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0290 | II Série A - Número 016 | 31 de Janeiro de 2000

 

à laicidade do Estado, à liberdade religiosa e à igualdade de tratamento legal das igrejas e associações religiosas. O que se faz pelo presente diploma, sem prejuízo da aprovação futura de regulamentação sobre a liberdade religiosa que estatua detalhadamente, à luz destes princípios, os direitos e deveres das igrejas e demais associações religiosas e as suas relações com o Estado.
A pretendida clarificação política e legal do quadro respeitante às actividades das igrejas e demais associações religiosas à luz da Constituição parece dever tomar cinco direcções principais, coincidentes com as cinco áreas onde a violação dos princípios constitucionais parece mais evidente.
A primeira, respeita à necessidade central de pôr termo à vigência da Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa de 7 de Maio de 1940. Fulcro do tratamento político-religioso privilegiado da Igreja Católica, com discriminação clara e explícita das demais confissões religiosas - aliás mantida, senão reforçada, pela Lei n.º 4/71 aprovada no período marcelista - ela constitui o nó górdio da normalização democrática da questão religiosa em Portugal.
É sabido que as concordatas de entre as guerras, ao menos nos países latinos, foram historicamente formas de a Santa Sé celebrar alianças políticas e ideológicas objectivas com os regimes fascistas e autoritários de Mussolini, Salazar e Franco, mediante as quais a Igreja Católica obtinha largos privilégios espirituais e materiais e ampla liberdade de acção, na metrópole e nas colónias, condicionada ao respeito e ao apoio ideológico à ordem estabelecida. Só que esses regimes desapareceram e, em Itália (1976) e em Espanha (1979), as concordatas que lhe estavam associadas também. Em Portugal, a despeito da quase total derrogação prática da Concordata e do Acordo Missionário, ela mantém-se. E, no entanto, o império levou-o à descolonização; o veto político à nomeação dos bispos caiu em desuso; o monopólio do ensino católico nas escolas foi, pelo menos, restringido; a indissolubilidade do casamento católico foi revogada durante a revolução pelo Protocolo Adicional à Concordata de 1975 e o que sobrou da Concordata - o escândalo das isenções fiscais à Igreja - não sustenta, nem moral nem politicamente, a permanência deste instrumento herdado de um passado pouco dignificante de colaboração da hierarquia católica com a ditadura.
Bem pode dizer-se que, desde a celebração da Concordata até hoje, se verificou uma alteração profunda e substancial das circunstâncias em que a mesma se fundamentou, a consubstanciar um dos fundamentos de extinção de tratados pela invocação da cláusula rebus sic stantibus, admitido pela Convenção de Viena de 1969.
Terminar a vinculação do Estado Português à Concordata - no que muitos católicos estão hoje de acordo - é, pois, a primeira condição para uma clarificação e normalização das relações do Estado português com as confissões religiosas e para o pleno exercício da liberdade religiosa.
Acresce que algumas normas constantes da Concordata estão hoje feridas de inconstitucionalidade material face à Constituição em vigor, outras contradizem princípios reconhecidos pela Declaração Universal dos Direitos do Homem e pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que Portugal está obrigado a respeitar.
Por outro lado, é incontornável a competência da Assembleia da República para intervir na desvinculação dos tratados para cuja aprovação seja competente, na opinião consensual de consagrados constitucionalistas como Gomes Canotilho, Vital Moreira e Jorge Miranda.
A segunda questão decorre desta: trata-se da subsistência inadmissível do privilégio de que continua a gozar a Igreja Católica de não pagar impostos, o qual foi reforçado, quanto ao IVA, por diploma legal de Janeiro de 1990. A Igreja Católica, os seus membros e as suas instalações são a única associação religiosa que não paga IRS, IRC, IVA ou Sisa, o que, além de ser imoral, fere o princípio constitucional de igualdade de tratamento das confissões religiosas pelo Estado. Nem se diga que o privilégio se justificaria a título de compensação pelas expropriações da I República. Basta lembrar que os quase 60 anos de vigência da Concordata terão largamente indemnizado a Igreja por essas perdas. Convirá dizer, no entanto, que a solução não está, também, em qualquer espécie de fórmula compensatória para as demais igrejas e associações religiosas, numa habilidade típica de quem não queira tocar nos privilégios da hierarquia católica. Ou seja, mantendo a Concordata e as isenções fiscais da Igreja Católica, mas tentando estendê-las compensatória e parcialmente a algumas outras confissões religiosas (para o que se teria de definir administrativamente quais são as religiões susceptíveis de beneficiar delas!). A doutrina que decorre do princípio da laicidade do Estado é precisamente a inversa: as confissões religiosas não devem beneficiar de financiamento do Estado - a sua actividade pertence, por natureza, ao domínio do privado - salvo quando desenvolvam actividades de interesse público, sendo sabido que estas são muitas, que são importantes para a colectividade e que, a esse título, devem ser apoiadas. Não fazer isto é manter e agravar a intromissão discriminatória do Estado no domínio das actividades religiosas, onde, em rigor, só lhe compete intervir para assegurar a liberdade de associação e de expressão a todas as confissões, em pé de igualdade e nos limites da lei.
A terceira direcção respeita ao ensino público. Não tem sentido o Estado continuar a subsidiar o ensino religioso nas escolas públicas, mesmo que só em regime opcional. Desde logo, porque, na prática, isso só funciona, salvo raras excepções, para pagar o ensino católico; mas, principalmente, porque atenta contra o carácter laico da escola pública e põe os cidadãos sem religião ou com outras religiões a financiar o ensino de uma ou de algumas confissões. O ensino religioso deve ser mantido e assegurado pelos fiéis dos respectivos cultos, nos seus locais próprios, posto que, mais do que qualquer outro, esse é um assunto que respeita à consciência religiosa de cada um e não ao interesse geral de um Estado onde convivem todas as religiões sem existir oficialmente nenhuma.
A quarta orientação deduz-se de tudo o mais. Num Estado laico e separado das igrejas não é admissível, como hoje continua a ser prática corrente, a introdução de actos ou símbolos religiosos nas cerimónias de Estado, nos estabelecimentos públicos ou na programação normal dos órgãos de informação públicos, salvo, quanto a estes, em espaços reservados e devidamente assinalados para esse efeito. A laicidade dos espaços e actividades públicas, a não instrumentalização pelos agentes do poder político de qualquer religião não é um gesto contra elas, mas condição primeira de uma efectiva liberdade de associação e de expressão de todos os cultos.
Finalmente, e à luz do que se disse, impõe-se rever as normas assumidas de protocolo do Estado, onde usos herdados da época salazarista continuam a prever a representação - e a representação exclusiva - dos dignitários do

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