da Constituição, previa já expressamente a possibilidade de internamento de pessoas afectadas por problemas do foro psiquiátrico, embora não impusesse nenhum modelo. A Constituição e, aliás, as recomendações internacionais que surgem nesta matéria admitem a privação da liberdade quer por via judicial quer por via administrativa, embora também aí sujeita - e as recomendações internacionais são explícitas nisto - à confirmação judicial a posteriori.
O nosso Grupo de Trabalho reflectiu sobre isto e temos aqui, para entregar à Comissão, uma proposta, em que se opta, declaradamente, por um modelo judicial de privação da liberdade com este fundamento, ou seja, nas situações em que há necessidade de internar compulsivamente alguém.
O modelo judicial será o modelo normal, o modelo-regra, embora não dê resposta às situações de descontrolo - mas, aqui, os membros do Grupo de Trabalho com formação na área da psiquiatria poderão explicar isto melhor a esta Comissão. No entanto, há situações em que há uma necessidade de assistência imediata, há uma necessidade de privação imediata da liberdade, e, nestes casos, não se pode estar à espera de uma decisão judicial prévia que corporize essa privação de liberdade - são os chamados internamentos de urgência. A lei de saúde mental, de 1963, já os previa, eles existem em todos os ordenamentos jurídicos em termos de direito comparado e penso que é necessário que também passem a existir entre nós para que se dê resposta às carências de tutela jurídica que se verificam nesta área.
Portanto, basicamente, por um lado, há necessidade de um suporte constitucional que sirva de fundamento à restrição à liberdade com este fundamento - a restrição à liberdade, como é óbvio, terá, depois, de ser regulamentada ao nível da legislação ordinária, e será um pouco este o espaço em que estamos a trabalhar, sempre condicionados pelos parâmetros constitucionais relativos às leis que corporizam restrições aos direitos, onde os princípios constitucionais relativos à restrição aos direitos terão declaradamente de se exprimir.
Penso que é este o pano de fundo das considerações que se me importa oferecer, mas a Sr.ª Dr.ª Maria João pode fazer o favor de esclarecer alguma coisa que eu tenha deixado de fora, porque terá melhores condições para falar do que eu.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sr.ª Dr.ª Maria João Antunes.
A Sr.ª Dr.ª Maria João Antunes (Grupo de Trabalho para a Revisão da Lei de Saúde Mental): - Sr. Presidente, quero só chamar a atenção para o facto de a lei de 1963, que, teoricamente, ainda está em vigor, ter sido questionada relativamente à sua conformidade com a Constituição de 1976, concretamente, ao artigo 27.º da Constituição. E, portanto, tem-se invocado este artigo da Constituição para, no fundo, não se aplicar a Lei de Saúde Mental, que é de 1963 e que já prevê este internamento compulsivo de portadores de anomalia psíquica.
Daí, a nossa vontade de que o artigo 27.º da Constituição contemple, de forma expressa, essa possibilidade para que a futura lei de saúde mental possa ter aplicação e não seja, desde logo e antes disso mesmo, ferida de um juízo de inconstitucionalidade por referência ao artigo 27.º. Era só isto que eu queria referir.
O Sr. Presidente: - Permitam-me, Srs. Deputados, que eu e o Sr. Deputado Barbosa de Melo felicitemos a nossa querida colega e amiga Dr.ª Maria João Antunes por a termos aqui, no Grupo de Trabalho.
Tem a palavra o Sr. Dr. António Leones Dantas.
O Sr. Dr. António Leones Dantas: - Sr. Presidente, Srs. Deputados: É claro que a Dr.ª Maria João introduziu, e muito bem, no debate o tema da conformação constitucional da Lei de Saúde Mental, de 1963.
Ora, basicamente, este debate parte do seguinte facto: se a lei é omissa relativamente à restrição à liberdade com este fundamento, com a necessidade de dar assistência médica a alguém, uma das primeiras reacções possíveis é a de não ser possível, face à Constituição da República, internar compulsivamente ninguém - uma das correntes que está aí, com grande expressão no terreno, defende precisamente isto. Agora, pensemos nas situações de carência de tutela de direitos que são colocados em crise nestas situações e que não encontram aí capacidade de resposta.
Por outro lado, avançou-se com outra corrente de interpretação do artigo 27.º, que defenderia a recondução desta medida às medidas de segurança, que, ao fim e ao cabo, aparecem nesse artigo 27.º. Importa dizer que o que está em causa - mas, aqui, provavelmente, a Sr.ª Dr.ª Maria João tem melhores condições do que eu para falar sobre isto - são situações em que não há ainda a prática de um facto recondutível ao Código Penal. Ou seja, não há ainda a prática de um crime.
Nas situações em que alguém pratica um facto que pode ser considerado um crime, este é o espaço penal das medidas de segurança, o ordenamento jurídico português já dá resposta através das medidas de segurança, do Código de Processo Penal e da regulamentação da aplicação das medidas de segurança.
No entanto, estamos num terreno em que uma pessoa afectada de anomalias psíquicas coloca em causa bens jurídicos, mas ainda não entrou no espaço de preencher, com a sua conduta, normas incriminadoras. Ou seja, estamos num terreno em que ainda não entrámos no espaço de Direito Penal, estamos num espaço que se pode considerar pré-penal, pré-delitual e, depois, num debate doutrinário muito vasto sobre a configuração disto.
É exactamente esta dificuldade de reconduzir os internamentos às medidas de segurança, diria mesmo a impossibilidade, de acordo com vozes autorizadas da doutrina portuguesa, de reconduzir o internamento às medidas de segurança que cria o problema de fundo, o de se saber o que se faz, qual é a resposta que o ordenamento jurídico português dá a este tipo de situações.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Dr. Francisco Santos Costa.
O Sr. Dr. Francisco Santos Costa (Grupo de Trabalho para a Revisão da Lei de Saúde Mental): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Começo por cumprimentar os Srs. Deputados.
Do ponto de vista psiquiátrico, estou acompanhado pelos Srs. Drs. Jaime Milheiro e Jorge Costa Santos que, a seguir, também poderão dar a sua opinião, mas penso que, nesta discussão e no seio deste Grupo de Trabalho para a revisão da Lei de Saúde Mental, provavelmente, será uma das áreas, nesta interface saúde mental/justiça, onde a psiquiatria tem a tarefa facilitada. Esta discussão é, prioritariamente, jurídica e aquilo que cabe à psiquiatria - e, neste contexto, penso que é importante dar este testemunho - é procurar, e penso que há, um consenso muito alargado, independentemente até das escolas e das correntes que estejam por trás da nossa formação enquanto médicos psiquiatras, quanto à necessidade de elaboração de uma lei de saúde mental que regulamente e trate de facto deste assunto dos internamentos compulsivos. Esta é uma situação que se nos coloca com muita frequência e com uma pertinência muito grande na nossa actuação prática, quer seja em termos de urgência, quer por aquilo que,