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Sexta-feira, 28 de Março de 2003 II Série-A - Número 82

IX LEGISLATURA 1.ª SESSÃO LEGISLATIVA (2002-2003)

S U M Á R I O

Decreto n.º 30/IX (Terceira alteração ao Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de Novembro (Revê, actualiza e unifica o Regime Jurídico dos Terrenos do Domínio Público Hídrico):
- Mensagem do Presidente da República devolvendo o Decreto que o Tribunal Constitucional, em sede de fiscalização preventiva, declarou inconstitucional em algumas das suas normas.

Decreto n.º 34/IX (Revoga o Rendimento Mínimo Garantido previsto na Lei n.º 19-A/96, de 29 de Junho, e cria o Rendimento Social de Inserção):
- Mensagem do Presidente da República sobre o sentido de recusa de promulgação e devolvendo o decreto para reapreciação.

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DECRETO N.º 30/IX
(TERCEIRA ALTERAÇÃO AO DECRETO-LEI N.º 468/71, DE 5 DE NOVEMBRO (REVÊ, ACTUALIZA E UNIFICA O REGIME JURÍDICO DOS TERRENOS DO DOMÍNIO PÚBLICO HÍDRICO)

Mensagem do Presidente da República devolvendo o Decreto que o Tribunal Constitucional, em sede de fiscalização preventiva, declarou inconstitucional em algumas das suas normas

Tenho a honra de enviar a V. Ex.ª fotocópia do Acórdão n.º 131/2003, proferido por este Tribunal no processo relativo à fiscalização preventiva da constitucionalidade da norma constante do n.º 8 da nova redacção que o artigo 1.º do Decreto n.º 30/IX da Assembleia da República dá ao artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de Novembro, e da norma constante do artigo 36.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de Novembro, na redacção que lhe é dada pelo artigo 1.º do Decreto n.º 30/IX da Assembleia da República, requerida por V. Ex.ª.

Lisboa, 11 de Março de 2003. - O Presidente do Tribunal Constitucional, José Manuel Moreira Cardoso da Costa.

[À ATENÇÃO DA INCM:
Para facilitar, envia-se aqui o texto deste anexo, mas sem qualquer revisão efectuada por estes serviços]

Anexo

Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 131/2003

Proc. n.º 126/03
Plenário
Rel.: Cons.º Gil Galvão

Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:

I - Relatório

1. Requerente e Pedido

O Presidente da República requereu, nos termos do artigo 278.°, n.os 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP) e dos artigos 51.°, n.º 1, e 57.°, n.º 1, da Lei sobre Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), a apreciação da constitucionalidade:

a) da norma constante do n.º 8 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de Novembro, na redacção que lhe é dada pelo artigo 1.º do Decreto n.º 30/IX da Assembleia da República;

b) da norma constante do artigo 36.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de Novembro, na redacção que lhe é dada pelo artigo 1.º do Decreto n.º 30/IX da Assembleia da República.

2. Fundamentos do Pedido

2.1. Alega o requerente:

"I.
1. Entre outras disposições, o Decreto da Assembleia da República nº 30/IX altera, no que respeita às Regiões Autónomas, a definição legal da delimitação da largura da margem das águas do mar, bem como das águas navegáveis ou flutuáveis sujeitas à jurisdição das autoridades marítimas ou portuárias.
2. Assim, segundo o disposto no novo n.º 7 do art. 3.º do Decreto-Lei nº 468/71, de 5 de Novembro, "nas Regiões Autónomas, se a margem atingir uma estrada regional ou municipal existente, a sua largura só se estenderá até essa via". Por outro lado, segundo o novo n.º 8 agora introduzido ao mesmo artigo, "o disposto no n.º anterior aplica-se a estradas regionais ou municipais a construir, mediante deliberação dos respectivos governos regionais [...]".
3. Uma vez que as margens das águas do mar e de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis, sempre que tais margens lhe pertençam, se consideram legalmente domínio público do Estado, as alterações legislativas em apreço integram, enquanto definição de bens de domínio público, a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República (artigo 165.º, alínea v), da Constituição).
4. O citado n.º 8 da nova redacção do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de Novembro, remete para deliberação dos governos regionais a definição da delimitação definitiva da margem quando esta atingir estradas regionais ou municipais a construir. Como esta remissão não tem a necessária densidade normativa e a deliberação dos governos regionais se faz, necessariamente, por acto administrativo, suscita-se-me a dúvida se a norma constante desse n.º 8 do referido artigo 3.º não estará, com um tal conteúdo, a violar o princípio da legalidade e da reserva de lei constitucionalmente garantidos.
5. Na medida em que o persistir da dúvida de constitucionalidade se poderia revelar de significativa gravidade em termos de insegurança das relações jurídicas constituídas ou a constituir ao abrigo da nova regulação, entendo como decisivo o esclarecimento preventivo desta questão por parte do Tribunal Constitucional.
II.
1. Nos termos do art. 36.º, n.º 1, da nova redacção do Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de Novembro, introduzida pelo artigo 1.º do Decreto da Assembleia da República n.º 30/IX, "os poderes conferidos pelo presente diploma ao Estado cabem nas Regiões Autónomas aos respectivos órgãos de governo próprio".
2. Assim, todos os poderes sobre o domínio público hídrico atribuídos pelo Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de Novembro, ao Estado passariam, nas Regiões Autónomas, a ser da competência dos respectivos órgãos de governo próprio. Porém, considerando que o domínio público marítimo tem, por natureza, um interesse relevante para a defesa nacional, suscita-se-me a dúvida de constitucionalidade se esta descentralização de poderes não contende com o princípio do Estado unitário, segundo o qual devem ser reservadas aos órgãos de soberania as tarefas e obrigações do Estado, designadamente as atinentes à defesa nacional".

2.2. Conclui o requerente, pedindo a apreciação da constitucionalidade:

a) da norma constante do n.º 8 da nova redacção que o artigo 1.º do Decreto n.º 30/IX da Assembleia da República dá ao artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de Novembro por eventual violação dos

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princípios da legalidade e da reserva de lei que se obtêm da interpretação conjugada do artigo 112.º, n.º 6, e do artigo 165º, [n.º 1] alínea v), da Constituição;

b) da norma constante do artigo 36.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de Novembro, na redacção que lhe é dada pelo artigo 1.º do Decreto n.º 30/IX da Assembleia da República, por eventual violação dos artigos 6.º, n.º 1, e 273.º, n.º 1, da Constituição.

3. Resposta do Órgão Autor das Normas

Notificado o Presidente da Assembleia da República, nos termos e para o efeito do preceituado nos artigos 54.º e 55.º da Lei do Tribunal Constitucional, limitou-se o mesmo a oferecer o merecimento dos autos e a juntar os Diários da Assembleia da República que contêm os relatos dos trabalhos preparatórios do diploma em apreciação.

4. As Normas Questionadas

É o seguinte o teor dos preceitos do Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de Novembro, na redacção que lhe é dada pelo artigo 1.º do Decreto n.º 30/IX da Assembleia da República, remetido à Presidência da República para ser promulgado como lei, cuja apreciação da constitucionalidade vem requerida ao Tribunal Constitucional:

Artigo 3.°
Noção de margem; sua largura

1 - (...)
2 - (...)
3 - (...)
4 - (...)
5 - (...)
6 - (...)
7 - (...)
8 - O disposto no número anterior aplica-se a estradas regionais ou municipais a construir, mediante deliberação dos respectivos governos regionais, após parecer das autarquias locais envolvidas, da autoridade marítima e portuária da administração regional competente e da respectiva capitania do porto.

Artigo 36.º
Entidades competentes nas Regiões Autónomas

1 - Os poderes conferidos pelo presente diploma ao Estado cabem nas Regiões Autónomas aos respectivos órgãos de governo próprio.
2 - (...).

5. Outras Normas Relevantes

Todavia, com interesse para a dilucidação das questões de constitucionalidade a resolver, apresentam-se outros preceitos do diploma em apreço:

Artigo 3.º
Noção de margem; sua largura

1 - Entende-se por margem uma faixa contígua ou sobranceira à linha que limita o leito das águas.
2 - A margem das águas do mar, bem como a das águas navegáveis ou flutuáveis sujeitas à jurisdição das autoridades marítimas ou portuárias, tem a largura de 50 m.
3 - A margem das restantes águas navegáveis ou flutuáveis tem a largura de 30 m.
4 - A margem das águas não navegáveis nem flutuáveis, nomeadamente torrentes, barrancos e córregos de caudal descontínuo, tem a largura de 10 metros.
5 - Quando tiver natureza de praia em extensão superior à estabelecida nos números anteriores, a margem estende-se até onde o terreno apresentar tal natureza.
6 - A largura da margem conta-se a partir da linha limite do leito. Se, porém, esta linha atingir arribas alcantiladas, a largura da margem será contada a partir da crista do alcantil
7 - Nas Regiões Autónomas, se a margem atingir uma estrada regional ou municipal existente, a sua largura só se estenderá até essa via.
8 - (...)

Artigo 5.°
Condição jurídica dos leitos, margens e zonas adjacentes

1 - Consideram-se do domínio público do Estado os leitos e margens das águas do mar e de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis, sempre que tais leitos e margens lhe pertençam, e bem assim os leitos e margens das águas não navegáveis nem flutuáveis que atravessem terrenos públicos do Estado.
2 - Consideram-se objecto de propriedade privada, sujeitos a servidões administrativas, os leitos e margens das águas não navegáveis nem flutuáveis que atravessem terrenos particulares, bem como as parcelas dos leitos e margens das águas do mar e de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis que forem objecto de desafectação ou reconhecidas como privadas nos termos deste diploma.
3 - (...)
4 - (...)

Artigo 7.º
Avanço das águas

1 - (...)
2 - Se as parcelas privadas contíguas a leitos dominiais forem invadidas pelas águas que nelas permaneçam sem que haja corrosão dos terrenos, os respectivos proprietários conservam o seu direito de propriedade, mas o Estado pode expropriar essas parcelas.

Artigo 9.º
Constituição da propriedade pública sobre parcelas privadas de leitos ou margens públicos

1 - Em caso de alienação, voluntária ou forçada, por acto entre vivos, de quaisquer parcelas privadas de leitos ou margens públicos, o Estado goza do direito de preferência, nos termos dos artigos 416.º a 418.º e 1410.º do Código Civil, podendo a preferência exercer-se, sendo caso disso, apenas sobre a fracção do prédio que, nos termos dos artigos 2.º e 3.º deste diploma, se integre no leito ou na margem.

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2 - O Estado pode proceder, nos termos da lei geral, a expropriação por utilidade pública de quaisquer parcelas privadas de leitos ou margens públicos sempre que isso se mostre necessário para submeter ao regime da dominialidade pública todas as parcelas privadas existentes em certa zona.
3 - (...)

Artigo 10.º
Delimitações

1 - A delimitação dos leitos e margens dominiais confinantes com terrenos de outra natureza compete ao Estado, que a ela procederá oficiosamente, quando necessário, ou a requerimento dos interessados.
2 - (...)
3 - (...)
4 - A delimitação, uma vez homologada pelos Ministros da Justiça e da Marinha, será publicada no Diário do Governo.

Artigo 12.º
Servidões sobre parcelas privadas de leitos e margens públicos

1 - Todas as parcelas privadas de leitos ou margens públicos estão sujeitas às servidões estabelecidas por lei e, nomeadamente, a uma servidão de uso público no interesse geral do acesso às águas e da passagem ao longo das águas, da pesca, da navegação ou flutuação, quando se trate de águas navegáveis ou flutuáveis, e ainda da fiscalização e polícia das águas pelas autoridades competentes.
2 - (...)
3 - (...)
4 - Se da execução pelo Estado de qualquer das obras referidas no n.º 3 deste artigo resultarem prejuízos que excedam os encargos resultantes das obrigações legais dos proprietários, o Estado indemnizá-los-á. Se se tornar necessária, para a execução dessas obras, qualquer porção de terreno particular, ainda que situada para além das margens, o Estado poderá expropriá-la.

Artigo 13.º
Zonas ameaçadas pelo mar

1 - Sempre que se preveja tecnicamente o avanço das águas do mar sobre terrenos particulares situados para além da margem, pode o Estado classificar a área em causa como zona ameaçada pelo mar.
2 - A classificação de uma área como zona ameaçada pelo mar será feita por decreto emanado do Ministério das Obras Públicas, ouvido o Ministério da Marinha e, tratando-se de zonas com interesse turístico, a Secretaria de Estado da Informação e Turismo.
3 - (...)
4 - Nas Regiões Autónomas podem ser classificadas como zonas ameaçadas pelo mar as áreas contíguas ao leito, nos termos do n.º 3 do artigo 4.º.

Artigo 26.º
Decurso do prazo

1 - (...)
2 - Em caso de concessão, as obras executadas e as instalações fixas revertem gratuitamente para o Estado; em caso de licença, devem ser demolidas pelo respectivo titular, salvo se o Estado optar pela reversão ou prorrogar a licença.
3 - (...)

Artigo 36°
Entidades competentes nas Regiões Autónomas

1 - (...)
2 - Nas áreas sob jurisdição portuária e nas Regiões Autónomas as competências conferidas pelo presente diploma são exercidas, respectivamente, pelos departamentos, organismos ou serviços a que legalmente estão atribuídas, e pelos departamentos, organismos ou serviços das respectivas administrações autónomas com atribuições correspondentes.

II. Fundamentação

6. A constitucionalidade da norma constante do n.º 8 do artigo 3º

6.1. Para o esclarecimento do disposto na norma em causa, importa ter presente a sua génese. Assim, a Assembleia Legislativa Regional da Madeira, através da Resolução n.º 23/2001/M, apresentou à Assembleia da República uma proposta de lei relativa à alteração do Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de Novembro, o qual, segundo o seu preâmbulo, visara, ao tempo da sua publicação, "rever, actualizar e unificar o regime jurídico dos terrenos incluídos no que se convencionou chamar o domínio público hídrico". Dessa proposta da Assembleia Legislativa Regional da Madeira, que veio a ter o número 99/VIII, fazia parte um novo número 7 do artigo 3º, do seguinte teor:

"7. Na Região Autónoma da Madeira, se a margem atingir uma via rodoviária pública, regional ou municipal, a sua largura só se estenderá até essa via rodoviária."

Na Assembleia da República, a proposta de lei n.º 99/VIII foi, por despacho do Presidente, remetida à Comissão do Poder Local, Ordenamento do Território e Ambiente, tendo esta emitido o seu parecer em 22 de Maio de 2002. Na discussão em Comissão, o Grupo Parlamentar do Partido Socialista suscitou uma eventual inconstitucionalidade material do diploma em apreciação quanto à reserva de competência da Assembleia da República relativamente à definição dos bens do domínio público. (Diário da Assembleia da República, II Série-A, n.º 8, de 25 de Maio de 2002). A proposta foi então discutida, na generalidade, na sessão plenária de 23 de Maio de 2002 (Diário da Assembleia da República, I Série, n.º 13, de 24 de Maio de 2002), tendo baixado de novo à Comissão, sem votação na generalidade (Diário da Assembleia da República, I Série, n.º 15, de 31 de Maio de 2002). Posteriormente, foi obtido um parecer do Governo Regional dos Açores, através do Secretário Regional do Ambiente (publicado no Diário da Assembleia da República, II Série-A, n.º 17, de

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29 de Junho de 2002), o qual propôs a seguinte redacção para o número 7 do artigo 3º:

"7. - Nas Regiões Autónomas da Madeira e dos Açores, se a margem atingir uma estrada regional ou uma estrada, arruamento ou caminho autárquico, a sua largura só se estenderá até à estrada regional ou estrada, arruamento ou caminho autárquico em causa".

Em 14 de Janeiro de 2003, após algumas vicissitudes, a 4ª Comissão votou a proposta de lei n.º 99/VIII na especialidade, tendo o anterior n.º 7 sido desdobrado, dando origem aos números 7 e 8 do artigo 3º, cuja redacção final veio a ser a seguinte:

"7. - Nas Regiões Autónomas, se a margem atingir uma estrada regional ou municipal existente, a sua largura só se estenderá até essa via.
8. - O disposto no número anterior aplica-se a estradas regionais ou municipais a construir, mediante deliberação dos respectivos governos regionais, após parecer das autarquias locais envolvidas, da autoridade marítima e portuária da administração regional competente e da respectiva capitania do porto."

O preceito do n.º 7 foi aprovado, em Comissão, por maioria, com os votos a favor do PSD e do CDS-PP e abstenções do PS e do PCP, verificando-se a ausência do BE e de Os Verdes. O preceito do n.º 8 foi aprovado, em Comissão, por maioria, com os votos a favor do PSD e do CDS-PP e contra do PS e do PCP, verificando-se a ausência do BE e de Os Verdes (Diário da Assembleia da República, II Série-A, n.º 58, de 16 de Janeiro de 2003).

Finalmente, a proposta de lei n.º 99/VIII foi aprovada em votação final global, na reunião plenária de 16 de Janeiro de 2003, com votos favoráveis do PSD e do CDS-PP e votos contrários do PS, do PCP, do BE e do PEV (Diário da Assembleia da República, I Série, n.º 75, de 17 de Janeiro de 2003).

Deste modo, nos termos do referido n.º7 e nas regiões autónomas, se a margem - isto é, a faixa contígua ou sobranceira à linha que limita o leito das águas - atingir uma estrada regional ou municipal já existente, os limites previstos nos números anteriores cedem, reduzindo-se a largura dessa margem à faixa de terreno compreendida entre o limite do leito e a referida estrada.

No que se refere, porém, às estradas a construir, de acordo com a interpretação do disposto no n.º 8 do artigo 3º feita pelo requerente e que o Tribunal acompanha, a aplicação da regra contida no número 7 - isto é, a fixação do limite da margem em termos diversos do disposto nos números anteriores - depende de deliberação dos respectivos governos regionais. O n.º 8 do artigo 3º do DL 468/71, na versão em análise, deixa assim em aberto os limites enunciados nos números anteriores, relativamente a casos em que se vierem a construir, nas regiões autónomas, estradas regionais ou municipais que ocupem, ao menos parcialmente, terrenos que, de acordo com os números 1 a 6 do citado artigo 3º, seriam considerados margem.

6.2. Ora, como se sabe, a problemática das margens insere-se no âmbito do domínio público hídrico, o qual diz respeito às águas públicas e integra o domínio público marítimo, o domínio público fluvial, o domínio público lacustre, além de outras águas. Abrange, além disso, não só as águas, mas também "os terrenos que interessam ou podem interessar à cabal produção ou defesa da utilidade pública dessas águas, como, v.g., os leitos e as margens" (Freitas do Amaral e José Pedro Fernandes, Comentário à Lei dos Terrenos do Domínio Hídrico, Coimbra, 1978, pgs. 33 e 34).

Por outro lado, de acordo com diferentes classificações do domínio público, este pode ser, quanto ao processo da sua criação, natural (por exemplo, o hídrico, o aéreo ou o mineiro) ou artificial (por exemplo, o cultural ou o militar); quanto à sua função, de circulação, cultural, militar, etc, sendo certo, porém, que normalmente o domínio de circulação é constituído por coisas que constituem elemento essencial de qualquer sistema de defesa nacional; e, quanto ao seu titular, do Estado, das regiões autónomas ou das autarquias locais. Pode ainda ser necessário do Estado, se só ao Estado puder pertencer, ou acidental, quando puder pertencer a outras entidades.

6.3. De acordo com o disposto na Constituição, pertencem ao domínio público (art.º 84º, n.º 1, alínea a)), não só as águas territoriais ( isto é, as águas exteriores - mar territorial e águas arquipelágicas, cujo regime é definido, principalmente, por convenções internacionais) com os seus leitos e os fundos marinhos contíguos, bem como os lagos, lagoas e cursos de água navegáveis ou flutuáveis, com os respectivos leitos, mas também (art.º 84º, n.º 1, alínea f)) outros bens como tal classificados por lei. Por sua vez, por força do disposto no n.º 1 do artigo 5º do Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de Novembro, pertencem ao domínio público (hídrico) do Estado as margens das águas públicas que lhe pertençam, incluindo nestas águas, além das atrás referidas, as águas do mar interiores (isto é, as compreendidas entre a linha da máxima baixa-mar de águas vivas equinociais e a linha da máxima preia-mar de águas vivas equinociais).

Por seu turno, ainda nos termos do citado artigo 84º da Constituição (n.º 2), "a lei define quais os bens que integram o domínio público do Estado, o domínio público das regiões autónomas e o domínio público das autarquias locais, bem como o seu regime, as condições de utilização e limites", o que, como afirmam Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra, 1993, pg. 414 (comentário ao art.º 84º CRP), implica "estabelecer não só a delimitação de certos bens face ao exterior (domínio público marítimo, etc.) mas também relativamente à propriedade particular confinante", sendo, embora, certo que, "quanto ao segundo aspecto, à lei compete apenas estabelecer os limites abstractos do domínio público, sem prejuízo naturalmente da solução judicial dos conflitos de delimitação concretos que possam surgir".

Acresce que é da exclusiva competência da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, legislar sobre "definição e regime dos bens do domínio público" (art. 165º, n.º 1, alínea v), da CRP).

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(art. 165º, n.º 1, alínea v), da CRP).

Neste sentido (veja-se Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 6ª edição, pgs. 724 e 725, Coimbra, 2002), existirá uma reserva de densificação total, já que a Constituição exige que determinadas matérias sejam disciplinadas na sua totalidade pela lei e não apenas uma mera reserva de densificação parcial, verificada quando a lei se limita a definir as bases ou o regime jurídico geral, consentindo o seu desenvolvimento quer através de decreto-lei, quer através de actos regulamentares. É claro que, como afirma o citado autor, "rigorosamente todas as reservas são "relativas" porque deixam aos órgãos concretizadores (administrativos ou jurisdicionais) uma margem maior ou menor de intervenção. Todavia, há uma grande diferença entre uma reserva de lei limitada a uma reserva de bases (cfr. arts. 164º/ i,165º/f), g), n), t), u) e z) ou até uma reserva de lei reconduzível a uma reserva de regime geral (cfr. art. 165º/d), e), h) e uma reserva de lei definidora de um regime jurídico global, como é o caso, por exemplo, da disciplina jurídica das eleições para os titulares de órgãos de soberania. Nesta última hipótese, a reserva será "absoluta" no sentido de a extensão da competência materialmente reservada à lei implicar a restrição radical da intervenção normativa de outras entidades (ex.: do "legislador-governo", do "governo-regulamentador"").

Ora, a Assembleia da República, ao remeter, nos casos previstos no n.º 8 do artigo 3º, a aplicação da regra contida no respectivo número 7 - isto é, a fixação do limite da margem em termos diversos do disposto nos números 2 a 5 do citado artigo 3º - para "deliberação" casuística dos respectivos governos regionais, sem fixar quaisquer critérios substanciais, abdicou da própria fixação dos critérios de definição dos limites da margem nos casos nele previstos, o que não é constitucionalmente admissível.

Consequentemente, há que concluir que a norma constante do n.º 8 do artigo 3º do Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de Novembro, na redacção que lhe é dada pelo artigo 1º do Decreto n.º 30/IX, viola o princípio da reserva de lei decorrente das disposições conjugadas dos artigos 165º, n.º 1, alínea v), e 84º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.

7. A constitucionalidade da norma constante do n.º 1 do artigo 36º

7.1. No que se refere à segunda questão de constitucionalidade suscitada - a da norma constante do n.º 1 do artigo 36º do Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de Novembro, na redacção que lhe é dada pelo artigo 1º do Decreto n.º 30/IX da Assembleia da República - verifica-se que, embora o requerente, inicialmente, faça menção aos poderes do Estado que passariam para as regiões autónomas no âmbito do domínio público hídrico, vem, de seguida, circunscrever a sua dúvida sobre a constitucionalidade da norma em causa ao âmbito do domínio público marítimo, dado o facto de este ter, "por natureza, um interesse relevante para a defesa nacional".

Assim, em relação à questão da constitucionalidade da citada norma constante do n.º 1 do artigo 36º, limitar-se-á a respectiva apreciação ao caso em que os poderes conferidos ao Estado pelo Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de Novembro, se exercem no âmbito do domínio público marítimo.

7.2. Importa, então, começar por fixar o sentido do conceito de "domínio público marítimo".

É entendimento pacífico, em Portugal, que o denominado domínio público marítimo integra, além das águas territoriais, com os seus leitos e os fundos marinhos contíguos (previstos na alínea a) do n.º 1 do artigo 84º e cujos limites são fixados por lei, nos termos do n.º 1 do artigo 5º, ambos da Constituição), as águas do mar interiores e, ainda, as demais águas sujeitas à influência das marés, bem como os respectivos leitos e margens, desde que estes terrenos pertençam ao Estado (artigos 1º, 2º, 3º e 5º do Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de Novembro). É o que resulta da alínea a) do artigo 4º do Decreto-Lei n.º 477/80, de 15 de Outubro, em que, para efeitos de inventário do património do Estado, se consideram integradas no domínio público do Estado "as águas territoriais com os seus leitos, as águas marítimas interiores com os seus leitos e margens e a plataforma continental" e nesse sentido se exprime também a doutrina (veja-se, por exemplo, Freitas do Amaral e José Pedro Fernandes, Comentário à Lei dos Terrenos do Domínio Hídrico, Coimbra, 1978, pg. 39 e Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, Tomo II, 9ª edição, Coimbra, 1980, pgs. 900 e 901).

Torna-se, assim, manifesto que o domínio público marítimo resultante do disposto na lei compreende, nomeadamente por razões de necessária acessoriedade - as margens são indispensáveis para possibilitar a utilização das águas -, as faixas de terreno, legalmente qualificadas como margem, que sejam contíguas a águas do mar ou às demais águas sujeitas à influência das marés, desde que esses terrenos estejam na pertença do Estado, o qual, por sua vez, beneficia de uma presunção juris tantum de que os mesmos são propriedade pública (cfr. artigos 5º e 8º do Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de Novembro).

7.3.Definidos os terrenos que integram o domínio público marítimo e cujo regime é regulado pelo Decreto-Lei n.º 468/71, importa ainda, antes de analisar a questão de constitucionalidade aqui em causa, verificar se o domínio público marítimo mantém a sua natureza estadual ou se, ao invés, terá sido objecto de transferência para as regiões autónomas. E isto porque, se acaso o domínio público marítimo do Estado tiver sido objecto de transferência para as regiões autónomas, tal facto não deixará de ser relevante para a decisão que se tomar quanto aos poderes que lhe estão associados.

Com efeito, de acordo com o disposto no artigo 112º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores (Lei 61/98, de 27 de Agosto), "1. Os bens do domínio público situados no arquipélago pertencentes ao Estado, bem como aos antigos distritos autónomos, integram o domínio público da Região.

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2. Exceptuam-se do domínio público regional os bens que interessam à defesa nacional e os que estejam afectos a serviços públicos não regionalizados, desde que não sejam classificados como património cultural". Por outro lado, disposição semelhante tem o artigo 144º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira (Lei n.º 130/99, de 21 de Agosto), apenas com a diferença de que são referidos "bens afectos à defesa nacional" em vez de "bens que interessam à defesa nacional".

Este Tribunal, na esteira, aliás, da Comissão Constitucional - em cujo Parecer n.º 26/80 se escreve "cremos que o n.º 2 do artigo 76º [do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira então em apreciação] excluindo do domínio público regional "os bens que interessam à defesa nacional e os que estejam afectos a serviços públicos não regionalizados" quer abranger o domínio público marítimo, aéreo, etc." -, já afirmou, porém, de forma clara, no Acórdão 330/99 (Diário da República, I Série-A, de 1 de Julho de 1999, pg. 4066), que "não é constitucionalmente possível integrar o domínio público marítimo no domínio público da Região". Nesse acórdão faz-se referência à ideia de que os leitos e as margens das águas do mar são bens dominiais naturais que pertencem ao "domínio público necessário" do Estado, preenchido pelos bens que não podem pertencer senão ao Estado soberano - Estado unitário, à luz do artigo 6º da Constituição - "e o seu estatuto jurídico não pode ser outro senão o da dominialidade" (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, Anotada, Coimbra, 1993, pg. 412) e também à opinião de Rui Medeiros e Jorge Pereira da Silva, Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores - Anotado, Lisboa, 1997, pgs. 248 e 249, onde, sobre o tema que ora nos ocupa, é afirmado o seguinte:
"
II A existência de bens de domínio público regionais constitui um corolário da autonomia político-administrativa das Regiões Autónomas e não merece censura constitucional. Com efeito, os bens do domínio público não são, necessariamente, pertença do Estado. [...]
A Constituição actual consagra e reforça a concepção descentralizada do domínio público (v. JOSÉ MAGALHÃES, Dicionário da Revisão Constitucional, Mem Martins, 1989, pág. 48). Por proposta dos deputados eleitos pelos círculos eleitorais das regiões autónomas, o n.º 2 do artigo 84º da Constituição remete para a lei - desde logo, para os estatutos regionais - a definição dos bens que integram o domínio público do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais. Essa definição, bem como o regime de quaisquer bens que integram o domínio público, cabe no âmbito da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República (alínea z) do n.º l do artigo l68º da Constituição - [actualmente 165º, 1, v)] ).
III O Estatuto restringe, porém, excessivamente, o âmbito do domínio público do Estado, visto que integra no património das regiões a generalidade dos bens de domínio público aí situados e as únicas excepções que admite respeitam aos bens que interessam à defesa nacional ou que estejam afectos a serviços públicos não regionalizados. [...].
Uma possível via para tentar salvar o artigo 104º [actual 112º] é o recurso à chamada interpretação conforme à Constituição. Assim, por exemplo, em relação ao domínio público marítimo, a Comissão do Domínio Público Marítimo entende que não pode haver dúvidas de que o domínio público marítimo - e, obviamente, não só o que se situa no Continente - interessa essencialmente e por declaração implícita à defesa nacional. Do mesmo modo, para EDUARDO PAZ FERREIRA (v. Domínio..., cit., pág. 75, em nota), a disposição estatutária só não briga com a Constituição se se entender que com a referência aos bens com interesse para a defesa nacional se "quer abranger o domínio marítimo, aéreo, etc" [...]. Mas, não sendo possível o recurso à interpretação conforme à Constituição, terá de se concluir que a solução estatutária é inconstitucional.
a) Sublinhe-se, como ponto de partida, que o n.º 2 do artigo 84º da Constituição de 1976, embora consagre uma concepção descentralizada do domínio público (v. JOSÉ MAGALHÃES, Dicionário..., cit., pág. 48), não dá um cheque em branco ao legislador. Conforme sublinha a jurisprudência portuguesa, os bens indissociavelmente ligados à soberania não podem pertencer ao domínio público regional, devendo permanecer integrados no domínio público necessário do Estado, tomado este na acepção de pessoa colectiva de direito público que tem por órgão o Governo (v. Parecer da Comissão Constitucional n.º 26/80; Parecer da Procuradoria-Geral da República n.º 10/82; Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 280/90). [...] MARCELLO CAETANO escreve que "nem todas as coisas públicas são susceptíveis de transferência de domínio: há um limite funcional à mutabilidade, isto é, a transferência só pode verificar-se entre pessoas colectivas que desempenhem as mesmas atribuições administrativas. Por isso o domínio militar não pode deixar de pertencer ao Estado; e o mesmo se dirá dos direitos exercidos sobre as águas marítimas ou o espaço aéreo" (v. Manual..., cit., II, pág. 953). GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (v. Constituição..., cit., pág. 858) adoptam a mesma conclusão: "dada a natureza não soberana das regiões autónomas, elas não podem ser titulares daquele domínio público intrinsecamente ligado à soberania do Estado (mar territorial, etc.), sem prejuízo das competências administrativas que lhe sejam atribuídas sobre ele".
b) Concretamente, a referência estatutária de que pertencem ao Estado os bens que "interessam à defesa nacional" não pode de modo algum conduzir ao entendimento (restritivo) de que essa expressão equivale a "domínio público militar" [...]. Não é constitucionalmente possível integrar o domínio público marítimo no domínio público da Região.
O exemplo de Direito Comparado é sugestivo. Em Itália, o artigo 32º do Estatuto da Sicília colocou também já o problema análogo da determinação da titularidade estadual ou regional das águas marítimas sicilianas. A Corte Costituzionale acabou por decidir que, apesar de o domínio público marítimo não ser expressamente excepcionado no teor literal do referido preceito do âmbito do domínio da Sicília, deveria ser dele excluído dado que se trata de um bem que interessa manifestamente à defesa nacional. É idêntica a posição defendida pela doutrina mais autorizada (v. VEZIO CRISAFULLI- LIVIO PALADIN, Comentario Breve alla Costituzione, Pádua, 1990, pág. 726). Em Espanha, o n.º 2 do artigo 132º da Constituição de 1978 resolveu expressamente a questão ao considerar que "são bens de domínio público estatal os que a lei determinar e, em todo o caso,

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a zona marítimo-terrestre, as praias, o mar territorial e os recursos naturais da zona económica e da plataforma continental"".

Este ponto de vista tem sido, aliás, corroborado pelas mais diversas entidades que sobre o tema se têm pronunciado. Nesse sentido, podem citar-se os pareceres da Procuradoria-Geral da República n.º 92/88, de 12 de Janeiro de 1989 (publicado em Pareceres da Procuradoria-Geral da República, Volume III, pgs. 573 e sgs.), e n.º 16/91 (publicado no Diário da República, II-Série, 20 de Setembro de 1986, pag. 13255 e sgs), onde se afirma (pag. 13265) que "aceite a distinção entre "domínio acidental e necessário, aqui incluindo o domínio marítimo, hídrico e militar", o domínio necessário, salienta-se, "continua a pertencer exclusivamente ao Estado". Não sendo, assim, possível admitir "a transferência dos bens em apreço para as regiões", só poderá, de resto, subscrever-se a constitucionalidade de uma disposição tal como a do n.º 1 do artigo 104º [actual 112º] do Estatuto dos Açores ou do artigo 76º [actual 144º] do Estatuto da Madeira, se se entender que a excepção feita aos "bens que interessem à defesa nacional e os que estejam afectos a serviços públicos não regionalizados" compreende os "que se incluem no domínio marítimo e no domínio aéreo". Basta, inclusive, recordar o "âmbito de aplicação nacional" do "sistema da autoridade marítima" para facilmente se concluir que os leitos e margens do domínio público do Estado, para além de interessarem à defesa nacional, se encontram afectos a serviços públicos não regionalizados".

No mesmo sentido se pronunciou também a Comissão do Domínio Público Marítimo, órgão consultivo da Autoridade Marítima Nacional, no seu parecer n.º 5111, de Novembro de 1987 (in Boletim da Comissão do Domínio Público Marítimo, n.º 101, 1987, pg. 158 e sgs.), onde se concluiu que "(...) o artigo 104º [actual 112º] do Estatuto da Região Autónoma dos Açores, nomeadamente o seu número 2, combinado com as disposições aplicáveis do Decreto-Lei 300/84, (...) conduz necessariamente à conclusão de que as áreas do domínio público marítimo situadas nos Açores porque interessam à defesa nacional por declaração implícita da lei, não podem ser integradas no elenco dos bens dominiais pertencentes à Região Autónoma, pelo que continuam pertencendo ao Estado, ficando, portanto, sujeitas ao mesmo regime das áreas homólogas sitas no Continente".

E a mesma doutrina está subjacente à Recomendação 2/A/02, formulada pelo Provedor de Justiça em 1 de Março de 2002 (ver em http://www.provedor-jus.pt/ultimas/recomendacoes2002/r%2D2a02.htm).

Esta conclusão parece, aliás, ressaltar reforçada do disposto em alguns diplomas mais recentes. Assim, em 2 de Março de 2002, foram publicados, no âmbito do Ministério da Defesa Nacional, diversos diplomas legais reguladores de matérias conexas com o domínio público marítimo, a saber: o Decreto-Lei n.º 43/2002, que define a organização e atribuições do sistema de autoridade marítima nacional e cria a autoridade marítima nacional, o Decreto-Lei n.º 44/2002, que estabelece, no âmbito do sistema de autoridade marítima, as atribuições, a estrutura e a organização da autoridade marítima nacional e cria a Direcção-Geral da Autoridade Marítima e o Decreto-Lei n.º 45/2002, que estabelece o regime das contra-ordenações a aplicar nas áreas sob jurisdição da autoridade marítima nacional. E embora o Decreto-Lei n.º 43/2002 considere, para efeitos do nele disposto, "espaços marítimos sob jurisdição nacional" as águas interiores, o mar territorial e a plataforma continental (artigo 4º, n.º 1), não deixa de considerar atribuições do sistema de autoridade marítima (SAM) a "segurança da faixa costeira e no domínio público marítimo e das fronteiras marítimas e fluviais, quando aplicável" (artigo 6º, n.º 2, alínea m)). O Decreto-Lei n.º 44/2002, por sua vez, determina que a Autoridade Marítima Nacional (AMN), por inerência o Chefe do Estado-Maior da Armada, é responsável pela coordenação das actividades, de âmbito nacional, a executar pela Marinha e pela Direcção-Geral da Autoridade Marítima (DGAM), compreendendo esta órgãos regionais (entre os quais os Departamentos Marítimos dos Açores e da Madeira), directamente dependentes do Director-Geral da Autoridade Marítima (por inerência o Comandante-Geral da Polícia Marítima) e órgãos locais (as capitanias dos portos, dirigidas por capitães dos portos). Os capitães dos portos, além das funções de autoridade marítima, têm, no âmbito da protecção e conservação do domínio público marítimo e da defesa do património cultural subaquático, competência para "fiscalizar e colaborar na conservação do domínio público marítimo, nomeadamente informando as entidades administrantes sobre todas as ocupações e utilizações abusivas que nele se façam e desenvolvam" [artigo 13.º, 8, alínea a)].

Nesse mesmo dia 2 de Março de 2002, foram igualmente publicados, no âmbito do Ministério do Equipamento Social, os Decretos-Leis n.ºs 46/2002, 47/2002 e 49/2002 que estabelecem regras aplicáveis nas áreas de jurisdição das autoridades portuárias, as quais sempre gozaram de competências próprias, havendo ainda que referir a criação, em 22 de Novembro de 2002, do Instituto Portuário e dos Transportes Marítimos (IPTM), resultante da fusão de alguns institutos com jurisdição em certas áreas do Continente (nas regiões autónomas existem, integradas na administração regional, as Juntas Autónomas dos Portos de Angra do Heroísmo, Horta e Ponta Delgada e a Administração dos Portos da Região Autónoma da Madeira). Esse Instituto tem jurisdição, nas áreas que cobre, sobre as zonas dentro dos limites da largura máxima legal do domínio público marítimo, os canais de navegação e as zonas flúvio-marítimas e as terrestres, considerando-se integrados no domínio público do Estado afecto ao IPTM os terrenos situados dentro da área de jurisdição do IPTM, que não sejam propriedade municipal ou de particulares, bem como os cais, docas, obras de acostagem e outras obras marítimas neles existentes. Ficam, todavia, excluídas "as áreas molhadas e terrestres afectas à defesa nacional, bem como as indispensáveis à execução de outros serviços públicos definidos na legislação em vigor" (artigo 6.º, Decreto-Lei n.º 257/2002, de 22 de Novembro).

Finalmente, em 20 de Janeiro de 2003, após debate na Assembleia da República (Sessão Plenária de 20 de Novembro de 2002, Diário da Assembleia da República, I Série, n.º 57, de 21 de Novembro de 2002) das Grandes Opções do Conceito Estratégico de Defesa Nacional, foi publicada (Diário da República, I Série B, de 20 de Janeiro) a Resolução do Conselho de Ministros n.º 6/2003, que aprova o Conceito Estratégico de Defesa Nacional. Neste se

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afirma, nomeadamente, que "a política de Defesa Nacional tem como um dos objectivos a Segurança e Defesa do território nacional em toda a sua extensão, que abrange o Continente, Açores e a Madeira. Na definição dessa política, devem inscrever-se os seguintes elementos matriciais, considerados como Espaço Estratégico de Interesse Nacional Permanente: o território que se define, nas suas referências cardeais, entre o ponto mais a Norte, no concelho de Melgaço, até ao ponto mais a Sul, nas ilhas Selvagens; e do seu ponto mais a Oeste, na ilha das Flores, até ao ponto mais a Leste, no concelho de Miranda do Douro; o espaço de circulação entre as parcelas do território nacional, dado o seu carácter descontínuo; os espaços aéreo e marítimo sob responsabilidade nacional, as nossas águas territoriais, os fundos marinhos contíguos, a zona económica exclusiva e a zona que resultar do processo de alargamento da plataforma continental". Por sua vez, no capítulo sobre as ameaças relevantes, é afirmado que "é, por isso, de interesse estratégico prioritário, para Portugal, que a Defesa Nacional dê prioridade, no quadro constitucional e legal: às acções de fiscalização, detecção e rasteio do tráfico de droga nos espaços marítimo e aéreo sob jurisdição nacional, auxiliando as autoridades competentes no combate a este crime [...]". Tudo isto leva a que as Forças Armadas devam ter "capacidade de vigilância e controlo do território nacional e do espaço interterritorial, nele se incluindo a fiscalização dos espaços aéreo e marítimo nacionais."

Podemos deste modo concluir que, designadamente por força do princípio da unidade do Estado e da obrigação que lhe incumbe de assegurar a defesa nacional, nos termos do artigo 273º da Constituição, não é possível a transferência para os governos regionais de determinados bens, nomeadamente os que integram o domínio público marítimo, domínio público necessário do Estado. Assim sendo, os Estatutos Político-Administrativos das Regiões Autónomas não operaram qualquer transferência desses bens do domínio público marítimo, que continuam, assim, a ser bens do Estado.

7.4. Assente que o domínio público marítimo, no qual se integram os leitos das águas do mar e, por conexão necessária, as respectivas margens, cujo regime se encontra previsto no Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de Novembro, se mantém domínio público do Estado, importa agora verificar se a norma contida no n.º 1 do artigo 36.º daquele diploma é compatível com a Constituição. Como se referiu já, é o seguinte o teor do citado n.º 1: "Os poderes conferidos pelo presente diploma ao Estado cabem nas Regiões Autónomas aos respectivos órgãos de governo próprio".

Ora, é corolário necessário da não transferibilidade dos bens do domínio público marítimo do Estado a impossibilidade de transferência dos poderes que sejam inerentes à dominialidade, isto é, os necessários à sua conservação, delimitação e defesa, de modo a que tais bens se mantenham aptos a satisfazer os fins de utilidade pública que justificaram a sua afectação.
Esta tese, indubitavelmente correcta, foi recentemente desenvolvida no parecer que a Comissão do Domínio Público Marítimo elaborou precisamente sobre o n.º1 do artigo 36º do Decreto-Lei n.º 468/71, que ora nos ocupa. Nesse parecer (n.º 5945, de 18 de Janeiro de 2002, publicado no Boletim da Comissão do Domínio Público Marítimo, n.º 116, 2002, pgs. 12 a 17), a Comissão afirma que: "como decorre de tudo o que já se deixou dito, também a redacção proposta para este artigo 36º não pode merecer o acordo desta Comissão, dado que ela significa, de forma ainda mais clara e directa do que as propostas anteriores, a total regionalização das áreas dominiais que, como dissemos repetidamente, fazem parte do domínio público do Estado que se encontra integrado no sistema de Defesa Nacional e, portanto, não regionalizável, conforme esclarecem os Estatutos Político-Administrativos das Regiões Autónomas da Madeira e dos Açores. [...] Perante preceito tão drástico, até a própria defesa jurídica da dominialidade e da titularidade dos direitos de propriedade pública respectivos relativamente às margens - poderes que têm, nos processos de delimitação do domínio público marítimo, a sua expressão mais relevante - seriam subtraídos à autoridade do Estado. [...]
Outro tanto se não diria da transferência de poderes secundários, que não afectasse a autoridade suprema do Estado nesta matéria, porque seriam configurados como delegação administrativa de competências nos órgãos ou serviços das Regiões Autónomas. De resto, tal possibilidade já foi encarada favoravelmente por esta Comissão, no seguimento de uma sugestão da Região Autónoma dos Açores, da qual resultou o Parecer nº 5880 [...]."

Por outro lado, o próprio Tribunal Constitucional já considerou, no seu Acórdão n.º 458/93, de 12 de Agosto de 1993 (Diário da República, I Série-A, de 17 de Setembro de 1993), que os órgãos dos governos regionais "não dispõem de competência em matérias de segurança interna ou externa do Estado" e que a lei não pode "delegar a favor das regiões autónomas competências próprias da soberania, sob pena de violação do artigo 113º da Constituição".

É, assim, possível afirmar, como o fazem Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa, Anotada, Coimbra, 1993, pgs. 733 e 858), que existe uma "reserva de governo da República", nomeadamente em matéria de "relações externas, defesa, [...] gestão do espaço aéreo e marítimo", e que não podem ser transferidas para as regiões funções como as de "defesa nacional [...] do controlo do espaço aéreo e do domínio público marítimo". Torna-se, portanto, claro que a autonomia das regiões não afecta a soberania do Estado, devendo, para tal, ser "reservados ao aparelho de Estado todos os poderes tidos por constitucionalmente necessários para que o sistema funcione unitariamente [...]" (Carlos Blanco de Morais, A Autonomia Legislativa Regional, Lisboa, 1993, pag. 405).

Entre os poderes expressamente conferidos ao Estado no Decreto-Lei n.º 468/71 e que se pretende, por força do disposto no n.º 1 do artigo 36º, em apreciação, transferir para "os órgãos de governo próprio" das Regiões Autónomas, encontram-se, seguramente, poderes inerentes à dominialidade, necessários para a sua conservação, delimitação e defesa. Ora, tendo-se concluído, como vimos, que as margens das águas do mar integram, nos termos previstos na lei, o domínio público marítimo e que os bens deste domínio

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público, nomeadamente por força do princípio da unidade do Estado e da obrigação que lhe incumbe de assegurar a defesa nacional, nos termos do artigo 273º da Constituição, não foram transferidos para as regiões autónomas, daí necessariamente decorre que não é possível transferir para "os órgãos de governo próprio" das regiões autónomas os poderes inerentes à dominialidade daqueles bens previstos no Decreto-Lei 468/71 e abrangidos pela previsão do artigo 36.º, n.º 1, cuja constitucionalidade se está a apreciar.

Por tudo quanto se deixa dito, há que concluir pela inconstitucionalidade da norma contida no n.º 1 do artigo 36.º do Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de Novembro, na redacção que lhe é dada pelo artigo 1.º do Decreto n.º 30/IX da Assembleia da República, dado que opera uma transferência para os órgãos de governo próprio das regiões autónomas de poderes do Estado inerentes à dominialidade dos terrenos do domínio público marítimo, insusceptíveis, por força do princípio da unidade do Estado e da obrigação que lhe incumbe de assegurar a defesa nacional, nos termos do artigo 273º da Constituição, de transferência para as Regiões Autónomas.

III - Decisão

Nestes termos, o Tribunal Constitucional pronuncia-se:

a) pela inconstitucionalidade da norma constante do n.º 8 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de Novembro, na redacção que lhe é dada pelo artigo 1º do Decreto da Assembleia da República n.º 30/IX, por violação do princípio da reserva de lei decorrente das disposições conjugadas dos artigos 165.º, n.º 1, alínea v), e 84.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa;
b) pela inconstitucionalidade da norma constante do n.º 1 do artigo 36.º do Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de Novembro, na redacção que lhe é dada pelo artigo 1.º do Decreto da Assembleia da República n.º 30/IX, na medida em que se refere ao domínio público marítimo, por violação do princípio da unidade do Estado decorrente das disposições conjugadas dos artigos 6.º, n.º 1, e 273.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

Lisboa, 11 de Março de 2003
Gil Galvão
Maria Helena Brito
Maria Fernanda Palma
Mário Torres
Benjamim Rodrigues
Luís Nunes de Almeida
Artur Maurício
Paulo Mota Pinto
Alberto Tavares da Costa
Bravo Serra
Pamplona de Oliveira , com declaração que junto.
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (com declaração relativa à alínea a).
José Manuel Cardoso da Costa

Declaração de voto

Votei a decisão, embora com a divergência relativa à fundamentação que muito esquematicamente se traduz no seguinte:

Quanto à primeira alínea da decisão, entendo que a norma em análise infringe também o princípio da legalidade exactamente nos termos invocados, a este propósito, pelo Presidente da República.
Quanto à segunda alínea, entendo que o fundamento da inconstitucionalidade material é outro, pois, tomando por mera deficiência a técnica legislativa que transparece da norma ao pretender atribuir a órgãos das Regiões Autónomas os poderes pertencentes à pessoa colectiva Estado, o vício de inconstitucionalidade não radica - salvo o devido respeito por opinião diversa - na violação do princípio da unidade do Estado, mas na violação do princípio da legalidade; é que o núcleo essencial dos poderes relativos ao domínio público necessário do Estado não pode ser entregue às Regiões Autónomas por força do disposto nos artigos 84.º, n.º 2, 111.º, n.º 2, e, a contrario, pela alínea h) no n.º 1 do artigo 227.º, todos da Constituição.

Pamplona de Oliveira

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Declaração de voto

1 - Em meu entender, o n.º 8 que o Decreto n.º 30/IX da Assembleia da República veio acrescentar ao artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de Novembro, deveria ser interpretado de forma a que a deliberação nele referida fosse entendida como a deliberação de construir a estrada; com esse sentido, não me teria pronunciado pela inconstitucionalidade.
O acórdão, todavia, perfilhou uma interpretação diferente, na verdade também permitida pela letra do preceito.
Assim sendo, e tendo em conta a definição da norma objecto do presente processo com o sentido definido pela maioria do Tribunal, pronunciei-me no sentido da sua inconstitucionalidade, mas por fundamentação diversa da que fez vencimento.
2 - O fundamento do acórdão, no que respeita ao n.º 8 do artigo 3.º, assim entendido, é o de que a reserva de lei, em matéria de definição dos limites do domínio público, constitui uma reserva de "densificação total", com exclusão da intervenção normativa de outras entidades, e não uma reserva de mera "densificação parcial", como a que existe quando a lei se limita a definir as bases gerais ou o regime geral de determinado assunto, consentindo o seu desenvolvimento através de decreto-lei ou de actos regulamentares.
A verdade, porém, é que o n.º 8 do artigo 3.º não contém um reenvio normativo, não faz uma remissão para normas legais ou regulamentares de carácter secundário. O efeito do n.º 8 do artigo 3.º é, sim, o de atribuir aos governos regionais um poder de decisão concreta para determinar, em relação a cada estrada regional ou municipal que no futuro venha a ser construída na proximidade de águas públicas, se a largura da margem deve estender-se para lá da estrada a construir.
Trata-se, pois, de um poder discricionário, não de um poder regulamentar, o que assume a maior relevância do ponto de vista do alcance e das implicações do princípio da reserva de lei.
Com efeito, a exclusão de poderes normativos secundários, nomeadamente sob a forma de regulamentos independentes, não acarreta em si mesma uma proibição constitucional de atribuição de poderes discricionários aos órgãos da Administração.
A relação entre normas não é equiparável à relação entre norma e acto. O reenvio para normas de grau inferior diz respeito à estrutura do sistema de fontes e tem por objecto uma função que as normas superiores podem reservar

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integralmente para si. A atribuição de poderes discricionários destina-se a viabilizar o exercício de uma função que, por não ser normativa, não concorre com a lei nem opera no mesmo plano que ela.
Por isso entendo que a reserva de lei, ainda que entendida como uma reserva de "densificação total" no sentido dado a esta expressão pelo acórdão, não acarreta normalmente uma exigência estrita de tipicidade, expressa na definição de vinculações normativas absolutamente fechadas, como sucede no direito criminal ou no direito fiscal (nullum crimen, nullum tributum sine lege).
Na maioria dos casos, a reserva de lei conduzirá apenas a um reforço das exigências do princípio da legalidade, através de limites mais apertados postos à concessão de poderes discricionários, sem no entanto os proibir liminarmente.
A prática legislativa comprova-o, mesmo nas matérias mais sensíveis do ponto de vista constitucional, como é o caso dos direitos fundamentais.
Saber quais devam ser os limites da discricionaridade constitucionalmente possível constitui uma difícil questão teórica, que entre nós tem sido analisada por diversos autores (cfr. SÉRVULO CORREIA, Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, Coimbra, 1987, págs. 334-340, JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Tomo V, 2ª ed., Coimbra, 2000, págs. 217-220 e VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 2ª ed., Coimbra, 2001, págs. 340-348), com resultados nem sempre coincidentes.
Em minha opinião, era este caminho que deveria ter sido seguido, analisando especialmente a razão de ser da reserva de lei em matéria de definição dos limites do domínio público. Na ausência dessa análise, poderei apenas adiantar que a discricionaridade conferida aos governos regionais para a determinação dos limites das margens das águas públicas, embora restringida à faixa interior das estradas a construir (o que salvaguardaria a extensão mínima essencial da margem, à luz da norma do n.º 7 do mesmo artigo 3.º), se me afigura, por um lado, insuficientemente justificada do ponto de vista da variabilidade previsível das situações a regular e, por outro lado, desacompanhada de quaisquer critérios legais orientadores do seu exercício.
Daí que me pareça ter sido ultrapassado, pela norma em causa, o grau de determinação heterónoma pressuposto no princípio da reserva de lei consagrado no n.º 2 do artigo 84.º da Constituição.

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza

Nota: O Decreto n.º 30/IX (Terceira alteração ao Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de Novembro (Revê, actualiza e unifica o Regime Jurídico dos Terrenos do Domínio Público Hídrico) foi publicado no Diário da Assembleia da República II Série A N.º 67, de 8 de Fevereiro de 2003.

DECRETO N.º 34/IX
(REVOGA O RENDIMENTO MÍNIMO GARANTIDO PREVISTO NA LEI N.º 19-A/96, DE 29 DE JUNHO, E CRIA O RENDIMENTO SOCIAL DE INSERÇÃO)

Mensagem do Presidente da República sobre o sentido de recusa de promulgação e devolvendo o decreto para reapreciação

O Decreto n.º 18/IX da Assembleia da República procedeu à revogação do rendimento mínimo garantido previsto na Lei n.º 19-A/96, de 29 de Junho, e criou, em sua substituição, o rendimento social de inserção.
Enquanto que a Lei n.º 19-A/96, de 29 de Junho, que criou o rendimento mínimo garantido, reconhece a titularidade do direito à prestação de rendimento mínimo aos indivíduos com idade igual ou superior a 18 anos, o artigo 4.º, n.º 1, do Decreto n.º 18/IX da Assembleia da República, com ressalva das excepções também já previstas na lei em vigor e das posições subjectivas dos actuais beneficiários, apenas garantia a titularidade do direito ao rendimento social de inserção às pessoas com idade igual ou superior a 25 anos.
Esta exclusão genérica de acesso ao rendimento social de inserção por parte dos jovens até aos 25 anos mereceu-me as maiores dúvidas de constitucionalidade, tanto mais que o diploma em causa não compensava essa exclusão através de quaisquer outras medidas de apoio social. Nesse sentido, solicitei ao Tribunal Constitucional que verificasse se aquela norma de exclusão violava o artigo 63.º, n.os 1 e 3 da Constituição, bem como os artigos 12.º, n.º 1 e 13.º, n.º 1, da Constituição.
O Tribunal Constitucional, de forma inequívoca, considerou que a norma em apreço era, de facto, inconstitucional. Considerando haver, desde logo, violação do princípio constitucional decorrente dos artigos 1.º, 2.º e 63.º, n.os 1 e 3, o Tribunal Constitucional pronunciou-se pela inconstitucionalidade daquela norma, dispensando-se, consequentemente, de verificar as outras dúvidas de constitucionalidade.
O Tribunal Constitucional considerou, assim, que a exclusão de acesso ao rendimento social de inserção por parte dos jovens entre os 18 e os 25 anos, nos termos em que essa exclusão era regulada no Decreto n.º 18/IX da Assembleia da República, violava o direito fundamental a um mínimo de existência condigna, postulado, em primeira linha, pelo princípio do respeito pela dignidade humana.
Ficou assim claro, segundo o Tribunal Constitucional, que estava em causa, não apenas o problema sensível da necessária observância dos direitos fundamentais de natureza social, como, ainda, uma questão da maior gravidade em Estado de Direito, qual seja, o da consideração devida ao princípio da dignidade da pessoa humana que funda a República Portuguesa.
Ora, considerando a importância e gravidade do que está em causa, não parece que, atendendo ao debate a propósito realizado na Assembleia da República e ao teor das alterações agora introduzidas, as preocupações de natureza social e de respeito pela dignidade da pessoa humana, justamente assinaladas pelo Tribunal Constitucional, tenham sido devidamente atendidas.
O diploma agora aprovado continua a discriminar negativamente os jovens, na medida em que, sem qualquer compensação, lhes impõe obrigações que não aplica aos restantes titulares. Mais, onde antes discriminava os jovens dos 18 aos 25 anos, agora discrimina dos 18 aos 30 anos. Não tendo sido avançadas no debate quaisquer justificações para esta alteração de limite etário, não se percebe que motivos podem ter estado na origem da nova opção do legislador.
De acordo com as alterações agora introduzidas, os jovens entre os 18 e os 30 anos e só eles, ainda que tenham direito ao rendimento social de inserção, precisam, quando se candidatam à respectiva atribuição, de preencher a condição específica de estarem inscritos como candidatos a

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emprego no Centro de Emprego há, pelo menos, seis meses. Isto significa, na prática, que os jovens entre os 18 e os 30 anos podem ver-se em situação de extrema penúria durante largos meses sem qualquer apoio material, mesmo que a sua situação de carência seja de maior gravidade que a daqueles que, por terem mais de 39 anos, têm imediato acesso ao rendimento social de inserção. Mesmo quando o jovem afectado se encontre no limiar da sobrevivência, o Estado obriga-o a esperar penosamente pelo decurso do tempo (no mínimo seis meses) até que possa receber alguma da ajuda que, diferentemente, é desde logo concedida a outros concidadãos pela única razão de terem mais de 30 anos.
Como se percebe do debate realizado na Assembleia da República, a razão invocada para esta discriminação negativa é a de uma maior preocupação, relativamente aos mais jovens, com a sua inserção no mercado de trabalho, na formação profissional e na disponibilidade para o trabalho. Ou seja, tratar-se-ia não de uma penalização, mas, no fundo, de uma verdadeira ajuda aos jovens.
Porém, se esta é a razão, porquê não atribuir, então, em condições de igualdade, o direito ao acesso de todos ao rendimento social de inserção, ainda que os mais jovens só pudessem manter a ajuda correspondente desde que se inscrevessem nos centros de emprego e demonstrassem disponibilidade activa como candidatos a emprego?
Se há medidas menos restritivas que permitem atingir os mesmos fins com igual grau de eficácia, porque razão se opta pela medida mais penalizadora para os jovens?
Qual a necessidade racional de manter os jovens, e só eles, numa situação de penúria durante largos meses, sem qualquer ajuda material, quando se sabe que, sobretudo nessa idade, essa pode ser a diferença que decida entre a queda na marginalidade ou a inserção social?
O nosso país vive um período de grande incerteza. Como se percebe de todos os indicadores económicos e sociais, atravessamos um momento em que as camadas mais deprimidas da população são as primeiras vítimas das dificuldades estruturais ou conjunturais que nos afectam. Numa situação como esta, os jovens, à procura do primeiro emprego ou a braços com o desemprego, estão na primeira linha dos mais atingidos.
A sensibilidade para com as questões sociais e para com a exclusão social deve ser uma preocupação transversal a toda a sociedade e a todos os decisores e agentes políticos. O país não perceberia que, quando se pedem sacrifícios a todos para recuperarmos da situação em que nos encontramos, se esqueça a solidariedade para com os mais débeis ou os mais desprotegidos, sobretudo quando, como assinala o Tribunal Constitucional, está em causa a dignidade da pessoa humana.
Esperando que este apelo encontre eco na Assembleia representativa de todos os portugueses, solicito à Assembleia da República, pelas razões apontadas, uma nova reapreciação do diploma.

Lisboa, 24 de Março de 2003. - O Presidente da República, Jorge Sampaio.

Nota: O Decreto n.º 34/IX (Revoga o Rendimento Mínimo Garantido previsto na Lei n.º 19-A/96, de 29 de Junho, e cria o Rendimento Social de Inserção) foi publicado no Diário da Assembleia da República II Série A N.º 75, de 8 de Março de 2003.

A Divisão de Redacção e Apoio Audiovisual.

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