz e exequível e dotado de mais e melhores meios técnicos e humanos e mecanismos de poupança de recursos e eliminação de custos. As actuais comissões de ética hospitalar não são céleres nem deixam de ser polémicos os critérios que por vezes utilizam. Fácil seria, porém, depositar em bases de dados facilmente interrogáveis e acessíveis a vasta parecerístíca das comissões para conhecimento recíproco e controlo pela opinião pública. O acesso ao paradigmático parecer citado no presente relatório foi facultado ao relator pelo Dr. Walter Osswald, a quem se agradece a cooperação institucional. Não foi, porém, possível antologiar e tratar informaúcamente, como se desejava, uma amostra significativa de pareceres emitidos desde a reforma penal de 1984.

O Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida também se pronunciou sobre esta questão no seu parecer de 10 de Janeiro de 1997, sendo do entendimento que esta solução não introduz nenhuma mais-valia ao sistema.

O director-geral da Saúde alertou para a importância de não praticar avulsamente actos de reestruturação do sistema de saúde, cuja reperspectivação global está em curso.

6 — Organização dos estabelecimentos de saúde. — O artigo 3.° do projecto de lei n.° 235/Vn reformula os artigos 3.°, 4." e 5.° da Lei n.° 6/84, de 2 de Maio. No que concerne ao artigo 3o («Organização dos estabelecimentos de saúde»), verifica-se que o artigo se mantém inalterável, sendo apenas aditado um novo n.° 4, que prevê que os serviços que pratiquem DPN sejam obrigados a levar a termo essa investigação, incluindo, se necessário, a IVG.

Este artigo coincide, à excepção do seu n.°4, com o artigo 6." do projecto de lei n.° 236/VII (JS), também com a mesma epígrafe. Igualmente no projecto de lei do PCP se garante a prática de IVG através de estruturas adequadas (artigo 3.°, n.° 1).

Trata-se da reedição de comandos legais vigentes e durante 12 anos sujeitos a défice de cumprimento. Os inconvenientes da reedição legislativa já atrás assinalados recomendam cuidadosa reponderação de soluções deste tipo. Trata-se de questão sobre a qual a 1.° Comissão devia ser chamada a dar enquadramento sistemático, no quadro da reflexão geral sobre boa técnica de feitura (e revogação!) de leis preconizada pelo Sr. Presidente da Assembleia da República.

7 — Aconselhamento e planeamento familiar. — O artigo 4.° do projecto de lei n.°235/VTI prevê que nas instituições onde se pratique a IVG deva ser fornecida uma adequada preparação aos profissionais de psicologia e serviço social dos estabelecimentos hospitalares para informação e aconselhamento nos pedidos de IVG.

No seu n.° 2 garante-se que a mulher tenha acesso a consulta de planeamento familiar.

O projecto de lei n.° 177/VII, no seu artigo 4.°, também prevê que a instituição onde se tiver efectuado a IVG providenciará para que a mulher, no prazo máximo de sete dias, tenha acesso a consulta de planeamento familiar.

É, no entanto, o projecto de lei n.0236/VU o que mais dispõe sobre esta questão ao dedicar três artigos ao aconse-

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lhamento familiar (artigos 3.°, 4.° e 5."). O projecto de lei prevê que seja desenvolvida uma rede pública de cuidados de saúde, devendo, pelo menos, estabelecer-se uma CAF por distrito, enquadrando-se estes no âmbito dos centros de saúde. Estes CAF destinam-se às mulheres que desejem realizar uma IVG ou já a tenham praticado. As competências do CAF são de carácter exemplificativo, estão previstas no artigo 5.° do projecto de lei c são de natureza informativa, no âmbito dos direitos laborais da mulher, do planeamento familiar, direitos sociais, etc. O homem poderá ser associado ao processo se a mulher grávida a tal não se opuser. O objectivo último dos CAF é contribuir para uma decisão responsável e consciente, visando a superação de problemas relacionados com a gravidez.

Estabeleceram-se ainda no artigo 4.°, n.°2, as regras da gratuidade, confidencialidade e anonimato.

Tomando como exemplo paradigmático as regras por último referidas, é de assinalar que as mesmas decorrem já da legislação aprovada em 1984, desenvolvida e regulamentada ulteriormente por diversas disposições.

As disposições organizativas aventadas configuram uma reorganização parcial do SNS, numa óptica que, por definição, não pode ter em conta as linhas chave da reestruturação em preparação no âmbito governamental — deixa-se de lado, nesta sede, a melindrosa questão dos limites dos poderes da Assembleia da República em.matéria de reorganização administrativa — e coloca problemas complexos de articulação, entrada em vigor e aplicabilidade, se.aprovada.

Sendo crucial a boa reforma dos serviços e a sua expansão, os dados compilados nas partes anteriores do presente relatório desafiam a imaginação política do legislador e exigem novas práticas, políticas activas de distribuição de anticoncepcionais e um surto de acção política e cívica que alterem significativamente os comportamentos sexuais de risco. Donde a necessidade de uma perspectiva integrada e um impulso claro. Dito de forma brutal: os indicadores analisados no presente relatório revelam que os Portugueses se matam na privacidade do quarto com a mesma violência com que se matam na estrada. Num e noutro caso, com elevados custos sociais, enorme insensibilidade e impressionante impotência dos poderes públicos e da sociedade.

Parecer

Nestes termos, a Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades c Garantias emite o seguinte parecer:

Os projectos de lei n.0* I77/VII, 235/VH e 236/VII reúnem as condições necessárias à sua apreciação pelo Plenário da Assembleia da República.

Palácio de São Bento, 19 de Fevereiro de 1997.— O Deputado Relator, José Magalhães. — O Deputado Presidente, Barbosa de Melo.

Nota. — O relatório foi aprovado, com os votos a favor do PS e do PCP e a abstenção do CDS-PP e dos Srs. Depwados Luís Marques Guedes e Calvão da Silva (PSD) e Cláudio Monteiro (PS).

O parecer foi aprovado, com os votos a favor do PS e do PCP, a abstenção do CDS-PP e do Deputado Calvão da Silva (PSD) e o voto contra do Deputado Luís Marques Guedes (PSD)

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cia a fixar prazos tenha a ver com aspectos emocionais: é que após as 22 semanas se trata já de um recém-nascido prematuro, de morfologia muito próxima da do recém-nascido a termo. De facto, se faz eco o enquadramento legal, ao exigir certidão de óbito e prescrever enterro do feto abortado após este limite. Para além dos aspectos emocionais, há igualmente aspectos obstétricos a considerar: após o mesmo limite, o abortamento reveste a forma da indução de um parto prematuro; e, sendo certo que nos nossos centros de prematuros se ministram cuidados intensivos aos prematuros com 24 ou mais semanas de gestação, poderá acontecer que o feto abortado esteja vivo e seja necessário deixá-lo morrer, por omissão de cuidados adequados, o que tecnicamente se aproxima muito do infanticídio, se é que não configura esse delito (não há exclusão de ilicitude, no que respeita ao infanticídio)». É de mencionar tão-só que:

Os aspectos emocionais, culturais e obstétricos não são indignos de valorização pelo legislador;

Os limites constitucionais da ponderação a fazer já foram avaliados pelo Tribunal Constitucional nos dois acórdãos mencionados.

C — Aborto ético. —Também neste ponto não se trata de recomeçar a partir do zero o debate de 1984 (ou de 1994--1995) sobre a não punibilidade da interrupção voluntária de gravidez quando houver sérios indícios de que a mesma resultou de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual. Está em causa saber se deve alargar-se o prazo legal previsto para o efeito. Numa eventual comprovação das observações atrás feitas sobre a «invisibilidade» relativa da reforma penal de 1994-1995, o parecer do CNECV citado não aparenta distinguir entre o comentário aos projectos pendentes e a apreciação de soluções que, desde 1994-1995, estão já na lei, designadamente quando refere:

De qualquer modo, não deverá, em caso algum, substituir-se o termo «violação», de conteúdo médico-legal e criminológico bem definido, pela expressão «crime contra a liberdade e a autodeterminação sexual», expressão cujo significado vago e elástico constitui um potencial gerador de complexos conflitos jurídicos (que provas poderia uma mulher de que a sua gravidez, que pretende interromper, resultou de uma relação que lhe foi imposta pelo marido ou companheiro?).

Há nesta observação um equívoco, decorrente de o CNECV ter tomado a expressão no sentido vulgar (como revela o exemplo dado). A expressão deve ser usada no sentido que lhe dá o Código Penal, que define rigorosamente, como é constitucionalmente obrigatório, os tipos criminais fundados na violação da liberdade sexual.

Para esses casos, são propostos dois tipos de alargamento:

Geral — de 12 para 16 meses; Prazo especial aplicável a menores; Prazo especial aplicável a mulheres afectadas por anomalia psíquica.

O projecto de lei n.° 177/VTI propõe que a PVG seja não punível nas primeiras 22 semanas, nos casos de vítima menor de 16 anos ou incapaz por anomalia psíquica; o projecto de lei n.° 235/VII propõe que o alargamento do prazo se faça até às 16 semanas, sem distinguir prazo especial para casos de anomalia psíquica; o projecto de lei n.° 236/VIJ propõe o alargamento geral (para as 16 semanas) e especial (até às 18 semanas) no caso de vítima menor ou incapaz por anomalia psíquica.

A distinção tem como fundamento as diferenças objectivas de capacidade de emissão de um consentimento e os comportamentos típicos das vítimas da violência, sexual no contexto social e cultural português. É, porém, de notar que:

Em ambos os casos a decisão de interromper a gravidez emana de terceiros (artigo 142.°, n.05 3 e 4);

Não está devidamente regulada a situação das grávidas portadoras de anomalia psíquica. Na revisão constitucional estão a ser consideradas soluções quanto ao internamento, na sequência de uma proposta apresentada pelo PS — artigo 27.°, alínea f). O problema aqui em causa é, porém, muito mais complexo.

Parte-se do princípio de que nesses casos os processos de apuramento de situações são mais lentos e as possibilidades de «incidentes de segredo» (retardadores da percepção da violência) maiores. A opção por alguma das três modalidades de prazo implica um aprofundamento das respectivas fundamentações.

D — Aborto eugénico. —As propostas em apreço visam reformular o artigo 142.°, n.° 1, alínea c), do Código Penal, por forma a não punir a interrupção da gravidez feita dentro dos demais limites legais se:

Houver seguros motivos para crer que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável e irreversível, de doença grave ou malformação congénita e for realizada nas primeiras 24 semanas de gravidez, comprovadas ecograficamente (projecto de lei n.° 235/VH);

Houver seguros motivos para crer que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável, de grave doença, nomeadamente HIV (síndroma de imunodeficiência adquirida) ou malformação e for realizada nas primeiras 22 semanas de gravidez (projecto de lei n.° 177/VTJ.);

Houver seguros motivos para crer que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável, de grave doença ou malformação congénita e for realizada nas primeiras 24 semanas de gravidez (projecto de lei n.° 236/VJJ).

a) O debate tem-se centrado no alargamento de prazos, mas* as propostas aventam inovações na definição dos contornos típicos da cláusula:

Alusão a doença «irreversível» (em acréscimo a incurável);

Precisão de que a malformação deve ser congénita;

Alusão explícita (exemplificativa) à HTV do nascituro (identificada, sem rigor, com a sida) como situação habilitadora de autorização legal para interrupção.

A primeira alteração agrava as exigências da cláusula vigente e, correlativamente, diminui a margem legal para a IVG; a segunda teria como efeito excluir as demais situações de malformação que hoje fundamentam o abortamento.

A terceira proposta suscita melindrosas questões, examinadas no decurso das audições parlamentares. Nessa sede, o Prof. Pereira Leite analisou nos seguintes termos o dilema ético da mulher com HTV:

Desde logo uma portadora assintomática de HIV não é exactamente a mulher que tem sida. Os casos de gravidez em mulheres que têm sida propriamente são relativamente pouco frequentes, sendo mais frequentes os casos em mulheres que são portadoras de HTV. Se tomarmos as precauções de tratar a mulher durante a gravidez com AZT, se fizermos uma cesa-

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nana e não a deixarmos aleitar, a probabilidade de transmissão é à volta de 10%. Se este é ou não um grave risco de transmissão, entramos nas zonas cinzentas, interpretativas. Compreendo que se nós, que somos obstetras, temos uma tendência para pensar no embrião e no feto e pensamos que 90 % são normais, também admitimos que uma mãe se preocupe com os 10 %, que para ela são importantes. Mas é uma zona cinzenta. E depois, também como obstetras, não nos podemos desinserir dos problemas sociais e dos pro-, blemas de evolução da criança, da educação, etc. Não podemos deixar de dizer que todos estes são problemas graves. Vamos cair no tal problema de consciência puro, ou seja, no problema de consciência da mãe e do médico. E não podemos, aqui, ir mais longe do que isso. Apesar de tudo, penso que a probabilidade, em termos biológicos, é muito pequena. É de 10% e, na rotina (médica), quando há uma probabilidade de 10%, não temos uma atitude de acharmos que ela é uma probabilidade grande». Isto é o que eu penso, mas compreendo perfeitamente que uma mãe pense exactamente o contrário e, portanto, entendo que os mecanismos da lei devem dar esta liberdade aos dois lados de tomarem uma posição.

A*o pôr a ênfase no nascituro contaminado, a proposta implica uma prognose de contaminação (que reveste as características descritas). É justo reconhecer-se, porém, que esta não suscita nem maiores nem menores dificuldades do que as suscitadas pela actual prognose de «grave doença».

Incluir a explicitação, sinal de um tempo ameaçado pelo flagelo da sida, implica por parte do legislador a disponibilidade de «dar um sinal». Mas que sinal? A experiência mais recente nos EUA (onde anualmente há cerca de 7000 mulheres HIV-positivas que engravidam) convida a meditar. «Like many who are trying to leave a mark before they die, theyfeel the best they can leave is a baby» — Wilbert Jordan, do King-Drew Medicai Center, aludindo ao dilema ético da grávida com HTV, entre o medo do risco e a vontade de deixar um sulco no mundo (The Abortion Dilemma, cit., p. 180). Donde a importância da protecção, informação e esclarecimento da mulher, responsabilidades insubstituíveis do sistema de saúde.

b) Quanto ao alargamento dos prazos, rfata-se de matéria de cunho científico, cuja decisão há-de desejavelmente fundar-se em informação propiciada por especialistas e na utilização de critérios despojados de filtragem segundo critérios políticos ou ideológicos. Pelamesma razão, trata-se de algo que, pela sua natureza, é matéria imprópria para consulta referendária. No tempo de Galileu, como hoje, não faz sentido um referendo para apurar se a terra gira ou não à volta do sol. Eppure si muove.

As audições públicas e os documentos remetidos ao Parlamento ajudaram'a enriquecer o debate, mas não permitiram dirimir todas as questões.

1 — Contagem dos prazos: como? — Em documento remetido à Comissão de Saúde pelo Grupo de Trabalho sobre Genética Médica da Direcção-Geral da Saúde — ofício n.° 12 245, de 3 de Julho de 1996, dirigido ao presidente da Comissão de Saúde — refere-se a «total indefinição quanto ao modo de contagem» nos termos seguintes:

Para uns conta-se tendo como base a data da última menstruação e para outros a data da concepção. Outros, ainda, recorrem a técnicas de contagem ainda mais aleatórias. Há ainda os que contam conforme «dá

jeito», interpretando, por exemplo, num caso, as 22 semanas como contadas a partir da data da última menstruação, mas, noutro caso de diagnóstico mais tardio, já contarão as mesmas 22 semanas a partir da data da presumível concepção, ou seja, 24 semanas a partir da última menstruação. Há que considerar, também, que a contagem com base em dados deste tipo depende exclusivamente do que a grávida diz e, frequentemente, como lhe «dá jeito dizer» por forma a o seu caso ser incluído dentro do limite temporal estabelecido.

Preconiza-se seguidamente uma técnica de apuramento:

Não há hoje qualquer dúvida de que a técnica mais exacta e rigorosa, portanto cientificamente mais correcta, é a ecografia precoce. Além disso, e independentemente do que a grávida diz assim como do «jeito que dá» contar desta maneira ou daquela. Assim, os limites temporais de idade ¿estacional devem, obrigatoriamente, ser contados em função dos dados eco-gráficos precocemente obtidos. Factores aleatórios e outros serão, deste modo, afastados.

Não é, porém, um ponto de vista incontroverso, como se afere pelo depoimento feito em audição parlamentar pelo Prof. Doutor Pereira Leite:

[...] a ecografia é uma técnica que depende do ecografista e estou tão à vontade para o dizer quanto pertenço a um departamento relativamente ao qual posso dizer, sem vaidade e até de maneira honesta e sincera, que talvez seja um ponto de referência no País, no que respeita a ecografia, porque fomos os pioneiros e os introdutores de várias técnicas. Inclusivamente, fomos nós que fizemos aquele trabalho que tiveram oportunidade de ver sobre a rapidez da informação do cariótipo, etc. Portanto, pertenço a um departamento que, até do ponto de vista europeu, não tenho dúvidas em dizer, e porque pertenço à direcção da Associação Europeia de Diagnóstico Pré-Natal, está tão actualizado quanto os ingleses, os franceses ou os alemães.

Porém, essa não é a realidade do País, nem sequer £ a realidade absoluta do meu departamento no geral, porque aí tenho pessoas altamente especializadas e outras que o não são tanto, havendo até internos em formação e pessoas mais jovens e conforme a ecografia é feita pelo senhor A ou B ou C há muita diferença.

E até mais: conforme o senhor A, que por acaso é até altamente diferenciado, está mais preocupado com o trabalho, pois tem de fazer 20 ecografias ou tem de fazer 10, a situação não é exactamente igual.

2 — Que prazos? — Existe incerteza quanto ao prazo mais adequado. Mesmo aceitando que alguma incerteza é cc-na-tural ao conhecimento científico e que nenhuma pretensão de «lei eterna» tem cabimento, a tomada de uma decisão sobre este ponto recomenda esclarecimentos ulteriores, como revela a breve amostra seguinte:

A Ordem dos Médicos, em 30 de Janeiro de 1997, manifestou-se claramente a favor do alargamento dos prazos do aborto eugénico: «o alargamento do período de diagnóstico de malformação é correcto, é difícil que essas malformações sejam precocemente detectadas». Justificou ainda tal posição como pró-natalista, dado que, com o alargamento dos prazos, pode-se vir posteriormente a concluir que um feto dado inicialmente como inviável afinal é normal.

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A Associação de Médicos Católicos, em 3 de Fevereiro de 1997, considerou que há múltiplas técnicas de DPN aplicáveis em fase diversa da gravidez e que o próprio diagnóstico genético é tecnicamente exequível antes das 16 semanas, em serviços habilitados.

A Dr.° Isabel Miranda, em representação da Conferencia Episcopal, informou a Comissão sobre as virtualidades da ecografia endovaginal, «que permite detectar quase todas as anomalias até às 12/13 semanas». Após as 16 semanas, entende que «não há alterações significativas no embrião» e manifesta objecções às soluções legais que promovam o aborto eugénico. Em sentido similar, o Prof. Agostinho Santos, em 6 de Fevereiro de 1997, preconizou a utilização da ecografia transvaginal como método de detecção precoce de malformação congénita, que pode ser detectada até às 12/ 14 semanas.

A Associação Portuguesa de Diagnóstico Pré-Natal defendeu o alargamento dos prazos para as 24 semanas por razões de saúde do feto ou da grávida e alertou para o facto de persistência da actual barreira legal ter como consequência a continuação dos abortos clandestinos e dos fluxos de grávidas para clínicas estrangeiras.

O director-geral da Saúde sintetizou assim os termos do problema:

Há três argumentos a favor do alargamento do prazo particularmente importantes:

O primeiro está associado ao diagnóstico pré-natal ele próprio, à sua tecnologia, à sua precisão, aos riscos que acarreta e às suas implicações.

Em relação à questão técnica existem, em relação ao diagnóstico pré-natal, duas circunstâncias diferentes — a questão de diagnóstico de alterações cromos-sómicas e a de alterações morfológicas do feto. As alterações cromossómicas têm um conjunto de técnicas completamente diferentes das morfológicas. Julgo que é uma opinião avalizada pelos técnicos que se têm debruçado nestas matérias que a tendência actual em relação às técnicas de intervenção do diagnóstico cro-mossómico é no sentido de elas se poderem fazer cada vez mais cedo em relação às técnicas morfológicas. É também opinião bastante generalizada que há um conjunto largo de circunstâncias em que o prazo de seis semanas não permite em termos ecográficos o tipo de precisão necessária para se ter um diagnóstico atempado nas alterações de tipo morfológico.

Muitas vezes ao discutir esta matéria podemos pen-. sar que o diagnóstico é um fenómeno pontual, mas não é. O diagnóstico não é, por um lado, imediato: há um conjunto de procedimentos técnicos (v. g. colheita de material para exame cromossómico) que leva tempo; a resposta não é concomitante com o acto da colheita. Um segundo factor a considerar é que o diagnóstico muitas vezes precisa de ser repetido, devido a circunstâncias como a contaminação de material, erros de diagnóstico, imprecisão das técnicas. E pode também haver necessidade de confirmação. É assim a natureza do conhecimento médico: muitas vezes os resultados não são definitivos, é necessário esperar algum tempo para repetir e confirmar um diagnóstico.

Por Outro lado ainda, as técnicas de colheita mais precoce de material para efeitos de diagnóstico são aquelas que exigem uma intervenção que tem mais riscos de aborto, por ser mais agressiva — técnicas que estão associadas à biópsia na matéria perifetal estão associadas, segundo a literatura médica, com o nível de aborto à volta de 5 %, enquanto as técnicas mais conservado-

ras e mais tardias estão associadas a uma compleição de aborto muito pequena, à volta de \ %. Portanto, o factor de risco na utilização das técnicas é um outro ponto a considerar. Esse factor de risco aconselha muitas vezes a utilizar técnicas mais conservadoras, que são feitas mais tarde e que estão associadas a um grau de complicações mais pequeno. Outro factor negativo diz respeito ao impacte negativo decorrente do facto de os técnicos serem obrigados por uma barreira muito estrita de tempo a fazer um diagnóstico que, com frequência, não pode ser seguido por uma intervenção que siga a decisão do casal (devido à lei). Essa circunstância, repetida no tempo, provoca um certo atraso no desenvolvimento da tecnologia e dos serviços de diagnóstico pré--natal. Não vale a pena investir, é incómodo para os técnicos fazerem parte de serviços que sistematicamente fazem diagnósticos que levam ou indicam certa intervenção, quando essa não é permitida por lei na altura que esse diagnóstico está disponível. Por outro lado, naturalmente esta barreira estreita implica da parte dos técnicos assumirem eles próprios a responsabilidade moral e civil de tomarem decisões muito desagradáveis ou assistirem de uma forma penosa ao recurso do casal que aconselham ao aborto ilegal ou então eles próprios não cumprem a lei e intervirem fora do periodo legalmente estabelecido.

O segundo argumento refere-se à questão de saber se a existência de uma barreira das 16 semanas proporciona ou não a interrupção intempestiva e apressada de situações de gravidez (incluindo as desejadas), face à necessidade de cumprir os prazos legais das 16 semanas. Muitas das decisões do casal face a esta situação são povoadas por receios e por medos. O casal que possa suspeitar que eventualmente a mulher seja portadora de um feto com doença grave é muitas vezes pressionado por essa barreira de tempo a tomar uma decisão intempestiva de interrupção da gravidez antes das 16 semanas com receio de, se não o fizer nessa altura, daí resultar a impossibilidade de fazê-lo, quando o diagnóstico confirmar os receios às 18 ou às 19 semanas. Portanto, nessa circunstância, uma mulher que engravidou uma gravidez desejada ou, pelo menos, planeada pode ser confrontada com a circunstância de ser portadora de um feto doente e, para evitar o sofrimento resultante do nascimento desse feto, assumir a decisão penosa de interromper a gravidez, mesmo sem ter tempo de confirmar os seus receios.

O terceiro argumento é mais de natureza sócio-eco-hómica, realçando que as mulheres de determinado nível sócio-económico que têm gravidez tardia podem não conseguir ter acesso aos cuidados de saúde dentro deste prazo. Há em todas as sociedades, e na nossa também, um conjunto de mulheres que tem gravidez tardia, depois dos 35 anos e aos 40 anos, e que, pelo seu nível sócio-económico, não tem habitualmente acesso fácil aos serviços de diagnóstico pré-natal de forma a poderem ser habilitadas a tomar uma decisão com informação adequada sobre o futuro do feto antes das 16 semanas. Essa barreira tende a penalizar aquelas mulheres que, pela sua situação económica, têm acesso aos serviços médicos tardiamente.

Importa, manifestamente, aprofundar o debate sobre este ponto.

E — Aborto a pedido. — Em modalidades diversas, é aventada a consagração do aborto a pedido da mulher até

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II SÉRIE-A — NÚMERO 23

às 12 semanas, segundo o chamado «método dos prazos» (projecto de lei n.° 177/VTJ) ou até à 12 semana, segundo o método das indicações, com definição de uma «indicação social» formulada ém termos latos (projecto de lei n.° 236/VTJ).

As razões a favor e contra tal mudança legal foram exaustivamente discutidas nas audições públicas e continuarão seguramente a sê-lo — não foi possível nesta sede recorrer a dados de sociologia comparada para examinar a situação de países que consagraram esta modalidade de descriminalização. Afigura-se curial apurar o impacte efectivo e os custos sociais de cada uma das opções, matéria em que a análise da experiência alheia é importante. Constituem ponto de divergência entre os parlamentares e em toda a sociedade portuguesa.

Na interpretação do Supremo Tribunal dos EUA, expoente do chamado «modelo dos prazos», a autonomia pessoal da mulher deve prevalecer sobre a vida intra-uterina que não tenha ainda viabilidade autónoma — cf. a célebre síntese (e apologia) de Laurence Tribe, Abortion, The Clash of Absolutes, 1992). No seu Acórdão de 25 de Fevereiro de 1975, e mais recentemente no Acórdão de 28 de Maio de 1993, o Tribunal Constitucional alemão, célebre guardião do modelo das indicações, entendeu que nos termos constitucionais recai sobre a mulher o dever de garantir o normal desenvolvimento do feto, merecedor de protecção jurídica como vida em projecto. Tal só não acontecerá excepcionalmente, em circunstâncias que justifiquem considerar-se excessivo e logo «inexigível» o cumprimento desse dever.

Ressalvadas as significativas diferenças de filosofia, as soluções fundadas num e noutro dos modelos podem diluir--se, sobretudo face a normas que construam «indicações sociais» segundo fórmulas de contornos amplos.

No caso português, desde 1994-1995, é relevante lembrar que as indicações eugénica e ética, nos seus contornos actuais, já são, na substância, «indicações sociais». Este facto levou certos intérpretes a considerar que «o princípio da igualdade recomenda o acolhimento de uma expressa indicação social que afaste a punibilidade do aborto em casos de grave carência social — cf. Rui Pereira, O Crime de Aborto e a Reforma Penal», cit., p. 108.

As complexas questões que as propostas agora apresentadas suscitam no plano constitucional nunca foram apreciadas pelo órgão supremo de fiscalização em Portugal (por, em sede parlamentar, terem sido sempre reprovadas iniciativas legislativas com tal objectivo) e não serão analisadas no presente parecer.

0 relator poderia, sem dúvida, submeter nesta sede uma proposta de enquadramento das questões em apreço. Mas, segundo a orientação constante da Comissão, não tendo sido deduzido recurso contra a admissão dos projectos de lei n.05 177/VTI e 236/VTJ, por alegação de inconstitucionalidade, é no Plenário que tais questões podem vir a ser examinadas e nada poderia neste momento impedir o acesso a tal debate — nem isso seria desejável por bloquear a pública exposição de razões e argumentos, essencial para a assunção democrática de responsabilidades e convicções. A consciência das Deputadas e dos Deputados será deixada a opção final.

F — Outras questões:

1 — Despenalização da interrupção da gravidez fora das indicações e prazos estabelecidos pela lei. — O projecto de lei n.° 177/Vn despenaliza, no caso da mulher, a interrupção da gravidez fora das indicações e prazos estabelecidos pela lei e em quaisquer circunstâncias (de facto, elimina o n.° 3 do artigo 140." do Código Penal). É manifesto o propósito filantrópico da norma, suscitando os seus termos muito

melindrosos problemas. Não se fixando limite de tempo, mas não se tendo suprimido a norma que incrimina o infanticídio, decorre da proposta a despenalização do aborto até ao momento do nascimento e em quaisquer circunstâncias. Sobre a matéria, assinalou o CNECV:

Embora se trate de matéria de política criminal, não se pode deixar de apresentar veemente contestação, de raiz ética, a esta proposta. Em primeiro lugar, por a vida humana ser um bem jurídico-criminal, inviolável (Constituição da República Portuguesa, artigo 24.°, n.° 1), encontrando a- protecção que lhe é concedida a sua contrapartida na criminalização dos atentados a essa mesma vida, abrindo-se apenas excepções, ou seja, situações definidas como justificando a exclusão da ilicitude; em segundo lugar, por a lei penal se revestir de carácter preventivo e pedagógico que não deve ser subestimado; em terceiro lugar, por ser incoerente apre-' sentar-se um projecto pretensamente orientado no sentido de evitar o aborto clandestino e, ao mesmo tempo, facilitar-se a prática deste último, despenalizando-o (no que concerne à mulher).

Nos termos em que se acha redigida a proposta, ela suscita problemas de compatibilização com as normas constitucionais aplicáveis, continuando a punir os médicos, pressupondo a execução de aborto em circuito clandestino ou em auto-aborto e tratando da mesma forma o aborto por desespero e o aborto com quebra de regras fundamentais, de que um caso típico é o aborto por descoberta de que o feto é «do sexo errado» (pretendendo-se menina ou, muito mais frequentemente, menino); esta prática é lamentavelmente frequente em certos países (cf. o florescimento na índia de clínicas de ecografia com intervenção selectiva pré-aborti-va, fenómeno que suscita justificada preocupação nos fora internacionais de defesa dos direitos das mulheres), criando uma cláusula de exclusão de responsabilidade absoluta e não selectiva.

A questão a que se visa dar resposta (minorar o sofrimento da mulher) pode, porventura, ser equacionada e resolvida precisando, como faz o artigo 133.°, uma cláusula de exclusão de culpa da mulher quando aja em situações de desespero, emoção, inimputabilidade.

2 — Penalização da propaganda da interrupção voluntária da gravidez. — O CNECV considerou a proposta «desprovida de fundamento ético discernível», acrescentando:

De facto, se se pretende isentar a mulher gráyiàa de influências e comportamentos indutores, a medida proposta é inteiramente redundante, já que a legislação exige o consentimento informado ou esclarecido, e o que caracteriza esse consentimento é precisamente o seu carácter autónomo, após informação correcta,' total e isenta.

Suscita, porém, delicados problemas técnico-jurídicos e de política legislativa articulada. A norma é.do seguinte teor:

Quem, por qualquer modo, fizer propaganda ou publicidade de produto, método ou serviço próprio ou de outrem como meio de promover a interrupção voluntária da gravidez será punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.

Deixando de lado os problemas de distinção entre «propaganda» e «publicidade» (conceitos susceptíveis de serem

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