174-(260)
II SÉRIE-C — NÚMERO 23
Há, pois, uma grande variedade nas competências . específicas atribuídas aos Ombudsmen, correlativamente a uma certa permanência das suas atribuições, peto menos nucleares.
Quase sempre dirige-se o seu controlo exclusivamente contra os poderes públicos, em particular contra a Administração ou, em alguns sistemas, contra a acção do poder judicial. Forma privilegiada de actuação é a que se concretiza na emissão de Recomendações, actos por natureza não vinculativos, ,que se traduzem num aconselhamento dos seus destinatários, fazendo-lhes presentes certos aspectos da realidade, fáctita ou jurídica, que poderá ter passado despercebida.
Função não menos importante é a consagrada pela Constituição portuguesa, no que respeita ao poder de requerer a fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade, bem como, partilhado unicamente com o Senhor Presidente da República, do poder de requerer a verificação da inconstitucionalidade por omissão, instrumento com aplicação bastante larga, infelizmente, em matéria de Direitos Fundamentais. Há poucos meses tive a oportunidade de utilizar esse poder, no tocante à omissão de medidas legislativas em matéria de acção popular.
Se pudesse resumir a função do Provedor de Justiça numa curta frase, diria que ela consiste na existência em Democracia de um órgão que tenha por função dar credibilidade às instituições democráticas. Trata-se, não de um contra-poder, ao contrário de opinião comummente referenciada, mas de um modo que o poder encontra para se exercer da melhor forma, entendendo-se esta melhor forma como a mais ajustada à vontade dos cidadãos e aos valores da justiça. É este binómio que passo a explicar, no que toca à garantia dos direitos fundamentais.
Numa primeira instância o Provedor de Justiça aparece como mais um garante da legalidade democrática. Expressão primária do Estado de Direito Democrático, ela garante-nos, simultaneamente, a proibição do arbítrio, pela institucionalização de regras conhecidas da comunidade, como também aceites por esta, ao corresponderem a opções legitimamente sufragadas pelo voto popular.
Se é verdade que, em primeira instância, a vontade dos cidadãos é reportada directamente à dos órgãos por eles eleitos, a complexidade burocrática do Estado hodierno leva a que nos processos de decisão os mecanismos de legitimação da mesma sejam excessivamente mediatizados.
É corrente verificar-se que a legitimação face aos
destinatários do acto jurídico-público se perde e dilui nas várias instâncias de decisão e controlo. O Ombudsman, ao promover a aplicação correcta da lei pelas instâncias de decisão a ela subordinadas, não está mais do que a coadjuvar a vontade legitimamente expressa pelos órgãos a quem a Constituição da República conferiu o poder de editar normas com força de lei. Nestes termos, para além da particular legitimação que lhe é dada pela sua designação por maioria qualificada do Parlamento, a intervenção do Provedor de Justiça liga-se estreitamente aos legítimos representantes do Povo Português.
Não basta, no entanto, para adequada tutela dos Direitos Fundamentais, estabelecer um meio de correcta aplicação da Lei.
Na conhecida citação de São Paulo, se a letra mata, o
espírito vivifica.
E ao Provedor de Justiça, principalmente no campo dos Direitos Fundamentais, o que importa é responder de uma forma justa à injustiça, na fórmula feliz de John Rawls.
Mais do que juízos de pura hermenêutica jurídica, enformados embora por especiais preocupações teleológicas ou sinépicas, importa ao Provedor de Justiça assegurar que a legalidade não comprometa a justiça da situação, numa dupla vertente.
Assim, e em primeiro lugar, permite ao Provedor de Justiça a emissão de juízos de oportunidade e viabilidade da acção sob apreciação. Mesmo que justificada em termos de respeito do bloco de legalidade, a acção concreta deve ser apreciada, passe o pleonasmo, tendo em atenção as circunstâncias particulares que concorrem no caso concreto.
Mas não basta uma apreciação, por cuidada que seja, das especificidades de cada situação. Esta micro-análise não dispensa a macro-análise. Quer por razões de economia de meios, quer por razões de praticabilidade, quer, last bui not least, pela necessidade de minimizar quebras intra-sistemáticas, é mister cercear os grandes problemas pela raiz, através do recurso a uma figura que, apesar de inicialmente contestada, tem vindo a dar os seus frutos: a Recomendação legislativa.
Sendo o acto legislativo um veículo particularmente indicado para a conformação dos poderes públicos e privados aos Direitos fundamentais consagrados na Constituição, sendo-lhe inclusivamente destinado ex constitutionem um papel privilegiado na atribuição de exequibilidade às normas que a não possuam por si mesmas, é natural que um meio de tutela como o consubstanciado pelo Ombudsman possa intervir a esse nível, prevenindo e equacionando as necessidades que estão a seu cargo.
Há também, neste enquadramento que mencionar as profundas alterações que marcaram a evolução do Estado neste século agonizante, em particular com a sua administração e tentacularização na comunidade. Assistiu-se uma publicização do privado e a uma privatização do público, como a consequente inversão, não necessariamente polar, das relações entre o Estado e a Sociedade.
O que atrás fica dito ganha especial feição no quadro actualmente recebido na Constituição. Os direitos fundamentais deixaram de ser puros direitos de defesa do indivíduo solitário perante um Estado potencialmente agressor da sua- liberdade ou da sua propriedade. Uma moderna teoria dos Direitos Fundamentais não pOde esquecer que, a partir do aparecimento do Estado Social, o Homem nunca pode deixar de ser encarado em relação. A multiplicidade e multipolaridade das relações sociais,
corresponde uma multiplicidade e multipolaridade das
posições jus-subjectivas do Homem de hoje face aos poderes públicos tradicionais e face aos novos poderes emergentes na nossa sociedade.
Aos direitos do cidadão abstracto sucedem os direitos do trabalhador, os direitos do consumidor, os direitos do jovem, os direitos do idoso e toda uma variedade riquíssima que só na Vida encontra emulo e espelho.
Fruto dessa evolução pode ser observado na formulação constitucional do direito de queixa ao Provedor de Justiça e subsequente configurações legislativas.
Pensando inicialmente como modo de reacção a acções e omissões dos poderes públicos, restringida seguidamente a sua actividade ao controlo da Administração Pública, o Provedor de Justiça tem-se vindo a libertar, progressivamente, de peias que, objectivamente, não alcançam sentido face ao texto e ao espírito da Constituição se esta prevê, em disposição singularmente lata. e não isenta de controvérsia, a sua vinculatividade imediata junto de entidades públicas, em relação a certas áreas normativas, como sejam os direitos, liberdades e garantias (bem como