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DIARIO DA CAMARA DOS SENHORES DEPUTADOS

Discurso do sr. Candido de Moraes, proferido na sessão de 16 de janeiro, e que deveria ler-se a pag. 74, col. 2.ª

O sr. Candido de Moraes: — O silencio do governo em face das accusações, tão justas quanto vehementes, do sr. Luiz de Campos, obriga-me a alterar por esta vez a norma de conducta que tinha imposto a mim mesmo, e a usar da palavra n'este momento.

É a primeira vez que me abalanço a tomar uma parte activa em um debate importante e eminentemente politico. Faço-o, porque a consciencia me diz que cumpra esse dever, embora difficil.

Na minha vida parlamentar impuz-me a obrigação de conservar-me na penumbra, ou antes na sombra, que convem á obscuridade do meu nome e ao humilde cabedal de recursos intellectuaes que possuo, e de manter-me em posição bem distante d'aquelles cavalheiros que sabem illustrar com o seu verbo eloquente a tribuna parlamentar portugueza.

Mas a rasão por que alterei agora esta norma de conducta foi, como disse, porque o desempenho de um dever de consciencia, bem penoso, me obriga a fazê-lo.

Comquanto a minha vida parlamentar seja ainda curta, já tive comtudo tempo de commetter um grande erro.

Esse erro foi permittir que os actuaes srs. ministros occupassem aquelles logares antes de dizerem á camara por que caminho tinham ali chegado, qual havia sido a mão temeraria que os encaminhara. D'esse erro, que me peza na consciencia como um remorso, quero hoje penitenciar-me, pedindo publicamente, não absolvição á justiça, porque talvez a não mereça, mas sómente perdão á generosidade publica.

Pronunciou o illustre deputado, o sr. Luiz de Campos, uma oração brilhante, e tão brilhante quanto verdadeira; tão brilhante, que não a póde offuscar a palavra facil e eloquente do sr. Pinheiro Chagas; tão brilhante, que ninguem poderá combatê-la nem destrui-la (muitos apoiados), porque a evidencia que resulta dos factos nem se combate, nem se póde destruir.

N'essa, oração expoz s. ex.ª á camara, com uma lucidez admiravel, as rasões, que de certo actuaram no animo da opposição, e que fizeram com que ella não exercesse aquelle indeclinavel dever de exigir estrictas contas ao governo. Mas era mim não foi só esta a rasão que actuou, o que principalmente me fez calar foi o acanhamento. Era bem novo nas lides parlamentares, estava completamente alheio a estes debates onde se discutem os interesses mais sagrados dos povos, e por isso receiava atrever-me a vir suscitar aqui uma questão politica, cujas consequencias não podia prever.

Mas, que via eu então? Via o governo, arrependido, vir protestar perante a camara e perante o paiz que tinha aproveitado as lições do passado. Via os srs. ministros, vestida a alva dos condemnados, virem em supplica humilde ao seio da representação nacional pedir perdão das suas culpas e o esquecimento dos seus erros (apoiados).

Quem havia de dizer a esta assembléa, que esta humildade, esta submissão, estes protestos de arrependimento, estas promessas eram falazes e se haviam de converter em breve no mais insolito e inesperado ataque contra tudo o que é nobre, o que é santo, o que é justo e o que é sagrado na consciencia do cidadão! (Apoiados.)

Conservei-me silencioso perante aquella attitude do governo, quiz ser generoso; tanto como o paiz, que se não rebellava contra esse facto inesperado (apoiados).

Esperei que o governo cumprisse as suas promessas solemnes e sagradas, mas esperei debalde. O meu silencio, tornou-me cumplice do governo. Com uma leviandade indesculpavel permitti que a arca santa das nossas liberdades fosse confiada ao governo, que hoje preside aos destinos d'esta nação, e d'essa leviandade venho agora com mágua, com sentimento profundo, pedir á camara que me releve.

O governo ou a situação (não digo o partido que o governo representa, porque não sei se o governo representa algum partido) (apoiados); mas emfim esta situação que se tinha mantido tranquilla, silenciosa, escondida até e envergonhada (apoiados); esta situação que tinha andado afastada das lides parlamentares, que tinha andado foragida da vida publica (apoiados), mostrou-se logo solicita em se apoderar do thesouro que se lhe confiava, não para fazer d'elle o uso que lhe devia aconselhar o remorso dos seus erros passados, mas para destruir uma a uma, em proveito proprio, todas as joias que constituem esse thesouro conquistado pelos povos n'um largo combate contra a tyrannia e contra a oppressão (muitos apoiados).

Este governo, sem respeito pela opinião publica, confessa-o elle mesmo, por essa opinião que não o conduziu ali, mas que já uma vez o derribou d'aquelles logares; sem respeito pelas praticas parlamentares, que nunca o elevaram aquella altura; sem respeito ainda pela corôa, cuja prerogativa exclusivamente representa; o governo, cujo unico ideal é a propria conservação, está apto para navegar em todas as direcções, não n'essa navegação facil, que aqui descreveu o illustre deputado, o sr. almirante Gonçalves Cardoso, com leme a meio, mas uma navegação desnorteada, sem bussola que o governe.

Aconselha-lhe o proprio interesse de singrar n'um rumo, elle ahi vae emquanto as brisas o permittem; mas se um dia os ventos ponteiros o obrigam a retrogradar, retrograda com a mesma facilidade; e n'esta navegação retrograda destroe a esteira que tinha deixado na sua primeira passagem. (Vozes: — Muito bem.)

Affirma o governo hoje uma opinião. Julga o paiz que é a ultima expressão do seu modo de pensar. Engana-se. A necessidade de subsistir obriga porventura o governo a reconsiderar, e no dia immediato reconsidera, affirmando a reconsideração com a mesma audacia com que no dia precedente tinha affirmado a opinião contraria. Recua diante de qualquer difficuldade. A unica questão para elle é manter-se no poder, é sustentar esta vida attribulada, se por ventura é vida este existir assim. (Vozes: — Muito bem.)

É mister um dia lançar mão da corrupção? Corrompe-se (muitos apoiados). Os direitos individuaes são um obstaculo ás invasões do poder arbitrario que s. ex.ªs representam? Destroem-se os direitos individuaes. Lembra-se um dia alguem de usar do seu direito de representação? Castiga-se quem representa, castiga-se quem ousa queixar-se do governo. (Vozes: — Muito bem.)

Alguém reage contra as prepotencias governamentaes, e esse alguem é facil, dá-se-lhe um titulo, uma commenda, um favor, e tem-se conquistado mais um apoio, tem-se destruido mais um attrito, tem-se eliminado mais uma difficuldade! (Vozes: — Muito bem.)

A casa do cidadão é inviolavel asylo? Pois entrave ali violentamente, e destroe-se o asylo. Que a reconstrução não seja possivel, pouco importa ao governo. Como lhe poderia importar, se sabe que essa obra lhe não póde ser confiada?

Representa o povo? Responde-lhe o governo com o silencio: obriga o rei a calar-se, insinua-lhe porventura que o

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povo é lama, que póde salpicar as suas fardas bordadas (apoiados).

O parlamento reclama e energicamente contra as propotencias do governo? Pois tambem o governo se cala perante as reclamações do parlamento, e, cousa espantosa, parece que se cala para se esconder por detraz da prerogativa real, e para evitar com esse abrigo os golpes certeiros e profundos da opposição.

Quem supporia possivel que, n'um paiz verdadeiramente constitucional, o governo se conservasse n'aquellas cadeiras silencioso, depois das accusações violentas e justas do sr. Luiz de Campos? Porque preço se sujeitaria alguem a desempenhar esse papel? (Muitos apoiados.)

Que governo poderia conservar-se silencioso, sentindo que pesavam sobre a sua cabeça as mais graves censuras, se essas censuras não fossem merecidas? (Apoiados.) Eu não sei qualificar este crime. Na lingua patria não ha termo para elle.

Disse o governo que tinha aprendido nas lições da experiencia. Mas que aprendeu elle? Alguma cousa foi.

Aprendeu que os seus actos não se podem sustentar discutindo-se, porque os seus actos não nascem de nenhum principio justo, porque os seus actos são todos fundados na injustiça, porque os seus actos não tem desculpa (apoiados). E demonstra-o com o silencio. É com o silencio que elle demonstra que aprendeu nas lições do passado (apoiados).

Todos os dias se appella para a situação da Europa; todos os dias se citam, se mencionam factos violentos, manifestações tumultuosas nascidas do embate de interesses os mais oppostos, da affirmação de idéas as mais extremas; e argumenta-se com a necessidade de manter a ordem.

Manter a ordem, como? Manter a ordem; não, levantando as instituições; não, respeitando o codigo das nossas liberdades, mas infringindo-o, mas violando-o a cada passo! (Apoiados.)

Todos diriam que o principio regulador da politica do governo seria dirigir o movimento social por um tal caminho, que dos attritos, da compressão moral, não resultasse uma grande perturbação. É porventura esse o caminho que o governo segue? Não é, antes vae no diametralmente opposto (apoiados).

Sabem que n'uma machina de vapor a garantia da segurança não é aquelle órgão que reprime, não é aquelle órgão que destroe o movimento; mas é precisamente aquelle que lhe permitte descarregar-se da exuberancia de força. Era este o caminho que os factos estavam ensinando ao governo. Pois não foi este o caminho que o governo adoptou nos seus actos! (Apoiados.)

Lançando os olhos para o nosso paiz, vemo-lo em uma situação economica precaria; é o proprio governo que não se atreve a occulta-lo, são os proprios factos que o proclamam. A situação financeira d'este paiz é desfavoravel. O governo devia pretender melhora-la, como o fez? Lançando sobre o povo precisamente aquelles tributos que mais podem reprimir o desenvolvimento da riqueza publica (apoiados).

A população foge em massa, e vae para terras de além-mar fertilisar com o seu suor, e por fim com os seus cadaveres, essas regiões devoradoras de homens. O governo assiste impassivel a este triste espectaculo, deixa que os povos saiam das suas terras e vão substituir os escravos em terras longinquas e inhospitas. Não o assusta isso, não lhe importa; ainda mais, aggrava esta situação, promoveu e continua a promover a emigração, lançando sobre o povo impostos que recaem justamente n'aquelles generos que constituem a alimentação das classes pobres (apoiados).

As colonias insurgem-se contra o despotismo da metropole... da metropole. Não, insurgem-se contra o despotismo dos governantes, contra a pressão violenta d'esses homens, dos quaes dizia um illustre orador a quem já hoje me referi: «Que a terra aqui não podia com elles.» (Apoiados.)

Convinha estreitar os laços de fraternidade que nos prende aos povos d'aquellas regiões, convinha promover por todas as fórmas as relações entre esses differentes paizes, que são como os ramos nascidos do tronco da mesma arvore.

Mas o que faz o governo? Exactamente o contrario; continua a mandar para lá os homens que se demonstraram inhabeis na mais insignificante administração aqui, e até os homens que deviam ser punidos rigorosamente! E é por esta fórma que elle, em vez de destruir, promove a indisposição nascente das provincias ultramarinas contra a mãe patria (apoiados).

O povo jaz na ignorancia, raras são as escolas disseminadas por este paiz. D'essas raras escolas a maior parte ainda está por prover, porque não ha professores. De quem é a responsabilidade?

Do governo, que não cuida em reparar os damnos que d'ahi resultam, organisando e dotando convenientemente a instrucção primaria.

É verdade que o povo ignorante e por isso menos consciente dos seus direitos, não poderá sustentar-se e defender-se contra as prepotencias governamentaes. O povo ignorante prestar-se-ha ás intimações violentas do regedor e do malsim eleitoral (apoiados).

O governo sempre silencioso, sempre indifferente a este miserando estado de cousas; sempre silencioso, sempre indifferente ás accusações que lhe fazem, exigindo-lhe a responsabilidade dos seus actos. Quer porventura o governo inculcar que a corôa, e não elle, é responsavel por tudo isto? Quererá porventura designar o neto do immortal D. Pedro IV como cumplice n'estes desvarios. Não, senhor. Não se atreveria talvez a tanto, porque sabe que receberia o desmentido mais formal de toda a população d'este paiz. Sabe o governo que este povo ama o seu rei e que o não póde reputar cumplice n'estes desconcertos que o infelicitam; sabe que o povo portuguez em 1873, se porventura podesse imaginar similhante attentado, teria a hombridade de lembrar ao rei o «senão», que ha quatro seculos este mesmo povo sabia intimar a um dos seus maiores.

Não é isto, a sua audacia não chega a tanto, esse silencio impõe-n'o a consciencia.

No intervallo das sessões parlamentares passaram-se factos n'este paiz a que eu não posso deixar de alludir, quando faço uma analyse da politica do governo.

Referiu-os hontem o sr. Luiz de Campos, na sua linguagem primorosamente artistica, e eu não posso fatigar a camara reproduzindo na minha, que é a antithese da de s. ex.ª, a narração dos mesmos factos.

Todos sabem que lavrava em um certo grupo, que vivia obscuramente n'este paiz, um desejo permanente de promover a anarchia. Todos sabem que os governos encontraram sempre esse grupo contrariando-os quando lhe era possivel. Mas o que esse grupo podia fazer era quasi nada.

Dava elle mais inquietação á policia por outras rasões, do que podia dar aos governos e ao paiz, receios pela sua tranquillidade e menos ainda pela independencia nacional.

Havia um fermento permanente de sedição a que o povo tinha dado o nome, permitta-me a camara que o diga, o epitheto que é sabido de todos, e a palavra tornou-se parlamentar, de penicheiros.

Mas tudo sommado ía muito pouco alem de umas arruaças que a policia conseguia dissolver sem empregar a força. Nunca governo algum pensou em fazer alarme d'essas arruaças, d'essas scenas burlescas, como muito judiciosamente hoje lhe chamou o sr. Pinheiro Chagas, perante o paiz, para em nome dos serviços feitos se galardoar a si proprio. Nunca passou isso pela mente de pessoa alguma. Bastava alguma policia para manter essas manifestações, estas scenas burlescas dentro de limites toleráveis, sem perturbação da ordem publica.

Mas o actual governo desejando reproduzir entre nós as peiores scenas do reinado de Jacques I de Inglaterra, enten-

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deu que era chegada a occasião opportuna de lançar mão d'essas insignificantes e burlescas arruaças para nos dar em espectaculo repetido uma sedição d'aquelle reinado.

Mas note v. ex.ª que, procurando reproduzi-la com todas as suas feições caracteristicas, dividiu-a em duas conspirações: a aristocratica e a plebea —a main e a bye.

Na primeira figuravam uns homens que, a fallar verdade, não foram muito mal tratados pelo governo; nos que figuravam na segunda é que o governo cevou todas as suas coleras.

Os primeiros conspiradores avultavam perante o publico pelos seus nomes; os segundos, sem nome, não podiam avultar senão pela rasão do seu numero.

Mas era necessario inventar conspiradores; era necessario recruta-los (apoiados), e foi o que o governo fez (apoiados).

Os primeiros que se acharam não eram faceis de ser perseguidos pelo governo, porque não sei mesmo se existe realmente uma grande distincção entre o governo e esses conspiradores (apoiados).

Como havia o sr. ministro do reino de punir os seus correligionarios? (Apoiados.) Como havia de s. ex.ª perseguir os cavalheiros que ainda hoje fazem uma parte bem notavel d'esse partido, ou d'essa facção, cujos chefes representaram e representam ainda os primeiros papeis nas embaixadas estrangeiras? (Apoiados.) Como havia o governo perseguir aquelles que em todas as commissões e em todos os trabalhos feitos ou projectados são os seus auxiliares mais valiosos? (Apoiados.)

Não era possivel, e tanto assim é que esta conspiração principal serviu apenas como um grande pendão que se agitou perante o paiz.

Os segundos conspiradores, os insignificantes pelos seus nomes, mas os significativos pela attenção que o governo lhes deu, para melhor desviar a attenção publica dos seus correligionarios attrahindo-a para estes, d'esses serviu-se o governo, e continuará a servir-se se for necessario, como de um simples e facil instrumento, para o mesmo fim.

A camara ha de estar lembrada de que a primeira voz que se levantou no parlamento para pedir a execução das leis n'um sentido desfavoravel aos penicheiros foi a minha (apoiados). Encontrei então o apoio de cavalheiros que me podem dar e dão com os seus apoiados testemunho de que que é verdade o que affirmo. Por consequencia não póde ser suspeita a minha voz quando hoje tambem quer reprehender o governo por ter invadido os direitos d'esses mesmos penicheiros suppostos criminosos, porque os criminosos tambem têem direitos (apoiados).

Para os criminosos foram inventados os tribunaes, para os criminosos se fizeram as leis penaes. E se o governo, em qualquer caso, não póde applicar essas leis sem previa resolução d’aquelles tribunaes, se o governo não póde punir o crime, sem que previamente o tribunal competente lhe indique o criminoso, não podia de certo perseguir aquelles que perseguiu por delictos que, suppondo que existiram, não sabia se tinham sido praticados por elles (apoiados).

Com que direito arrancou o governo as divisas, ganhas á custa de muito trabalho e de muito sacrificio e de muita probidade, a esses pobres sargentos, que esperavam no futuro para os seus esforços o galardão que a lei lhes assigna? Com que direito os encerrou sem crime em enxovias? Com que direito os fez insultar por soldados insubordinados, que acharam opportuna a occasião de se vingarem da superioridade, que viam com inveja, e que os seus antigos collegas haviam alcançado sobre elles á custa de muito estudo e trabalho?

É esta a disciplina que s. ex.ª preconisava e dizia que havia de manter? Ha de mante-la como os pachás mantêem a sua auctoridade: pela força, emquanto a tiver; nunca pela justiça e pelo direito!

Em que lei encontra s. ex.ª artigo que lhe permitta arrancar as divisas a um sargento? Em que lei se funda s. ex.ª para commetter esta arbitrariedade? Porventura os direitos dos sargentos são menos garantidos do que os dos tenentes coroneis? (Apoiados.)

Não protestaria s. ex.ª por todos os meios ao seu alcance contra aquelles que lhe arrancassem, violenta e arbitrariamente, dos braços os galões, essa distincção que tão justamente lhe foi conferida?

Pois não são tão inviolaveis perante a lei as divisas de panno como as de oiro que adornam os braços dos officiaes superiores? (Apoiados.)

O sr. ministro da guerra não só praticou um acto para o qual não estava auctorisado por lei, mas calcou aos pés uma lei, e infringiu-a da maneira mais violenta e injusta.

O codigo penal militar, diz o seguinte (leu).

Pois então o sr. ministro da guerra é um conselho de disciplina? Pois s. ex.ª ignora, na posição elevada que tão dignamente occupa no exercito, e no primeiro logar que tem nos conselhos da corôa, o que a lei lhe determina que faça? S. ex.ª substitue uma proposta do capitão de companhia, s. ex.ª substitue um conselho de disciplina, s. ex.ª substitue tudo porque a sua vontade illimitada assim o quer, porque a sua vontade não póde tolerar o minimo obstaculo. Mas não é só o conselho de disciplina que s. ex.ª substitue, substitue até o supremo conselho de justiça militar. Os tribunaes para s. ex.ª são um obstaculo facil de destruir.

A carta constitucional estabelece, da maneira mais precisa, que poder algum poderá interferir nos actos do poder judicial nem avocar processos pendentes, mas... não sei se haverá alguma excepção para o sr. ministro da guerra actual; estou até inclinado a crer que haja, e se a não ha, é porque o legislador não previu a necessidade de s. ex.ª fazer uso d'essa excepção.

S. ex.ª, o mantenedor da disciplina; s. ex.ª, o militar distincto e illustrado; s. ex.ª, o presidente do conselho de ministros, praticou actos da natureza d'aquelles que vou narrar á camara.

Havia um homem humilde e desprotegido que um dia se lembrou, forte na justiça da sua causa, de queixar-se contra um superior seu; esse homem foi castigado porque não quiz emendar o requerimento que fez, isto é: não porque não redigisse o requerimento de uma maneira opposta ao respeito devido aos superiores, mas porque não queria, obedecendo á intimação que lhe havia sido feita, narrar os factos que allegava, de um modo contrario ao que lhe convinha para bem da sua allegação, e ao que era conforme á expressão da verdade. O sr. ministro da guerra mandou castigar rigorosamente esse homem.

Uma voz: — Mandou-lhe applicar dois castigos. O Orador: — Mandou-lhe applicar dois castigos e se mais não mandou foi por se não lembrar; a illegalidade e a injustiça, não seria maior.

Agora vou contar outro caso passado com outro individuo, para oppor a este.

Um furriel de cavallaria n.º 7, se bem me recordo, tinha publicado em um jornal militar que se publicava em tempo, um artigo violento, insultante e calumnioso contra todos os officiaes do seu corpo. Esse artigo foi publicado com assignatura, e reconhecida esta por um tabellião, e os officiaes offendidos queixaram-se ao ministerio da guerra.

Aqui é que foi a origem do mal, agora o descubro eu, porque no paiz em que cada auctoridade é uma especie de bachá, succede como no governo d'estes; se o caso vae mal com elles, torna-se necessariamente peior quando se appella para o grão-turco (riso). Como elles se queixaram, o sr. ministro da guerra determinou que o furriel respondesse a um conselho de investigação, o qual classificou o furriel incurso em algum dos artigos de guerra e propoz que elle respondesse a conselho de guerra. Fez-se o conselho. Ahi pretendeu mostrar o furriel, ou mostrou, dou isso de barato, que tinha sido instigado por superiores seus e apresentou cartas em abono d'esta asserção. Diz-se que as cartas não tinham

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cousa alguma com o facto a que se referia o procedimento criminal, que haviam sido escriptas em epochas muito anteriores, e que por isso não aggravavam nem diminuiam a culpa do homem. Como quer que fosse, condemnado o réu em conselho de guerra, subiu o processo ao supremo tribunal de justiça militar que pronunciou o seu juizo.

Aqui está o accordão d'este tribunal, que peço licença á camara para ler:

«Ordem n.º 58 de 3 de dezembro de 1871. — Alvaro Augusto Teixeira Pinto, furriel n.º 5 da 3.ª companhia de cavallaria 3, accusado do crime de injurias e offensas graves contra alguns seus superiores do regimento de cavallaria n.º 7 por meio de imprensa. Annulam (em sessão de 19) tudo quanto foi processado tanto no conselho de investigação como no de guerra, e mandam que desde o principio se instaure novo processo, comprehendendo toda e qualquer prova que seja ou haja sido co participante no crime imputado ao réu, e como tal responsavel pela violação dos preceitos e regras do disciplina militar.»

Tínhamos, portanto, uma sentença do supremo tribunal de justiça militar a que dar execução, nada mais e nada menos. Mas como isto era um trabalho que fazia qualquer ministro da guerra por antiguidade, e s. ex.ª o sr. ministro tinha subido ao poder por merecimento (riso), entendeu que devia proceder de outra maneira, avocou a si o processo, e sentenciou que estava expiada a culpa com o tempo de prisão que o furriel soffrêra.

Dir-se-me-ha que o crime era insignificante. Ainda mesmo que o fosse! Mas será crime insignificante insultar os seus superiores? (Apoiados.)

O nobre ministro da guerra poderia consentir que algum inferior seu o insultasse? Ainda mesmo nos paizes mais liberaes e em que mais plenamente se usa da liberdade de imprensa, é reputado um crime para os militares publicar pela imprensa injurias contra os seus superiores. O codigo penal disciplinar dos Estados Unidos impõe a pena de prisão por um anno em praça de guerra a qualquer militar que escrever contra os seus superiores na imprensa.

Havia cartas juntas ao processo, em virtude das quaes se suspeitava que o furriel era instrumento de um certo official; e no entretanto, o furriel foi mandado para o mesmo corpo onde estava esse official que se suspeitava de que se servia d'elle como de instrumento para perturbar a disciplina de um corpo, a que ambos haviam pertencido; parece impossivel, e realmente tenho difficuldade em contar á camara, mas é a verdade. Esse furriel não faz serviço! (Vozes: — Ouçam.) Todos os outros que cumprem e cumpriram sempre os seus deveres são castigados porque fazem serviço, o seu, e o que competiria a esse mau camarada; este, que deixou de cumprir os seus, que os violou, que se cunduziu pessimamente faltando ao respeito aos seus superiores, que é um dos crimes mais graves que posso conhecer na vida militar (apoiados), é premiado, anda passeiando, recebe os seus vencimentos, e será tambem promovido ou condecorado! (Apoiados.)

Outro facto ainda, que tambem é notavel. Havia um corpo em Lisboa onde, segundo consta de um accordão do supremo conselho de justiça militar já citado, nem o commandante, nem os membros do conselho de administração cumpriam os seus deveres. V. ex.ª comprehende, assim como a camara, que a administração d'aquelle corpo era deploravel. O resultado d'este lastimoso desgoverno foi o seguinte.

Peço licença a v. ex.ª para ler o accordão do supremo conselho de justiça militar, que mais eloquentemente do que eu póde fazer ver a monstruosidade (permitta-se-me a palavra) do facto que vou narrando:

«Ordem do exercito — Secretaria d'estado dos negocios da guerra — Direcção geral—5.ª Repartição. — Accordam os do supremo conselho de justiça militar, etc.

«Que confirmam a sentença da 1.ª instancia que julgou provada e procedente a accusação intentada contra o réu

Theodosio José Ignacio de Sampaio, capitão quartel mestre do batalhão n.º 2 de caçadores da rainha, por haver dissipado e distrahido em proveito proprio a quantia de 1:63$873 réis pertencente ao estado, a qual, no decurso do anno do 1869 e principio de 1870, recebeu da pagadoria militar, com destino ao pagamento do pret ás praças do indicado batalhão, por meio de requisições ou recibos interinos por elle passados e assignados pelos vogaes do conselho administrativo do batalhão, que os assignavam sem ler nem verificar, como lhes cumpria, a sua exactidão e conformidade com as requisições parciaes dos commandantes das companhias, d'onde resultou poder o réu, durante vinte mezes, receber a mais do que devia e de que era preciso a quantia supra indicada de 1:634$873 réis.

«Não julgam procedente a accusação, e revogam a sentença na parte que é relativa ao extravio de 708$000 réis recebida sob o pretexto de que era destinada para o pagamento das praças contratadas, porque, a respeito d'esta quantia, a prova dos antos não convence o accusado de prevaricação; e

«Attendendo que para o extravio da quantia já indicada de 1:634$873 concorreu tanto a malicia e a fraude empregada pelo accusado, como a incuria e a negligencia dos officiaes que constituiram o conselho administrativo do corpo, e assim tambem o atraso na indispensavel fiscalisação superior das auctoridades em quem a lei incumbe este dever;

«Attendendo á vida militar do accusado, sem nota;

«Visto o artigo 28.° dos de guerra, de 18 de fevereiro de 1763, que diz assim: — todo o official de qualquer graduação que seja, que se valer do seu emprego para tirar qualquer lucro por qualquer maneira que seja, e de que não poder inteiramente verificar a legalidade, será infallivelmente expulso:

«Condemnam por isso o réu mencionado Theodosio José Ignacio de Sampaio, capitão quartel mestre a ser expulso do exercito. Assim confirmada, revogada e alterada a sentença da 1.ª instancia, mandam que a pena julgada seja imposta ao réu.

«Lisboa, 31 de maio de 1872. = A. R. Graça = Palmeirim = Visconde do Pinheiro = J. B. da Silva = Barros e Sá, vencido quanto á pena por ser contra a expressa e clara disposição do artigo 313.° do codigo penal. — Fui presente, Camarate, tenente coronel, promotor.»

Vê v. ex.ª, portanto, que se tratava de um homem que por effeito da «incuria e negligencia dos officiaes que constituiram o conselho do corpo», conseguiu durante vinte mezes consecutivos roubar a fazenda publica. O regulamento disciplinar é bem explicito a este respeito, e diz (leu).

Havia pois negligencia no cumprimento das ordens dos seus superiores, a menos que o sr. ministro da guerra se não queira considerar inferior aos seus subordinados. Havia uma relaxação inqualificavel, e o resultado foi o que a camara viu pelo accordão que acabei de ler. Cumpria ao governo fazer applicação do artigo do codigo penal que tambem li, e castigar aquelle official e todos os co-participantes do crime, os membros do conselho administrativo, pela responsabilidade criminal que lhes resultava da negligencia manifesta no cumprimento das ordens superiores. Revelava o commandante d'esse corpo, por este facto, a sua incapacidade completa para uma administração tão simples como é a de um batalhão de caçadores.

Havia aqui um facto verdadeiramente grave, que nenhum militar conscienciosamente disciplinador, como o sr. ministro da guerra diz ser, permittiria que passasse impune; havia um extravio de dinheiro da fazenda publica; e eu declaro, e a camara póde convencer-se de que, se esse homem não conservasse, no fundo do abysmo a que o levou o seu crime uns vislumbres de probidade, podia imputar ao commandante e aos membros do conselho de administração a responsabilidade criminal do extravio do dinheiro roubado, porque elle, segundo a lei, tinha apenas obrigação

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de ser o portador do dinheiro da pagadoria para o quartel, e tinha de o entregar ao conselho administrativo, que depois fazia a distribuição d'elle, e quando a quantia entregue fosse conforme com a verba descripta nos recibos, a sua responsabilidade estava completamente eliminada.

Esse homem confessou-se réu do crime, e foi demittido por isso; mas não foram punidos os membros do conselho de administração, que, se não tinham sido cumplices no extravio do dinheiro, haviam sido causadores d'elle pela falta do cumprimento dos seus deveres.

A um impoz o governo a pena de demissão; a outro, que mostrou claramente que era incapaz de governar um corpo, mandou-o governar uma provincia! Essa provincia é a India.

É verdade que o nobre ministro e os seus collegas já tinham trabalhado muito, e a provincia resistia aos seus esforços. Vendo que aquelle estado ainda não estava completamente infeliz com umas certas medidas, que eu espero que ainda se hão de discutir no parlamento, e reputando que era possivel levar mais longe os males que ella soffre, mandou-lhe para lá um homem que mostrou esta incapacidade, e mandou-lh'o para lá para elle inventar novos meios de affligir os povos (apoiados).

É por esta fórma que o governo, é por esta fórma que o sr. ministro da guerra administra justiça aos seus subordinados; infringe as leis, punindo os que sem delinquirem pretendem fazer valer os seus direitos e premiando com uma generosidade inimitavel os que delinquem! (Apoiados.)

Se eu levasse por diante esta enumeração de factos, cada um dos quaes excede o outro na admiração que causam aos que os ouvem narrar a primeira vez, e não estão habituados a presencia-los, teria ainda muito tempo que tomar á camara; mas eu nem desejo nem devo faze lo.

O governo ha de responder-me, do mesmo modo que respondeu ao sr. Luiz de Campos, com o silencio. Lá está a prerogativa regia para abrigar o governo; mas, se o governo cala, falla o sr. Pinheiro Chagas. O que a mim me surprehende mais é que fosse a voz do sr. Pinheiro Chagas a unica que se erguesse no parlamento para tomar a defeza de actos d'esta natureza...

(Apartes que se vão perceberam.)

Foi aquelle cavalheiro o unico que se inscreveu...

(Ápartes.)

Perdão, não o sabia eu. Tambem está inscripto o sr. Affonseca; s. ex.ª ha de exprimir sem duvida bem as opiniões da maioria. Mas o sr. Pinheiro Chagas, que começou a sua vida publica por aggredir, com a eloquencia da indignação a mais santa, todas as tyrannias; que soffreu uma perseguição por castigar com a sua penna inspirada o cesarismo de Napoleão III; que tambem foi castigado por censurar o governo corrupto de Izabel II, é o primeiro que vem levantar a voz para defender um governo que praticou arbitrariedades, actos de corrupção, verdadeiros delictos. É uma triste sorte para quem tão bem começou!

Defende o governo, porque mandou fechar as portas do Casino (apoiados). Defende o governo porque... Mas s. ex.ª não defendeu o governo, atacou-o ainda com mais acrimonia do que o sr. Luiz de Campos; foi mais feliz em atacar o governo com a sua defeza, do que o tinha sido o proprio sr. Luiz de Campos com o seu ataque eloquente (apoiados); porque s. ex.ª não só mostrou que n'aquelles pontos em que queria defender o governo, a defeza era absolutamente impossivel, porque ninguem seria capaz de fazer o que não faz o talento do sr. Pinheiro Chagas; mas ainda demonstrou que a maior parte dos actos do governo nem de uma tentativa do defeza eram susceptivel.

S. ex.ª começou por dizer que as accusações do sr. Luiz de Campos tinham sido um pouco violentas e um pouco injustas; é o que a mais affectuosa amisade, a mais intima convivencia, a mais profunda sympathia pelo governo pôde achar de reprehensivel nas expressões do sr. Luiz de Campos. Um pouco de violencia, e um pouco de injustiça!!

Um pouco de violencia e um pouco de injustiça poderia achar-lhe alguem que fosse adversario politico do governo; mas muita justiça e muita verdade, em tudo quanto s. ex.ª affirmou, lhe acharão todos quantos forem imparciaes; e eu ainda vou mais longe, porque julgo que as asserções de s. ex.ª, o sr. Luiz de Campos, se peccam, não é pela sua demazia.

Disse o illustre orador que me precedeu, que «não censurava a opposição, porque esta escolhia a resposta ao discurso da corôa para entrar na discussão dos actos politicos do governo, porque essa discussão era vantajosa actualmente para a opposição, porque lhe permittia reunir as suas forças para dar batalha». Não ha vantagem em reuni-las ou dissemina-las. Se a opposição não tivesse força propria, encontra-la-ía nos actos governamentaes. Não ha mesmo necessidade de mais do que de fazer a simples narração dos actos praticados pelo governo, para se deduzir d'elles a sua condemnação. Que esta narração se faça conjuncta ou separadamente, isso é indifferente, isso não altera em uma virgula aquillo que é affirmado pela opposição. Os factos são inqualificaveis, para mim, de injustos que são; foram praticados pelo governo, a responsabilidade d'esses actos pertence-lhe; e se a não tornar effectiva o parlamento, a opposição ha de ao menos protestar levantando aqui a sua voz (apoiados).

Aggrediu s. ex.ª ainda o sr. Luiz de Campos, ou antes a democracia d'esta terra, por achar pessimo que o governo, ou os seus amigos, os seus agentes emfim, atacassem os filhos do povo, porque elles se atreveram a vir lançar-se aos pés do throno, na phrase cortezã da resposta ao discurso da corôa, a deporem os seus queixumes contra os conselheiros da corôa, e ao mesmo tempo notou certa contradicção entre isto e a asserção feita por aquelle cavalheiro de que as eleições não tinham um verdadeiro caracter popular. Como o hão de ter se o governo comprime, com a sua interferencia, as manifestações do pensamento popular. E é precisamente porque o governo pratica actos de violencia contra a livre manifestação do pensamento, que toda a democracia, toda a opposição em nome d'ella, protesta contra essas violencias (apoiados).

E é o sr. Pinheiro Chagas o homem de talento; o homem que illustra o seu paiz com os seus escriptos (apoiados), que, com a sua palavra eloquente, no parlamento, vem defender d'estas prepotencias, d'estas violencias e d'estes vexames contra a livre manifestação de pensamento! Essa defeza da parte de s. ex.ª escandalisa as minhas crenças liberaes, e profundamente convictas (apoiados).

Achou tambem s. ex.ª que não havia causa para a applicação d'aquelle simile eloquente, estabelecido pelo meu illustre amigo, entre os tempos dos Sejanos e Tigelinos e a epocha actual, porque faltava um tyranno para complemento da allegoria. D'esta vez tem rasão o illustre defensor do governo e este tambem concorda com s. ex.ª tranquillise-se porém s. ex.ª, essa falta tambem preoccupa o governo; sente a falta de um tyranno, e é precisamente isso que trata de inventar (apoiados).

Não ha tyranno em Portugal, mas se o houvesse seria o proprio governo quem o conduziria pela mão aos pés do throno, cujos degraus elle saberia facilmente subir.

Tambem eu não era nascido no tempo em que o papel anonymo que se disseminava occultamente por esse paiz, evocava as bacchantes, e outros personagens igualmente distinctos e igualmente elevados no conceito da antiguidade pagã (muitos apoiados). Não sei a quem se referiam essas evocações, nem se a pessoa a quem se referiam se poderia lisongear com ellas, até mesmo declaro a v. ex.ª que nunca li essas publicações anonymas; mas sei que a democracia, então como hoje, protestaria contra as insinuações, contra os ataques feitos contra a honra de uma senhora (muitos apoiados).

Mas, sr. presidente, se o partido progressista d'esse tempo não protestava contra essas accusações injustas e comple-

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tamente infundadas, contra esses actos, a que nem quero dar nome, é porque então os membros d'esse partido, os homens liberaes, que não pelejavam nos campos de batalha, ou haviam encontrado lá morte gloriosa em defeza da liberdade, ou estavam deportados na Africa ou encarcerados nos porões dos navios de guerra, ou nas masmorras dos presidios militares (muitos apoiados).

Aqui tem o sr. Pinheiro Chagas o motivo por que essas phrases injustas não eram repellidas pelos progressistas de então.

Espanta-se o sr. Pinheiro Chagas, de que nos admiremos dos actos arbitrarios praticados pelo governo, sem que elle chegasse a suspender as garantias como é pratica em Hespanha, e n'outros paizes que se reputam não menos liberaes! Realmente, sinto-me quasi disposto a mandar para a mesa, e a pedir á camara que vote uma moção de louvor ao governo, porque não chegou a deportar-nos! (Riso.) E se tambem o governo, segundo é pratica na Hespanha, nos não manda fuzilar, apesar de nos atrevermos a pensar de maneira differente das suas idéas, isso é realmente motivo para lhe agradecer! (Riso.)

Aconselhou então porventura a opposição que se suspendessem as garantias?

Uma voz: — Aconselhou.

O Orador: — Não fui de certo eu, nem o partido a que me honro de pertencer. Mas se alguma parte da opposição aconselhou esse procedimento e se merece censura, é porque se deixou illudir com as affirmações do governo (estrepitosos apoiados). A opposição só aconselhava a suspensão das garantias quando um governo, que reputava serio, lhe dizia que a ordem publica estava profundamente ameaçada (apoiados).

A opposição só aconselhava que se suspendessem as garantias quando se lhe dizia — que a dynastia, que tinha sido collocada no throno á custa do sacrificio e do martyrio de tantas victimas, e dos horrores das continuas revoluções que duraram um quarto de seculo, estava em perigo de caír e com ella as instituições liberaes, que ella symbolisava (apoiados).

O sr. Luiz de Campos: — E a independencia!

O Orador: — Aconselhou finalmente a opposição que se suspendessem as garantias quando o governo affirmava que estava compromettida a propria independencia da nação (apoiados). Pois uma nação que durante nove seculos tem firmado essa independencia á custa de tanto sangue e de tanta lagrima, de tanta viuvez e de tanta orphandade, de tantos e tão dolorosos sacrificios, deixava perder essa independencia só porque não se atrevia a adoptar o meio que a libertava d'esse tremendo perigo? Porventura a suspensão das garantias era a destruição de todos os direitos politicos do paiz? Pois ignoram os srs. ministros que a carta constitucional, mesmo n'esta hypothese gravissima, marca ao governo a norma de conducta que elle devia seguir?

A opposição aconselhou ao governo aquelle acto persuadida de que o governo não illudia o povo (apoiados), dizendo-lhe que existiam crimes que não podiam existir n'esta terra (apoiados). Não lhe censurem o conselho, censurem-lhe a credulidade.

Quando se affirma a existencia de sentimentos de radicalismo demagogico, ninguem se póde referir a este lado da camara. Esses sentimentos ou estão do lado do governo ou é d’ali que elles se geram. É da compressão das idéas, da constante compressão do sentimento popular, e do constante sophisma com que são praticados pelo governo todos os actos que se referem ás manifestações da vida constitucional dos povos (apoiados), que nasce o radicalismo demagogico.

A historia ha de impor ao segundo Cesar de França a mais grave responsabilidade pelos actos ali praticados depois da queda do imperio. Não foi a multidão desvairada que praticou os vandalismos da communa, foi o tyranno que pretendeu e conseguiu desvairar a opinião.

Citou-se tambem a Italia para justificar o procedimento do governo. Podia citar-se a Russia e a Turquia...

O sr. Pinheiro Chagas: — A Italia é liberal.

O Orador: — Pois a Italia que era liberal deixou de o ser no dia em que destruiu o primeiro direito popular (apoiados).

Pois no paiz mais liberal do mundo, se houver um homem que tente contra a liberdade, porque esse homem commetteu esse crime, segue-se que estamos auctorisados, nós tambem, a attentar contra ella. Eu protesto contra essa doutrina com toda a energia de que sou capaz.

Disse-se: «Só os jornaes da opposição se assustaram com o apparato das medidas extraordinarias adoptadas pelo governo». Porventura os jornaes da opposição estavam em intima convivencia com o governo para saberem que apenas se tratava de uma farça burlesca? (Apoiados.) O que os jornaes da opposição não sabiam, e o que os jornaes do governo cuidadosamente, occultavam, era que tudo o que se estava passando era apenas uma farça burlesca, que não tinha importancia nem gravidade, que era realmente cousa só para rir; portanto não admira que os jornaes da opposição se assustassem com as providencias do governo, que a final não eram senão um meio de prolongar a sua triste existencia. O que admira é que houvesse um governo que se lembrasse do dizer ao povo que o seu rei tremia d'elle.

Um rei portuguez nunca tremeu! (Apoiados).

O povo portuguez não tenta contra o seu rei (apoiados). Povo, rei e dynastia são entidades solidarias, porque esta emana d'aquelle; porque o rei é o primeiro representante da soberania nacional, porque é o mandatario do poder do povo, e tem n'elle a mais segura garantia de segurança para a sua pessoa.

Ora, quem visse as precauções militares tomadas entre nós; quem visse todo esse apparato militar tomado apenas contra uns moinhos de vento, julgaria que era repetido entre nós aquelle reinado a que já fiz referencia, durante o qual se escrevia nas esquinas de Londres:

«Rex fuit Elisabeth, nunc est regina Jacobus

Error naturae sic, in utroque fuit.»

Não era isso, não se illuda ninguem com essas apparencias, porque debaixo d'ellas está uma cousa séria e positiva que é exactamente a contraria. Um rei portuguez nunca tremeu dos seus inimigos, quanto mais do povo, que é o seu primeiro e mais leal amigo (muitos apoiados). Perante o povo só tremem tyrannos.

Mas quem nos havia de dizer que isto, que eram só farças burlescas, havia de ser pretexto para que um ministro se condecorasse a si proprio, como muito bem disse hontem o sr. Luiz de Campos!

Pois representa-se no paiz uma farça burlesca, pinta-se com negras cores o scenario, aspecto carregado os farçantes quando a representação, a fallar verdade, não passava, não obstante os esforços empregados, de uma farça, e dão-se condecorações a alguem por isto?!... Isto é serio? (Apoiados.)

Ninguém censurou tanto o procedimento do governo como o proprio sr. Pinheiro Chagas, n'aquella designação do espectaculo representado perante a nação.

Por ultimo defendeu ainda o illustre deputado o governo, dizendo que a conspiração iberica contra a nossa independencia foi qualificada pelo poder judicial.

Está enganado o illustre deputado. Peço perdão de lh'o dizer. Muito antes de ser levada esta questão aos tribunaes appareceu a qualificação nos jornaes do governo (apoiados). Não foi portanto o poder judicial que a apresentou, antes foi o poder judicial quem a desmentiu. Ahi estão os factos que fallam mais alto do que a asserção do sr. deputado. Esta é a verdade.

O illustre deputado póde ter muito empenho em defender os seus amigos politicos, mas não conseguirá destruir a verdade dos factos. S. ex.ª sabe que ha um accordão da relação onde essa accusação está completamente destruida.

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Sabe o sr. Pinheiro Chagas porque, de antemão, se não podia admittir essa qualificação, e não podia deixar de se considerar tudo isto como uma farça burlesca? É pelo motivo que s. ex.ª indicou, porque o patriotismo não se apaga no peito portuguez (apoiados).

Por que não demonstrou s. ex.ª antecipadamente aos seus amigos politicos que essa farça burlesca não podia inspirar receio a ninguem senão no primeiro momento? Tinha feito n'isso um grande serviço ao governo, que elle lhe devia agradecer. Devia faze-lo, visto que s. ex.ª sabe que o patriotismo não se apaga em peitos portuguezes.

Terminou o illustre deputado o seu eloquente discurso de uma maneira pouco vantajosa para a, já de si má, causa que elle defende, dizendo que n'esta epocha em que a força procura sophismas, para apoiar sobre elles as suas pretensões injustas, era mister que todos tivessemos em vista estes tristes factos da historia contemporanea, para não darmos á força pretexto plausivel para atacar o que todos nós temos de mais sagrado — a nossa independencia.

Foi porventura a opposição que se esqueceu d'esse preceito salutar? Foram porventura esses miseraveis conspiradores, absolutamente incapazes de praticar um movimento serio? Quem disse ao estrangeiro que havia aqui quem não quizesse ser portuguez? (Apoiados.) Foi o governo quando inventou os conspiradores contra a patria (muitos apoiados). Foi o governo quem attentou contra a honra d'esta terra, inventando uma falsidade (apoiados).

Declaro que voto contra a resposta ao discurso da corôa, porque não approvo a politica do governo; porque a condemno; e porque acuso o governo de haver commettido verdadeiros delictos, contra as leis vigentes, em muitos dos actos por elle praticados.

Não voto por ella, mas contra ella e em todos os casos, porque não podia subscrever a uma mensagem redigida nos termos d'esta, mesmo quando fosse uma simples mensagem de cortezia (apoiados).

Porventura a camara dos representantes do povo, um dos elementos do poder legislativo, igual a qualquer dos outros, póde ir de rastos quando cumprimenta o chefe d'esse mesmo poder? Respeitando as funcções que eu aqui exerço, respeitando em mim a investidura popular, não me curvaria para me abaixar aos pés de alguem, mesmo que esse alguem fosse o monarcha.

Não se esqueceu El-Rei de que faltava aos seus pares, não nos esqueçamos nós de que somos os pares do rei, como legisladores que tambem somos (apoiados).

Lê-se aqui (leu):

Sou povo! Porventura este povo é o apanagio de alguem?! (Muitos apoiados.) A soberania do direito divino morreu n'esta terra (apoiados); e ai d'aquelle que lograsse implanta-la, para caír com ella! (Apoiados.) A soberania popular não reconhece acima de si nenhuma outra, reconhece e respeita a monarchia constitucional como a emanação de si propria. O povo ha de pugnar por ella, ha de derramar por ella o seu sangue, porque essa monarchia é uma manifestação da sua soberania livre, como sempre o foi em Portugal.

Não reconheço ninguem n'este paiz com a força de pugnar senão pelo direito do povo, ou por aquillo que representa esse direito. (Vozes: — Muito bem.)

Dizia, não ha muito tempo, um dos homens mais notaveis da auctualidade, o sr. Thiers, que se lhe fosse possivel moldar de novo a França por um dos modelos dos Estados Unidos ou da Inglaterra, elle desejaria poder adoptar como modelo a Inglaterra. E eu, repetindo a phrase do illustre estadista, inverte-la-ía applicando-a á minha patria. Se me fosse possivel construi-la de novo, á similhança de um d'aquelles dois paizes, eu aconselharia que fosse dos Estados Unidos. Mas não vivemos n'um paiz em que seja possivel moldar segundo a nossa vontade. As tradições do passado podem muito, e um povo não póde romper com ellas quando contam muitos seculos de existencia.

Declaro que não julgo incompativel a monarchia com a liberdade.

A realeza póde ser uma manifestação d'essa mesma liberdade. Assim é entre nós.

Se eu podesse reconstruir este paiz, fazendo-o como eu desejava que elle fosse, falo-ía uma republica. Mas isso não é possivel, e assim, quero e hei de combater por isso, juro-o á camara, para que o paiz continue a ser governado como hoje é (apoiados). Mas o que não quero, o que não toleram os meus sentimentos liberaes, é que o façam voltar ao tempo anterior, aquelle em que o povo soube affirmar e conquistar com a espada na mão a plenitude dos seus direitos.

Diz ainda a resposta á falla do throno (leu).

Pois eu anteponho a minha personalidade a tudo isto. Quero perder tudo, menos o direito á liberdade (apoiados.) Anteponho os direitos sagrados do povo a todos estes assumptos. Convem ao governo que se não julgue a sua conducta politica, embora. Convem que assim seja á maioria que o apoia, mas não convem á maioria da nação que protesta contra as violencias do governo (apoiados).

Alem dos defeitos apontados pelo sr. Luiz de Campos e por mim até agora, nota-se n'este documento uma completa falta de referencia a um assumpto da maxima importancia para este paiz.

Dispendemos perto de 4.000:000$000 réis com a força, publica, e a força publica é uma mentira! Nacionalidade, patria, independencia, tudo quanto ha de mais sagrado para este povo, está n'um perigo imminente, e o principal culpado é o actual sr. ministro da guerra (apoiados).

Todos estarão lembrados das violentas accusações que o sr. Fontes fez na camara dos dignos pares ao ministerio presidido pelo sr. bispo de Vizeu, por não ter remodelado toda a legislação que diz respeito á força publica (apoiados). Affirmava s. ex.ª que todos os estudos estavam feitos, e que n'aquella occasião bastaria apenas organisar aquelles estudos n'um corpo de doutrinas! Onde estão hoje esses assumptos já estudados pelo sr. presidente do conselho? Que foi feito do fructo das suas vigilias? Tudo isso desappareceu. Nem uma só lei organica, nem uma unica proposta apresentada á camara, e vae para dois annos que s, ex.ª está no poder! (Apoiados.)

Lembra-se a camara de que, na primeira vez que s. ex.ªs vieram aqui, se desculpava o sr. presidente do conselho de ter de accumular duas pastas, a da fazenda e a da guerra. E hoje que tem só a pasta da guerra? Que vestigios ha da sua gerencia no ministerio da guerra senão aquelles actos vandalicos que eu apontei? (Muitos apoiados.)

O exercito está sem armamento; para as armas distribuidas aos corpos, nem ha munições. S. ex.ª quer porventura levar-nos aos tempos de 1801? A instrucção tactica é deploravel, a administração dos corpos mais deploravel ainda, e s. ex.ª descansa, e não olha para estes assumptos.

A disciplina do exercito é lastimosa a mais não poder ser!

Dizia s. ex.ª que não era possivel fazer muito a favor do exercito, porque as despezas eram avultadas, e faltavam os recursos, e que não era possivel antepor esta questão da organisação da força publica a outras que tambem valiosamente concorriam para a solução d'aquella. Mas s. ex.ª não antepoz a resolução de cousa alguma á resolução d'este problema importantissimo. S. ex.ª não resolveu a questão de fazenda, e teve de chamar em seu soccorro o actual sr. ministro da fazenda, porque s. ex.ª não se atrevia a rasgar com a sua propria mão o livro que continha as leis publicadas durante a sua administração, e era mister fazer esse sacrificio.

S. ex.ª assumiu a administração da pasta da guerra com o fim de tratar exclusivamente dos assumptos militares, e ainda esses assumptos jazem em completo esquecimento! Porventura o espirito do seculo levou as suas projectadas propostas para o mesmo limbo para onde foram tantas outras promettidas por s. ex.ª?

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Concluo affirmando ao paiz que nunca houve n'esta terra governo nenhum tão nefasto e tão perigoso como este (apoiados). O governo da usurpação, combatendo a favor da sua idéa, derramava rios de sangue para implantar entre nós o regimen que essa idéa representava. Tinha ao menos essa desculpa.

Ao governo, sem idéa, todos os meios servem para realisar o seu intuito, conservar-se no poder; e ainda mal, talvez para desgraça d'este paiz, elle consiga viver tanto tempo como o seu antecessor na tyrannia (apoiados).

Vozes: — Muito bem.

(O orador foi comprimentado.)

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