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REPÚBLICA PORTUGUESA

SECRETARIA-GERAL DA ASSEMBLEIA NACIONAL E DA CÂMARA CORPORATIVA

DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 43

ANO DE 1974 20 DE MARÇO

ASSEMBLEIA NACIONAL

XI LEGISLATURA

SESSÃO N.º 41, EM 19 DE MARÇO

Presidente: Exmo. Sr. Carlos Monteiro do Amaral Netto

Secretários: Ex.mos Srs.
Manuel Homem de Oliveira Themudo
Amílcar da Costa Pereira Mesquita

SUMÁRIO: - O Sr Presidente declarou aberta a sessão às 16 horas e 5 minutos

Antes da ordem do dia. - O Sr Presidente informou encontrar-se nos Passos Perdidos o Sr Deputado Hermes dos Santos, até há pouco impedido de tomar assento na Assembleia devido às suas funções de Secretário de Estado da Indústria, pedindo aos Srs Deputados Almeida Garrett e José Alberto de Carvalho o favor de o introduzirem na sala.
Foi posto em reclamação o n.º 41 do Diário das Sessões, tendo sido aprovado com uma rectificação.
Foi lido o expediente.
O Sr Presidente declarou estar na Mesa, para cumprimento do § 3.º do artigo 109.º da Constituição Política, enviado pela Presidência do Conselho, o suplemento ao n.º 62, do Diário do Governo, 1.ª série, de 14 do mês corrente, que insere o Decreto-Lei n.º 101/74.
O Sr Presidente comunicou estar na Mesa um oficio enviado pelo Ministério das Comunicações através da Presidência do Conselho, destinado a satisfazer o requerimento apresentado pelo Sr Deputado Oliveira Ramos.
O Sr Deputado Albino dos Reis referiu-se aos últimos acontecimentos políticos ocorridos e fez um apelo para a unidade nacional sob a figura veneranda do Chefe do Estado.
O Sr Deputado Almeida Santos recordou a vida e obra ao jornalista Ferreira da Costa agora falecido.

Ordem do dia. - Continua a discussão na generalidade da proposta de lei sobre a criação de secções cíveis e criminais nas Relações.
Usaram da palavra os Srs Deputados Fernando de Oliveira, Leite de Faria e João Manuel Alves.
O Sr Presidente encerrou a sessão às 17 horas e 20 minutos.

O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada.

Eram 15 horas e 55 minutos.

Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:

Abílio Alves Bonito Perfeito.
Alberto Eduardo Nogueira Lobo de Alarcão e Silva.
Albino Soares Pinto dos Reis Júnior.
Alda da Conceição Dias Carreira de Moura d'Almeida.
Alexandre Pessoa de Lucena e Valle.
Alípio Jaime Alves Machado Gonçalves.
Álvaro Barbosa Ribeiro.
Álvaro Filipe Barreto de Lara.
Álvaro de Mendonça Machado de Araújo Gomes de Moura.
Amílcar da Costa Pereira Mesquita.
António Alberto de Meireles Campos.
António Azeredo Albergaria Martins.
António da Fonseca Leal de Oliveira.
António Manuel Gonçalves Rapazote.
António Manuel Rebelo Pereira Rodrigues Quintal.
António Manuel Santos Murteira.
António Moreira Longo.
António de Sousa Vadre Castelino e Alvim.
António Victor Ferreira Brochado.

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Armando Júlio de Roboredo e Silva.
Artur Augusto de Oliveira Pimentel.
Augusto Arnaldo Spencer de Moura Braz.
Augusto Domíngues Correia
Augusto Leite de Faria e Costa.
Carlos Monteiro do Amaral Netto.
Delfim Linhares de Andrade.
Duarte Pinto de Carvalho Freitas do Amaral.
Eduardo António Capucho Paulo.
Fernando Dias de Carvalho Conceição.
Fernando de Sá Viana Rebelo.
Filipe José Freire Themudo Barata.
Francisco Elmano Martinez da Cruz Alves.
Francisco Magro dos Reis.
Francisco de Moncada do Cazal-Ribeiro de Carvalho.
Gabriel Pereira de Medeiros Galvão.
Gonçalo Castel-Branco da Costa de Souza de Macedo Mesquitela.
Graciano Ferreira Alves.
Gustavo Neto Miranda.
Henrique Callapez Silva Martins.
Henrique Vaz Lacerda.
Henrique Veiga de Macedo.
Humberto Cardoso de Carvalho.
João Afonso Calado da Maia.
João Bosco Soares Mota Amaral.
João Manuel Alves.
João Paulo Dupuich Pinto de Castelo Branco.
João Ruiz de Almeida Garrett.
Jorge Carlos Girão Calheiros Botelho Moniz.
Jorge Manuel de Morais Gomes Barbosa.
José Alberto de Carvalho.
José de Almeida.
José d'Almeida Santos Júnior.
José Coelho Jordão.
José João Gonçalves de Proença.
José Joaquim Gonçalves de Abreu.
José de Mira Nunes Mexia.
José dos Santos Bessa.
Júlio Alberto da Costa Evangelista.
Lia Maria Mesquita Bernardes Pereira Lello.
Lopo de Carvalho Cancella de Abreu.
Luiz de Castro Saraiva.
Luiz Maria Loureiro da Cruz e Silva.
Manuel Afonso Taibner de Morais Santos Barosa.
Manuel Fernando Pereira de Oliveira.
Manuel Ferreira da Silva.
Manuel Homem de Oliveira Themudo.
Manuel de Jesus Silva Mendes.
Manuel Joaquim Freire.
Manuel Jorge Proença.
Manuel José Constantino de Góes.
Manuel Rosado Caldeira Pais.
Manuel Valente Sanches.
Maria Angela Alves de Sousa Craveiro da Gama.
Maria Clementina Moreira da Cruz de Almeida de Azevedo e Vasconcelos.
Maria de Lourdes Cardoso de Menezes Oliveira.
Mário Höfle de Araújo Moreira.
Ricardo Horta Júnior.
Teotónio Rebelo Teixeira de Andrade e Castro.

O Sr Presidente: - Estão presentes 78 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.

Eram 16 horas e 5 minutos.

Antes da ordem do dia

O Sr Presidente: - Encontra-se na Sala dos Passos Perdidos o Sr. Deputado Hermes dos Santos, até há poucos dias impedido de tomar assento na Assembleia devido às suas funções de Secretário de Estado da Indústria, e que agora tem oportunidade de retomar os trabalhos parlamentares.
Peço aos Srs Deputados Almeida Garrett e José Alberto de Carvalho o favor de o introduzirem na sala e de o acompanharem até ao seu lugar.

Pausa

Está em reclamação o n.º 41 do Diário das Sessões.

O Sr Alberto de Alarcão: - Solicito que sejam feitas as seguintes rectificações.
Na p 842, col. 2.ª, 1. 38, onde se lê «Nenhum bosquejo», deve ler-se «Num bosquejo».

O Sr. Presidente: - Continua em reclamação o n.º 41 do Diário das Sessões.

Pausa

Se mais nenhum de VV. Ex.ªs deseja fazer rectificações a esse Diário, considerá-lo-ei aprovado.

Pausa

Está aprovado.

Deu-se conta do seguinte:

Expediente

Telegramas

Vários da Direcção dos Sindicatos de Metalúrgicos do Porto sobre problemas de funcionamento de fábricas.
Dois de apoio à política ultramarina do Governo Do Sr. Governador Civil de Faro apoiando a intervenção da Sr.ª Deputada D. Maria de Lourdes Oliveira.

O Sr. Presidente: - Informo VV. Ex.ªs que, para cumprimento do § 3.º do artigo 109.º da Constituição, está na Mesa, enviado pela Presidência do Conselho, o Diário do Governo, 1.ª série, suplemento ao n.º 62, de 14 de Março corrente, que insere o seguinte decreto-lei:

N.º 101/74, que fixa normas relativas à importação, exportação, construção, reparação, instalação, utilização ou simples funcionamento de recipientes sob pressão, bem como à construção, instalação e utilização de chaminés para descarga de efluentes na atmosfera.

Pausa.

Estão na Mesa, fornecidos pelo Ministério das Comunicações, através da Presidência do Conselho, os elementos destinados a satisfazer o requerimento apresentado pelo Sr. Deputado Oliveira Ramos na sessão de 8 de Fevereiro findo.
Vão ser entregues a este Sr. Deputado.

Pausa

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Tem a palavra o Sr. Deputado Albino dos Reis.

O Sr Albino dos Reis: - Sr. Presidente, Srs. Deputados. O facto de ter sido eu o primeiro a saudar V. Ex.ª, Sr Presidente, quando tive o prazer de o proclamar eleito Presidente desta Assembleia, não me dispensa, quando pela primeira vez uso da palavra nesta sessão legislativa, depois de ela constituída, de dirigir a V. Ex.ª os meus cumprimentos respeitosos pela forma segura, firme e compreensiva como tem dirigido os trabalhos desta Assembleia. Qualidades que, naturalmente, despertaram em nós todos o justo respeito pelas decisões de V. Ex.ª.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Sr. Presidente, Srs Deputados. Aos Srs. Deputados e meus caros colegas nesta Assembleia, eu quero dirigir as minhas sinceras expressões do muito apreço em que tenho tido o vosso comportamento e a maneira como se têm desempenhado das graves responsabilidades em que a Nação os investiu e, sobretudo, do esforço de cooperação que têm desenvolvido, cooperação que, neste momento, é mais necessária do que nunca. E de maneira particular e pessoal quero agradecer-lhes comovadamente as manifestações de estima e até de carinho - passe o termo - com que me têm tratado neste recinto, procurando rejuvenescer - ai de mim! - o Deputado mais velho desta Assembleia.
Muito lhes agradeço. Se não têm conseguido rejuvenescer o membro mas velho desta Câmara, têm-me, todavia, com a vossa generosidade, dado momentos de confiança ainda no futuro.

Pausa

Sr Presidente e Srs Deputados: O facto de ter lembrado os meus anos e a minha velhice não quer dizer que V. Ex.ª vão aqui assistir aos prognósticos sombrios do Velho do Restelo.

Risos

Não, meus senhores. Apesar dos anos, eu conservo ainda algumas ilusões da juventude. Os velhos também têm os seus sonhos e as suas ilusões, graças a Deus! E lá dizia um poeta espanhol que «más vale un engano que dê vida que un desengano que dé muerte»

Pausa

Levaram-me a quebrar o silêncio alguns actos ocorridos nos últimos dias.
O Sr Presidente do Conselho julgou-se na obrigação e no dever de trazer à Assembleia, mais uma vez, a afirmação da sua fidelidade à política ultramarina que definiu logo no primeiro discurso que dirigiu ao País ao tomar posse do seu cargo, e pediu a esta Câmara a sua reflexão e o seu juízo sobre essa política por ele definida e repetida e sobre a sua prossecução e execução.
A Assembleia Nacional, depois de reflectir e discutir, pronunciou-se unanimemente por um voto de adesão e de confiança na política do Chefe do Governo.
Passados dias, as forças armadas, pelos seus mais altos representantes, vieram afirmar ao Sr Presidente do Conselho os seus propósitos de servirem a Nação, e só a Nação, e a sua afirmação de lealdade e de obediência às determinações superiores do Governo.
Passados dias, houve uma remodelação do Governo, reestruturação do sector económico do Governo, e os titulares então nomeados tomaram posse pacífica dos seus cargos. Tudo parecia conduzir ao restabelecimento da tranquilidade e sossego públicos, que boatos malévolos, mal-intencionados e insidiosos tinham perturbado profundamente.
Eis senão quando nos surge um movimento, que eu qualificarei de subversivo, de insubordinação e de rebeldia, partido do Regimento de Infantaria n.º 5, das Caldas da Rainha.
Meus senhores. Impressionou-me até o facto de esse movimento partir das Caldas da Raínha, povoação com população pacífica, progressiva e laboriosa, onde poderia pressentir-se o aroma místico das rosas da Rainha Santa Isabel, transmitido a outra rainha que não foi canonizada, mas era santa, que fundou as Misericórdias portuguesas.
Pois é daí que surge esse movimento de insubordinação e rebeldia. Um grupo militar saiu desse Regimento, marchou até às portas de Lisboa e, encontrando aí um dispositivo militar constituído pelas forças armadas e pela Guarda Nacional Republicana, que lhe vedava a entrada na cidade, inverteu a marcha e regressou ao quartel de onde tinha saído e onde se rendeu. Suponho que nesta altura os seus fautores já se encontram presos.
Meus senhores. A minha formação jurídica impõe-me o respeito por aqueles que estão presos, mas o acto em si não pode deixar de merecer a apreciação desta Assembleia, porque é um acto que tem consequências políticas, e isso é do âmbito desta Assembleia. E eu só posso entender que esse gesto de tresloucados não pode deixar de merecer desta Assembleia a mais severa reprovação.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Meus senhores. Dizem os filósofos que não há nada tão mau que não tenha a sua coisa de bom. E até neste caso isso se verifica, porque permitiu-nos e permitirá ao País constatar que em nenhum dos ramos das forças armadas, em nenhum ponto do País, houve qualquer eco que traduzisse simpatia, compromisso, cumplicidade com esse movimento. Isso é para nós, meus senhores, motivo de confiarmos no caminho da política ultramarina que temos prosseguido, depois da definição imperiosa de Salazar em 1961. É esse caminho que pode conduzir-nos ao triunfo da nossa causa, ao triunfo do nosso direito, à preservação da nossa unidade através de todos os continentes.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Meus senhores. Diz o nosso épico que os Portugueses «deixaram a sua vida pelo mundo em pedaços repartida» Pois, é dessa vida dos Portugueses pelo mundo em pedaços repartida que se constitui esta pátria singular entre as outras nações do Mundo. Com esses pedaços é que se constituiu

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uma pátria una e indivisível, com a mesma feição criadora e fraterna, amorável e heróica, altiva, mas generosa, compreendendo perfeitamente, irmamente, o modo de ser de outras raças, de outros continentes, de outras etnias, de outras culturas E pode assim constituir-se com estas variedades, repito, esta pátria singular, a patina mais bela e linda, como dizia um poeta, que «ondas do mar e luz do luar viram ainda». Meus senhores. Temos de voltar-nos pana a figura veneranda do Chefe do Estado, cujo patriotismo, cuja firmeza, cuja serenidade, cuja isenção de espírito são para nós um exemplo edificante, perante o qual nós todos e o País temos de nos curvar.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Temos, meus senhores, de nos voltar para o Presidente do Conselho, onde embate a ressaca de todos os acontecimentos, de todas as dificuldades, de todos os descontentamentos, para com o nosso abraço, o nosso apoio e a nossa admiração lhe robustecermos a firmeza e a superioridade com que enfrenta todos esses descontentamentos, procurando dominá-los com a superioridade do seu espírito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Voltemo-nos, meus senhores, para as forcas afanadas da Nação, em que o País tem de confiar.
Disse há muitos anos que as forças armadas de um país são a sua espinha dorsal, é indispensável que a espinha dorsal de um país, que são as suas forças armadas, se mantenha bem firme.
Se um dia as forças de dissolução, que também por aí existem, conseguissem fazer quebrar essa espinha, desviá-la por qualquer forma, ai de nós, meus amigos, o que seria deste País!

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Temos de confiar nas forças armadas da Nação, que se têm batido heroicamente durante estes treze anos, regando o caminho percorrido com o seu sangue.
Devemos confiar na nossa juventude, que se sacrifica e bate nas terras de além-mar, sem outra recompensa que não seja a do dever cumprido e dos sacrifícios prestados a bem do futuro deste País.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Orador: - Temos de confiar no povo português, que moureja e trabalha e se sacrifica e acompanha com os seus votos e as suas orações o esforço dos seus filhos e a sorte das nossas armas.
Meus senhores. O povo diz que depois da tempestade vem a bonança.
Eu direi que, depois das restrições da guerra, há-de raiar um dia a hora luminosa da vitória, de uma paz gloriosa e fecunda.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem!

O Sr Almeida Santos: - Sr Presidente, Srs Deputados. Acaba de fechar os olhos para sempre o jornalista Ferreira da Costa.
A morte de um homem não tem, na realidade, qualquer tanscendência ou relevo no ciclo biológico do Universo. A todo o momento se vão apagando à nossa volta rostos e figuras que fizeram parte do nosso círculo pessoal, assim se vão, sem remédio, os nossos afectos, os companheiros do dia-a-dia, assim desaparecem, ironicamente igualados, os grandes e os pequenos deste mundo.
Todavia, a morte de Ferreira da Costa veio, sem dúvida, acordar um eco muito longo e sentido dentro e fora do País, porque acaba de imobilizar-se para sempre aquela torturada mão que arrancou soberbas cintilações à velha língua portuguesa, língua que ele afeiçoava como poucos a uma prosa plástica admirável, para nos descrever eventos, homens e situações.
Porque Ferreira da Costa, quer como ficcionista, quer como correspondente de guerra, quer ainda no silêncio do seu gabinete, esmagando cigarro após cigarro na gestação de um artigo de fundo, era sempre um artista, grão-senhor de todos os segredos e de todos os matizes capazes de agarrarem e subjugarem o leitor da sua prosa.
Não vou aqui recordar a sucessão de lances aventurosos e trágicos, de honrarias, de homenagens e de dolorosos passos que constituíram a sua vida.
Como qualquer outro homem de elevada estirpe intelectual, Ferreira da Costa haveria fatalmente de sofrer, como sofreu na carne e no espírito, as frechadas da inveja e da malquerença, como teria, fatalmente, um dia, que ser distinguido e compensado pela consagração oficial do seu talento.
Desde as páginas de Na Pista do Marfim e da Morte até Os Olhos dos Rouxinóis, de pungente filosofia, até àquelas outras proféticas e terríveis escritas em Luanda, no deflagrar do terrorismo, quantas produções admiráveis nos deixou!
E é sobretudo aqui que desejo deter-me um pouco, para relembrar, como um dever, aquilo que Ferreira da Costa representou para Angola e para o País nos dias alanceados de Março e Abril de 1961.
Não vou evocar, nem quero evocar, os morticínios e as chacinas que então deram brado e ocuparam as manchetes da imprensa de todo o Mundo. E não o farei porque, na verdade, a dor e a morte são grandes de mais para serem especuladas com adjectivos sonoros, e ainda porque, todos os homens, todas as mulheres e todas as crianças de Angola, brancos, pretos e mestiços, que viveram então horas de pesadelo, guardam hoje essas amargas recordações no recato e no silêncio de si mesmos, e têm horror à lástima e à exibição das suas cicatrizes.
Comparada com a de 1961, poderia dizer-se que a Angola de hoje desfruta de paz, pois vive-se ali na euforia do muito que se vai realizando, com trabalho, com esforço e com dedicação. Mas estou certo de que ninguém naquela terra poderá jamais esquecer e sentidamente deixar de evocar a voz do jornalista que, em certo momento, representou a voz das populações angolanas; a voz que dia a dia foi esclarecendo o País e conseguiu despertar cons-

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ciências adormecidas ou frouxas, sacudir indecisões e inércias e canalizar para Angola uma onda de simpatia, de fraternidade, de apoio moral e material.
E, na verdade, Ferreira da Costa não carecia de um apontamento, de um papel, para produzir as comunicações diárias, através da rádio, para o Portugal metropolitano. Aquele homem seco e baixo, de cabeça precocemente envelhecida, tinha em frente do microfone a fluência espontânea e a vibração que somente a sinceridade e a emoção dos acontecimentos vividos à nossa, beira, numa terra muito amada, podem produzir.
Recordo, com efeito, a insistência do seu apelo para a ida de colonos que ocupassem as vastas lonjuras angolanas.
Muitas foram as críticas injustas que aleivosamente lhe teceram por essa ocasião! Censuravam-no alguns, dos rotineiros com responsabilidades técnicas e administrativas, temerosos dos safanões às delongas habituais, bradando não haver estruturas na província aptas para receberem grande número de emigrantes. Outros, timidamente agachados ante o bater do pé dos façanhudos ditadores do Terceiro Mundo, asseveravam que a ida de gente branca para Angola iria prejudicar as populações nativas, por lhes disputar os poucos empregos existentes. Outros ainda, de alma oirada de transigências com as resoluções internacionais, temiam que a emigração de metropolitanos para Angola congregasse contra Portugal todas as más vontades do estrangeiro.
Não eram, porém, essas críticas malévolas ou falhas de apoio lógico que iriam vergar o ânimo de lutador de Ferreira da Costa.
Aos primeiros, numa prosa fuzilante, esporeava-os com as consequências da sua inércia, incitando-os a acelerar o aparecimento de novas estruturas e a improvisar inteligentemente, como a conjuntura o exigia.
Aos que temiam a concorrência dos metropolitanos fazia ele notar que Angola, cerca de catorze vezes e meia maior do que a metrópole, possuía apenas um número de habitantes aproximadamente igual a metade das gentes metropolitanas. Acaso não poderia duplicar-se esse número sem que as populações se viessem a acotovelar ou a prejudicar-se mutuamente? Num território tão vasto como o de Angola e tão escassamente povoado por uma população pouco produtiva, se lá viessem a estabelecer-se alguns milhares de habitantes bastante laboriosos e, sobretudo, capazes de servirem de catalisador à maior produtividade dos naturais, logicamente se verificaria um acréscimo do rendimento e, por conseguinte, uma elevação do nível de vida e uma melhoria no bem-estar de quantos até então lá viviam.
Aos outros, aos que pretendiam transigir com a opinião dos areópagos internacionais, perguntava ele se há muito já não estávamos nós amarrados ao pelourinho da calúnia pela doblez dos que nos pretendiam esbulhar. Fizéssemos o que fizéssemos - muito ou nada -, não seríamos nós, Portugueses, sempre malsinados por aqueles que têm o único e firme propósito de nos despojarem e nos destruírem?
E a verdade é que todos quantos acorreram ao apelo de Ferreira da Costa e souberam persistir no esforço e no trabalho, todos quantos perseveraram na luta contra os dias difíceis dos primeiros tempos, conseguiram prosperar e vivem hoje num bem-estar económico que talvez jamais viessem a alcançar em qualquer outra parte do Mundo.
Ferreira da Costa não lhes mentira. Ferreira da Costa conhecia bem as potencialidades daquela terra opulenta.
Ali colhera, nos anos de juventude, experiências, aventuras, contactos humanos e com a própria natureza em toda a sua magnificência e primitivismo - que lhe haviam inspirado páginas consagradas. Na plenitude e na maturidade da vida, ali se lhe deparara, do jornalista, a selva humana da cidade, que ele achava mais insidiosa e temível que os sertões, e onde na sombra cresciam sombras e soavam rebates, que lhe alertavam o espírito subtil e a fina percepção.
Eis que, por singular destino, a morte de Ferreira da Costa vem coincidir com o aniversário dos dias candentes em que ele representou para o País a verdade e a determinação das gentes de Angola.
Morre como um lutador, prostrado ao cabo de uma longa batalha contra a doença, e da mesma forma como sempre reagiu perante os desaires, assim lutou tenazmente e espantosamente até ao fim, o homem que toda a vida foi um lutador.

O Sr Neto Miranda: - V. Ex.ª dá-me licença?

O Orador: - Faça favor.

O Sr Neto Miranda: - Eu queria muito sinceramente associar-me às palavras de homenagem que V. Ex.ª está a prestar a um grande jornalista e a um grande português.
Acompanhei durante muitos anos a vida de Ferreira da Costa e se com ele não convivi de perto, convivi o suficiente para perceber quão forte era a sua fibra de português.
Era um homem que se preocupava muito com a maneira como podia ser gerido o espaço da Nação Portuguesa.
Era um homem de uma fé extraordinária, uma fé que nada podia perturbar no que ele sentia de mais entranhadamente seu o amor a Portugal, o ser português no tempo e no largo espaço que nós temos que percorrer e que temos que viver como portugueses.
Era esta palavra que eu queria deixar registada em louvor de Ferreira da Costa.

O interruptor não reviu

O Orador: - Muito obrigado, Sr. Deputado Neto Miranda, pelas suas palavras, que vieram corroborar as minhas afirmações.
Todos nos devemos sentir mais pobres quando desaparece um homem da sua têmpera Com efeito, com a morte de Ferreira da Costa algo nos foi roubado de valioso, de firme, de inquebrantável. O País acaba de perder um grande jornalista e um grande escritor, e Angola, neste momento, sente, para além disso, a perda de um companheiro dos dias de luta e de incerteza, quando a pena do jornalista era então a sua arma de combate, arma mortífera e candente, contra a mentira, o desleixo e a barbárie.

Vozes: - Muito bem!

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O Sr Presidente: - Srs. Deputados: Vamos passar à

Ordem do dia

Continuação da discussão na generalidade da proposta de lei sobre a criação de secções cíveis e criminais nas Relações.
Tem a palavra o Sr Deputado Fernando de Oliveira.

O Sr Fernando de Oliveira: - Sr. Presidente, Srs Deputados. Vem a Proposta de Lei n.º 2/XI, versando a criação de secções cíveis e criminais nas Relações, suficientemente instruída por bem elaborado parecer da Câmara Corporativa.
Da singeleza ática da proposta, ainda subscrita pelo grande Ministro que foi o Prof. Almeida Costa, e da erudição técnica daquela Câmara, através de sapientes e talentosos jurisconsultos, ressalta o melindre da questão posta ao senso político da Assembleia Nacional, como se impunha.
Com efeito, de ambos os textos ressuma a preocupação de acautelar desequilíbrios ou direitos fundamentais da pessoa humana, a que os doutos votos de vencido apenas emprestaram maior acuidade.
Tais cautelas impõem-se com mais premência a esta Assembleia, que deve filtrar as criações tecnocráticas - sem dúvida essenciais ao progresso - através dos sentimentos humanísticos que decorrem do nobre e fundamental artigo 8.º da Constituição Política da Nação, que, de resto, só reconhece como limites a moral e o direito.
Dificuldades e desequilíbrios que o limiar da era pós-industrial que se avizinha torna mais complexas e angustiantes para quem, como nós, tem que procurar a harmonia entre o interesse social e a dignidade da pessoa humana, num mundo em explosão tecnológica, demográfica e ideológica.
Explosão que tem estilhaçado, com incrível violência, os mais arreigados e veneráveis princípios que os séculos estratificaram através da influência do humanismo cristão, sempre presente mas nem sempre actuante.
Estilhaços que têm sulcado a face sacrossanta da Autoridade, da Família e da própria Igreja.
Sulcos que muitos cobardemente procuram esconder, como chaga repulsiva, e que outros capricham em exibir como carisma mártir de uma nova idade do homem.
Sem bússola e sem norte, o homem, tem absoluta necessidade de se arrimar a qualquer coisa que o salvaguarde dos abusos ou desvios do poder e dos egoísmos incontrolados da selva em que se viu repentinamente mergulhado e errante.
Ao Poder Judicial cabe essa nobre, difícil, fundamental missão.
A lei cuja proposta estamos a apreciar insere-se exactamente na encruzilhada dessa preocupação de equilíbrio.
A uma indispensável especialização de quem julga há que contrapor uma visão ampla do horizonte dos fenómenos sociais.
A um aprofundamento dos conhecimentos específicos de cada ramo do Direito há que impedir o corte dos restantes, tão necessários à vida equilibrada em sociedade uns como os outros.
A lei em gestação procura ir ao encontro dessas preocupações de equilíbrio, e parece-nos que em termos suficientemente cautelosos.
Não vale a pena entrarmos em grandes detalhes técnicos.
A imagem do panorama da ciência jurídica dos países mais evoluídos, que nos foi dada por aquele douto parecer, é suficiente e correcta.
Há, porém, que ter em conta os particularismos da realidade portuguesa.
E aí é que nos parece que a lei que se propõe à nossa consideração não é suficiente.
Sem lhe retirarmos a nossa aprovação na generalidade, sentimos que o douto parecer da Câmara Corporativa pôs o dedo na ferida quando reconhece que «o recrutamento dos magistrados não pode presentemente fazer-se com grandes exigências, acentuando-se até o desinteresse que a carreira judicial vem a suscitar desde há algumas décadas por parte de licenciados que poderiam valorizá-la»
Assim é, na verdade.
Por mais equilibrada e perfeita que seja uma lei nada restará das suas virtualidades se não tiver executores à altura.
Os bens, a liberdade e a honra dos cidadãos não podem estar à mercê de julgadores sem preparação técnica e humanística.
E a especialização só agrava essas carências, pela tendência que dela irremediavelmente dimana, de um estreitamento de vistas, sem tempo nem chama para uma missão de sacerdócio.
Poder-se-á dizer que isso é um sinal irreversível dos tempos, em que o materialismo tresmalhou as fontes dos sentimentos, colocando o estômago onde estava o coração.
Mas alguma coisa poderá o Governo fazer para um retorno à tradicional dignidade e prestígio da magistratura, cuja honradez e independência, felizmente indiscutíveis, causam o espanto de quem se dá ao trabalho de cotejar os seus vencimentos e as suas regalias com os de outras funções menos nobres e essenciais à vida em sociedade.
Há, porém, que aproveitar este resto, de que falam os evangelhos, para preservar a sanidade e robustez da última trave do edifício social - porventura a sua trave mestra.
E o mesmo se dirá dos serventuários mais modestos, que não menos indispensáveis, da Justiça.
Dois breves apontamentos nos farão reflectir sobre a situação.
Um juiz de 3.ª classe, depois de calcorrear os três escalões da magistratura do Ministério Público, ganha, em média, 14 000$, incluindo vencimento e participação emolumentar líquidos, ajudas de custo nos termos do n.º 6 do artigo 141.º do Estatuto Judiciário, subsídio de viagem e ajudas de custo e transportes para intervenção em colectivos noutras comarcas.
Mas se tal juiz ascende à 2.ª classe e for colocado numa comarca em que haja dois juízos, arrisca-se a ganhar menos cerca de 2000$!
E será legítimo que um ajudante de escrivão nas comarcas de Lisboa e Porto e nalgumas mais seja

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remunerado em quantia superior a um escrivão e até a uma chefe de secretaria de comarca de 3.ª classe?
É certo que se trata de anomalias do sistema que terão escapado ao legislador e que podem ser facilmente ajustadas com uma rápida correcção.
Mas o que dizer dos baixos níveis de remuneração dos magistrados e funcionários quando os confrontamos com outras actividades?
Será admissível, por exemplo, que um delegado de 3.ª classe, depois de uma difícil licenciatura em Direito e de um estágio adequado, ganhe apenas 6938$, que um escriturário de 2.ª classe aufira 2488$ e que um corregedor, que preside aos mais importantes julgamentos em l.ª instância, tenha uma gratificação de 1500$, aliás, velha de anos?
É evidente que a motivação para o ingresso na magistratura e funcionalismo judiciais é tão débil que só por milagre ainda há quem queira alimentar-se com a dignidade da função, sofrendo verdadeiro suplício de Tântalo ao ver passar-lhe pelas mãos pleitos em que se debatem milhões e milhões de escudos, de que tomam apenas um leve, passageiro aroma!
Não negamos que o restante funcionalismo público está insuficientemente remunerado.
Não negamos que o Governo tem feito um indiscutível esforço nestes últimos cinco anos no sentido de melhorar a sua situação.
Não negamos que a crise económica em que o Mundo se debate não é muito propícia a aventuras.
Não negamos, finalmente, que será condenável proclamar classes privilegiadas.
Mas o que também não podemos negar é a necessidade de acautelar a segurança da trave mestra do edifício social e, de uma maneira geral, dos servidores da mais importante empresa nacional - o Estado -, na feliz e lúcida expressão do Sr. Presidente do Conselho, a quem neste momento saúdo e renovo os meus sentimentos de profunda confiança na sua determinação, sereno equilíbrio e larga visão no rasgar dos caminhos difíceis do futuro, na mesma confiança envolvendo, na parte que hoje me toca mais de perto, o categorizado Ministro da Justiça, que já deu evidentes sinais de inconformismo e de compreensão.
Só assim poderemos construir validamente o Estado Social de direito que todos desejamos, em que a distribuição da riqueza não sofra o rasoilo atrofiante e utópico do socialismo nem as picadas pertinazes das sanguessugas do capitalismo internacional - aquele e este a alimentarem-se do sangue dos povos, em nome dos quais o sugam sofregamente até à indigestão.
Podemos estar, no entanto, tranquilos.
O Governo, pela voz autorizada e sempre magistral do Sr Presidente do Conselho, acaba de dar ao País a garantia, para nós desnecessária, de que continua nas suas preocupações mais instantes a revisão do magno problema do funcionalismo público à luz do bom senso e do sentido das proporções, que a grave crise económica mundial e o estado de guerra a que nos forcaram condicionam.
Saber esperar é uma virtude.
E ninguém terá o direito de duvidar de um estadista que tem dado inequívocas provas de serena determinação e de excepcional devoção pelos servidores do Estado.
Assim todos o saibam compreender e apoiar. Por mim, continuarei firme na primeira linha.

Vozes: - Muito bem!

O Sr. Leite de Faria: - Sr. Presidente, Srs. Deputados Chegou o momento de se discutir a proposta de lei n º 2/XI, relativa à criação de secções cíveis e criminais nas Relações. Frequentador assíduo dos tribunais, no exercício da única actividade profissional a que me venho dedicando há mais de vinte anos, não poderia assistir indiferente ao desenrolar de um debate que, como é regimental, se inicia pela generalidade.
Deverá assim a discussão, em tal domínio, versar sobre a oportunidade, vantagem e economia da proposta.
É manifesta a simplicidade da formulação do texto apresentado, o que em nada diminui a complexidade do tema e o alto interesse da respectiva matéria, cuja discussão e votação se integra na competência exclusiva da Assembleia Nacional [artigo 93.º, alínea b), da Constituição]
A iniciativa em apreciação tem desde logo como pressuposto o facto de, embora constitua regra geral da organização judiciária, ao nível da 1.ª instância, a cumulação de competência em matéria cível e criminal, tal não suceder nas comarcas de Lisboa e Porto, onde funcionam inúmeros tribunais, na base de uma institucionalizada dualidade de competência em razão da matéria.

om efeito, tomando-se em linha de conta a realidade emergente do estado actual do por de mais conhecido fenómeno de macrocefalia dos dois principais centros urbanos do País, detêm as comarcas de Lisboa e Porto, em permanente funcionamento, 76 tribunais de 1.ª instância, cuja competência é determinada em razão da matéria cível ou criminal das questões que perante eles são instauradas pelas respectivas populações.
Vê-se, pois, que nestas duas grandes comarcas do País acabam por se dedicar a julgar matéria cível ou criminal, quase sempre por período não inferior a seis anos - tempo mais do que suficiente para se adquirir uma especialização -, aqueles que estão prestes a ser promovidos à 2.ª instância.
O certo, porém, é que se tem ignorado, pura e simplesmente, esta realidade, esperando-se que os magistrados sejam enciclopédicos, mesmo depois de se haverem, efectivamente, especializado precisamente na fase amadurecida da Vida. Para mais, decorado o tempo de servir na Relação, surge ao magistrado novamente a oportunidade de exercer a sua nobre missão, segundo a apontada dualidade, em alguma das secções cíveis ou na secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça.
A irresistível tendência dos tempos modernos é de tal modo obstinada na especialização, que a mesma se afigura irreversível nos múltiplos domínios da ciência, da técnica e das correspondentes actividades profissionais.
Quanto à actividade forense, foi a especialização defendida no nosso I Congresso Nacional dos Advo-

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gados. A mesma linha de razões a impõe necessariamente para a magistratura, como, aliás, se tem verificado cada vez mais em sistemas estrangeiros bem significativos. E note-se, até, que a diversificação não se está produzindo apenas entre a jurisdição penal e a jurisdição cível, mas ainda para além desta divisão básica.
É possível argumentar-se - figurando situações extremas e excepcionais - que poderá haver juizes que cheguem às Relações sem nunca terem julgado matéria cível e que aí ingressem magistrados cuja carreira nunca os obrigou a decidir matéria criminal. Imagine-se, a título meramente exemplificativo, o caso daquele que atinge a 2.ª instância completamente afastado da judicatura.
Mas parece evidente que o argumento é reversível. Na verdade, pergunta-se. Entende-se, então, que esse juiz estará melhor preparado para julgar em matéria cível? Ou que mais apto se mostrará para decidir matéria criminal?
O legislador deve tomar como ponto de partida o que é normal. E normal é o juiz chegar ao fim da 1.ª instância com uma formação geral que, não obstante uma especialização conforme à sua vocação e predilecções intelectuais, lhe permita uma visão global e unitária da ordem jurídica. De resto, o problema põe-se quanto a todos os juristas, no domínio do ensino e, como disse, também da actividade forense e até ao funcionalismo judicial. Por que se haveria então de considerar somente prejudicial a especialização dos juizes, sendo certo que também estes, através dela, melhor poderão adquirir um conhecimento mais perfeito e necessário das disciplinas afins do ramo do Direito que particularmente cultivam?
Sr Presidente, Srs Deputados. Afigura-se-me, pois, oportuna e vantajosa a proposta, cuja economia perfeitamente se harmoniza com o actual estado de desenvolvimento da nossa organização judiciária.
Algumas considerações entendo dever acrescentar, porém, seguro, como estou, de que a maior e mais grave responsabilidade de cada um de nós dentro desta Casa consiste em não recusar, no momento oportuno, o depoimento adequado às questões de interesse nacional que se debatam, procurando servir com verdade, lealdade e justiça.
Não se apagaram ainda os ecos das autorizadas, vozes que aqui se ergueram, na legislatura passada, em discussão da proposta de lei n.º 17/X, que culminou com a votação da Lei n.º 2/72, de 10 de Maio.
Se determinados entusiasmos dessa hora não conseguiram modificar e ampliar o objecto da proposta governamental, não deixaram de contribuir - o que creio ser a todos os títulos relevante - para acrescentar alguma coisa ao prestígio desta Assembleia, pelo que respeita à isenção com que os problemas aqui são debatidos.
Serenamente, todavia, como convém, a reforma da organização judiciária continua, já que o dinamismo próprio do nosso tempo se não compadece muitas vezes com a confortável estabilidade das instituições do mundo de ontem. E na matéria em apreço, assentes sobre a Lei n.º 2113, de 11 de Abril de 1962, lá se vão afeiçoando afinal à organização e o modo de funcionamento dos nossos tribunais às próprias realidades da vida.
Em 29 de Abril de 1970, surge, por isso mesmo, a Lei n.º 4/70, que criou, em Lisboa e Porto, os Tribunais de Família, regulamentados pelo Decreto n.º 8/72, de 7 de Janeiro, cuja inauguração teve lugar em 4 de Abril de 1972, de harmonia com a Portaria n.º 125/72, de 3 de Março. A experiência já colhida, quanto ao funcionamento destes tribunais, tem demonstrado que a sua instituição entre nós foi oportuna e eficaz. Não seria possível, evidentemente, em tão breve período de funcionamento, colher plenos frutos das virtualidades dessa nova jurisdição, até porque talvez se imponham alguns ajustamentos processuais. Mas que os seus resultados são muito positivos afigura-se-me inquestionável A ideia tem, aliás, continuado a prosperar no estrangeiro.
Devo ainda acrescentar que o entusiasmo - geralmente reconhecido pelos que vivem o dia-a-dia da vida judiciária - com que os magistrados que trabalham nos tribunais de família - aliás dos mais distintos - se têm dedicado à concretização prática dos ideais da nova jurisdição é garantia de que os mesmos não se cifram em fantasiosas abstracções, mas que, antes, serão em breve plenamente atingidos.
A seguir, aparece, aureolada pelo prestígio que lhe emprestou o debate aqui desencadeado, a Lei n.º 72/72, de 10 de Maio, que promoveu a criação de juízos de instrução criminal, a reorganização funcional dos tribunais colectivos, o alargamento do sistema da oralidade às formas menos solenes do processo criminal e que instituiu a possibilidade de um magistrado servir em mais de uma comarca ou círculo judicial.
Mercê disso, logo foi publicado o Regulamento dos Juízos de Instrução Criminal, aprovado pelo Decreto n.º 343/72, de 30 de Agosto, tribunais esses que, segundo a Portaria n.º 530/72, de 14 de Setembro, iniciaram a sua actividade nas comarcas de Lisboa e Porto em 1 de Outubro seguinte.
Como se não ignora, essas alterações da organização judiciária e as paralelas reformas, no âmbito do direito e do processo penal, introduzidas pelos Decretos-Leis n.ºs 184/72 e 185/72, de 31 de Maio, destinaram-se a dar plena e pronta execução às modificações operadas na última revisão constitucional em favor da garantia das liberdades individuais.
Depois, o Decreto-Lei n.º 202/73, de 4 de Maio, introduziu modificações na divisão judicial do território - instituição de um novo distrito judicial, com sede em Évora, e criação de novos círculos, comarcas e julgados - e na constituição e funcionamento dos tribunais.
Por último, o Decreto-Lei n.º 414/73, de 21 de Agosto, e o Decreto-Lei n.º 696/73, de 22 de Dezembro, alteraram numerosas disposições do Estatuto Judiciário, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 44 278, de 14 de Abril de 1962, embora já largamente modificado pela intensa actividade legislativa a que me referi.
Tem-se falado muito - o que inequivocamente traduz a atenção com que o País seguiu o debate da proposta de lei n.º 17/X - em candentes problemas ligados à organização judiciária.
São disso testemunho as palestras - uma delas recentíssima - que no Instituto da Conferência da Ordem dos Advogados (Porto e Lisboa) fizeram a propósito alguns distintos advogados e magistrados

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Até a fracassada experiência entre nós ensaiada pelo efémero Estatuto Judiciário de 1927 - eleição por sufrágio directo do Conselho Superior Judiciário, solução por Afonso Costa repudiada com êxito na Assembleia Nacional Constituinte de 1911 - voltou à ordem do dia...
É tempo de terminar, porém.
Não pode esquecer-se, já que tal importaria tremenda injustiça, a lição de independência, de aprumo e dedicação que o País tem recebido da magistratura judicial.
Vem de longe - e tem feito, aliás, carreira entre os povos latinos - esta tradição, que permitiu a alguém proclamar em pleno século XVIII.

Um magistrado que não é um herói não chega a ser um homem de bem!

É conhecido, além do mais, o esforço desenvolvido peto anterior titular da pasta da Justiça - Prof. Almeida Costa - no sentido de melhorar, até onde possível, a situação da nossa magistratura, que todos estamos empenhados em ver dignificada, corajosa e independente. Nesta linha de rumo se situa afinal a presente proposta de lei.
E deverá prosseguir-se em tal orientação. Não podemos, efectivamente, no mundo de hoje, continuar a exigir comodamente que os magistrados sejam heróis quanto às suas próprias exigências pessoais e, ao mesmo tempo, que defendam abnegadamente a integridade da nossa honra, vida e fazenda!
Membro do Poder Judicial, cada juiz, seja qual for a classe a que pertença, terá de auferir, antes de mais, uma remuneração equivalente ao esforço que lhe é exigido e digna da alta missão que lhe é confiada. Se assim se não procurar acautelar a aludida «independência», pouco adiantará proclamá-la na lei.
Testemunha diária - como simples advogado que passa a vida a peregrinar pelos tribunais a pedir justiça - da isenção, do aprumo e da dignidade da sacrificada magistratura, não poderia escusar-me a deixar aqui este depoimento. Já em 1926 prestava Manuel Rodrigues a sua homenagem à inteireza moral que desde tempos imemoriais é o mais alto título de glória da «pobre, mas honrada magistratura portuguesa», como ele se exprimia.
Impõe-se, por conseguinte, que o Governo - que nestes últimos anos soube, em tal domínio, fazer justiça à justiça - não deixe de continuar a ponderar, que a paz e a tranquilidade dos cidadãos e da sociedade sempre serão melhor asseguradas por juizes a todos os títulos prestigiados.

O Sr Ávila de Azevedo: - Muito bem!

O Orador - Estou seguro de que o problema continuará a merecer a melhor atenção.
Creio bem que à magistratura são devidos esses cuidados, porque, a despeito de alguns desenganos com que me presenteou o convívio diário com os homens, e com os tribunais, acredito na justiça como um dos mais belos ideais da vida!

O Sr Meireles de Campos: - Muito bem!

O Orador: - Sem prejuízo de vir a usar da faculdade a que se refere o artigo 5.º, § 2.º, do Regimento, aplaudo,- pois, na generalidade, a proposta de lei n.º 2/XI, que espero venha a merecer, a plena aprovação desta Câmara.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem!

O Sr João Manuel Alves: - Sr. Presidente. Começo por afirmar a minha concordância, na generalidade, com a proposta de lei, em discussão.
Devo, porém, desde já, declarar que esta minha atitude não se filia em nenhuma das razões de fundo que o relatório preliminar da proposta e o parecer da Câmara Corporativa invocam a seu favor.
Isto porque creio que, se tais razões fossem levadas até às suas últimas consequências, poderiam, logicamente, pôr em causa a unidade da ordem jurídica que, como um, todo harmonioso e interdependente, deve presidir às relações dos indivíduos entre si e destes com os diversos grupos sociais e com a própria sociedade.
Avançarei assim, antes de mais, que a minha posição perante o problema de uma organização judicial diferenciada ou especializada se situa muito perto da opinião expressa no douto voto do digno Procurador Dr. Castanheira Neves.
Não vou referir-me à complexa problemática da unidade da ordem jurídica e às suas projecções na organização jurisdicional, até porque seria situar a discussão num plano de apreciação que não é, naturalmente, o desta Câmara.
Aproveito, por isso, o ter-me sido facultada esta tribuna para trazer aqui algumas reflexões, mais de carácter prático do que teórico - e estas só na medida em que não posso fugir-lhes -, determinadas por uma vivência muito próxima e muito aturada dos instrumentos de realização do direito.
A manha adesão à proposta de lei em debate, que há pouco enunciei, resulta de que não me repugna acertar uma certa especialização dos órgãos da justiça, se não for posto em causa, como é o caso, o princípio da unidade jurisdicional.
É que, numa época em que o positivismo jurídico está irremediavelmente ultrapassado, em que renasce revigorada a ideia de um direito natural, em que se fala em direito livre, em que a complexa vida dos nossos dias criou tipos de relações até há pouco não sonhados, em que se assiste à própria mutação dos valores a que o direito se refere, o que, cada vez mais, se exige do juiz é, em vez de uma cultura especializada, «uma formação jurídica unitária e completa, que abarque todos os ramos do direito, único modo de alcançar uma concepção jurídica geral» - como acentua a Comissão de Codificação Espanhola, referida no parecer.
Só assim estará o juiz verdadeiramente preparado para, além de julgador, ser também criador de direito, como hoje se lhe pede.
Deste modo, já não aceitaria uma organização jurisdicional especializada, tendo por razão fundamental e por meta a especialização dos próprios juizes.
Aceito apenas uma especialização dos órgãos da justiça, tão-só por razões à conveniência de serviço nos tribunais e no que se refere ao suporte burocrático e funcional destes.

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É, por isso, que, como há pouco referi, reputo de pouco valor a maioria dos fundamentos invocados, embora com reservas, no douto parecer da Câmara Corporativa, dado até o seu pragmatismo que, por isso mesmo, deverá ceder perante razões de fundo, aliás enunciadas pela própria Câmara, em que estão em causa valores que não podem ser afastados por critérios meramente utilitários.
E, na referência destas considerações, sou levado até a opor certas reservas, tão-só de ordem formal, à oportunidade da própria proposta.
Na verdade, não me parece que fosse instante e urgente a criação de secções cíveis e criminais nos tribunais das Relações.
O que me parece instante e urgente é repensar a nova organização judiciária sob vários aspectos (incluindo o que agora é considerado), por forma a obviar a certas preocupações que o douto parecer da Câmara Corporativa erigiu em justificação da economia de proposta.
O que me parece necessário e urgente é rever a formação dos novos jurisconsultos, quer na fase universitária, quer posteriormente.
O que parece indispensável ainda é rever a forma de recrutamento dos juizes, tanto para a 1.ª instância como para os tribunais superiores.
O que parece fundamental também é aliciar, para a nobre missão de julgar, os melhores valores, pagando-lhes convenientemente a sua capacidade técnica e os sacrifícios e renúncias que se lhes exige.
A mim, o que me preocupa como cidadão é que o douto parecer da Câmara Corporativa admita como fatalismo irreversível que o recrutamento de magistrados não possa fazer-se com grandes exigências.
Ai de nós, no dia em que não tivermos uma justiça capaz!
E se essa é uma tendência, pois, tomem-se, desde já, e antes que seja tarde, as medidas indispensáveis para fazer mudar o sinal dessa tendência.
Conseguir manter o nível intelectual e moral a que felizmente nos habituou a magistratura portuguesa, eis uma tarefa a que urge meter ombros com urgência e que importará, necessariamente, o recurso a meios materiais, mas que não se conseguirá sem um repensar de alguns aspectos da nossa organização judiciária.

A Sr.ª D. Teresa Lobo: - Muito bem!

O Orador: - E, nesse repensar há, porém, que afastar toda a ideia de formar juizes máquinas de fazer determinadas sentenças, a que poderiam conduzir os exageros do princípio da especialização, e ter-se em conta que dos juizes haverá que exigir-se não o rigoroso tecnicismo dos cultores das ciências exactas, mas antes uma certa cultura, enformada por valores que têm de encontrar não só dentro do ordenamento jurídico, considerado como um todo, mas fora ou acima dos seus muros.
Para além disso, parece-me indispensável que o Ministério da Justiça cuide da actualização do seu corpo de magistrados, promovendo cursos de reciclagem e aperfeiçoamento, editando publicações e organizando bibliotecas a todos acessíveis, divulgando a doutrina.
A biblioteca da Procuradoria-Geral da República e os serviços do Boletim do Ministério da Justiça poderiam servir de base aos empreendimentos que propugno.
Será por esta via, e não deixando deteriorar a qualidade de uma magistratura especializada, que se podem obter soluções que sejam óbice às preocupações evidenciadas pela Câmara Corporativa.
Sr Presidente. Acabei por me demorar em questões circundantes do tema fulcral.
O meu objectivo foi apenas o de pugnar por uma justiça eficaz e prestigiada.
Oxalá a proposta em apreço também o consiga.
Nesta esperança lhe dou a minha aprovação na generalidade.

Vozes: - Muito bem!

O Sr Presidente: - Srs Deputados. Vou encerrar a sessão.

Este debate continuará na sessão de amanhã e prevejo que se conclua na sessão de quinta-feira, dia 21.
Amanhã haverá sessão à hora regimental, tendo como ordem do dia a continuação da discussão na generalidade da proposta de lei de criação de secções cíveis e criminais nas Relações.
Está encerrada a sessão.

Eram 17 horas e 20 minutos.

Srs. Deputados que entraram durante a sessão:

Albano Vaz Pinto Alves.
Alberto da Conceição Ferreira Espinhal
Almeida Penicela.
Álvaro Pereira da Silva Leal Monjardino.
António de Freitas Pimentel.
Armindo Octávio Serra Rocheteau.
Assahel Jonassane Mazula.
Camilo Lopes de Freitas.
Delfino José Rodrigues Ribeiro.
Eduardo do Carmo Ribeiro Moura.
Eleutério Gomes de Aguiar.
Francisco Domingos dos Santos Xavier.
Hermes Augusto dos Santos.
João António Teixeira Canedo.
João Nuno Pimenta Serras e Silva Pereira.
Joffre Pereira dos Santos van Dunem.
José Dias de Araújo Correia.
José Fernando Nunes Barata.
José Maria de Castro Salazar.
José Vicente Cordeiro Malato Beliz.
Josefina da Encarnação Pinto Marvão.
Júlio Dias das Neves.
Luís Augusto Nest Arnaut Pombeiro.
Manuel Gardette Correia.
Manuel Viegas Carrascalão.
Maria Luísa de Almeida Fernandes Alves de Oliveira.
Maria Teresa de Almeida Rosa Carcomo Lobo.
Paulo Othniel Dimene.
Rafael Ávila de Azevedo.
Sinclética Soares dos Santos Torres.
Tito Manuel Jeque.
Ulisses Cruz de Aguiar Cortês.

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Srs. Deputados que faltaram à sessão:

Adolfo Cardoso de Gouveia.
Álvaro José Rodrigues de Carvalho.
Aníbal de Oliveira.
António Calapez Gomes Garcia.
António Fausto Moura Guedes Correia Magalhães Montenegro.
António José Moreira Pires.
Augusto Salazar Leite.
Fernando António Monteiro da Câmara Pereira.
Fernando Guilherme Aguiar Branco da Silva Neves.
Filipe César de Goes.
Francisco José Correia de Almeida.
Francisco José Roseta Fino.
Henrique dos Santos Tenreiro.
Jaime Pereira do Nascimento.
João Duarte de Oliveira.
Joaquim António Martins dos Santos.
Joaquim Emídio Sequeira de Faria.
José da Silva.
José de Vargas dos Santos Pecegueiro.
José Vieira de Carvalho.
Luís António de Oliveira Ramos.
Manuel Homem Albuquerque Ferreira.
Manuel José Archer Homem de Mello.
Nicolau Martins Nunes.
Nuno Tristão Neves.
Oscar Antoninho Ismael do Socorro Monteiro.
Rómulo Raul Ribeiro.
Sebastião Alves.
Tito Lívio Maria Feijóo.
Vasco Maria de Pereira Pinto Costa Ramos.
Victor Manuel Pires de Aguiar e Sirva.

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