30 DE ABRIL DE 1994
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Documento n.e 6
Segunda resposta do Ministro da Saúde
Após a minha resposta de 21 de Fevereiro à recomendação de V. Ex.' sobre o «ressarcimento de lesões causadas por actos de transfusão de sangue e de produtos seus derivados contaminados pelo VIH, realizados em estabelecimentos públicos de saúde; benefícios sociais a atribuir a todos os cidadãos portugueses infectados pelo VIH», entendeu o provedor de Justiça emitir um pedido de informação, com nota de urgência, apesar de no mesmo reconhecer a boa colaboração prestada.
Assim, informo V. Ex."
1 — Responsabilidade pela administração ilícita e negligente do lote n.° 810 536 da Plasmapharm-Sera. — Neste ponto entendo conveniente esclarecer V. Ex.°, mais pormenorizadamente, das questões técnicas que estão subjacentes à minha resposta de 21 de Fevereiro.
A obtenção de um produto, como é o caso do concentrado de factor viu, é feita a partir de grandes quantidades de plasma (habitualmente superiores a cerca de 10 000 dadores diferentes), que dão origem a vários derivados. A cada pool de plasma corresponde um lote de um determinado derivado, como por exemplo, concentrado de factor viu, concentrado de factor ix, imunoglobulinas.
Sendo Portugal um país 100% dependente do estrangeiro em derivados do plasma, tem de importar esses produtos através de firmas comerciais seleccionadas em concurso. Relembro a V. Ex.a que no concurso n.° 15/86, levado a efeito na Secretaria-Geral do Ministério da Saúde e que deu origem à importação do lote n.° 810 536 da firma Plasmapharm-Sera, foi constituída uma Comissão Técnica de Escolha e, pela primeira vez, fazia parte do caderno de encargos a inactivação virai.
A Comissão Técnica de Escolha optou por firmas, de acordo com as condições do concurso, cujo produto possuía o certificado de garantia de qualidade, e se encontrava inactividado para o vírus da sida e a presença de teste ELISA para anti-HTL VIII negativo. E, à medida que os lotes entravam nos hospitais, os serviços responsáveis controlavam a garantia de qualidade em relação a cada um desses lotes, como aconteceu com o lote n.° 810 536, que só foi administrado após os serviços do Hospital de São José terem recebido a respectiva garantia de qualidade.
A Comissão Técnica de Escolha não se satisfez com a omissão de referência expressa pela imprensa. E que não há semelhança no fabrico de soro fisiológico (substância totalmente química) com de factor viu (substância de origem humana). Por outro lado, conforme já constava da minha resposta, é relevante o facto de os recortes dos jornais e revistas terem sido enviados, pela primeira vez, à Secretaria-Geral pela firma A. Paiva dos Santos, firma concorrente da Plasmapharm-Sera no concurso.
A análise cega do produto demorou seis meses, era necessário tratar os doentes, o Hospital esperou dois meses até receber o certificado de garantia do lote em causa.
É ainda necessário ter conhecimento de que a existência de positividade para anticorpos anti-HlV no lote em causa (ainda hoje não concordante, dado que o estudo realizado no Instituto Português do Sangue cm 1992 é indeterminado, tal como havia sido o estudo feito em 1986 na Alemanha) pode não ser traduzida por infecciosidade do produto, uma vez que foi inaclivado para o vírus e a inactivação não remove o vírus, nem tão-pouco os anticorpos, mas destrói a capacidade infectante.
Importa ainda esclarecer que o Prof. Doutor Machado Caetano, quando refere a existência de grande quantidade de fibrinogénio, deve ter pretendido referir-se unicamente à «pureza» em termos de proteínas plasmáticas que contaminam um concentrado de factor viu. Esta classificação de «pureza» divide os concentrados utilizados e a venda no mercado, em concentrados de pureza intermédia, alta pureza e muito alta pureza. Assim, o doseamento de fibrinogénio (um outro factor de coagulação) nada tem a ver com vírus, nem com transmissão de doenças.
Considerando, como já se referiu, que o certificado do lote em causa referia a inactivação para vírus e a presença de teste ELISA para o anti-HTL VHI negativo, que dispomos de informação de um laboratório austríaco, de um alemão e de dois portugueses com resultados positivos e indeterminados, e que mesmo a positividade para os anticorpos anti-HIV não pode ser traduzida por infecciosidade do produto, não entendo como V. Ex.° pode considerar «insofismável» a contaminação do lote n.° 810 536.
2 — A prática clínica da época e sua irrelevância para justificar a omissão de registos pessoais respeitantes à administração de produtos derivados do sangue. — Quanto a este ponto, devo lembrar V. Ex.a de que a sida, descrita em finais de 1981 com uma síndroma que apareceu simultaneamente num grupo com determinadas características comportamentais — homossexuais —, é relatada também, nos Estados Unidos da América em 1982, num boletim de publicação interna de saúde, numa criança transfundida, pelo que foi pela primeira vez posta a hipótese de ser transmissível através do sangue. O posterior aparecimento desta síndroma em hemofílicos tratados com derivados do plasma veio alertar para que talvez houvesse associação com um microrganismo, talvez um vírus que existisse em pessoas aparentemente saudáveis e que seria transmitido pelo sangue. Este agente etiológico chamado HIV, vírus da imunodeficiência humana, foi identificado entre 1983 e 1984. Apesar dos esforços da comunidade científica, somente em 1985 aparecem protótipos de testes para a sua pesquisa, sendo que desde essa data até hoje muitas foram as evoluções empregues nas técnicas de detecção do vírus.
Ora, o que V. Ex.° entende por desproporcionamento e irrelevante na administração de um antibiótico e na de factor viu não o é, uma vez que ambos são actos médicos, e tanto uma como outra podem ser insubstituíveis para tratar com sucesso determinado estado deficitário de saúde. Foi o risco da sida que alertou para a necessidade de registos e a prática clínica deve ser analisada e interpretada à luz dos conhecimentos técnico-científicos de 1986.
Como é certamente do conhecimento de V. Ex.°, existem estudos anteriores à entrada do lote n.° 810 536 no mercado português que provam que grande parte dos hemofílicos (em Portugal tal como em qualquer outro país) já se encontravam contaminados, apresentando seropositividade para anti-HIV. Logo. a prova da infecciosidade do factor viu não será superabundante, as provas não foram destruídas, será sempre necessário demonstrar o nexo de causalidade da seropositividade.
3 — Reconhecimento da violação de normas regulamentares e aceitação da violação de um dever de cuidado em regulamentar ou legislar sobre a matéria, em momento anterior ao da aprovação do Despacho n.° 12/86, de 18 de Abril. — Neste ponto, informo V. Ex.a de que Portuga! foi dos primeiros países europeus a possuir regulamentação sobre estudo dos dadores, que desde 1986 foram