O texto apresentado é obtido de forma automática, não levando em conta elementos gráficos e podendo conter erros. Se encontrar algum erro, por favor informe os serviços através da página de contactos.
Página 799

Quinta-feira, 21 de Julho de 1988 II série - Número 28-RC

DIÁRIO da Assembleia da República

V LEGISLATURA 1.ª SESSÃO LEGISLATIVA (1987-1988)

II REVISÃO CONSTITUCIONAL

COMISSÃO EVENTUAL PARA A REVISÃO CONSTITUCIONAL

ACTA N.° 26

Reunião do dia 8 de Junho de 1988

SUMÁRIO

Deu-se continuação à discussão do 9. ° relatório da Subcomissão da CERC respeitante aos artigos 80.° a 90.º e respectivas propostas de alteração.

Durante o debate intervieram, a diverso titulo, para além do presidente, Rui Machete, pela ordem indicada, os Srs. Deputados Almeida Santos (PS), José Magalhães (PCP), José Luís Ramos (PSD), Jorge Lacão (PS), Costa Andrade (PSD), António Vitorino (PS), Vera Jardim (PS), Maria da Assunção Esteves (PSD) e Octávio Teixeira (PCP).

Página 800

800 II SÉRIE - NÚMERO 28-RC

O Sr. Presidente (Almeida Santos): - Srs. Deputados, temos quorum, pelo que declaro aberta a reunião.

Eram 15 horas e 50 minutos.

Srs. Deputados, relativamente ao artigo 82.°, de que vamos tratar agora, o CDS tem uma proposta substitutiva, que é do seguinte teor:

1 - O sector público da economia é constituído pelos bens, empresas e outras organizações económicas na propriedade do Estado e de outras pessoas colectivas públicas, geridos pelo titular ou por outra entidade pública ou privada.

2 - A lei definirá os bens e recursos naturais que pertencem ao domínio público.

O PCP mantém, como n.° 1, o actual artigo e acrescenta dois novos números, que são do seguinte teor:

2 - A definição ou alteração, quando constitucionalmente admitida, dos regimes aplicáveis aos meios de produção sujeitos às medidas previstas no número anterior só podem efectuar-se por via legislativa, observadas a regras e princípios constantes da lei geral.

3 - As empresas do sector público terão estatutos aprovados por via legislativa, observado o disposto na lei que defina o respectivo regime geral.

O PS propõe um artigo, segundo o qual "a apropriação colectiva de meios de produção e solos faz-se de acordo com o interesse público, devendo a lei determinar os critérios de fixação da correspondente indemnização em caso de nacionalização ou expropriação", contemplando, portanto, esta proposta as figuras da nacionalização e da socialização que estão no n.° 2 do texto do actual artigo, encontrando-se a parte relativa à intervenção no n.° 2 do artigo 85.°

O PSD substitui a palavra "socialização" - horribile dictu - por "privatização" - non minus horribile.

O PRD substitui o artigo 82.° pelo actual artigo 89.° Não sei porquê aqui, um artigo 86.° onde se verteria a matéria do actual artigo 82.°, no sentido de que "a lei define o regime jurídico relativo à transferência de empresas de sector de propriedade e aos critérios e modos de indemnização por nacionalização". Trata-se, portanto, de uma formulação muito mais genérica.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Ao propor o aditamento de dois novos números ao artigo 82.°, o PCP não pretende, como é evidente, alterar qualquer das componentes do sistema económico complexo constitucionalmente assegurado. Como ontem tivemos ocasião de aflorar, a constituição económica portuguesa tem como característica essencial - e, de resto, profundamente marcante, específica e original - o facto de conferir uma garantia idêntica às três formações económicas, não atribuindo ao sector privado um papel relativizador das outras formações económicas e estabelecendo um princípio de desenvolvimento da propriedade social, o que tudo confere ao sector público e ao sector cooperativo um papel muito próprio.

Nada disso se pretende alterar - é isso mesmo o que, da nossa parte, se pretende manter - e as duas propostas de aditamento que apresentamos dizem respeito a uma outra questão, qual seja a de saber qual a via própria para operar alterações quando for necessário definir ou alterar definições de regimes aplicáveis aos meios de produção, quando estes hajam de ser objecto de formas de desapropriação, a qualquer título.

O n.° 2 exprime, precisamente, o que acabei de enunciar. É uma norma aplicável tanto a movimentos num sentido como a movimentos de sentido contrário, isto é, tanto a movimentos de intervenção como de desintervenção. Aquilo que se visa é que a definição ou alteração (nos casos em que seja, evidentemente, admitida) de regimes aplicáveis aos meios de produção sujeitos a medidas de intervenção, nacionalização e socialização só possa efectuar-se por via legislativa, de acordo com regras e princípios constantes de uma lei geral. Visa-se, assim, que haja enquadramento apropriado para estes processos e que haja uma definição geral e abstracta de regras aplicáveis.

Quanto à proposta de aditamento de um novo n.° 3, ela visa dar resposta a um problema que tem originado entre nós algumas controvérsias e que já foi objecto, de resto, de triagem e de apreciação em sede de fiscalização de constitucionalidade. Qual deve ser a via adequada para a definição dos estatutos das empresas do sector público, qualquer que seja a sua concreta e específica conformação jurídica? A nossa proposta aponta para duas coisas: uma limitação de forma e uma limitação quanto à necessidade de definição prévia de enquadramento. A margem de inovação, aqui, é relativamente limitada quanto ao segundo aspecto: a Constituição já prevê que se inclua na competência da Assembleia da República a definição das bases gerais das empresas públicas. Trata-se, de certa maneira, de burilar, corrigir e reconformar esta matéria, redefinindo fronteiras à aplicação do preceito.

Quanto à finalidade geral, devo dizer que esta é, muito abertamente, a de completar o travejamento jurídico do universo empresarial público. Creio que só numa visão muito limitada e muito possuída de um conjunturalismo e de uma hipersensibilidade a certa ventania neoliberal é que se pode entender que não valha a pena definir constitucionalmente, com rigor, os contornos e o travejamento do sector público da economia.

O PSD tem, nessa matéria, a visão que é conhecida, minimalista e amputadora do sector público.- Em todo o caso, as duas normas, que procuramos que sejam submetidas a debate e que sejam consagradas, não se inserem numa filosofia de amplificação, mas numa filosofia de clarificação, sendo certo que a natureza do sector público variará em função de certas opções a fazer, não neste artigo, mas em artigos seguintes, não nesta sede, mas, designadamente, em sede de artigo 83.° da Constituição, questão que, obviamente, não abordarei aqui neste momento. Creio, no entanto, que faz falta, constitucionalmente, uma chave delimitativa do tipo daquela que adiantamos no nosso projecto de revisão constitucional.

Sr. Presidente, são estas as considerações sumárias que gostaria de fazer.

Página 801

21 DE JULHO DE 1988 801

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, quanto à proposta do PS, como sabem, o actual artigo 82.° remete para a lei os meios e formas de intervenção, nacionalização e socialização de meios de produção, bem como os critérios de fixação de indemnizações.

Nós entendemos que, em vez de se falar em nacionalização e socialização, poderia falar-se, pura e simplesmente, em apropriação colectiva, pois, no fundo, esta é uma expressão genérica que engloba as outras duas. Entendemos, como já referimos, que deveríamos introduzir aqui uma vinculação a critérios de interesse público e também ao dever de indemnizar nos termos da lei.

Na parte relativa à intervenção, que parece hoje de algum modo também remetida para a lei no n.° 2 do artigo 85.° - embora se diga mais alguma coisa do que isso -, entendemos que deve restringir-se. O Estado só pode intervir na gestão de empresas privadas nos casos expressamente previstos na lei e mediante prévia decisão judicial. Assim sendo, entendemos dever restringir-se o âmbito da faculdade de intervenção do Estado na gestão de empresas privadas, que hoje, em nosso entender, está consagrado em termos demasiado amplos, não se justificando que, sobretudo numa economia em que se acentua o seu coeficiente de economia de mercado, se aceite uma previsão tão lata como a actual. Consequentemente, este artigo 82.° da nossa proposta deve ser visto, lado a lado, com o n.° 2 da nossa proposta relativa ao artigo 85.°

Tem a palavra o Sr. Deputado José Luís Ramos.

O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Sr. Presidente, queria, muito rapidamente, dizer quais as razões de ser da nossa proposta em sede de artigo 82.° Elas são a percepção que temos de que a intervenção do Estado não pode ser feita de uma só maneira, ou seja, da privatização para a nacionalização - poderá ser feita também de maneira inversa e daí o facto de se conter, ao lado da nacionalização, a expressão "privatização", coisa que não acontece no texto actual -, e, por outro lado, em relação à expressão "socialização", devo dizer que mesmo hoje em dia já se considera que a existência daquela expressão se pode conter na "nacionalização". Assim, não faz sentido manter essa expressão no artigo 82.° e daí a razão de ser, por um lado, da supressão da expressão "socialização" e, por outro, da introdução da expressão "privatização".

Aliás, isto deve-se também concatenar com o que, em sede de artigo 83.°, é proposto pelo PSD.

O Sr. Presidente: - Pedia aos serviços o favor de fazerem chegar ao CDS a mensagem de que vamos entrar na discussão do artigo 83.° e de que, se quiserem estar presentes, teríamos muito gosto nisso.

Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Lacão.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Presidente, desejava colocar algumas questões ao PSD, que foi parco em argumentação defensiva no que diz respeito à proposta que apresenta. Assim, procuraria ir um pouco mais além na clarificação do sentido dessa proposta.

Em primeiro lugar, na proposta do PSD mantém-se uma admissibilidade genérica, no que diz respeito à possibilidade de intervenção do Estado nas empresas privadas, e verifico, por confronto com o artigo 85.°, que o PSD, mais à frente, no mesmo artigo 85.°, suprime o n.° 2. Ora, os Srs. Deputados podem verificar que dessa supressão resulta que nem sequer a regra restritiva patente no n.° 2 é agora mantida pelo PSD, ou seja, o PSD afinal de contas, visa, apenas no texto constitucional, admitir como cláusula geral a possibilidade de a lei ordinária determinar, sem qualquer restrição - nem sequer a restrição actualmente prevista no n.° 2 do artigo 85.° -, as possibilidades e as formas de intervenção no sector privado. Isto parece-me um pouco estranho para um partido que tem vindo aqui a advogar, sistematicamente, a tese de não intervenção, nos limites do possível, do Estado na economia e que ontem, pela voz certamente autorizada do Sr. Deputado Rui Gomes da Silva, até lhe custava admitir que a organização económica admitisse uma estrutura de economia mista.

Assim, não posso deixar de perguntar como é que agora o PSD, à luz dessas posições, pode pretender admitir revogar uma norma restritiva quanto à capacidade de intervenção do Estado na economia privada.

Se compararmos ainda o artigo 82.°, não só com esta supressão do n.° 2 do artigo 85.°, mas até com a proposta do artigo 47.°-A - que é aquele que pretende consignar o direito à propriedade privada como direito fundamental -, interrogar-nos-emos como é que este artigo, em matéria de intervenção, é, afinal de contas, tão amplo. Isto é, aparentemente, uma contradição e gostava de perceber se, do ponto de vista do PSD, se trata efectivamente de uma contradição ou se se trata de uma ausência de ponderação da conexão entre a proposta do artigo 47.°-A e a proposta de supressão do n.° 2 do artigo 85.° e se, afinal de contas, deseja o PSD remeter para a lei ordinária, sem qualquer restrição constitucional, o princípio da admissibilidade de intervenção do Estado na economia. Porque é isso que pode resultar, a meu ver, da proposta do artigo 82.°

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Luís Ramos.

O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Sr. Deputado Jorge Lacão, em relação à parcimónia das justificações, queria-lhe dizer que fomos quase iguais ou talvez até mais prolixos, em termos de argumentação, do que o PS em relação à sua proposta.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Mas o PS explicou a sua proposta de forma concludente.

O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Para si, talvez. Curioso seria se suscitasse.

Mas, em relação a isto, queria dizer-lhe que, quando chegarmos ao artigo 85.°, justificaremos a nossa proposta, sendo óbvio que a ligação pode ser feita. Mais do que isso: julgo que a proposta, em sede do artigo 82.°, deve ser esta e deve-o ser porque nós não temos qualquer medo, contrariamente ao Sr. Deputado Jorge Lacão, da lei ordinária, qua tale, nesta sede.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Deputado, não falei de meus medos, só falei das vossas contradições.

O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Não há qualquer contradição. A lei ordinária deve definir toda esta matéria porque o Estado, ao intervir na economia,

Página 802

802 II SÉRIE - NÚMERO 28-RC

pode-o fazer, a partir de agora e segundo a nossa proposta, para os dois lados, ou seja, em sede de mais Estado ou em sede de menos Estado, e não faz qualquer sentido dizer-se sobre isso qualquer coisa no artigo 83.° e deixar-se a restrição no artigo 85.° Daí que, em conformidade, se se quiser equiparar o sector público ao sector privado em termos de intervenção do Estado, se deve eliminar aquela norma do artigo 85.° e dar uma perfeita equiparação nesse duplo processo em sede do artigo 82.° Não vejo onde está a dificuldade e muito menos a contradição. Bem pelo contrário, faz lógica e existe absoluta sintonia entre uma coisa e outra.

Quando, no artigo 62.°, que na nossa proposta seria o artigo 47.°-A, consideramos que o direito de propriedade, como direito importante que é, deve fazer parte do catálogo dos direitos fundamentais e, nomeadamente, do elenco dos direitos, liberdades e garantias - o que já explicámos -, não caímos por isso em qualquer contradição. Bem pelo contrário, aqui diz-se que a lei fixará os critérios de indemnização e o artigo 47.°-A fala exactamente na mesma situação.

Não há assim qualquer contradição na nessa proposta, muito pelo contrário.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Deputado, como estamos apenas em fase de clarificar intenções legislativas, a posição do PSD é de tal ordem que leva a admitir dever ser a lei ordinária a definir as formas e os meios de intervenção do Estado na gestão da economia, mesmo da economia do sector privado, sem outras restrições que não sejam aquelas que porventura sejam estabelecidas em lei ordinária. É isso?

O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Sr. Deputado, não é exactamente isso. V. Exa. tem de fazer a concatenação do artigo 82.° com o que queremos propor em sede de direito de propriedade, o que estaria, a partir de agora, disposto em sede de direitos, liberdades e garantias. Assim, não seria a lei - e é óbvio que a Constituição teria consagrado, como lei fundamental que é, um princípio fundamental do direito de propriedade - a fazer qualquer restrição ou qualquer limitação violenta a esse direito, como o Sr. Deputado quer fazer supor.

O artigo 82.° tem de ser concatenado com o que propomos em sede de artigo 47.°-A, como já referi.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Mas uma coisa é a titularidade, outra é o modo social de gestão. Quando se fala em intervenção, fala-se, provavelmente, de intervenção ao nível do modo de gestão, e o que deduzo desta proposta do PSD é que o PSD, em sede constitucional, entende por adequado não estabelecer qualquer restrição à possibilidade de o Estado intervir ao nível do modo de gestão, designadamente no sector privado da economia.

O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Sr. Deputado, quanto ao facto de o PSD não estabelecer qualquer limitação, é óbvio que a Constituição não pode ser vista faseadamente em termos de folhetim, artigo a artigo. Obviamente que as limitações da intervenção do Estado nesta matéria se tem de analisar conjuntamente com as limitações da intervenção do Estado em quaisquer outras áreas e, nessa medida, se fizer a conjugação do que acabo de dizer.

As limitações existem, no entanto julgo que não poderemos ser mais papistas do que o papa.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Deputado José Luís Ramos, não vamos lá. É que não existe qualquer limitação. Eu comecei por, na pergunta que lhe fiz, constatar o seguinte: o PSD suprime o n.° 2 do artigo 85.° É uma cláusula...

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, peço-lhes o favor de suspenderem o diálogo, porque teremos de interromper os nossos trabalhos por cinco minutos para que possamos ir votar.

Está suspensa a reunião.

Eram 16 horas e 10 minutos.

Entretanto, assumiu a presidência o Sr. Presidente, Rui Machete.

O Sr. Presidente: (Rui Machete) - Srs. Deputados, está reaberta a reunião.

Eram 16 horas e 45 minutos.

Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Lacão.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Presidente, estava a argumentar com o Sr. Deputado José Luís Ramos a propósito do artigo 82.°, em relação à respectiva versão proposta pelo PSD e acerca do seu alcance.

Assim, fazia um entendimento dessa proposta do PSD quanto ao direito de intervenção do Estado na economia, nomeadamente pelo que constava relativamente à proposta do artigo 82.° em confronto com a supressão que o PSD propõe do n.° 2 do artigo 85.°, o qual é uma cláusula restritiva quanto à disponibilidade do Estado de intervenção na economia. Daí deduzia, e era este o ponto que estava em causa, que o PSD, ao remeter para a lei ordinária, sem qualquer restrição, a faculdade de o Estado intervir no domínio económico, afinal estava a optar por uma solução mais ampla do que aquela que actualmente a Constituição prevê.

De facto era este aspecto que eu estava a procurar caracterizar no diálogo com o Sr. Deputado José Luís Ramos. Se bem me lembro, o Sr. Deputado tentava demonstrar que a referida solução não era mais ampla do que aquela que actualmente se prevê no texto constitucional.

De modo que se o Sr. Deputado tiver a bondade de me esclarecer acerca deste ponto muito grato lhe ficaria.

O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Sr. Deputado, em relação a essa questão, confesso que tentei dar uma resposta há pouco, mas resumirei de novo aquilo que disse.

O que o Sr. Deputado Jorge Lacão estava a argumentar era acerca da relação que estabelecia entre o artigo 82.° e a nossa proposta de supressão em sede de artigo 85.°

Página 803

21 DE JULHO DE 1988 803

A questão que se apresenta, e também isso foi aflorado, é a de que nós, PSD, fazemos uma proposta quanto ao direito de propriedade no sentido de o remeter para o catálogo dos direitos, liberdades e garantias, ou seja, para o artigo 47.°-A.

Ora, o Sr. Deputado considera, e as palavras são suas, que o n.° 2 do artigo 85.° é uma restrição à intervenção do Estado, em termos de sector privado. O que este n.° 2 diz é que "o Estado pode intervir transitoriamente na gestão das empresas privadas para assegurar o interesse geral e os direitos dos trabalhadores, nos termos a definir por lei".

Também no referido artigo se acaba por remeter tudo para a lei, e ressaltam assim duas questões do que está, neste caso, expresso na Constituição: por um lado, deve saber-se o que significa aqui a palavra "transitoriamente" e, por outro, deve procurar saber-se o que deve ser do "interesse geral".

Na nossa proposta, quando incluímos o direito de propriedade em sede de catálogo dos direitos, liberdades e garantias, é óbvio, e o Sr. Deputado sabe isso tão bem como eu, que se aplicará ipso jure o artigo 18.° E este artigo tem limitações muito mais amplas do que aquilo que está estipulado no n.° 2 do artigo 85.°

Portanto, a nossa proposta, e na altura própria discutiremos o artigo 85.°, não vai de maneira nenhuma no sentido de alargar ou deixar de conter na Constituição quaisquer restrições à intervenção do Estado, bem pelo contrário, procura arrumar as matérias em termos sistemáticos, no entendimento de que o direito de propriedade é, sem dúvida nenhuma, um dos direitos fundamentais que deve constar da Constituição Portuguesa. É esse o entendimento que fazemos desta situação.

Quanto ao mais, e também em sede de artigo 82.°, entendemos que não deve haver um movimento de intervenção estatal apenas num sentido, e daí a nossa proposta de equiparação da questão da nacionalização com a da privatização, ou seja, pode e deve haver intervenção do Estado nos dois sentidos, para mais ou para menos. Ora, relativamente a este aspecto, a situação que se prevê não pode ser, de maneira nenhuma, mais grave do que aquela que vigora actualmente.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Lacão.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Retomo a palavra para tecer algumas considerações.

Em primeiro lugar, para verificar, pelo menos aparentemente e a avaliar pelas palavras do Sr. Deputado José Luís Ramos, que não há uma valorização da disposição que no n.° 2 do artigo 85.° admite ao Estado a faculdade de intervir, ainda que sempre transitoriamente.

À luz da nova versão do artigo 82.°, a lei determinaria os meios e as formas de intervenção, mas nem sequer transitoriamente. A lei diria como a intervenção se poderia processar e, portanto, consistiria numa prerrogativa do legislador ordinário, sem sequer essa norma restritiva de a faculdade de intervenção estar sempre limitada e condicionada pelo aspecto transitório.

Portanto, aparentemente o PSD dá de barato a regra da transitoriedade.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Jorge Lacão, segundo compreendo, V. Exa. está a fazer uma interpretação da Constituição em termos sistemáticos. Não compreendo bem a questão que coloca, porque a tal norma do artigo 85.° que V. Exa. refere é um mais, é algo que se acrescenta ao articulado. Assim, registo a sua interpretação acerca do referido preceito como muito nobre por parte de um representante do PS, mas ela não tem nenhum fundamento hermenêutico no sentido de o texto em causa ser uma limitação ao artigo 82.°, porque, de facto, ele não é uma limitação. Nunca ninguém defendeu isso e suponho que V. Exa. também não defenderá.

De maneira que não compreendo. Se o Sr. Deputado me provar que existe realmente essa limitação, então terei de repensar o problema. Caso contrário, não estou a ver a utilidade da discussão.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Presidente, agradeço a sua tentativa de correcção, mas eu continuaria firme no meu propósito.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, trata-se apenas de uma dúvida.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - O Sr. Presidente diz-me que aquilo que referi terá sido uma tentativa muito nobre. Parecia-me que ela era muito evidente pelo seguinte: se existir uma cláusula na Constituição que confira ao legislador ordinário a competência para determinar, sem qualquer restrição constitucional, os meios e as formas de intervenção do Estado na economia - e é, no fundo, isso que o PSD propõe no artigo 82.° -, até porque ex novo o PSD não propõe nenhuma alteração de natureza restritiva, ficará ao legislador ordinário cometida a tarefa de determinar as circunstâncias, os meios e as formas de intervenção do Estado na economia.

Assim, gostaria que o Sr. Presidente me esclarecesse se essa não é a intenção real do PSD, porque, verificando a proposta social-democrata relativa ao artigo 82.°, parece que a minha interpretação se afigura válida. Mas o Sr. Presidente também me pode convencer do contrário.

O Sr. Presidente: - Não, Sr. Deputado. Estou apenas a tentar compreender o sentido da sua argumentação, porque o artigo 82.°, na sua redacção actual, diz o seguinte: "A lei determinará os meios e as formas de intervenção e de nacionalização [...]" Curiosamente, os termos "intervenção" e "nacionalização" vêm copulativamente unidos neste preceito. Este refere ainda "e socialização dos meios de produção". Portanto, este texto abrange desde a nacionalização e a socialização, que é o máximo numa dada direcção, até outras formas menores, e não há aqui nenhuma restrição expressa.

Quando V. Exa. lança depois mão do artigo 85.°, n.° 2, diz que esta possibilidade de intervenção nas empresas privadas é algo que, ao ser suprimido e ao manter-se a possibilidade de o Estado nacionalizar, cria problemas de maior estatização.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Nacionalizar não, Sr. Presidente, intervir.

Página 804

804 II SÉRIE - NÚMERO 28-RC

O Sr. Presidente: - Não compreendo, Sr. Deputado. Então V. Exa. não considera como intervenção o que está expresso como tal no artigo 82.°, ou seja, "formas de intervenção e de nacionalização"? Trata-se aqui apenas de uma redundância &, portanto, o argumento que V. Exa. pretende retirar, salvo o devido respeito, não serve. É somente isto que gostaria de referir.

De facto, o Sr. Deputado já tem no n.° 2 do artigo 82.° uma panóplia de tal modo vasta que a circunstância de ela vir depois repetida no n.° 2 do artigo 85.° não altera nada a situação.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - O Sr. Presidente repare no seguinte: V. Exa. faz o confronto da proposta do PSD com a versão actual do artigo 82.° Mas esqueceu-se de confrontar essa proposta com outras propostas apresentadas, designadamente a do PS, no sentido de alterar o artigo 82.° E neste caso é que é importante reflectirmos.

O Sr. Presidente: - Não, Sr. Deputado. Desde que o PS esteja empenhado, natural e muito nobremente, numa coisa em relação à qual também reconheço ser importante que os restantes partidos se empenhem, e que consiste na libertação da economia de certas peias da Constituição, devo confessar que aceito isso e, inclusivamente, regozijo-me com isso.

Mas V. Exa. terá de compreender que quando elaborámos a nossa proposta ainda não sabíamos o que o PS iria propor nesta matéria. Portanto, comparar a nossa proposta com a do PS não faz sentido.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Agora, Sr. Presidente, agora.

O Sr. Presidente: - Não, Sr. Deputado, mas esse foi o argumento que V. Exa. utilizou. O que pode vir a acontecer é, se quando chegarmos ao artigo 85.° concluirmos que o artigo 82.°, tal como ele veio a ser apresentado pelo PS, é mais favorável à tese fundamental que propomos, então regozijamo-nos com isso e provavelmente teremos de adaptar o artigo 85.° a essa circunstância. Nada mais.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Sr. Presidente, se me permite, gostaria de fazer um depoimento.

O Sr. Presidente: - Faça favor, Sr. Deputado.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Não há dúvida de que o artigo 82.° do actual texto constitucional refere que "a lei determinará os meios e as formas de intervenção". A seguir, o artigo 85.° diz que a lei somente o pode fazer a título transitório - primeira limitação. Somente o pode fazer para assegurar o interesse geral - segunda limitação. Ou para assegurar o direito dos trabalhadores - terceira limitação.

Portanto, a lei geral tem actualmente expressas na Constituição três limitações: a da transitoriedade, que é importantíssima; a do interesse geral, que também importa salientar, ou seja, por exemplo, pode não o fazer por não gostar de empresas privadas, ou por lhes ter aversão ou qualquer coisa do género, e, finalmente, a defesa dos direitos dos trabalhadores.

Ora, desaparecendo estas limitações, a lei geral pode consagrar casos de intervenção sem estes limites. Assim, não há dúvida de que se eliminaria uma restrição constitucional.

Isto a mim parece-me evidente, e foi o que o Sr. Deputado Jorge Lacão entendeu dever salientar.

O Sr. Presidente: - Então, quer dizer que o Sr. Deputado Almeida Santos considera que o problema da nacionalização é uma questão sem muita importância.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - É o direito de intervenção, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Está bem, Srs. Deputados. Mas, como o artigo 82.° prevê que além "de lhe dar uma facada se mate o homem", pergunto, em relação a essa história de regular a intervenção...

O Sr. Almeida Santos (PS): - Sr. Presidente, estamos apenas a discutir a eliminação do n.° 2 do artigo 85.°

O Sr. Presidente: - Não, Sr. Deputado, estamos apenas a discutir o texto do artigo 82.°

O Sr. Almeida Santos (PS): - Creio que o Sr. Presidente ainda não apreendeu a nossa argumentação, seguramente por culpa nossa.

O Sr. Presidente: - Já a compreendi, Sr. Deputado.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Actualmente, a Constituição remete para a lei ordinária a regulamentação das formas de intervenção estatal sem nenhum limite. Portanto, pode dizer-se que o Estado pode intervir, se estiver para aí virado, quando alguém tiver os olhos azuis, 1,50 m de altura, etc. Isto é ridículo, mas é a caricatura da realidade quanto a este ponto.

Assim, a Constituição tem algumas barreiras ou limites no que respeita à matéria relativa às empresas privadas, que são, repito as seguintes: o Estado só pode intervir a título transitório, para assegurar o interesse geral ou os direitos dos trabalhadores. Desaparecendo estes limites, é evidente que o Estado pode intervir na gestão das empresas privadas a título definitivo ou, pelo menos, não transitório, ou para assegurar um interesse particular ou o direito dos capitalistas.

O Sr. Presidente: - E V. Exa. considera que intervir a título definitivo não é, no fundo, nacionalizar?

O Sr. Almeida Santos (PS): - Não, Sr. Presidente, porque a intervenção é somente na gestão e não na propriedade. É completamente diferente. Portanto, parece-me que a objecção do Sr. Deputado Jorge Lacão tem toda a razão de ser.

Acredito plenamente em que a intenção do PSD não tenha sido essa. E não tenho dúvidas de que ela visasse ser mais restritiva do que a nossa. Mas isso não é o que resulta do que está, ou seja, deixa-se intacto o artigo 82.° e eliminam-se as restrições do artigo 83.°

Quando quisemos restringir, reforçámos as limitações. Ou seja, propusemos que o Estado só pode intervir na gestão de empresas nos casos expressamente previstos na lei.

Página 805

21 DE JULHO DE 1988 805

O Sr. Presidente: - Lamento, Sr. Deputado, mas a nossa proposta não deixa intacto o artigo 82.°

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Presidente, verifico que o Sr. Deputado Costa Andrade tem pedido a palavra insistentemente, mas, sob pena de estarmos a criar um sistema em que nenhum de nós chega ao fundo do seu raciocínio, devo dizer que há um ponto acerca do qual gostaria de responder ainda ao Sr. Deputado José Luís Ramos. Portanto, se V. Exa. não visse inconveniente concluiria o meu raciocínio com esse segundo ponto.

O Sr. Deputado José Luís Ramos procura fugir a esta dificuldade dizendo que o artigo 47.°-A apresentado pelo PSD quanto ao direito de propriedade visava consignar esse direito como um direito fundamental e, portanto, submetido às regras restritivas do artigo 18.°

Ora, já tivemos oportunidade de proceder aqui a essa discussão, e a propósito dela o PSD ter constatado que para a eventual confirmação do artigo 47.°-A como direito fundamental se teria de excepcionar esse artigo relativamente ao regime do artigo 18.°

Em todo o caso, esta situação é diferente porque não estamos a discutir aquela matéria, estamos a discutir, sim, o modo social de gestão. E ele não está previsto no artigo 47.°-A proposto pelo PSD, de onde que não tem cabimento invocar o regime do artigo 18.°

Inclusivamente porque estamos, no que diz respeito ao direito de intervenção - sublinho isto -, apenas a tratar do modo social de gestão e não do problema do direito de propriedade. Convém não confundirmos as coisas.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Presidente, gostaria apenas de dizer que talvez as críticas do PS tenham alguma pertinência, mas não em relação à proposta que apresentámos relativamente ao artigo 82.° Talvez tenham alguma pertinência quanto ao artigo 85.°

No que concerne ao artigo 82.°, o que está em causa é apenas perfilar os diferentes sectores entre si e dizer quais são as formas possíveis de intervenção do colectivo no domínio do privado. Tal intervenção pode assumir as formas de intervenção e de nacionalização, nas quais entendemos estar também incluída a "socialização". Além disso, entendemos que neste conjunto de conceitos que estabelecem as relações entre o privado e o colectivo, do ponto de vista da legislação económica, deveríamos incluir igualmente a privatização.

Portanto, as críticas que nos dirigem não são pertinentes em relação ao artigo 82.°...

O Sr. Almeida Santos (PS): - Evidentemente, mas o Sr. Deputado José Luís Ramos relacionou-o imediatamente com o artigo 85.°

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Elas sê-lo-ão talvez no que respeita ao artigo 85.°, e discuti-las-emos quando discutirmos este preceito. Isto porque no artigo 82.° não tomamos posição sobre o modo como se efectuarão a intervenção e a nacionalização.

De todo o modo, o Sr. Presidente tem alguma razão quando refere que, ainda assim, é um pouco subtil lamentar a falta de limites no que toca à intervenção, quando é certo que a Constituição actual abre, sem quaisquer limites, as portas à nacionalização. Assim sendo, e por maioria de razão, deveríamos fixar algumas limitações. Penso que no artigo 85.° deveríamos discutir a questão dos limites à intervenção...

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Deputado, devo confessar-lhe que estou um pouco perplexo. A nacionalização implica transferência de sector, ela é uma decisão que tem essa gravidade.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - É mais grave!

O Sr. Jorge Lacão (PS): - O que é curioso é que o PSD possa admitir, e pareceu-me que era isso que se poderia deduzir das palavras agora proferidas pelo Sr. Deputado Costa Andrade, que o direito do Estado em intervir, designadamente no sector privado, é um direito que não tenha de sofrer qualquer restrição em sede constitucional e que apenas seja cometido ao legislador ordinário. Se não é isto que o PSD visa, então tem de clarificar a proposta que apresentou.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Sr. Deputado, VV. Exas. consagram o direito à indemnização tanto no caso da intervenção como no da nacionalização. Mas, no caso da nacionalização, o Estado intervém, ou seja, considera que uma determinada actividade tem de ser pública, indemniza e passa a deter o bem. No caso da intervenção, o Estado paga o quê? Desmantela-se, por hipótese, uma empresa, com uma má administração, e devolve-se de novo. É diferente, pode ser pior, não é um mais.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - De todo o modo, julgo que a pertinência das propostas e das objecções do PS tem razão de ser quanto ao artigo 85.°

A proposta do PS relativa ao artigo 82.° opera uma transformação significativa, que penso devermos ponderar, até porque, numa certa óptica, é mais favorável ao sentido de economia mista que preconizamos. Talvez uma proposta como esta deva merecer a nossa reflexão.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Sobretudo se se considerar que a parte relativa à intervenção transita para o artigo 85.°, n.° 2, em relação ao qual também apresentamos uma proposta restritiva.

O Sr. Presidente: - Vou dar a palavra ao Sr. Deputado José Magalhães, mas, antes, por uma questão de justiça, pretendo dizer o seguinte: dou por reproduzida a argumentação que produzi quanto ao problema do mais e do menos, e não me convence muito a questão da mudança do sector para daí retirar o argumento de que se trata de uma coisa de natureza diferente, que julgo que não é.

Mas entendo a observação crítica quanto à intervenção e julgo que ela é respondível de uma outra maneira porque a intervenção permanente encerra um significado expropriatório. Ainda assim, compreendo o tipo de argumentação traduzida e o alcance da mesma e, daí, retiro a virulência da observação irónica que há pouco formulei em relação ao Sr. Deputado Jorge Lacão.

Página 806

806 II SÉRIE - NÚMERO 28-RC

Sr. Deputado, pretendi dizer-lhe por que considero que ganhamos, em termos de discussão, em reconhecer a limitação da nossa própria argumentação quando ela existe.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Fiat lux!

O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Sr. Deputado Jorge Lacão, para que fique registado, a minha opinião é a de que, em relação ao actual artigo 62.°, poderá passar ou não para artigo 47.°-A, não é essa agora a questão - obviamente o modo social de gestão contém-se no direito de propriedade.

Quando o Sr. Deputado Jorge Lacão refere que no direito de propriedade se fala apenas na titularidade, isso é falso na medida em que também se pode e deve conter o modo social de gestão. Aliás, repare que, no n.° 2, o artigo 62.° contém a figura da requisição. Resta saber se isto é uma questão de titularidade. Não é com certeza. A requisição não põe em causa a titularidade do direito de propriedade e no entanto está cá contida. Portanto, Sr. Deputado Jorge Lacão, quando fala em confusão, a confusão é sua: o direito de propriedade abarca tudo isto. Quando se fala em termos de protecção do direito de propriedade, caso este faça parte do elenco de direitos, liberdades e garantias, todas estas questões e também o modo social de gestão deveriam estar englobados nessa situação.

O Sr. Almeida Santos (PS): - É bom ver um jovem combativo, mesmo quando não tem razão.

Risos.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Creio que apesar de tudo se assistiu a um interessante concurso subordinado ao grande tema "Quem é mais restritivo?".

Risos.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Agora vamos ao concurso "Quem é mais ampliativo?".

Vozes.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, perdão, eu sou mais restritivo do que V. Exa. Queira admitir que tenho uma outra proposta, metros atrás e metros à frente, que é bastante mais restritiva do que aquela que apresentou.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Não há dúvida de que a vossa é a menos restritiva de todas.

Vozes e risos.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, temos com toda a frontalidade o direito de apresentar tal proposta e, naturalmente, de assumir as suas implicações. No caso concreto, o que me parece mais espantoso é que, nos azares e fortunas do debate, o PSD se esqueça das suas próprias propostas (as que estão atrás e as que estão à frente) e simultaneamente se possa estabelecer um equívoco tão estrepitoso como aquele que o Sr. Deputado Jorge Lacão, em boa e má

hora, resolveu estabelecer na Comissão. Porque o que é nítido na proposta do PSD é que ela se relaciona, naturalmente - não direi nada de novo -, com as que estão atrás e com as que estão à frente,...

O Sr. Presidente: - Bem visto!

O Sr. José Magalhães (PCP): - ... isto é, com as propostas do PSD quanto aos artigos 2.°, 9.°, 80.°, 81.°, 83.°, 90.°, 92.°, 96.° e por aí em diante... Ou seja, a filosofia privatizadora, desnacionalizadora, do PSD não nos oferece dúvida nenhuma. Mas gostaria de fazer aqui a função de "notário corroborativo" do PSD, mas seria notário corroborativo de uma perspectiva desarmante se não dissesse isto mesmo que, neste momento, estou a dizer.

Nesta matéria, o PSD está tão desmemoriado ou é tão esquisita a elaboração da sua proposta que se esqueceu daquela que apresentou relativamente ao artigo 85.°, n.° 2 (em que propõe, pura e simplesmente, a eliminação da norma que prevê a intervenção transitória do Estado na gestão de empresas privadas, para assegurar o que quer que seja). É essa a proposta do PSD~, que, nesse sentido, é radical. Portanto, se alguém quiser fazer um concurso em que o PS peça meças ao PSD em matéria de restrições e de supressões, esse concurso está ganho à partida pelo PSD, se o PS aceder a "doistercerizar" esta proposta do PSD, que, sendo puramente eliminativa, não suporta, em consequência, qualquer confronto. Isto é, a posição do PSD para qualquer leitor medianamente alfabetizado que tope o artigo 85.°, n.° 2, é esta: o PSD propõe a supressão do n.° 2. Tão simples... Ou seja, o PS propõe a re-leitura, a reconformação, a diminuição de conteúdo, a matização, tudo em homenagem à "iniciativa privada", tudo em homenagem à "saúde", à "tutela" e à "tranquilidade" das empresas privadas que têm a garantia de que o Estado não intervém na gestão a não ser nos casos previstos na lei e mediante prévia decisão judicial, se a decisão judicial for favorável, naturalmente, e se o recurso que tenha sido interposto não for provido, e se, e se, e se... A proposta do PSD é: "E se... nada." Não há intervenção! E com isto visa-se constitucionalizar o status que, porque, como os Srs. Deputados sabem, no passado o PSD revogou a lei sobre a intervenção do Estado em empresas privadas. Essa lei está revogada.

O Sr. Presidente: - Mas sabe, Sr. Deputado José Magalhães, às vezes há uns hermeneutas perversos. Foi para isso que chamou a atenção - e muito bem - o Sr. Deputado Jorge Lacão, e em meu entender ele tem uma certa razão.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Em quê, Sr. Presidente?

O Sr. Presidente: - Em prevenir quanto à interpretação dos hermeneutas perversos.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Mas qual é a hermenêutica perversa, Sr. Presidente?

O Sr. Presidente: - A sua! A sua!

Risos.

Página 807

21 DE JULHO DE 1988 807

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, é-me extremamente difícil fazer qualquer raciocínio se o Sr. Presidente me altera subitamente, in itinere, a base. Se a proposta do PSD não é aquilo que eu julgaria que fosse, se é outra coisa, permitia-me pedir-lhe que fixasse definitivamente o conteúdo dessa proposta, a fim de podermos fazer um raciocínio.

O Sr. Presidente: - Não, penso que está a interpretar bem. Foi por uma questão cautelar que o Sr. Deputado Jorge Lacão colocou a outra alternativa possível, que mentes animadas com outros propósitos poderiam pretender extrair. Foi apenas isso. E V. Exa. depois comprovou que isso era possível, que essa hermêutica perversa existia... como possibilidade, pelo menos.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, só lamento que tenha sido necessário ao Sr. Deputado Jorge Lacão fazer tal coisa, porque isso, supostamente, caberia aos deputados do PSD. Curiosamente, não o fizeram. A questão está, porém, sanada de forma mais enviesada. Por vários caminhos se pode chegar ao céu e ao inferno.

No caso concreto, o que me surpreende não é tanto isto que referi, mas sim outro facto.

Dir-se-ia que, como Deus ao sétimo dia, o PSD se cansou ao chegar a este artigo. Na verdade, o PSD não perspectivou minimamente a função deste preceito na arquitectura constitucional da organização económica. Este é o artigo que, suscitando problemas complexos de interpretação, situa e baliza a intervenção do Estado na economia. Pode ter-se em relação a isso a posição que se tiver: a nossa é conhecida e a do PSD - julgar-se-ia - também. Ora, a intervenção do Sr. Deputado Jorge Lacão precipitou uma espécie de atitude de confusão, de pânico, de perda de perspectivas na bancada do PSD. Esperaria eu que algum dos Srs. Deputados erguesse o estandarte para dizer três ou quatro coisas sobre a visão geral do PSD quanto à intervenção do Estado na economia. Porém, nada disso se verificou.

O Sr. Presidente: - Não é preciso, já foram ditas! Não pretendemos perder tempo repetindo coisas que já dissemos reiteradamente ao longo destas sessões todas. Porquê perder tempo?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Eu explico sucintamente porquê. É que as hermenêuticas (virtuosas e perversas) são naturalmente a tarefa por excelência do aplicador da Constituição. E das duas uma: ou o PSD pensa que vai aplicar a "sua" Constituição na sua redacção exacta e precisa - e seria o tal famoso "contrato de adesão" que perturba as noites do secretário-geral do PS -, ou o PSD admite que não vai ter um contrato de adesão ou que, tendo-o aberto à "oferta pública", não terá quem o subscreva, e vai ter de discutir e votar outras redacções, alterações. Das duas uma: ou a Constituição sai daqui de acordo com aquilo que é a máxima aspiração do PSD ou não sai. Admitindo que não sai, como é nossa esperança e como será nossa luta, então o artigo 82.° deverá ser lido em cotejo com os outros artigos. Consequentemente, a questão que se coloca é a de saber como é que joga a redacção do PSD com a redacção dos outros artigos.

E é isso que me suscita espécie. Porquê? Primeiro, porque o alcance jurídico-constitucional do texto é, como tem vindo a ser assinalado, não único, mas duplo. Por um lado, autoriza-se uma determinada margem de intervenção do Estado na vida económica nas suas diversas vertentes. Em relação a isso, o PSD não altera a letra desta norma no que quer que seja. Por outro lado, estabelece-se uma obrigação constitucional em relação à definição desses meios de intervenção: o PSD não adita a isso nenhuma obrigação nova, apenas suprime a expressão "socialização" e adita, em homenagem aos dias que correm, o conceito de "privatização", que é o contrário, como se sabe, do movimento que anteriormente tínhamos estado a descrever. Nada diz em relação a questões como sejam as regras de codificação desses procedimentos, isto é, quanto ao cumprimento de exigências de legalidade nessa esfera, e não estabelece nenhuma norma quanto ao pré-enquadramento ou quanto à pré-definição das regras do jogo, o que realmente dá que pensar. E dá que pensar por causa daquilo que sabemos quanto aos sectores de propriedade dos meios de produção e quanto à polémica sobre a questão da matriz ou da chave da definição constitucional em relação às nacionalizações.

Curiosamente, o CDS adopta uma postura diferente. Curiosamente, também, a intervenção do Sr. Deputado José Luís Ramos tem muito mais a ver com a proposta do CDS do que com a proposta do PSD - on y soit qui mal y pense - porque o CDS tem o cuidado de extirpar do artigo 82.° a cláusula legitimadora da intervenção do Estado na vida económica, transformando-a no seu contrário. Isto é, curiosamente o CDS agarra no obelisco e inverte-o. Aí onde se encontra uma norma legitimadora das intervenções, das nacionalizações e de outras formas de apropriação pública dos meios de produção, o CDS coloca uma norma limitativa de intervenção do Estado na vida da economia, referindo que o sector público da economia tem um conteúdo determinado, com uma determinada característica e com uma preocupação geral de limitação...

O Sr. Almeida Santos (PS): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)

O Sr. José Magalhães (PCP): - Exacto! A proposta do CDS está construída para uma inversão radical, através da qual se legitime a liquidação do sector público.

O Sr. Presidente: - V. Exa. permite-me uma interrupção?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Faça favor, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Só por uma questão de sistematização, não esqueça que existe depois um título n sob a epígrafe "Estrutura da propriedade e dos meios de produção" e que o PSD propõe a eliminação da epígrafe mas não propõe, obviamente, que alguns dos aspectos dessa matéria não sejam regulados. Consequentemente, não precipitemos demasiado as coisas: elas vêm e virão a seu tempo... A não ser que V. Exa. pense que, a propósito de cada artigo, é necessário afirmar que as questões são democráticas, que segue o

Página 808

808 II SÉRIE - NÚMERO 28-RC

princípio da legalidade... Por exemplo, V. Exa. esqueceu um ponto importante: nós propusemos uma alteração da sistemática do artigo 62.° em matéria do direito de propriedade. Isso também é algo com o seu significado...

O Sr. José Magalhães (PCP): - Já a evoquei, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Então, além de a evocar, integre-a no seu raciocínio.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, evoquei-a com tanta mais razão quanto me pareceu que nem sequer era coerente - e suponho que foi esse o ponto de vista que o Sr. Deputado Jorge Lacão quis acentuar: a incoerência interna da proposta do PSD. Essa incoerência interna fica tanto mais sublinhada quanto mais aprofundarmos a análise da proposta do CDS. De facto, esta proposta - e retomaria o curso da exposição anterior - pratica várias vinganças: a vingança sobre uma constituição económica como a vigente, assente na ideia de conjugação e articulação de formações económicas, optando o projecto do CDS por outra constituição económica, em que todo o funcionamento do sistema assenta na primazia do sector privado. Por outro lado, essa constituição económica faria uma desforra não só em relação ao texto originário da Constituição de 1976 mas também relativamente ao texto revisto em 1982, na medida em que esta última cláusula, para a qual aliás o Sr. Deputado Almeida Santos quis chamar a atenção - quanto a mim, muito correctamente -, visa inverter o acquis da revisão constitucional de 1982 em relação ao artigo 89.°, n.° 3. Este é um típico artigo desforrista. O artigo 89.°, n.° 3, veio fazer uma determinada definição pela positiva de sector privado, em termos tais que o sector fica definido como "constituído pelos bens e unidades de produção cuja propriedade 'ou' gestão" - e neste "ou" se empenhou muito, em particular, o Sr. Deputado Luís Nunes de Almeida, cuja declaração de voto sobre a matéria é extremamente útil para aprofundar o significado desta disjuntiva - "pertençam a pessoas singulares ou colectivas privadas". Ora bem, ao propor qualquer coisa como "o sector público da economia é constituído pelos bens, empresas e outras organizações económicas [...] geridos pelo titular 'ou' por outra entidade pública ou privada", o CDS fixa uma disjuntiva de desforra em relação à disjuntiva de derrota de 1982. A lógica percebe-se: é a lógica de expulsão do sector público, de confinamento do sector público e de liberdade irrestrita, para não dizer mesmo, o que será mais correcto, de privilégio e de primazia para um determinado sector privado (de resto, visto como domínio dos grandes grupos económicos).

O n.° 2 é distorcido pela mesma lógica, ainda que, em nosso entender, seja correcto. Nada temos a objectar ao facto de a Constituição passar a incluir um normativo que estabeleça que "a lei definirá os bens e recursos nacionais que pertencem ao domínio público". Nós próprios temos uma norma situada numa outra sede em que prevemos uma definição positiva e, de resto, mais extensa do que deva entender-se por domínio público. Refiro-me ao artigo 90.°-A do nosso projecto de revisão constitucional.

Em todo o caso, ao que agora importa, a posição do PSD nesta matéria dá que pensar, na medida em que não dá resposta a algumas das questões que poderiam ser objecto de reflexão nesta sede. Não é coerente com outras propostas por si apresentadas e não tem em conta que o resultado da revisão constitucional não poderá, excepto numa visão muito ambiciosa e muito irrealista, ser a identificação, letra a letra, palavra a palavra, com o projecto de revisão constitucional do PSD, designadamente no que diz respeito às megalómanas ambições de transposição sistemática do estatuto do direito de propriedade privada com as implicações que todos nós pudemos apreciar.

Fazendo uma determinada prognose dos resultados da revisão constitucional, como é que esta norma joga com o resto das disposições da Constituição? Joga num sentido que tem pouco a ver com algumas das afirmações ou com algumas das outras ambições expressas pelo PSD. É isto que, creio eu, é de certa forma justo sublinhar-se nesta sede, inclusivamente porque, até agora, nenhuma disposição constitucional restringe a área em que pode haver nacionalizações. E, face a esta proposta do PSD. também não. É paradoxal, vindo de quem vem. Por nós, antes assim que o contrário!

O Sr. Presidente: - O PCP vai apresentar algumas propostas de restrição?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, a nossa proposta do artigo 82.° aponta para a definição de mecanismos de conformação legislativa também das nacionalizações. Considero, aliás, espantoso que nenhum dos Srs. Deputados se tenha dedicado minimamente a atentar no significado polivalente da expressão constante no n.° 2 da proposta do PCP. No fundo, estou a fazer um apelo para que alguém, mais argutamente, se dedique a analisá-la.

Em relação à proposta do PS, importa sublinhar que alguém aqui disse - comentário que não veio da bancada do PS, mas que é justo - "esta proposta é melhor do que a nossa". "Nossa", deles; "nossa", vossa, PSD. Porque verdadeiramente a proposta do PS diz aquilo que o PSD se esqueceu de dizer. Onde o PSD propôs uma norma que apenas alude a coisas que adquirem significado em contraposição com outras que vêm em artigos à frente e atrás -artigos mais sonhados do que viáveis, quiçá - o PS adiantou conteúdos materiais, com significado próprio perceptivo, directo e imediato. Por um lado, o PS suprimiu a alusão a noções de "intervenção do Estado na vida económica" e eu não sei mesmo se daqui não se retira - mas sobre isso creio que seria bastante importante ouvir os deputados do PS - algum do alcance próprio do artigo 82.° num sentido geral, uma vez que o preceito é entendido como querendo significar que a lei tem o poder de determinar os meios e as formas de intervenção do Estado na economia em geral. Assim tem vindo a ser interpretada. Nesse "livrinho" que o Sr. Deputado tem na mão, está na p. 405.

Qual é o significado que o PS dá, rigorosamente, à cláusula cuja consagração aqui propõe? Creio que lhe dá, ou que tem de lhe dar, desde logo o significado decorrente das propostas que apresenta relativamente ao artigo 80.° Pelos vistos, o PS entende, por um lado, que a "apropriação colectiva dos principais meios de produção" não deve ser obrigatória. A apropriação

Página 809

21 DE JULHO DE 1988 809

colectiva pode ser só de alguns meios de produção e pode até não ser dos principais, o que, quanto a nós, é o principal vício e a principal debilidade da proposta do PS, uma vez que permitiria, a ser consagrada nesses termos, altos graus de desvitalização da intervenção do Estado na vida económica. Por outro lado, estabelece uma cláusula conformadora, nos termos da qual, além de não haver uma obrigação de intervenção, haveria uma obrigação de só apropriação em função do interesse público, definido (como cláusula genérica que é) em termos muito latos e que carecem de esforços hermenêuticos. Tudo o resto me parece menos relevante. O principal é o primeiro segmento desta norma - que a lei deve determinar, depois, os critérios de fixação das indemnizações, em caso de nacionalização ou expropriação, parece-me opção derivada e secundária. Apenas creio que o PS ainda baldeou, de forma implícita, uma outra questão. É que, aparentemente, restringe os meios e as formas de intervenção a estas duas situações: à nacionalização ou à expropriação. Quer o PS inconstitucionalizar todas as outras formas de intervenção? Ou então o PS quer dizer que a lei é obrigada a determinar os critérios de fixação da correspondente indemnização só nos casos de nacionalização ou expropriação, podendo, nos outros casos de apropriação colectiva de meios de produção e solos, feitas sempre "de acordo com o interesse público", não haver lugar a indeminização. Prevêem outras formas? Que formas? Com que regime? E com que regime, designadamente, em relação àquelas entidades privadas que venham a ser atingidas por essas medidas? Ou esta norma, não quer dizer exactamente aquilo que parece e, conjugada com o artigo 85.°, quer dizer que se cria a possibilidade virtual de outras formas de intervenção do Estado; não na gestão - isso é matéria do artigo 85.°, n.° 2, do PS- mas na própria apropriação dos meios de produção por entidades privadas, no sentido restritivo e limitativo, que não comportem a inclusão nas duas figuras aqui tipificadas, a saber, a expropriação e a nacionalização. Creio que é bastante interessante, para medir a proposta do PS, termos respostas para estas interrogações. Se elas fossem no segundo sentido possível dos que equacionei, isto é, num sentido restritivo da propriedade privada, então o Sr. Deputado Costa Andrade rapidamente veria que o sorriso que começou por esboçar se transformaria num esgar. A proposta não quereria dizer exactamente o que ele julgou que queria dizer, poderia até querer dizer o seu contrário. Em todo o caso, creio que este debate poderá ser clarificador para que tudo, tudo, tudo seja dito pela forma própria.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Queria dizer que nesta reunião, se bem me recordo, ainda não me ri.

Risos.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Costa Andrade, peço-lhe que não seja excessivamente sensível às descrições fisionómicas, anatómicas e outras, que têm o valor que têm; quando salientou que a proposta do PS era "melhor" (creio não estar a ser infiel ao reproduzir as suas palavras, mas a acta permitirá comprová-lo cabalmente), V. Exa. colocou uma questão realmente importante relativa ao segmento primeiro da proposta - pareceu-me ver-lhe o esboço de um sorriso, que eu compreenderia...

Risos.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Enganou-se!

O Sr. José Magalhães (PCP): - Esse esboço de sorriso é susceptível de ser invertido pela evolução da hermenêutica.

Creio que seria bastante importante que pudéssemos aprofundar as linhas de discussão, por forma a encontrarmos respostas para, pelo menos, algumas das interrogações formuladas.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - Só uma pergunta muito rápida ao Sr. Deputado José Magalhães, não sem que, contudo, antes sublinhe que o Sr. Deputado José Magalhães não só contribui para as actas da Comissão com intervenções brilhantes e extensas, como inclusivamente com interessantes relatos de factos paralelos que ocorrem nesta Comissão. Para que conste, o livro a que o Sr. Deputado José Magalhães se referia é a Constituição da República Portuguesa Anotada, de Gomes Canotilho e Vital Moreira - é verdade o que o Sr. Deputado José Magalhães diz, p. 405, correcto; para que não fique nenhuma dúvida sobre qual o livro, que podia ser a Bíblia, por exemplo, e então teríamos uma situação mais complicada. Só que aquilo que o Sr. Deputado José Magalhães imputou à proposta do PS é contraditado pela própria anotação do Dr. Vital Moreira e do Prof. Gomes Canotilho, que diz, logo a abrir, p. 405, V. Exa. deve saber, "a redacção deste preceito não é muito clara, especialmente no que se refere ao objecto da intervenção", e continua, "aparentemente, ela refere-se também, tal como a nacionalização e a socialização, aos meios de produção"; contudo, segue dizendo que "o contexto do artigo, interpretação sistemática, colocado a seguir ao artigo 81.°, indica que o objecto deve ser bastante mais vasto do que qualquer forma de intervenção pública na vida económica", e termina com um requinte de comentário que é este: "O preceito quererá, pois, dizer o seguinte: 'A lei determinará os meios e formas de intervenção do Estado na economia e de nacionalização e socialização dos meios de produção [...]'." Citei bem? Não quero fugir ao espírito do texto citado.

Sr. Deputado José Magalhães, creio que o que acabei de ler é elucidativo, mas mais elucidativo do que a citação é a pergunta que lhe vou fazer: V. Exa. acha credível, acha que alguém poderá dizer que, à luz da proposta do PS, se tinha ilegitimado a intervenção do Estado na economia? Acha que é credível, acha que faz sentido, em termos de argumento rigoroso, dizer que numa Constituição destas, com as propostas em que o PS mantém integralmente as garantias dos direitos dos trabalhadores, que constituem obrigações sobre o Estado, acha que é um argumento usável, como instrumento de crítica ao PS, de que nós estávamos a ilegitimar a intervenção do Estado na economia, ou o emparcelamento - para dar exactamente o exemplo que vem citado na p. 405? Acho que faz bem em criticar as propostas do PS, porque as suas críticas são estimulantes, mas não nestes termos, sinceramente. Acha que era possível essa interpretação terrorista?

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

Página 810

810 II SÉRIE - NÚMERO 28-RC

O Sr. José Magalhães (PCP): - A questão está no ponto em que o Sr. Deputado António Vitorino acabou a intervenção. É evidente que não há o mínimo interesse em fazer interpretações ad terrorem do que quer que seja, mas também não há o mínimo interesse em deixar pairar equívocos. Acho que os equívocos suscitados pela primeira revisão, em tudo o que diz respeito à constituição económica, são susceptíveis - a serem levados a sério os propósitos e as propostas como, certamente, o devem ser as do PS - de serem duplicados, triplicados e muitíssimo agravados. Portanto, se a redacção do artigo 82.° não é clara, ou não é muito clara, como dizem doutamente, aliás, os dois anotadores que o Sr. Deputado António Vitorino, correctamente, transcreveu, é bom que se clarifique, inteiramente e até aos últimos limites, o alcance de uma disposição que o PS aponta como alternativa. Porque nós conhecemos a anotação dos referidos autores ao texto que está. O que provavelmente ambos gostaríamos de conhecer era a anotação dos autores ao artigo que o PS propõe. Mas essa teremos de ser nós a fazê-la. O que proponho a V. Exa. é que a façamos, mas aqui, naturalmente, nesta sede: clarificando!

Se aquilo que fiz, provavelmente, provocou ao Sr. Deputado a sensação de estar a ser objecto de um ataque ad terrorem, não era minha intenção fazê-lo. Em todo o caso, a resposta não me parece satisfatória - espero, aliás, que o Sr. Deputado Vera Jardim possa completá-la, porque aquilo que perguntei foi quais seriam exactamente as consequências das supressões que o PS faz. Diz-me o Sr. Deputado António Vitorino: "É ilegítimo, face à arquitectura e ao resto da nossa proposta, considerar que ilegitimamos a intervenção do Estado na economia." Pois muito bem, Sr. Deputado António Vitorino! Mas a pergunta que fiz não foi essa. É que, para além de todas as hermenêuticas abusivas sobre a diminuição da margem de intervenção do Estado, que alguns poderiam extrair da redacção proposta, o PS, tal como os autores de cartas de amor, deixa de ser dono do texto a partir do momento da expedição, fica com uma proposta aberta à hermenêutica, designadamente à hermenêutica dos poderes políticos que haja e que podem não se identificar, de resto, com as ideias políticas do PS. Nesse sentido, é ou não é susceptível de ser extraída - quanto a mim estultamente, quanto a mim pessimamente, quanto a mim erradamente - da supressão proposta uma interpretação que considero ad terrorem, mas pode ser praticamente ad terrorem (tão ad terrorem, por exemplo, como o último parecer do Sr. Dr. Mário Raposo em relação à lei de delimitação de sectores!). A minha resposta é: podem ser extraídas essas hermenêuticas. Eu não o farei. Mas, como sabemos, o Sr. Deputado António Vitorino e eu não ocupamos em monopólio a cena política da interpretação.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Graças a Deus!

O Sr. José Magalhães (PCP): - O risco que se corre é outro. Segundo aspecto: é assim realmente tão tolo, tão impensado, tão ad terrorem colocar-se a questão de saber se, estabelecendo o PS uma tipificação de meios - a saber, nacionalização -, não poderá sustentar-se a ilegitimação de outras formas, designadamente aquilo que os doutos anotadores situam, em relação à redacção actual? Como é que se equacionam

e se resolvem as questões face à proposta do PS? Essa é que é a boa pergunta e para essa é que o Sr. Deputado António Vitorino não deu resposta nenhuma.

O Sr. António Virtorino (PS): - Pois claro que não tem resposta, V. Exa. não esperava que eu utilizasse à sua técnica, que é a de dar respostas quando faz perguntas. Já me inscrevi.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Estava à espera, mas devo manter essa esperança. Creio que o que é importante é que, efectivamente, se clarifiquem rigorosamente as dimensões e implicações do preceito que é proposto - porque me parece ser equívoco, excessivamente equívoco, além de estar filiado numa concepção geral que, pela nossa parte, rejeitamos.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Vera Jardim.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Suponho que, desde o início, ou pelo menos desde que aqui me sentei e comecei a ouvir o debate acerca deste artigo 82.°, paira aqui algum mal-entendido que eu - aliás, já na linha do que o Sr. Deputado António Vitorino, citando a Constituição Anotada referida, já veio tentando clarificar - iria tentar, de uma vez por todas, clarificar. Sr. Deputado José Magalhães, não é a nossa proposta que é pouco clara; o que é pouco claro é o artigo 82.° Nós tivemos uma interpretação desse artigo 82.° em que, pelos vistos, não estamos sozinhos, que continua a parecer-nos a melhor e é esta: intervenção do Estado na economia é, como o Sr. Deputado sabe, um conceito que não é unívoco, que tem as mais diversas cambiantes, desde a intervenção indirecta até à intervenção directa, desde a intervenção de controle até à sancionatória - enfim, não vamos agora aqui rememorar todas essas noções primárias do direito económico. Só que temos como boa a interpretação precisamente contrária à de V. Exa.: é que não é de intervenção do Estado na economia que se trata no artigo 82.°; ou melhor, é apenas de um, muito restritivo, muito pequeno tipo de intervenção do Estado na economia, que é a noção de intervenção "nos meios de produção".

Senão vejamos. A própria sistemática do preceito, que vem seguido, depois, do preceito relativo às nacionalizações, que vem, depois, seguido de um preceito relativo à socialização - que são as cooperativas e as experiências de autogestão -, para finalmente terminar com um preceito que vai, efectivamente, concretizar alguma coisa contra a intervenção do Estado nas empresas, então, aí sim, já nos meios de produção, levou-nos e continua a levar-nos a isto, que temos como uma boa hermenêutica: intervenção, no artigo 82.°, não é, de modo nenhum, essa noção muito vaga, muito ampla, que é a intervenção do Estado na economia. Aí abono-me na intervenção do Sr. Deputado António Vitorino: não seria de todo curial, nem VV. Exas. pensariam, nem transparece, de longe, do nosso projecto, que o PS acabasse com a intervenção do Estado na economia; pelo contrário, nos aspectos fiscais, nos aspectos financeiros, nos aspectos da política agrícola, da política industrial, da política comercial, lá temos sempre as nossas disposições, a propósito dos grandes

Página 811

21 DE JULHO DE 1988 811

princípios que hão-de ditar, sim, a intervenção do Estado na economia - essa intervenção em sentido muito genérico.

Ora, a nossa preocupação - e daí alguma admiração, a que continuo a dar o meu apoio, do Sr. Deputado Jorge Lacão - em relação ao projecto do PSD nesta matéria é a de que, possivelmente, o PSD interpretou este artigo de uma forma diversa - começo a orientar-me para isso -, interpretou mais no sentido de "intervenção" ser a intervenção genérica do Estado na economia.

Se não, não se compreenderiam algumas coisas que aqui foram ditas, a propósito da defesa do artigo do PSD nesta matéria.

Para nós, o que é "intervenção" aqui? "Intervenção" é ainda um conceito amplo, mas que quisemos concretizar nas várias partes da Constituição, quer económica, quer não, dizendo: só nestes casos é que há intervenção. Quais são? São os casos da requisição, são os casos de expropriações, são os casos, naturalmente, dos limites da nacionalização, que também são casos de intervenção. Mas atenção: o único que nos restou, desta análise de todos os casos de intervenção hoc sensu, é precisamente o caso de intervenção nos meios de produção, ou seja, aquele que vem depois concretamente delimitado numa disposição concretamente visível para ele, que é a do n.° 2 do artigo 85.° É aí, no artigo 85.°, que a Constituição, depois de ter enunciado, no artigo 82.°, que "a lei determinará os meios e as formas de intervenção", vem, de um ponto de vista sistemático e, para nós, relativamente claro, dizer: "Alto, quando é que pode haver intervenção?" Esta intervenção em sentido muito restrito. Ora, a preocupação do PS não foi, pois - muito longe disso -, terminar com a intervenção do Estado na economia, mas clarificar que - para além dos casos que a dogmática jurídica sempre aceitou e que estão presentes nas constituições europeias do pós-guerra, como os casos de expropriação, de requisição e, naturalmente, de nacionalização - só admitiríamos, como resto de possibilidade, a intervenção directa do Estado nos meios de produção, nos casos e sob as condições do n.° 2 do artigo 85.°

O que é que resulta, portanto, do nosso projecto? Que não damos a essa intervenção, restrita, altamente restrita para nós, o significado que tem na intervenção do Sr. Deputado José Magalhães; por isso não tivemos nenhum pejo em retirá-la - porque só a admitimos nos casos que depois admitimos pontualmente na Constituição - e vamos admiti-la uma única vez como "resto", no n.° 2 do artigo 85.° Para nós, portanto, esta intervenção é a intervenção do Estado nos meios de produção, designadamente nas empresas, mas não só; admite - repito - outras formas, e já dei um exemplo - a requisição o que é senão uma forma, também, desta intervenção, desta limitação, ao fim e ao cabo, aos direitos de propriedade?

A Constituição - e nós sabemos porquê - em 1976 - e tornou a repeti-lo em 1982 - criou esta figura da intervenção, que deu lugar a uma ampla legislação sobre a intervenção do Estado na gestão das empresas - todos a conhecemos, teve o destino que teve. Não nos pareceu que esta intervenção restrita, repito, continuasse a ter dignidade idêntica à da nacionalização e socialização para que continuássemos a admitida no artigo 82.° Pareceu-nos, no entanto, que ainda era importante continuar a prevê-la, no sentido, isso sim, de a restringir aos casos e às condições em que a restringimos - e na altura própria explicaremos porquê, se não é já inteiramente visível. Repugna-nos toda a intervenção fora dos casos normais que já indiquei e a que outros se podiam seguir - a falência o que é senão uma intervenção judicial num meio de produção que é a empresa? Pois essa aceitamo-la, obviamente. Mas não aceitamos esta tal intervenção, de que tanto se falou, na gestão das empresas sem um controle judicial - esta não aceitamos. E também não aceitamos que esta intervenção, que teve a importância que teve, continue hoje a ter uma importância tal que possamos fazê-la alinhar ao lado da nacionalização e da socialização no artigo 82.°

É tão-somente este, Sr. Deputado José Magalhães, o sentido da nossa proposta - quer lhe agrade, quer não, isso é outra questão.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - Depois do que o Sr. Deputado Vera Jardim disse pouco tenho a acrescentar; apenas dois apontamentos, em resposta à pergunta do Sr. Deputado José Magalhães na parte mais objectiva que não foi respondida pelo Sr. Deputado Vera Jardim. Mas antes uma pequena observação: se dúvidas há sobre o significado do artigo 82.°, e parece que há, louvando-me eu na anotação dos Drs. Vital Moreira e Gomes Canotilho, aparentemente essas dúvidas não foram suficientemente fortes que levassem o PCP, no seu próprio projecto, a propor a sua clarificação - porque o PCP não propõe nenhuma alteração ao n.° 1 do artigo 82.° e as alterações referentes aos n.ºs 2 e 3 não contribuem em nada para dilucidar a dúvida ou a eventual ambiguidade que se poderia detectar na redacção do n.° 1. Nesse sentido digamos que a preocupação da clarificação do artigo 82.° é para o PCP uma preocupação superveniente, posterior à elaboração do seu próprio projecto.

Em relação à questão do emparcelamento, o Sr. Deputado José Magalhães decerto fará a gentileza de ler o projecto do PS de forma tão orquestrada quanto a critica que ao nosso projecto dirige... Porquanto o artigo 96.°, n.° 1, alínea a), do nosso projecto, por exemplo fala concretamente em "promover a racionalização das estruturas fundiárias" como objectivo da própria política agrícola e o artigo 98.° do projecto do PS, sobre minifúndios, que é um extenso artigo, mas extremamente claro, estatuí que sem prejuízo do direito de propriedade "o Estado promoverá, nos termos da lei, um adequado redimensionamento das unidades de exploração com dimensão inferior à adequada, do ponto de vista dos objectivos da política agrícola, nomeadamente mediante incentivos jurídicos, fiscais, creditícios e outros à sua integração estrutural ou meramente económica, nomeadamente cooperativa", e depois até expressamente consagramos "ou por recurso a medidas de emparcelamento", e até tivemos a preocupação de, no caso do próprio artigo 98.°, exprimir a ideia que temos do emparcelamento. A mera leitura do projecto do PS responderia à questão que foi colocada pelo Sr. Deputado José Magalhães.

Por outro lado, creio que ninguém defende que a enumeração dos casos e das formas de intervenção do Estado na economia constantes da Constituição seja

Página 812

812 II SÉRIE - NÚMERO 28-RC

taxativa, ninguém defende isso, e portanto não seriam constitucionalmente ilegítimas formas de intervenção do Estado criadas pela lei ordinária, desde que correspondendo à prossecução de objectivos constitucionalmente consagrados para a intervenção do Estado na economia. Não é preciso que a Constituição seja uma manta de retalhos infindável de todas as formas hipotéticas de intervenção do Estado na economia, nem resulta desautorizada a multiplicidade de formas de intervenção do Estado na economia pelo simples facto de no artigo 82.° da Constituição se não incluir a referência à intervenção nas empresas, à intervenção nos meios de produção em concreto. No projecto do PS a intervenção do Estado na gestão das empresas, se deixa de figurar nos termos em que figurava no artigo 82.°, passa a ter uma referência expressa e cabal, da qual se pode discordar, mas uma referência inequívoca no artigo 85.° do nosso projecto. Creio apesar de tudo que o projecto do PS não tem o pecado que o Sr. Deputado José Magalhães lhe quis, algo precipitadamente, imputar.

O Sr. Presidente: - Gostaria de me pronunicar antes, e suponho que isso pode ter alguma utilidade.

Esta discussão tem sido extremamente interessante porque, por um lado, tem revelado algo que nós já sabíamos, mas que aqui ficou claramente explicitado, isto é, que estes preceitos da Constituição têm dificuldades interpretativas muito nítidas e que a Constituição não tem, nem tinha de ter, nesta matéria o propósito de reproduzir um manual de direito económico. Tem alguns preceitos importantes, mas não esgota a matéria nem tem a preocupação de se referir a todos os aspectos.

Em segundo lugar, revelou-se - e a discussão foi realmente útil a esse respeito - que as diversas propostas dos partidos políticos partem de uma certa pré-compreensão e de uma certa orientação sistemática acerca do que é o papel do Estado no que diz respeito à economia que não podem ser interpretadas isoladamente. Isto é: quando o Sr. Deputado Jorge Lacão - e eu tive, de resto, a oportunidade de reconhecer que na perspectiva em que ele se colocou a sua interpretação era interessante e correcta - veio assacar ao PSD alguma incongruência, fê-lo porque ele está a fazer uma leitura e uma interpretação possível e legítima, mas que não é aquela que resulta da nossa óptica sistemática quando apresentamos a proposta do nosso partido, e em que não pode ignorar-se o que dizemos a propósito do direito de propriedade, dos objectivos prioritários que incumbem ao Estado fazer, e o que se diz a seguir noutras matérias ainda pertinentes aos problemas da chamada "constituição económica".

Para nós, o tal celebérrimo n.° 2 do artigo 85.° representava algo, e o Sr. Deputado José Magalhães viu bem que era um "mais", que era algo de limitativo em relação àquilo que nós pretendíamos, mas é óbvio que, se a interpretação for outra, se a sistemática global for diversa, ou se partirmos daquilo que foi proposto pelo PS e cuja redacção tem os seus méritos próprios e que foi por uma óptica diversa, naturalmente seremos conduzidos a uma interpretação do tipo daquela que muito sagazmente o Sr. Deputado Jorge Lacão propôs.

Vem a propósito dizer que também tem interesse ver a perspectiva do PCP. Ontem, o Sr. Deputado José Magalhães disse que o PCP se tem mantido sempre fiel às suas posições. Certamente fiel teologicamente aos propósitos finais, mas tem tido modificações tácticas e estratégicas importantes, por exemplo no que respeita à ideia de coexistência dos sectores; não é verdade que o PCP tenha sido sempre defensor dessa ideia em termos de se manter ad aeter num. Lembro que o Sr. Deputado Vital Moreira, quando da Constituição, de uma maneira inequívoca disse numa célebre sessão do dia 23 de Outubro de 1975: "a matéria da organização económica é de uma importância fundamental para a Constituição que estamos a elaborar"; "é a partir dela que a Constituição será desde logo julgada pela classe operária e pelas massas trabalhadoras em geral"; "aqui mais do que em qualquer outra matéria não poderá haver lugar para formulações ambíguas, para compromissos entre interesses de classe antagónicos"; "ao contrário de outros domínios da Constituição, a constituição económica não pode servir ao mesmo tempo o avanço do socialismo e a preservação do capitalismo, os interesses das massas populares e os interesses da burguesta: aqui existe uma clara demarcação de campos, uma decidida opção, a ambiguidade ou hipocrisia nesta matéria pagar-se-ão duramente em termos políticos". Palavras proféticas, eventualmente. Nesse sentido acrescenta (e volto a citar): "o problema fundamental da transformação do capitalismo em socialismo, para além, naturalmente, da questão do poder político, é o problema da propriedade dos meios de produção, não em si mesmo, evidentemente, mas sim porque a propriedade dos meios de produção é a base da apropriação do subproduto social e da atribuição da direcção do processo económico"; "é a propriedade privada dos meios de produção que atribui ao capitalismo o direito de se apropriar da mais valia, bem como o direito de dirigir a empresa e a economia em geral"; "a eliminação do capitalismo impõe necessariamente a eliminação da propriedade capitalista dos meios de produção e a passagem destes para a propriedade colectiva, de modo a possibilitar a apropriação colectiva do subproduto social e a gestão colectiva da economia". E termina o Dr. Vital Moreira afirmando: "Por tudo isto não se poderá dar por satisfatória a proposta à 1.ª Comissão." Cito não porque não sejam compreensíveis do ponto de vista comunista as alterações de posição tácticas que tiveram, mas para que nós estejamos nesta matéria em termos perfeitamente clarificados.

Por tudo isto, permito-me insistir na necessidade de termos uma visão global das propostas. Naturalmente não tenho uma compreensão do trabalho desta Comissão e do trabalho do Parlamento em geral como uma espécie de tribunal em que se fazem articulados e ou se impugnam ou são confessados os factos.

O trabalho numa comissão resulta do esforço comum de todas as forças políticas, se houver contribuições positivas volente ou nolente, penso que eventualmente nolente. O Sr. Deputado José Magalhães deu contribuição útil para nós termos as cautelas suficientes na nossa redacção, como se ela tivesse de ser sujeita ao crivo, não de uma comissão de revisão constitucional de um parlamento, mas de um tribunal que achasse que tudo o não contestado deveria considerar-se como confessado. É uma medida cautelar que lhe agradecemos e que teremos em consideração, mas não me parece que seja essa a forma como se devem desenvolver os trabalhos em termos do Parlamento, que não é, e não deve ser, apenas câmara de ressonância de estados-

Página 813

21 DE JULHO DE 1988 813

-maiores de partidos políticos ou um momento para registar apenas orientações políticas desses mesmos estados-maiores. Daí que tenha tido sempre a preocupação, e mantenho, de que é útil registar as contribuições, mesmo de membros de outras bancadas, quando elas permitem contribuir para a clarificação das posições próprias ou de algum modo para o resultado final poder ser claramente melhor do que aquele que seria se houvesse um único partido. É esse um dos aspectos importantes de democracia e devemos prestar preito, não tanto tendo uma preocupação um pouco "freudiana" de pôr sempre que o poder público é democrático e outras coisas do género, mas na prática agindo como isso.

Nestes termos, e no que diz respeito à proposta do PCP, gostaria de perguntar em que é que ela esclarece os problemas que V. Exa., Sr. Deputado José Magalhães, levantou a propósito do artigo 82.° e, designadamente, se ela no fundo não significa ainda uma maior rigidez no que diz respeito ao sector público, quando impede que só por forma que não uma via legislativa se opere qualquer alteração aos seus estatutos. E pergunto-me se a ideia não é a de a considerar uma competência e uma matéria reservada da Assembleia da República. Parece-me que isso se traduz num esquema que, a meu ver, torna ainda mais difícil aquilo que deveria ser desejável, que era a ductilidade do sector público em função das necessidades da economia. Ao contrário do que V. Exa. tem referido, nós aceitamos que haja uma economia mista, embora não desejemos que o sector público seja o elemento motor e primacial da actividade económica. Pensamos que não deve ser assim, mas que obviamente o Estado tem legitimidade de ter um sector público quando ele seja justificável e que exista em algumas zonas onde neste momento isso claramente se justifique. Não somos contra o sector público pela simples circunstância de o ser; o que não temos é o vesgo destruidor da iniciativa privada ou de lhe restringir a sua capacidade de actuação.

Uma última consideração que gostaria de fazer é que justamente a nossa ideia de consignar claramente que o Estado tem uma possibilidade de intervenção e nacionalização - concedamos, embora não esteja plenamente convencido de que a Constituição pensou exactamente como o Sr. Deputado Vera Jardim agora a interpretou num esforço louvável de racionalização, admitindo que assim seja -, a nossa ideia base é esta: não devemos confundir aquilo que são os programas do Governo com aquilo que é a Constituição, e assim aceitamos que os governos, consoante o eleitorado venha a definir, possam ter políticas mais interventoras ou menos interventoras na economia, que possam eventualmente nacionalizar ou desnacionalizar. O que não pretendemos é que a Constituição impeça quer as nacionalizações quer as desnacionalizações. As privatizações devem ser possíveis, como devem ser possíveis as nacionalizações, tudo em função dos programas dos governos, os quais dependem também de condicionalismos históricos concretos e da orientação ideológica dos partidos, que depois hão-de ser sufragados pelo eleitorado, a quem pertence realmente o poder político, porque são eles os titulares do poder político e da soberania. Nestas circunstâncias, compreender-se-á o que quer o PSD, pois, apesar de V. Exa., Sr. Deputado José Magalhães, o considerar como um partido contrário ao sector público, isso não é exacto. Somos um partido aberto, moderno, no sentido de admitir que os diversos agentes políticos, os diversos partidos possam propugnar as soluções que entendam mais favoráveis à prossecução dos interesses do País.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Só para meu esclarecimento final, suponho que é claro que o PSD entende "intervenção" no artigo 82.° nos mesmos e exactos termos, honra que lhe seja feita e uma vez por todas, que entende o PCP, ou seja, intervenção do Estado na economia.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Exacto.

O Sr. Presidente: - Não, repare V. Exa. que, quando se fala de intervenção, eu não estou, e o Sr. Deputado citou casos de intervenção do Estado na economia que não estão obviamente dentro do âmbito deste preceito, por exemplo citou...

O Sr. Vera Jardim (PS): - Intervenção indirecta...

O Sr. Presidente: - Intervenção indirecta e não só. Citou casos de intervenção, por exemplo quando os tribunais em matéria de liquidação do património das empresas por motivos de falência, não estamos a pensar nessas matérias, embora com a argúcia que o caracteriza suscitou o problema e poderá teoricamente dizer-se que é uma forma de intervenção. Estamos a pensar em termos mais latos que a simples intervenção em termos dos meios de produção, mas não tão latos como esses. Talvez seja um pecado inicial da Constituição que não corrigimos inteiramente, mas também nesta matéria prestámos algum preito a não modificarmos de "cabo a raso" aquilo que foi a obra inicial da Constituição.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Gostaria de fazer comentários sobre três aspectos: a questão das opções; a questão do debate na CERC dos estilos e dos critérios; a questão das opções e do seu melindre e consequências.

Quanto à primeira questão, é perfeitamente óbvio que quanto ao estão de debate pedirei vénia para não aceitar a observação crítica feita, porque creio que seria imprescindível aprofundar as opções que estão em confronto e que são em relação a uma questão fulcral. Nessa questão nenhuma dúvida é consentível e todos os equívocos se pagam bastante caro politicamente. Não estou a fazer nenhuma profecia nem queria que isto fosse usado nesse sentido. Também não fui eu que disse que "quem tiver uma visão trauliteira da política talvez prefira os conflitos em altos gritos, mas que eu saiba nada de duradouro jamais se construiu em democracia pela via da intolerância e do desrespeito". Foi o Sr. Deputado Rui Machete a O Primeiro de Janeiro, de 26 de Maio de 1988. Não foi há tanto tempo assim! Creio que isso é aplicável a diversas circunstâncias, incluindo a esta. Gostaria de aplicá-la concretamente a esta, porque, se vamos começar a rapar do Diário da Assembleia constituinte ou de qualquer outro Diário da Assembleia, então pela minha parte pedirei licença para rapar dos programas partidários, e retomarei desde logo o programa do PSD que, estando "em letargo", e não tendo sido revisto, refere clara-

Página 814

814 II SÉRIE - NÚMERO 28-RC

mente "a realização de nacionalizações" a "socialização da medicina" e outros "desvarios colectivistas" que devem arrepiar alguns dos seus leitores actuais e até dirigentes frescos do PSD...

O Sr. Presidente: - V. Exa. tem pedido licença para rapar de textos e citá-los, não tenho dado por isso!

O Sr. António Vitorino (PS): - O programa do PSD tem o mesmo destino que os limites materiais na concepção do Sr. Deputado Rui Machete: é um caso de caducidade.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Talvez isso deva ser mais adequadamente discutido com quem tiver uma visão trauliteira da política...

O que me preocupava agora era o facto de se aludir às "palavras proféticas" para situar uma determinada evolução do curso político português. Eu sobre isso não tenho nada a dizer. Disse ontem o que pretendia, a propósito de uma intervenção do Sr. Deputado António Vitorino. Que se faça "o mal e a caramunha" é verdadeiramente hipocrisia!

O PSD visa fazer coroar a sua obra de destruição nestes anos com a constitucionalização de gravíssimas soluções. Pela nossa parte visamos defender a Constituição, evitar a constitucionalização daquilo que é inconstitucional. A história disso é a nossa história política recente. Fazer essa história política recente, aqui e agora, é - entendo-o - dispensável.

No entanto, o que nós queríamos - e isto me conduz ao segundo aspecto - é que em relação às opções que agora vão ser tomadas não venha a ser aprovada uma espécie de "majoração adicional" decorrente de equivocidade!

Concretizo: quando os hermeneutas do PSD, hoje face ao legado da primeira revisão constitucional, sustentam coisas como aquelas que eu vou referir seguidamente, é caso para ter prevenção. Quando se diz "se a uma determinada opção era deferida uma amplíssima latitude antes da revisão de 1982, a partir do novo texto constitucional ela ainda mais se reforçou" (repare-se como se diz "no novo texto constitucional", o que é desde logo mistificação, porque se trata do mesmo texto revisto!), quando se diz "foi o critério de entendimento da Constituição no tocante à ideologia económica substancialmente modificado"; "o dogma da democracia pluralista prevaleceu declaradamente sobre o do socialismo colectivista"; "operou-se, como melhor demonstra Sousa Franco, uma desdogmatização desmarxizante" (e por aí adiante...), não é caso para estarmos de sobreaviso?!

A minha pergunta é (não sou nenhum praticante da igreja da ingenuidade!): qual é a consequência exacta da opção proposta pelo PS? Essa foi a minha interrogação maior. Atentei menos na proposta do PSD. Preocupou-me menos, apesar de tudo, a proposta do PSD (já lá irei). Qual é o significado do artigo 82.°?

A primeira démarche do PS é uma démarche de demolição. A primeira preocupação do PS é dizer que o artigo 82.° "não diz nada daquilo que se pode julgar que diga". "Não é" nenhuma cláusula geral, projectiva, e "não têm" o mínimo dos mínimos significados em relação à questão do enquadramento constitucional da intervenção do Estado na economia. O significado há-de ser outro: apenas a tipificação de

certas formas de intervenção e, mais especificamente, do regime concreto da nacionalização e de socialização. E aos meios de produção que a coisa há-de referir-se e a essa problemática se circunscreve todo o interesse do artigo. Essa afirmação não é desprovida de consequências porque isso implicaria, a ser assumido como tal, a ser consagrado constitucionalmente, um determinado valor interpretativo. E o Sr. Deputado António Vitorino bem pode arrepelar os cabelos quanto às interpretações ad terrorem. Mas como não somos proprietários das interpretações futuras, como o legislador, em sede de revisão constitucional, esgota os seus poderes com a revisão constitucional e a Constituição é criatura nada e criada e lançada ao mundo, o PS não é proprietário dessa revisão constitucional, mas é naturalmente responsável político pelas suas consequências.

A que vem então a alteração do curso interpretativo, cifrado na declaração, aliás peremptória, radical, total e automática do Sr. Deputado Vera Jardim sobre o significado nulificador do artigo 82.° quanto às margens da intervenção do Estado na vida da economia? Tem um significado e penso que; a ser esse que foi apontado, deve ser assumido, porque me parece, salvo melhor opinião diminuidor.

Compreendo, no entanto, o resto da argumentação. O artigo 82.° é evidentemente um preceito com um valor acrescido ou diminuído em função do contexto, isto é, em função das outras peças da arquitectura constitucional da organização económica. Se, primeiro, os Srs. Deputados não alterassem o estatuto constitucional da liberdade de iniciativa económica, se não amplificassem, como pretende o PSD, as margens de actuação da iniciativa privada; se não alterassem o estatuto do direito da propriedade privada dos meios de produção, como o pretende e na extensão em que o pretende o PSD, designadamente dando-lhe a reinserção sistemática que o PSD deseja, não meditando nas suas consequências; se não alterassem certas regras em relação à garantia das nacionalizações e se não alterassem certas regras relativas ao estatuto da terra, então o significado da vossa alteração do artigo 82.° poderia ser mínimo. Mas sucede que não é assim. Se em relação a todos estes "ses" ou em relação pelo menos a alguns destes "ses" (porque tenho a esperança de que em relação à propriedade privada, em relação à liberdade da iniciativa económica, a questão não se coloca nesses termos); se em relação a certas dessas questões fulcrais o PS diz "sim", então o significado deste artigo 82.° é um significado majorado. E eu creio que é preciso clarificar o máximo possível quais são os contornos deste preceito novo, qual a dimensão que o PS lhe pretende dar.

Julgo ter sido positivo que tivesse propiciado ao Sr. Deputado António Vitorino a possibilidade de clarificar as coisas em relação ao emparcelamento. Não se poderia esperar no entanto que lhe facilitasse a tarefa, pois tinha de ser o PS, pelas suas próprias mãos, a construir a clarificação da sua posição, não desconhecendo nós, naturalmente, que o projecto de revisão constitucional do PS tem outros artigos além do artigo 82.°

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.

Página 815

21 DE JULHO DE 1988 815

O Sr. Almeida Santos (PS): - Tenho estado a ouvir encantado, os debates sobre este artigo que julguei não justificasse tanto verbo e tanta paixão na medida em que me parece ser o artigo que, na Constituição, menos merece defesa, quanto mais não seja em nome da língua, pois é talvez um dos mais mal escritos. De facto, dizer-se que "a lei determinará os meios e formas de intervenção dos meios de produção" não é português, é árabe, é qualquer coisa que não entendo. Isto já transparece da difícil interpretação deste texto pelos comentadores. Na verdade, sei o que é nacionalizar meios de produção, sei o que é socializar meios de produção, mas, sinceramente, não sei o que é intervir meios de produção. E é claro que o próprio legislador, que estava numa hora má quando redigiu esta norma, quando chegou ao artigo sobre as empresas privadas, pensou: "Como é a intervenção nas empresas privadas?" Resolveu então pôr um travão e estabeleceu: "na gestão das empresas privadas." Aqui começa a fazer-se luz sobre o significado da palavra "intervir", porque não pode deixar de ser o "intervir na gestão". Sempre assim foi interpretada esta norma. Em seguida, estabeleceu o legislador: "só o pode fazer para assegurar o interesse geral e os direitos dos trabalhadores", e a título transitório. Desta forma, melhorou-se a gravidade e a confusão do artigo 82.° no que respeita às empresas. Porém, verdade é que este preceito merecia um pouco de benzina.

Devo dizer que sempre concebemos a "intervenção em meios de produção" referida à gestão e às empresas, visto percebermos mal que o Estado possa intervir num bem que não seja a título de nacionalização ou de socialização. Pode é intervir não no bem mas na sua gestão e dizer: "Deixas de gerir tu, agora administro eu." Não vejo outra solução. De facto, como é que se intervém num bem não gerível? Tivemos sempre a preocupação de restringir a intervenção do Estado, o que explica o nosso papel nas sucessivas desintervenções, ao nível do Governo, em empresas que tinham sido injustificadamente intervencionadas ou que não deviam continuar sob intervenção estatal.

Estamos, portanto, a ser coerentes com o nosso passado. Quem fizer uma interpretação lógica e sistemática das nossas propostas verá que nem por isso somos indiferentes ao interesse geral que sempre se liga à iniciativa privada. Na verdade, dizemos no artigo 61.° - e creio que mais ninguém o diz: "a iniciativa económica privada exerce-se livremente nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral." Não somos pois indiferentes ao modo como se administram as empresas. Porém, entendemos que não deve o Estado substituir-se aos privados na gestão de empresas sem uma forte justificação de interesse público e sem garantia de pagamento de qualquer indemnização, ou sequer de prestação de contas.

Por outro lado, no artigo 90.°, n.° 2, somos muito claros em tornar mais efectiva a participação dos trabalhadores na gestão das empresas do sector público. Não nos repugna a intervenção dos trabalhadores, mas sim a intervenção do Estado fora das condições que propomos. Isto é, quando não seja "na gestão" e "nos casos expressamente previstos na lei". As empresas privadas têm direito a saber em que casos pode o Estado intervir na sua gestão. Quando alguém cria uma empresa, tem de saber os riscos que corre ou as vantagens que tem. Estabelecemos também a necessidade de

prévia decisão judicial para estabelecermos a garantia do contraditório. O titular da empresa privada tem o direito de contestar e alegar as razões que, no seu entender, justificam que o Estado não o substitua. Este é o sentido da nossa proposta.

No artigo 82.°, contemplamos apenas a apropriação colectiva, maneira de dizer que engloba os conceitos de nacionalização e de socialização. Também aqui estabelecemos, mais uma vez, a atinência ao interesse público e vinculamos o Estado ao dever de indemnizar.

É este o nosso ponto de vista. Assumimo-lo com toda a frontalidade. É isto, e apenas isto, que pretendemos que fique muito claro para todos.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, suponho que, estando estas matérias clarificadas, poderemos, se não houver objecções, iniciar a análise do artigo 83.°

Pausa.

Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Lacão.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Presidente, não se trata propriamente de uma objecção, mas sim de uma ressalva. Tendo em vista a ausência do CDS e a circunstância de a proposta apresentada pelo CDS relativamente ao artigo 82.° ter óbvia conexão com o artigo 89.° que adiante discutiremos, a minha ressalva é apenas no sentido de, se vier a propósito e se o CDS nessa altura estiver presente, podermos discutir o artigo 82.° da proposta do CDS em conexão com outros preceitos a propósito do artigo 89.°

O Sr. Presidente: - Se o CDS ratificar a gestão de negócios do Sr. Jorge Lacão, certamente.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Presidente, é que talvez da parte do PS haja algum interesse em discutir esta temática com o CDS.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, relativamente ao artigo 83.°, o CDS e o PSD propõem a sua eliminação; o PS dá nova redacção aos n.ºs 1 e 2; os projectos dos Srs. Deputados Sottomayor Cárdia e Helena Roseta propõem apenas um único número com uma nova redacção; finalmente, o PRD substitui o artigo 83.° por um novo artigo e acrescenta um outro artigo, com o número 87.°, com afinidades com a matéria aqui tratada.

Visto o CDS não se encontrar presente, pediria ao PS para justificar sucintamente o seu articulado.

Pausa.

Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Sr. Presidente, a nossa proposta é fácil de justificar, inclusivamente porque este tem sido porventura um dos artigos referidos nos comentários que vêm sendo feitos a nível da opinião pública, nomeadamente na comunicação social, em matéria de revisão constitucional.

Como se sabe, a Constituição só pode ser alterada por dois terços e, nesta matéria, entendemos que a impossibilidade de se efectuarem desnacionalizações deve acabar em certos termos. Pensamos que, sendo necessários dois terços para que isto aconteça, de algum

Página 816

816 II SÉRIE - NÚMERO 28-RC

modo se justifica que também o quadro de concretização das reprivatizações seja definido em termos de um consenso mais alargado do que a simples maioria.

Na altura em que redigimos esta proposta, previmos os riscos da maneira como o actual governo e a actual maioria encaram a reprivatização das empresas do sector público. O que se passou depois veio confirmar os nossos receios e as nossas cautelas. O actual e o anterior governos começaram por justificar as reprivatizações em termos de deficientes resultados, má gestão, má performance económica. Posteriormente, o Governo anunciou que começaria pelas empresas mais rentáveis, necessariamente as mais vendáveis, se não as únicas vendáveis, abandonando aparentemente o projecto de alienação das menos bem geridas e menos bem exploradas. Esta actuação retirou toda a lógica à argumentação destes últimos anos, de ataque cerrado ao sector público empresarial, baseada no princípio de que, não sendo o Estado bom gestor, deve ser substituído por entidades privadas.

Sempre que no Parlamento se discutiu esta matéria, o PS insistiu numa definição de critérios. Por onde é que começam as reprivatizações? Com que ritmo? Qual o critério que deve presidir a elas? O critério da má gestão, o do tamanho das empresas, o da sua importância pelo facto de se inserirem ou não em sectores básicos da economia? Não nos foi dada nenhuma explicação sobre esta questão, antes nos foi recusada a programação das reprivatizações. Mais: a única proposta de lei que aparece no Parlamento com algum significado nesta matéria é uma lei que abre portas e que simula ser necessária para se poder converter uma empresa pública em sociedade anónima, o que não é verdade. Era essa a grande novidade que a proposta apresentava. E nessa altura eu disse no Parlamento: "Já foi transformada a União de Bancos Portugueses. Por que se não transformam outras empresas ao abrigo da lei geral? A porta não está fechada." A outra grande novidade era aquilo que porventura foi considerado inconstitucional, ou seja, o "saco azul" para acolher o produto das reprivatizações, ou sejam operações do Tesouro, por onde poderiam passar muitos milhões de contos. O Tribunal Constitucional já impediu a concretização desse objectivo. Referi esta questão apenas para justificar o facto de as reservas que tínhamos à data da elaboração da nossa proposta terem sido reforçadas pela atitude do Governo relativamente a todas estas matérias.

Consequentemente, a nossa posição é a de se justificar, aqui mais do que em qualquer outro lugar, uma exigência de programação e de consenso alargado. Estamos dispostos a discutir os critérios das reprivatizações. Se quiserem, integram-se esses critérios na Constituição ou numa lei quadro; se quiserem, discutimos a lei em simultâneo com a revisão constitucional... Não queremos ficar com a chave das soluções na mão, mas sim que se estabeleçam regras e princípios numa matéria a que o País é particularmente sensível. Se muita gente é contrária à dimensão do actual sector público, existe também muita gente que lhe é favorável e que aceita mal algumas críticas que lhe têm sido dirigidas.

O sector público empresarial foi também ele utilizado por todos os governos, mas sobretudo pelos governos do PSD, como instrumento de ocultação de desemprego, como instrumento de ocultação de dívida externa. Não exigimos - como se chegou a pensar - uma lei para cada reprivatização. Isso nunca esteve no nosso espírito, embora reconheçamos que a redacção da nossa proposta saiu ambígua. Porém, essa ambiguidade já foi por várias vezes desfeita quando dizemos que aquilo que pretendemos é uma lei quadro, dentro da qual se estabeleçam regras básicas. Não é necessário pormenorizar as empresas, mas sim estabelecer se os sectores básicos se privatizam primeiro, depois ou nunca; se se começa pelos sectores menos básicos por essa razão, se pelos rentáveis, se pelos não rentáveis; se há reconversões e não apenas venda, etc.. É também necessário definir o destino das empresas que não tiverem procura, e se o produto da venda se destina a reestruturar a própria empresa no caso de esta não ser alienada na totalidade do seu património ou do seu estabelecimento. Neste caso, o produto da venda destina-se a reestruturar a própria empresa, o sector público empresarial, a pagar dívida externa, como se pretendia na proposta do Estado, ou a qualquer outro fim? Pretendemos transparência: todas estas questões têm de ser esclarecidas.

Quanto ao n.° 2 deste preceito, pareceu-nos correcto facilitar a reprivatização de pequenas e médias empresas exactamente porque são pequenas e médias e porque foram indirectamente nacionalizadas, não tendo havido uma vontade directa de integrá-las no sector público. Ainda ontem cortei o cabelo numa barbearia onde há 20 ou 30 anos o faço. Perguntei, por acaso, a quem pertencia a barbearia e foi-me respondido que pertence ao Banco Nacional Ultramarino. Não valendo a pena cairmos em ridículos deste género, eliminámos a referência ao "título excepcional". Quando a reprivatização se justifica do ângulo do interesse público, justificada está; quando não, não. Deve ser este o critério.

Por outro lado exigimos o concurso público salvaguarda que seria do nosso agrado. Não vejo como prescindir desta regra na tal lei quadro. Quanto à venda, ela deverá ser sempre efectuada através do mercado de capitais, nos termos da lei, a fim de permitir uma certa dispersão do capital e dificultar a formação de novos grupos económicos. Por querermos o poder económico subordinado ao poder político, e não o inverso, não somos favoráveis à reposição dos velhos grupos com o seu banco, a sua seguradora, o seu jornal, a sua quinta no Alentejo para as caçadas de fim-de-semana, etc.

É esta a explicação da nossa proposta e esperamos que o PSD reconheça que não pretendemos ficar com a chave da solução na mão. Se quiserem, repito, poderemos discutir aqui os critérios e encher a Constituição com eles - o que me parece uma má técnica constituicional - ou discutir simultaneamente a lei quadro que consideramos necessária.

É esta, Sr. Presidente, Srs. Deputados, a explicação da nossa proposta.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Vera Jardim.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Pretendia apenas acrescentar algo que o meu colega Almeida Santos, certamente por lapso, não referiu. É que a nossa proposta preocupou-se também em clarificar aquilo que entendemos por reprivatização, não só a reprivatização típica da titular idade, mas também a do próprio direito de

Página 817

21 DE JULHO DE 1988 817

exploração, como se consagra no n.° 1 da nossa proposta. Este entendimento vem naturalmente pôr em causa algumas ideias muito em voga, que consistem em atingir objectivos idênticos por meios por vezes ínvios. Ou seja, continuando as empresas na titularidade do sector público, são entregues ao sector privado no que respeita à sua exploração.

O Sr. Presidente: - Já agora, só uma pergunta: também é verdadeiro o inverso, visto que se mantém o n.° 2 do artigo 85.°, ou seja, manter a titularidade das empresas no sector privado e a exploração no sector público?

O Sr. Vera Jardim (PS): - Fomos muito claros na exposição dessas matérias.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Onde não é possível a privatização da titularidade também não é possível a privatização da gestão. De algum modo, isto é a facultação daquilo com que até hoje não temos concordado, na medida em que sempre entendemos que a irreversibilidade das nacionalizações abrangia também a irreversibilidade da respectiva exploração pelo Estado. O que vem proposto é exactamente o contrário: a possível reprivatização da titularidade ou do direito de exploração, desde que isso seja feito com as salvaguardas que consideramos necessárias e no quadro de uma lei aprovada por dois terços. Fora disso é evidente que não.

O Sr. Presidente: - A seguir é o PSD a justificar a sua proposta de eliminação, e cabe-me a mim fazê-lo, agindo como parte.

Esta proposta decorre da concepção global que o PSD tem vindo a sustentar em termos de revisão constitucional sobre a economia, em particular os princípios económicos que devem ser consignados na Constituição - ou, melhor, os princípios constitucionais sobre a economia -, e está intimamente articulada com o seu artigo 82.°, na medida em que, justamente, se a lei determina os meios e as formas de intervenção, de nacionalização ou de privatização, não tem sentido vir aqui criar restrições a essa forma de, eventualmente, se privatizar. E, portanto, nós entendíamos que não era necessário ter aqui um artigo que representa um afloramento do princípio colectivista-marxista que consideramos caduco; por consequência e em coerência, propomos a sua pura e simples eliminação. Mas, uma vez que outros partidos políticos - e, em particular, neste domínio tem especial relevo a proposta do PS - apresentam outras soluções, gostaríamos também de fazer, muito rapidamente, algumas considerações sobre as mesmas, visto que elas, de algum modo, se enquadram dentro desta problemática. No fundo, nós pensamos que é importante, obviamente, que o processo da reprivatização - como o processo das nacionalizações - seja subordinado a regras claras. E ainda há pouco alguém - suponho que foi o Sr. Deputado José Magalhães - subordinou a necessidade de submeter ao princípio da legalidade estes aspectos de procedimento. Com certeza que é necessário que eles estejam subordinados a regras gerais e abstractas. E, portanto, digamos que não nos repugna -pelo contrário, achamos que é necessário - não se fazer algo caso a caso sem ter uma regulamentação, ou, pelo menos, obedecendo a princípios muito claros. Já temos dúvidas sobre se o melhor processo é o de fazer uma lei quadro das nacionalizações submetida à regra dos dois terços, uma espécie de lei paraconstitucional ou lei orgânica, consoante as terminologias que se queiram adoptar* ou, pelo contrário, em relação às questões mais fundamentais - e que, de resto, o Sr. Deputado Almeida Santos há pouco teve oportunidade de referir -, que são, no fundo, as questões relativas ao modus faciendi, saber se deve ser sempre por concurso público1 ou se há alguns aspectos em que tal possa não acontecer; saber se a venda deve ser sempre efectivada no mercado de capitais ou pode ser feita em certos casos de outra forma; saber, enfim, qual é o destino dos bens.

Afigura-se-nos, porventura, que a fórmula mais correcta é a de - se se entender que isso é necessário, e não nos opomos a esse entendimento - incluir esses princípios no texto constitucional. Também não vemos dificuldade em elaborar, ao lado do texto constitucional, desde já uma lei quadro - se se quiser assim chamar. O que nos repugna, francamente, e em princípio, é a ideia de que, para além desses princípios mais fundamentais, se deva submeter toda essa matéria a um regime de dois terços quanto ao modo de elaboração. Mas, enfim, isso será um problema que a pouco e pouco iremos analisando.

Há, todavia, uma questão que me deixa algo preocupado e que quero pôr frontalmente. Vejo e compreendo que haja resquícios de antigos traumas em relação a grupos económicos, e que levam o PS a encarar essa problemática da reconstituição de grupos económicos de uma maneira reticente. Mas penso que teremos de ser extremamente frios, claros e lúcidos nesta matéria. Por força das opções que a maioria do povo português, representada pelos partidos políticos com assento na Assembleia da República, escolheu, a internacionalização da economia portuguesa é já um facto através da sua integração na CEE. Isso significa que das duas uma: ou temos uma estratégia muito clara de protecção dos interesses económicos portugueses, a qual não significa nenhuma forma de xenofobia, mas significa que temos de encontrar formas de racionalização e potenciação da nossa organização económica, o que na prática implica que não tenhamos dúvidas nenhumas de que existam grupos económicos - embora naturalmente grupos económicos que não tenham o gigantismo, nem pela circunstância de ser apenas um ou dois, que lhes atribuam a possibilidade de subordinar o poder político aos seus interesses; ou a alternativa que provavelmente teremos é a de ficarmos tranquilos por não termos grupos económicos portugueses, mas, porventura, termos grupos estrangeiros que teremos muito maior dificuldade em controlar e que, esses sim, podem causar-nos algumas dificuldades em termos da nossa autonomia. Reconheço que uma economia internacional tem de aceitar alguns riscos. Reconheço que não é pela via de fechar os olhos ou de fechar as fronteiras que se resolvem os problemas, mas penso que a óptica de encarar como um "mal" os grupos económicos é uma óptica um pouco - permitam-me a expressão - passadista. Há grupos e grupos. É preciso distinguir e é preciso ver como as coisas são. Nós aceitamos plenamente que - repito - o poder económico tem de estar subordinado ao poder político, mas a ideia

Página 818

818 II SÉRIE - NÚMERO 28-RC

de impedir por qualquer forma a constituição de grupos económicos poderá ser uma óptica suicidaria em termos da economia portuguesa.

Isso leva-me a pensar que é importante, nesta matéria das privatizações, tomar em atenção esse problema estratégico para não sermos completamente cegos, porque nem sempre a óptica do mercado de capitais e a óptica do concurso público poderão ser aquelas que melhor venham a defender uma estratégia nacional. Julgo que há aqui um princípio sobre o qual todos estamos de acordo, ou seja, de que é necessária a transparência e evitar que existam quaisquer negociatas ou quaisquer formas que venham a privilegiar ilicitamente determinadas entidades privadas em detrimento de outras. Em relação a isso estou inteiramente de acordo. Estamos, inclusivamente, abertos a encontrar eventualmente fórmulas que permitam algum tipo de garantia dessa transparência e de permitir a fiscalização desses processos. Pensamos que, também em termos de regra geral, o concurso e o mercado de capitais deve ser o procedimento normal. E - exprimindo agora uma opinião puramente pessoal- julgo que, por exemplo, aquilo que ficou consignado na recente chamada "lei das privatizações" provavelmente não conduzirá a nenhuns resultados, dadas as enormíssimas limitações e o quase completo esquecimento das necessidades do mercado de capitais e do agir dos agentes económicos que vem a revelar.

Em suma, diria que, propendendo nós a pensar que na óptica e na economia da nossa proposta o artigo 83.° deveria ser, pura e simplesmente, eliminado, admitidos, não já a propósito do problema da irreversibilidade, mas a propósito da regulamentação das privatizações, que haja princípios que venham a ser consignados na Constituição. E também, se recusamos, claramente, que o processo de privatizações tenha de ser feito por lei, caso a caso, aceitamos que possa ser necessário encontrar formulações claras, em termos do enquadramento legal, para esse processo de privatizações. Assim, aceitamos que se faça uma lei quadro das nacionalizações, muito embora os tais princípios fundamentais que o PS quer assegurar - e que nós, de resto, subscrevemos - possam ser assegurados pela via da sua inclusão na Constituição, e não pela via de uma lei submetida a um regime especial de formação por aprovação de dois terços. Inclusivamente, como o PS sabe, pode haver fórmulas que poderão dar algum tipo de garantias que venham a ser julgadas úteis. Por exemplo, não me repugnaria - e isso já foi sugerido várias vezes, suponho que em entrevistas - que se admita que um número mínimo de deputados possa submeter à fiscalização preventiva do Tribunal Constitucional - justamente porque esses princípios já estão consignados na Constituição - a lei quadro ou as alterações a essa lei em matéria de privatizações e, naturalmente, também em matéria de nacionalizações, porque o problema deve pôr-se nos dois sentidos. Estamos a falar, obviamente, no que se refere às empresas directamente nacionalizadas. Quanto às empresas indirectamente nacionalizadas, as regras poderão ser menos rigorosas, embora sempre haja a necessidade - e aí também estamos de acordo - de encontrar fórmulas que garantam a transparência e evitem fenómenos ou suspeitas de alguma actividade menos lícita ou até formas de corrupção. Nestes termos, não posso deixar de me congratular com o sentido de orientação da proposta socialista, embora não me pareça de concordar com todos os seus pormenores e com a intervenção que o Sr. Deputado Almeida Santos fez.

Gostava ainda de proferir uma última palavra, relativamente ao problema do sector público e do sector privado. Já há pouco discutimos isso, pelo que talvez não valha a pena estar agora a reabrir a discussão. Mas há uma questão complicada que não vale a pena escamotear. E que, relativamente ao nosso sector público, é verdade aquilo que o Sr. Deputado Almeida Santos disse de ser instrumentalizado pelo Governo, seja ele qual for, em termos de taxas de juros, balança de pagamentos, etc. Mas isso depõe contra o sector público neste aspecto: é que demonstra que a debilidade da autonomia do sector público é uma das razões básicas pelas quais, muitas vezes, se tem criticado o sector público não apenas em Portugal. Isto é, o sector público acaba por facilmente ser instrumentalizado pelo Governo. Trata-se de um risco muito grande que corre o sector público, sendo um dos factores da sua fragilidade. E aquilo que o Sr. Deputado Almeida Santos aponta como algo que não pode ser culpabilizar o sector público, eu direi que é um defeito estrutural que muitas vezes ele apresenta. Isto, em Portugal, é acrescido por uma outra circunstância - que também não é exclusiva do nosso país, mas que se regista com alguma acuidade -, que é a existência de uma carreira de uns funcionários públicos muito singulares chamados gestores públicos. A figura do gestor é algo que nós temos de cultivar e incentivar, pois temos grande carência deles, mas o gestor público e a circulação de elites que se regista entre as cadeiras do Governo e as cadeiras da Administração Pública, ou dos altos postos de funcionalismo e de alguns institutos públicos, cuja natureza empresarial nem sempre é muito clara, levam-nos a pensar que é também um instrumento de poder importante e que, por isso mesmo, se apresenta igualmente como um factor de debilidade desse sector público que teremos de tomar em consideração.

Isto dito, reitero o que há pouco referi, de que nós não somos contra o sector público qua tale, pois reconhecemos que há empresas públicas que têm funcionado bem; que há empresas públicas que, a meu ver, não devem ser objecto de privatização, porque se justifica que estejam no sector público. A fúria das privatizações é uma moda que, como toda a moda, tem os seus exageros e que, naturalmente, não deve ser empolada, muito embora pense que a situação em Portugal justifica claramente que o pêndulo seja a caminho das privatizações e não a caminho das nacionalizações, porque estamos, obviamente, com uma certa indigestão do sector público, atendendo às características do País, nada valendo as comparações estatísticas internacionais nessa matéria.

Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Queria só complementar aquilo que disse, mormente nalguns aspectos que porventura deixei de mencionar. Estou de acordo em que temos de ser frios, claros e lúcidos. A nossa proposta revela isso e, talvez por isso, será com certeza criticada pelo Sr. Deputado José Magalhães, para não fugir à regra. Entendo, em todo o caso, que a CEE se não perturba com a existência de um sector público significativo. Não é, de modo nenhum, por isso que os investidores estrangeiros deixam de investir em Por-

Página 819

21 DE JULHO DE 1988 819

tugal, e penso que há países da CEE com um sector público tão significativo como o nosso; outros já o foram, embora tenham deixado de o ser. Há países fora da CEE, mas dentro do espaço das economias de mercado ou de economias mistas, cujo sector público tem volume superior ao nosso. Alguns com êxito, como é o caso da Áustria.

Por outro lado, defendendo também o sector público de alguns ataques que têm sido desferidos contra ele, eu queria lembrar que, se não fosse o erro das nacionalizações - pois sempre considerei que as nacionalizações foram em regra erradamente feitas, visto não ser assim que se nacionaliza o que se pretende que constitua o sector público da economia -, teríamos sido confrontados com consequências gravíssimas no quadro da crise económica que o País atravessou.

Muitos bancos e muitas seguradoras, para não ir além dos respectivos sectores, teriam falido se não tivessem sido nacionalizados. Não tenho quaisquer dúvidas em fazer esta afirmação. De igual modo, muitos hotéis teriam falido se não tivessem sido utilizados para albergar os retornados das ex-colónias - o mal é sempre portador de algum bem, neste caso a salvação de unidades hoteleiras numa época em que não havia turismo em Portugal. Não se esqueça que grande parte das intervenções do Estado na economia tiveram lugar a pedido das próprias empresas intervencionadas. Também essas intervenções foram desastrosas em muitos casos, noutros salvadoras.

Temos decerto de encarar estas realidades numa perspectiva actual. Mas também na perspectiva do passado.

As nacionalizações foram mal feitas? Houve nacionalizações indirectas que - como há pouco referi - não foram sequer desejadas? Directas até que não foram queridas? Posso garantir que, na grande noite das principais nacionalizações, ninguém pensou nas empresas do ultramar. Ninguém, vim a saber, discutiu as consequências das nacionalizações no ultramar, esquecendo-se que cada banco tinha o seu banquinho no ultramar, que cada seguradora tinha uma mini-seguradora no ultramar, que as principais indústrias do ultramar eram propriedade de bancos que tinham sido nacionalizados. E, se essas empresas poderiam permanecer na posse de titulares privados portugueses, era inconcebível que permanecessem na posse do ex-Estado colonizador. Tudo isso é verdade. Mas não se diga que as empresas do sector público teriam, todas elas, ou mesmo como regra, resistido melhor à crise económica dos anos de 1976 a 1978, e depois nos anos de 1982 a 1985, se todas elas permanecessem no sector privado. Essa não é a minha convicção: à quelque chose malheur est bon. Mas é evidente que nós estamos a fazer uma revisão e, neste momento, na CEE. E, embora esta não se impressione com a dimensão do nosso sector público, nem esteja muito preocupada com isso, estou de acordo em que não é coerente manter no sector público empresas que nunca lá deviam ter estado se não fosse, porventura, a maneira como as nacionalizações foram feitas.

Era isto e mais o seguinte o que eu queria dizer. Bem sei que há grupos económicos bons e maus, mas quando eu receio os grupos económicos receio os maus e não os bons, como é óbvio.

Quando reclamamos o concurso público, sabemos que ele pode ser, nalguns casos, embaraçante. Mas sabemos também que essa é a única forma de a alienação ser transparente e que, se assim não for, nos envolveremos em discussões penosas.

Sentimos a imprescindibilidade da clarificação desta matéria e de que o interesse público seja eficazmente defendido pelo legislador constituinte. É isso e não mais do que queremos.

O Sr. Deputado Rui Machete disse - e com razão - que o Estado abusou do sector público, no sentido de o transformar em instrumento de ocultação de desemprego e de ocultação de dívida pública. É uma evidência hoje ser essa uma das fragilidades do sector público. Mas se não se tem feito isso - e não deixa de ser significativo que todos os governos o fizeram -, a dívida pública apareceria mais emplada e, porventura, teríamos no exterior unta imagem mais desfavorável e embaraçosa do que a que tivemos. Tivermos de recorrer ao FMI para conseguirmos empréstimos no exterior - vivi esse drama por duas vezes - e não sei se, nesse condicionalismo, foi mau termos empresas públicas que permitiram ocultar parte do défice.

Tudo tem, portanto, uma outra face, e nós não iríamos fora da discussão prévia de uma lei de forma a que, quando chegássemos à fase da aprovação da proposta na revisão da Constituição, já soubéssemos o que em concreto querem dizer as coisas. Só que o problema se transfere para o de saber qual a maioria necessária para proceder à alteração dessa lei. Maioria simples? Que garantia teríamos, neste caso, de que, no dia seguinte à revisão da Constituição, não seria aprovada uma lei de sentido diverso?

Pedimos que compreendam que, estando hoje na Constituição uma regra com a qual não concordamos, mas para alteração da qual são necessários dois terços, temos alguma legitimidade para exigir um consenso alargado, prévio ou simultâneo. Em última instância, poderíamos incluir na Constituição o essencial das futuras leis paraconstitucionais, embora não seja essa a técnica mais correcta nem mais sedutora.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Almeida Santos, gostaria de fazer três observações extremamente sucintas.

A primeira é a de que estou inteiramente de acordo consigo no que respeita à circunstância de, na CEE ou na Europa do pluralismo democrático, incluindo a Áustria, poder haver sectores públicos mais alargados e com maior peso do que em Portugal e de que não é esse o problema da nossa adesão à CEE. Essa é, digamos, uma argumentação que nunca utilizei e que é, aliás, uma argumentação errónea.

A segunda observação que gostaria de fazer é a seguinte: será talvez positivo, afinal de contas, que o sector público tenha sido usado como foi - e eu disse "instrumentalizado" -, pois teve algumas vantagens: conseguiu que a imagem económico-financeira do País fosse melhor e que não tivéssemos tanto desemprego, nem tanta destruição das empresas. Reconheço que esta é uma matéria delicada, onde as opiniões se dividem, as a verdade é que foi também a ocultação da situação das empresas - uma espécie de "segurança social empresarial" - que levou a grandes ineficiências económicas e a grandes desperdícios. Pode, num determi-

Página 820

820 II SÉRIE - NÚMERO 28-RC

nado momento, ter sido positiva, mas teve aspectos extremamente negativos para o futuro, embora eu aceite e reconheça que muitas empresas não teriam subsistido - e falta saber se muitas delas deveriam ter subsistido - não fora a circunstância de terem sido objecto de nacionalização.

Isso leva-me à terceira questão, que referi há pouco e que é a seguinte: na realidade, o grande problema das empresas públicas, que não existe apenas em Portugal, mas em geral, é o da sua debilidade face ao Estado em termos de autonomia. Isso leva, efectivamente, a problemas de produtividade, de eficiência, de uma gestão económica eficaz e a que até a própria autonomia e independência dos gestores seja posta em causa. É esse o grande calcanhar de Aquiles das empresas públicas. Devo dizer que não sou contrário às empresas públicas por estas serem públicas, pois algumas delas - poucas - têm funcionado, em Portugal, razoavelmente bem, apesar dos governos, mas penso que a grande dificuldade tem sido essa e que é esse o problema.

Quando V. Exa. propõe fazer uma lei, penso que a poderemos fazer e estou disposto a dar a minha modesta contribuição para que ela possa ser realidade. No entanto, já me parece excessivo pensar que os princípios fundamentais a que deve obedecer o processo de privatização, como aliás o próprio processo das nacionalizações, sejam tantos e de tal modo que tornem monstruoso o artigo que na Constituição o consigne. Talvez uma análise um pouco mais detalhada e uma tentativa de articulação revelem que, na verdade, não seja necessário escrever na Constituição os prazos em que as comissões de trabalhadores se devem pronunciar sobre isto ou aquilo; e, assim sendo, talvez possamos chegar a um acordo em termos mais fáceis do que à primeira vista parece.

Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Presidente, queria colocar uma questão ao Sr. Deputado Almeida Santos.

Ouvi a intervenção do Sr. Deputado sobre uma certa descrição do que foi o processo das nacionalizações. Tratando-se de uma pessoa que esteve, mais ou menos, dentro do processo político...

. O Sr. Almeida Santos (PS): - A partir do dia seguinte, sim! Também não tive nenhum aviso prévio.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Mas, dando como boas a intervenção do Sr. Deputado Almeida Santos e a descrição factual que fez, penso que a sua intervenção tem um significado extremamente útil. E dou-a como boa porque, nomeadamente, não tenho instrumentos de análise económica que me permitam emitir uma opinião alternativa. De resto, não estamos aqui para formular políticas de carácter económico, mas para formular uma constituição económica.

Assim sendo, chegamos à conclusão de que as nacionalizações foram - mesmo admitindo que só em certos casos - a única alternativa, o único instrumento ou meio adequado de, naquelas ciscunstâncias históricas, realizar o interesse público.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Não foi isso o que eu disse.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Mas admitamos isto ...

O Sr. Almeida Santos (PS): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Deputado, eu não estava a simplificar o raciocínio e até a conceder mais, porque a intervenção do Sr. Deputado tem este conteúdo útil: nacionalizar ou desnacionalizar não é algo que tenha de ser feito por estar escrito no céu (não são as estrelas que ditam que se deva nacionalizar ou desnacionalizar, nem isso está escrito nos livros), mas é pois de certa maneira contingente em função da interpretação do interesse colectivo por quem está legitimado a exercer...

O Sr. Almeida Santos (PS): - Não se esqueça de que essa é uma das condições a que nós, para futuro, sujeitamos o exercício da faculdade de apropriação colectiva de meios de produção.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Exacto.

O Sr. Almeida Santos (PS): - De igual modo, desde que seja de interesse público, poder-se-á desnacionalizar. Por que não fazê-lo? A nossa posição é igual para os dois lados.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Exactamente.

Penso compreender a sua posição e, com toda a honestidade, identifico-me com ela. Há, portanto, uma contingentação, ou seja, a nacionalização ou a desnacionalização assume um carácter de contingência em função do interesse público. Coloca-se, porém, o problema de saber quem deve ser o intérprete, ou seja, quem deve subjectivar o interesse público num Estado de direito democrático e se esse interesse público deve ser necessariamente subjectivado por uma maioria de dois terços, como propõe o PS. É aqui que os caminhos começam a afastar-se. O problema está em saber se a subjectivação, a interpretação, a realização e a responsabilidade consequente, nos termos em que a responsabilidade existe em democracia, ou seja, fundamentalmente através do sancionamento do eleitorado, não deverão caber a um governo legitimado democraticamente pela maioria dos cidadãos e se as matérias de organização económica não são por definição aquelas que devem estar na disponibilidade e responsabilidade democrática consequente de uma formação política legitimada democraticamente para governar e para, também, plasmar a organização económica que preconiza, sendo certo que uma manifestação de vontade divergente do eleitorado há-de, naturalmente, implicar outro caminho.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Sr. Deputado, assim seria desnecessária a lei! Bastaria a discricionariedade! A lei dizia "reprivatize-se", e o Governo, legitimado por 50%, 60%, 70%, 80% ou 90%, fazia-o. Não era precisa a lei para nada. Só que os critérios legais existem para impedir a discricionariedade, o arbítrio e o favoritismo.

Página 821

21 DE JULHO DE 1988 821

O Sr. Costa Andrade (PSD): - A lei quadro pode ter um postulado. Mas a minha dúvida mantém-se - é uma dúvida, de certa maneira, de fundo -, e é a de saber da necessidade, em termos de democracia e do ponto de vista do Estado de direito democrático, de esta lei ser aprovada por dois terços. Atendendo às circunstâncias histórias em que o processo decorreu em Portugal...

O Sr. Almeida Santos (PS): - Se quiser quatro quintos, também pode ser. O problema é que nós entendemos que matérias que são o caldo de cultura da suspeição para qualquer governo - e à volta do tema da venda de uma empresa pública vão levantar-se problemas de seriedade, de favoritismo, etc., queiramos ou não - devem ser objecto de um consenso alargado, para que a lei possa ser pacificadora. Do ponto de vista de um partido que se coloca em oposição ao PSD neste momento, se fôssemos maldosos, diríamos: "Façam sozinhos e deixem que a opinião pública levante todas as suspeitas." No entanto, queremos corresponsabilizar-nos na definição dos critérios de acordo com os quais há-de ser feita a privatização. Será que não revela seriedade da nossa parte o facto de sobrepormos o interesse nacional e a defesa da paz pública ao comodismo de termos argumentos para vos criticar e combater?

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Para terminar, formularia duas questões.

Em primeiro lugar, gostaria de saber se o PS entende que deve ser diferente o processo de reprivatização da titularidade ou do direito de exploração dos meios de produção nacionalizados a partir desta revisão constitucional ou se a referência a "depois de 25 de Abril" tem o sentido universal de o limite de dois terços também valer para todas as nacionalizações que doravante se façam. Coloco esta questão porque o PS, nesta parte, não altera a formulação da Constituição, falando sempre das nacionalizações efectuadas "depois de 25 de Abril de 1974". Gostaria, pois, de saber se também para as nacionalizações que doravante se venham a efectuar (isso não está excluído) a privatização deverá estar sujeita ao limite dos dois terços.

O Sr. Almeida Santos (PSD): - Sr. Deputado, a resposta pode ser positiva ou negativa.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Eu acabaria já, Sr. Deputado.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Faça favor.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Esta questão conduz-nos a uma outra, qual seja a da solidariedade do PS, ou eventualmente do PSD, se a situação se alternar. Devem dois partidos, solidariamente, arcar perante a colectividade com as responsabilidades e as críticas de uma eventual privatização? Gostaria de lhe perguntar se esse argumento - que, como todos, tem o seu lado positivo - não é um argumento de certo modo inconveniente do ponto de vista da organização democrática e pluralista do Estado, isto é, se o facto de dois partidos, designadamente o PS e o PSD, que devem assumir as suas diferenças para bem da democracia e do Estado de direito (se algumas diferenças há, e muitas há, penso que uma das linhas de clivagem e de fronteira passa pelas diferentes concepções em matéria de organização económica), estarem, como irmãos siameses, obrigados em relação a um instrumento fundamental da política económica - como é o caso de uma decisão de privatização ou de nacionalização - não frustra, de certa maneira, o sentido do pluralismo e também, por essa via, do Estado de direito, na medida em que se priva o funcionamento do sistema democrático de uma componente fundamental, qual seja a da responsabilidade, uma vez que, em relação a tais decisões fundamentais, no fim de cada legislatura o PS e o PSD apareceriam como solidários e tudo aquilo que tivessem feito de bom ou de mau tê-lo-ia sido por dois terços. A minha referência ao PS e ao PSD tem apenas, evidentemente, carácter exemplificativo.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Não equiparamos a nossa proposta das nacionalizações posteriores ao 25 de Abril às que venham a ter lugar agora, como o fez, por exemplo, o nosso camarada Sottomayor Cárdia na sua proposta. Referimo-nos a todas elas, incluindo as anteriores ao 25 de Abril, pois, como sabe, Salazar também fez nacionalizações!

O Sr. Presidente: - Mais do que parece à primeira vista.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Exacto. Não se julgue que foi só o 25 de Abril que nacionalizou. O que para nós tem significado é que, queiramos ou não, o facto de algumas nacionalizações terem sido consideradas, e ainda o serem neste momento, irreversíveis, como condição da defesa de um sector público mínimo, dá a estas nacionalizações um particular significado. Foi nessas que pensámos e não estamos fechados a considerar a possibilidade de sujeitar a idêntico regime quer as nacionalizações quer as desnacionalizações futuras. Não estamos fechados a isso, embora tenham sido estas as que imediatamente nos preocuparam. É isto que há que desfazer, e há que saber em que termos é que se deve fazê-lo.

Quanto ao argumento da inconveniência, devo dizer que não nos repugna o reforço das responsabilidades. Entendemos mesmo que, como oposição, temos responsabilidades - e queremos tê-las - na solução dos principais problemas nacionais. Já as estamos a ter neste momento, pois estamos a rever a Constituição do País por dois terços. Não a enjeitamos porque a Constituição é algo de muito importante para a vida do País e o nosso ponto de vista é o de que entre a Constituição e a lei ordinária há matérias que, ou pela sua natureza polémica, ou pelo seu significado intrínseco no plano do interesse nacional, ou pelo seu significado na escala de valores nacionais, têm mais importância do que as matérias objecto de lei ordinária e menos do que as contempladas na Constituição.

Concebemos um tertium genus, um tipo de leis para as quais julgamos ser de interesse nacional que um consenso alargado seja tentado e conseguido. Concebemos isso e já hoje existe um exemplo na Constituição - as restrições aos direitos dos militares.

O CDS vem propor maioria absoluta, valor reforçado em relação às leis ordinárias, o que igualmente decorre da nossa proposta, mas nesta nem sequer

Página 822

822 II SÉRIE - NÚMERO 28-RC

sentimos a necessidade de o dizer expressamente. De igual modo o PCP: valor reforçado, embora só por maioria simples.

Portanto, a ideia de leis de valor reforçado repete-se em diversas propostas. A votação qualificada é apenas um elemento do reforço do valor dessas leis. Mal nos parece que, se elas têm mais valor que as outras, possam ser aprovadas por uma maioria igual ou mesmo inferior.

Parece-nos que seria pacificador, que tem lógica na escala dos diplomas legais, do seu valor, da sua eficácia, da sua hierarquia. Os estatutos dos Açores e da Madeira não são leis intermédias? Não se justificava que fossem aprovadas por maioria qualificada?

E o estatuto de Macau? Por aproximação, não se justifica igual qualificação em relação ao estatuto de informação, à lei da defesa nacional, etc.?

Não estou a raciocinar em termos de nós ou vós. Já estou tão habituado a estar e deixar de estar no Governo que não raciocino, como regra, em termos de governo que está. E isso sabe-se, porque paguei muitas vezes por ter assumido a defesa de interesses que não eram populares. Ninguém pode acusar o PS de ser o partido que só se determina peia caça ao voto.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, creio que este debate comporta importantes novidades, em diversas dimensões, não tanto que respeite às intenções do Partido Socialista, que são conhecidas desde Setembro e em relação às quais o PSD tem vindo a exprimir aquilo que é público. Tal nada teria de inovador, não fora aquilo que o Sr. Presidente disse. É na avaliação daquilo que o Sr. Presidente disse, designadamente em termos negociais, que se cifrará o interesse desta discussão, nomeadamente em relação a alguns pormenores. Pela minha parte, gostaria tão-só de tecer algumas considerações em seis tópicos que, de resto, enuncio, por uma questão de simplicidade:

1.° "1975-1988 - o caminho para o mercado único passa pela Califórnia?"

2.° "Sector público = sida", isto é, só importa destruir, alienar?

3.° "O PSD diz: a fúria privatizadora é uma moda" (mas a demolição até que ponto é que vai?).

4.° "O PS sabe o que quer?"

5.° "Da garantia constitucional das nacionalizações à garantia dos monopólios?"

6.° "A paz é possível por via canibal?"

Sr. Presidente, Srs. Deputados: Nós, PCP, lançamos um olhar crítico sobre a economia portuguesa e sobre o sector empresarial do Estado. Não numa postura fixista, como receava o Sr. Deputado António Vitorino, ontem, mas de uma forma que tem em conta a realidade da economia portuguesa e a perspectivação do seu desenvolvimento futuro. Sabemos e entendemos que a internacionalização da economia portuguesa pode acarretar riscos sérios de que Portugal assuma uma posição ainda mais subsidiária, ainda mais dependente numa estrutura que a esmagaria e em que funcionaríamos como economia basicamente fornecedora de matérias-primas, de mão-de-obra barata. Daí o apelo à Califórnia ou a Singapura, como é hábito de alguns ministros, onde se instalariam dia a dia empresas, empresas poluidoras, empresas de componentes, empresas "de fim de linha", empresas de montagem, empresas de "aperta parafusos" - como se lhes chama. Nesse quadro as actividades económicas fudamentais estariam, "naturalmente", fora do nosso controle nacional. Esse, não tenho dúvida nenhuma, é o interesse das empresas multinacionais, transnacionais, mas dubiamente se poderia sustentar que fosse o interesse de um país democrático, de um país com uma forte aspiração à liberdade e à independência, designadamente neste plano fulcral que é o plano económico. Entendemos, pela nossa parte, que o caminho do mercado único não pode, e não deve, ser um caminho de especialização assente em vantagens comparativas baseadas, no fundamental, na mão-de-obra barata portuguesa e que o factor determinante na conquista do êxito que, creio, é uma aspiração nacional, passa pela inovação, pela inovação tecnológica, pela valorização a mão-de-obra, pela valorização dos recursos nacionais. Para se conseguir isso é fulcral que tenhamos um sector empresarial do Estado forte, dinâmico, bem estruturado, reestruturado no sentido, não da sua liquidação, mas da sua defesa, da sua adequação aos imperativos de resposta à situação nova que esta criada. Isso é essencial para aguentarmos o embate no mercado interno e para podermos enfrentá-lo em termos positivos ou o menos negativos possível para Portugal. Mas, para isso, precisamos de mudar o nosso perfil de especialização e fazer face ao capital externo. Não vemos que o papel das empresas portuguesas deva ser o papel de pura subordinação e associação a empresas estrangeiras que as dominassem, mas não vemos que o caminho dos monopólios possa ser o caminho do êxito para combater esses impactes perversos da construção do chamado mercado único.

Não aceitar um papel semiperiférico de abandono e subordinação é fundamental. E isso passa por uma revalorização, por uma valorização hoc sensu, no sentido próprio e verdadeiro, do sector empresarial do Estado. Não, nós não entendemos - e houve ecos da concepção contrária aqui, como é evidente - que o sector empresarial do Estado seja sinónimo de sida, isto é, que só sirva para alienar, para destruir.

Entendemos: que o sector é constituído por empresas de base e estratégicas; que essas empresas, que são o seu aspecto fulcral e que lhe dão o enorme relevo que tem, podem, dinamizadas e estruturadas devidamente, ser uma importante garantia, face ao mercado interno, de que as principais alavancas da economia estejam em mãos nacionais, em mãos portuguesas; que isso é fundamental no quadro de uma estratégia de mudança do nosso sistema produtivo e na defesa de actividades produtivas nacionais, nomeadamente até na própria realização de formas de associação a capital estrangeiro - estou a pensar inclusivamente em joint ventures, nos casos em que elas possam, e devam, ter lugar. E, pelo contrário, entendemos que o desmantelamento do sector empresarial do Estado teria como consequência o domínio, a breve ou mais distante trecho, de empresas básicas e estratégicas do País pelo capital estrangeiro designadamente. E a intervenção do Sr. Deputado Rui Machete não é nada reasseguradora quanto a esse aspecto, pelo contrário.

Página 823

21 DE JULHO DE 1988 823

Esta é, portanto, para nós, uma questão essencial em todos os planos, desde logo no plano de um desenvolvimento democrático e de uma garantia da própria democracia económica em Portugal, como condição chave para o próprio processo de desenvolvimento que sirva, não os interesses do capital estrangeiro, mas os interesses do povo português e do País.

O debate que o Sr. Deputado Rui Machete, em particular, e, um pouco mais confusamente, o Sr. Deputado Costa Andrade introduziram reedita as peças principais da polémica pública que o PSD lançou, da maneira que é conhecida, contra o sector empresarial do Estado. É significativo que, logo após as eleições de 19 de Julho, o Governo tenha veiculado publicamente, mesmo antes do debate do Programa do Governo e com outra intensidade depois, que era preciso desenvolver uma campanha para garantir a preparação psicológica para as prevatizações. Dizer isto é reconhecer que essa campanha psicológica era necessária, isto é, que não havia um clima favorável a tal coisa, não se encontrava por aí na sociedade portuguesa verdadeiramente um ulular de apoio popular à privatização, isto é ao desmantelamento das empresas públicas.

O Sr. Deputado Rui Machete trouxe aqui alguns dos temas com que essa companhia se nutriu ao longo destes meses. Os tópicos não variaram excessivamente. O Governo e o PSD têm apresentado, constantemente, a sociedade portuguesa como completamente bloqueada, traumatizada, asfixiada pelo peso do sector empresarial do Estado completamente esmagador. Isso contraria uma evidência! O relatório da Inspecção-Geral de Finanças sobre as chamadas empresas públicas não financeiras, que foi agora distribuído, permite uma avaliação quantificada, não se prestando a grandes tergiversações, sobre a importância que o sector público teve para evitar - com enormíssimos custos económicos e financeiros, que lhe foram, de resto, imputados bastante cruelmente, ainda aqui mais uma vez - que a crise económica, financeira e social do País tivesse sido ainda mais profunda. E, por outro lado, é inteiramente falso que esse peso seja tão asfixiante que impeça a própria formação e florescimento de empresas capitalistas, incluindo de grupos económicos não monopolistas. Olhar a realidade portuguesa é constatar esta evidência e também o exagero ou o carácter ideológico arreigado dessa fúria privatizadora que é, pelos vistos, uma moda que incomoda particularmente o PSD, que o atormenta, embora alguns dos seus membros possam dizer o que o Sr. Deputado Rui Machete aqui disse.

Em segundo lugar, foi aqui ecoado pela bancada do PSD o famoso argumento de que as privatizações são uma espécie de acto de racionalidade económica, alguma coisa que visaria desonerar o Estado, desonerar os contribuintes do peso de uma série de encargos com empresas "horríveis" e deficitárias, "que só trazem chagas ao País", "que só atrasam o nosso desenvolvimento"...

O Sr. Presidente: - Não foi uma noite de Verão, foi uma noite de Primavera, foi em 11 de Março.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Mas nada mais contraditório com isso do que o facto de o Governo não divulgar nem o programa nem o calendário das privatizações e, pelo contrário, oscilar com o pêndulo para

um lado e o pêndulo para o outro em relação à natureza desse programa: se começar pelas empresas deficitárias, se começar pelas empresas nutridas, se entregar as empresas situadas neste sector no qual se diz que o Estado não deve ter presença, se entregar as empresas em sectores em que se diz (ou em que se dizia) que o Estado devia ter uma presença porque esse sector é estratégico, por definição - estou a aludir, como o Sr. Deputado Rui Machete bem está a perceber, à proposta apresentada pelo Governo sobre a delimitação de sectores, em que se permite a penetração do capital privado em toda a espécie de sectores, em toda a espécie de empresas, mesmo em empresas que estão situadas em sectores considerados vedados (nas mais estrambólicas modalidades: em penetração directa, em concessão de exploração, em associações e, portanto, em fórmulas híbridas, etc..)..

Tudo isto a acrescer àquilo que foi incluído em redacção, algures, pelos membros da Comissão de Economia, Finanças e Plano na "lei dos 49%", prevendo a supressão de uma cláusula da proposta originária que previa que a mesma não se aplicasse às empresas situadas em sectores vedados, o que quer que isso tenha significado, e é misterioso.

O PSD falou aqui à luz, no fundo, da consigna do "menos Estado, melhor Estado" e outras consignas com as quais o PSD orna a sua companha contra o sector empresarial do Estado.

Considero que é realmente espantoso e é uma aplicação não inovadora, tabeliónica, mas particularmente chocante, da famosa e já evocada regra do "mal e da caramunha" vir o PSD louvar-se da sua acção de demolição ao longo deste anos, para sustentar que o sector empresarial do Estado é "péssimo", é "horrível", é "ruinoso" e tem mais uma série de maleitas que o Sr. Deputado Rui Machete aqui identificou.

Curiosamente, também ecoa uma suposta "maldição" do sector empresarial do Estado em algumas observações aqui feitas pelo Sr. Deputado Almeida Santos, designadamente ao aludir às "péssimas nacionalizações", à "péssima maneira de fazer nacionalizações". "Não é assim que se fazem nacionalizações", "não era assim que se deveriam fazer" - disse o Sr. Deputado...

O Sr. Almeida Santos (PS): - Era assim, Sr. Deputado.

O Sr. José Magalhães (PCP): - O Sr. Deputado Almeida Santos, também era assim que se devia ter feito o derrube do fascismo? Era assim exactamente, milímetro a milímetro? Era de outra forma, Sr. Deputado Almeida Santos?

Vozes.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Costa Andrade, fico verdadeiramente rejubilante por V. Exa. achar e corroborar nesses termos o 25 de Abril tal qual foi realizado. E de não ver nele nenhuma "anarqueirada", nenhuma penetração da "soldadesca ignara", etc.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Não, nada disso! O 25 de Abril foi óptimo. O 11 de Março é que foi péssimo.

Página 824

824 II SÉRIE - NÚMERO 28-RC

O Sr. José Magalhães (PCP): - Aí entramos na questão central. O 11 de Março só foi tão mau como a mais recente decisão do Tribunal Constitucional, a tal que, no dizer do Prof. Cavaco Silva, "enche uma página negra só comparável ao 11 de Março", uma espécie de 11 de Março a frio - no que creio haver uma avaliação, além de pesporrente, totalmente inadequada das coisas. Tanto do 11 de Março como do 26 de Maio - 26 é a data dos acórdãos de perdição, os tais.

Não creio que se possa falar assim do processo histórico, português! Não creio que se pudesse ter a aspiração a uma transformação económica, política e social feita no laboratório, absolutamente caracterizada pela sua assepsia e pela sua indolor punção em penetração no tecido social e político. As coisas resultaram no que resultaram. Sabe-se como se comportaram certos grupos económicos. Sabemos todos também qual era o papel do capital financeiro antes do 25 de Abril, como é que estavam estruturados os grupos económicos, quais eram as suas aspirações, quais eram as suas acções e como é que se projectavam do ponto de vista político. Sabemos que não foi possível que eles saíssem das posições que ocupavam a não ser por um acto de força, um acto de violência, acto esse que foi praticado em 25 de Abril e bem praticado.

Quanto à maneira como se deu resposta à reacção ulterior desses grupos económicos, no calor do processo político, eis o que é do domínio da história. A questão é: em que ponto é que estamos? Quanto a nós, estamos num ponto em que alguns querem uma viragem traduzida na destruição do sector empresarial do Estado. E dizem que isso é virtuoso, nos arrancará da periferia, nos trará mais desenvolvimento e nos dará trezentas virtudes que ninguém vê.

Qual é, para isso, a táctica do PSD? Eis o que nos conduz ao quarto ponto. A táctica do PSD tem sido a demolição! O PSD - e aí o Prof. Freitas, ausente deste debate, tem insistido em que o PSD seguiu uma táctica que envolve uma consideração errada do que seja o quadro constitucional e do que seja a legiferação - insistiu em que não era preciso rever a Constituição. O PSD insiste em que a revisão da Constituição deve ser um "resto". Deve-se alterar na Constituição tudo e apenas aquilo que seja necessário, depois de se ter alterado o mais possível por via da lei ordinária. É a famosa concepção da "revisão constitucional como sobras", a "revisão constitucional como restos", a "revisão constitucional como cláusula de salvaguarda daquilo que não tenha sido alcançado através do bulldozer ou da legiferação ordinária". A máxima do PSD nesta matéria é: "Tudo o que consigas por maioria ordinária não pagues por maioria qualificada." E é sob o estro desta regra fundamental que o PSD e, em particular, o Sr. Primeiro-Ministro se movem na consideração de toda esta questão. Daí que tenham ficado sem resposta os apelos desamparados do Partido Socialista em Setembro, dizendo: "Façamos a revisão e uma lei quadro das privatizações simultaneamente." Daí o fracasso dos apelos do PS em Outubro: "Façamos a lei das privatizações, mas só depois de a lei constitucional estar revista." Daí o falhanço dos apelos do PS na própria elaboração da famosa "lei dos 49%", ou seja, "façamos a lei noutros termos". Daí que os apelos do PS há vinte minutos ("façamos a lei, mas simultaneamente façamos uma revisão constitucional que não faça a demolição integral do artigo 83.°, sem lhe substituir um mínimo de conteúdo normativo") fiquem absolutamente sem resposta.

O PSD, nesta matéria, joga de acordo com outra bitola, com outro critério e com outra estrela polar. Claramente, a sua estrela polar é passar - e aqui entro no quinto ponto - da garantia constitucional das nacionalizações para a garantia constitucional dos monopólios. E não aceita outra coisa.

O que me conduz, rapidissimamente, ao sexto e último ponto, qual seja o de saber se a paz é possível...

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Não é o da sida...

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado, não sei por que é que a questão o apaixonou tanto, mas sida aqui significa "só importa destruir, alienar". É a súmula da posição do PSD! Sida é a posição do PSD sobre o sector público! Adiante!

Vozes.

O Sr. José Magalhães (PCP): - É que eu creio, Srs. Deputados, que a questão que está colocada é praticamente inextricável. O PSD coloca-se numa postura de tão irredutível exigência da nulificação da Constituição nesta matéria que os pontos de contacto com a posição enunciada pelo PS, que já é em si mesma de cedência, são praticamente nulos. O Sr. Deputado Almeida Santos, por um esforço retórico, que de resto lhe fica extremamente bem, fez aqui a chamada "metáfora do cambai ao interlocutor", ou seja, colocou-se perante o PSD como alguém que dissesse ao canibal: "Se eu fosse mau, deixava-te empanturrar." E o PS diz ao PSD: "Se nós fôssemos maus, aceitávamos a demolição do artigo 83.°, deixávamos o PSD empanturrar-se de privatizações e depois diríamos à opinião pública: 'Vêem? Vêem por onde eles foram? São péssimos!'" E a opinião pública puniria o PSD de forma farta e gorda e o PSD purgaria amargamente os seus desvarios.

Mas sucede, Sr. Presidente, Srs. Deputados, que o plano do PSD é outro. É um plano de poder total. O PSD não se basta com as alterações ao artigo 83.° O PSD quer também alterações em outras esferas, quer alterações em relação aos já tão citados artigos 2.°, 9.°, 80.°, 81.°, 82.°, 83.° - evidentemente - e todos os demais, quer também alterações de carácter fundamental em relação a questões estruturais como é a lei eleitoral, quer também desequilibrar a correlação, a balança de poderes na organização do poder político, a seu favor, naturalmente, e não seguramente a seu desfavor. Tudo isto quer o PSD e não apenas aquilo que agora estamos a discutir. E comporta-se na prática como querendo ainda mais do que aquilo que em palavras preconiza, o que é um factor agravante, como toda a acção governativa do PSD clarividentemente demonstra. O que quer dizer que o problema político que aqui está colocado é um problema da máxima importância, mas também da mais difícil saída, dadas as posições recíprocas do PS e as posições recíprocas do PSD.

A novidade fundamental da posição do Sr. Deputado Rui Machete é que ele aditou alguma coisa que o Sr. Ministro Fernando Nogueira até agora se tinha

Página 825

21 DE JULHO DE 1988 825

abstido de colocar, pelo menos em público, evidentemente, uma vez que dos aspectos íntimos sou ignorante. O Sr. Deputado Rui Machete disse: paraconstitucionais, nem pensem; princípios consagrados na Constituição, talvez, magros, sequinhos...

O Sr. Presidente: - Ou gordos...

O Sr. José Magalhães (PCP): - Ou gordos, mas balofos, de preferência, sem grande conteúdo normativo, porque todos nós sabemos que a questão não está no peso mas na densidade.

Admitiu, inclusivamente - e sobre este terceiro aspecto, gostaria que pudesse concretizar -, um outro regime, de contrapeso ou de controle especial ou reforçado, da legislação ordinária a emitir e a aprovar por maioria não especialmente qualificada. Esse regime cifra-se na possibilidade da existência de uma espécie de controle preventivo da fiscalização de constitucionalidade dessa lei quadro, desencadeável por deputados, o que, se bem percebi, alargaria a dimensão do actual sistema de controle preventivo, quebrando o actual monopólio presidencial e alargando a deputados a possibilidade de intervenção junto do Tribunal Constitucional. Creio que percebi isto. Não tinha ouvido tal de mais nenhuma boca: esta foi a primeira. Não sei qual é o valor dessa proposta política, mas presumo que é todo o valor, que tem toda a autoridade, toda a firmeza, e que, portanto, é algo a considerar. Curiosamente, o Sr. Deputado Almeida Santos não se referiu a isto. Curiosamente, também, tudo o mais é velho e só isto é novo.

O Sr. Almeida Santos (PS): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Almeida Santos, não lhe estou a extrair os segredos das cimeiras "a saca-rolhas", por forma ínvia.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Não saque das cimeiras aquilo que não pode sacar. Não fantasie... Não assistiu a elas... Não tire nada das cimeiras. Há outros lugares em que se podem ouvir referências a isso. Até nos corredores...

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Almeida Santos, é melhor não aprofundar esse aspecto. Em todo o caso, quanto a este ponto, é publicamente novo...

O Sr. Almeida Santos (PS): - Sr. Deputado, já lhe tinha pedido para não referir o que se passa nas cimeiras porque, como não assiste a elas, não sabe.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado, se isso o incomoda tanto, terei em boa conta...

O Sr. Almeida Santos (PS): - À primeira vez tem graça. À quinta vez, pedimos para acabar, porque é de mais. Já falou nas cimeiras umas cinco ou seis vezes. Da primeira vez, achámos graça; à segunda ou terceira, ainda alguma. Agora deixámos de achar.

O Sr. José Magalhães (PCP): - A primeira vez não era sequer para ter graça alguma! Portanto, só por equívoco pode ter sido tomada como tal. No caso concreto, exprime apenas uma preocupação que V. Exa. compreenderá relativamente a questões que já estão dilucidadas na acta e que são naturalmente questões de posicionamento de cada um dos partidos. O Sr. Deputado exprimiu a posição do seu partido e eu exprimi a posição do meu. Creio que isso está clarificado. Neste caso, todas as interrogações são positivas e clarificadoras, em virtude, naturalmente, do que está em debate e do que está em jogo. Era nesse sentido que eu gostaria de continuar esta exposição.

É que, para situar a distância entre 1982 e 1988, basta ler as declarações de voto - o Sr. Deputado Rui Machete transmitiu-nos hoje um pouco este vírus das citações. E a declaração do PS em 1982 sobre este artigo foi esta:

O PS votou contra a proposta da AD, mantendo intocável o princípio da irreversibilidade das nacionalizações por uma questão de princípio e porque entende que a irreversibilidade das nacionalizações efectuadas depois de 25 de Abril de 1974 se deve manter. No entanto, se essa razão de princípio não existisse e se esse entendimento não fosse total, o nosso voto ficaria inteiramente justificado depois de ouvirmos as declarações da AD. De facto, para além da defesa de um princípio, está também em causa a defesa do sector público. Ora as intenções, no que diz respeito à destruição do sector público da economia, ficaram bem vincadas nas palavras dos Srs. Deputados ["tal" e "tal"]. Por isso votámos a favor da manutenção do actual princípio da irreversibilidade contra a proposta da AD, convictos de que estamos a defender o sector público da economia e a defender critérios sociais para a gestão de uma larga faixa de empresas da nossa actividade económica. [Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.° 130, de 30 de Julho de 1982, p. 5479.]

Creio que o grande problema da nossa circunstância política é que o PSD, se tinha estas intenções em 1982, tem hoje intenções num contexto ainda mais perigoso, tem planos e projectos que são conhecidos, pretendendo realizá-los a todo o custo e por todos os meios. E a questão está em saber como é que se dá resposta a isso, que é um desafio grave colocado na nossa circunstância histórica.

Por outro lado, para medir a distância em relação às coisas concretas e quebrar um pouco certa forma de debater esta questão, gostaria de relembrar um outro aspecto histórico. É verdadeiramente espantoso que o PSD desencadeie o alarido que desencadeia em relação à hipótese de desnacionalizações por dois terços ou em relação à hipótese de um regime reforçado das decisões do Parlamento ou em relação à limitação dos poderes do Governo nesta matéria. Que o PSD tem pouca memória, era sabido; mas que leve a desmemoria, designadamente pela boca do negociador principal que nesta matéria tem tomado posições, ao ponto de considerar que é uma "aberração antidemocrática" e uma limitação quase verdadeiramente hotentote do funcionamento normal e da separação de poderes num Estado democrático o facto

Página 826

826 II SÉRIE - NÚMERO 28-RC

de se propor a existência de leis de valor reforçado, de leis paraconstitucionais, de leis orgânicas ou outras quaisquer que limitem a margem de conformação legislativa de uma maioria conjuntural é demais! E eu gostaria de lembrar, não apenas em palavras mas com a precisa evocação do passado, que foi a AD que apresentou a proposta que imputa agora ao PS (porque o PS está bastante mais recuado do que isso). Foi a AD quem, em 1982, propôs as desnacionalizações qualificadas por dois terços. A proposta da AD, perdida nos arquivos da Assembleia da República, mas constantes do Diário da Assembleia da República, 2.a legislatura, 1.ª série, n.° 111, de 1 de Julho de 1982, p. 4558, dizia a certa altura:

Todas as nacionalizações directas efectuadas depois do 25 de Abril de 1974 até à data da publicação do Diário da República da primeira revisão constitucional [reparem: "da primeira revisão constitucional"] são irreversíveis excepto quando a desnacionalização for feita por lei aprovada por maioria de dois terços

ria absoluta dos deputados em efectividade de funções.

Não sei se isto terá sido um daqueles desvarios do Prof. Freitas do Amaral, com o mesmo espírito que o levou há dias a considerar que a revisão constitucional seria feita "em três horas", caso fosse ele a fazê-la com o PS. Mas a verdade é que esta proposta foi feita, o que mede a diferença das posições do PSD, dentro do tal processo de desmemoriamento em curso, e também os seus objectivos, uma vez que o PSD aparentemente não se resigna com menos do que isso, isto é, quer tudo!

É face a esse perigo que, creio eu, o receio apontado pelo Sr. Deputado Costa Andrade é nulo. Ou seja, é um argumento pelo menos pouco frontal dizer-se que o que move o PSD, ao rejeitar certas propostas, todas as propostas do PS nesta matéria, é o desejo de que o PS e o PSD não se constituam em "irmãos siameses", responsabilizados por tudo, com o que se perderia a transparência e se entraria de novo numa espécie de prolongamento do "pântano do bloco central", que parece traumatizá-lo tanto. Não se trata verdadeiramente do receio de solidariedades fatais, mas sim da vontade de conseguir tudo, por 25 tostões, da vontade de conseguir que o PS aceite uma solução em que a garantia constitucional das nacionalizações seria verdadeiramente estilhaçada e reduzida a coisa nenhuma.

Aquilo que o PSD, em matéria de propostas de alternativa ao artigo 83.°, quer não é aquilo que o PS propõe: é, sim, um muito menos do que o PS propõe, é uma nulificação da garantia constitucional. O PSD não se contenta com menos do que isso! O que coloca um gravíssimo problema. E é para dar resposta a esse problema que nós nos posicionamos nesta revisão constitucional.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Referi-me às matérias que o Sr. Deputado invocou como um argumento possível. Não disse que esse era o meu medo ou que esse era o perigo. O Sr. Deputado tem uma certa tendência para a psicanálise, mas não deve fazê-la fora dos elementos disponíveis. Foi um argumento que pode valer muito ou pouco, mas que não era o meu medo, ou o meu "monstro".

O Sr. José Magalhães (PCP): - Já agora qual era,, Sr. Deputado? Fico intrigado.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Isso queria o Sr. Deputado saber! Os meus medos ficam comigo.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, eis a conclusão mais rigorosa que eu poderia dar a qualquer intervenção: há medos ocultos no PSD e esse medos conduzem-no a querer demolir pura e simplesmente o artigo 83.° e a rejeitar qualquer proposta do tipo daquela que o PS adianta. Nesse sentido, consideramos redobradamente justificada a cautela subjacente à nossa posição neste processo de revisão constitucional.

O Sr. Presidente: - O PCP está heterodoxamente freudiano.

Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Não posso deixar de confessar que a intervenção do Sr. Deputado José Magalhães me surpreendeu. Onde eu estava à espera de um libelo acusatório que só teria paralelo nos célebres discursos do Vychinsky nos processos de Moscovo, acabou por nos sair um questionário tipo Reader's Digest. O questionário é interessante, merece ponderação e como o Sr. Deputado José Magalhães colocou sete questões e não seis, as respostas são, respectivamente, as seguintes: à pergunta n.° 1, a resposta é não; à pergunta n.° 2, é não; à pergunta n.° 3, é talvez; à pergunta n.° 4, é depende; à pergunta n.° 5, é sim, muito bem; à pergunta n.° 6, é não forçosamente, e à pergunta n.° 7, é credo!

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado António Vitorino, pode haver não leitores do Reader's Digest que não percebam absolutamente nada do que V. Exa. está a dizer, porque não têm o questionário...

O Sr. António Vitorino (PS): - Tenho a pretensão de esclarecer a seguir. Primeira questão: o caminho para o mercado único passa pela Califórnia? Resposta: não. E a resposta é não pela simples razão de que estamos exactamente a debater, de forma aberta, o que é a reformulação da estrutura económica nacional face ao desafio do mercado único europeu e em virtude dos ditames decorrentes da adesão de Portugal às Comunidades, verificada em 1 de Janeiro de 1986, isto é, posterior à revisão constitucional de 1982. E à questão que o Sr. Deputado José Magalhães colocava há pouco: "O que é que se passou entre 1982 e 1988?", a resposta é que se passou exactamente isso mesmo, passou-se a adesão de Portugal à CEE. Admito que o Sr. Deputado José Magalhães considere que a lógica de privatizar empresas nacionalizadas em face do desafio europeu é uma lógica desvitalizada ou desvitalizadora. Admito que tenha essa concepção. Porém, naturalmente não é essa a concepção do PS. A nossa concep-

Página 827

21 DE JULHO DE 1988 827

ção é exactamente a contrária e é por isso que tomámos a iniciativa de propor a abolição do princípio da irreversibilidade das nacionalizações.

Quanto à segunda questão, isto é, o sector público tem sida? Não, embora eu seja um leigo em matéria de sida. O vírus HIV, tanto quanto sei não se dá bem em estruturas institucionais; penso que só se desenvolve no corpo humano. Mas é obvio que o PS sempre tem dito que o papel do sector público na nossa economia depende da lógica da sua própria reestruturação. E essa é a primeira grande diferença que se pode assinalar entre as posições do PS e as posições do PSD. É que a proposta que o PS faz em matéria de abolição do princípio da irreversibilidade das nacionalizações propugna a própria restruturação do sector público empresarial do Estado. E o PS, através de sucessivos documentos públicos e de declarações do seu secretário-geral, tem explicitado qual o sentido dessa reestruturação do sector público empresarial. Consequentemente, não se trata de uma lógica liquidacionista, mas sim de uma lógica de reestruturação do próprio sector empresarial do Estado.

Por sua vez, a terceira questão era "a fúria privatizadora do PSD é uma moda?". Talvez. Aliás, o problema não é nosso. Aparentemente é uma nuvem passageira, porque, a não ser uma nuvem passageira, o Governo não teria dado provas de tanta incoerência em matéria de privatizações, incoerência que está bem plasmada não só na lógica política que presidiu à anteposição à revisão constitucional das privatizações a 49% mas também na ausência de condições de confiança aos investidores para tornarem, até apenas ao limiar de 49%, essa política de privatizações como uma política de sucesso. A incoerência do Governo e as debilidades estruturais da sua política privatizadora dão, de facto, a aparência de que se trata de uma moda e não de uma posição séria.

Quanto à quarta questão: "até onde é que vai a demolição?". Depende. Vai exactamente até onde permitir e consentir, na nossa lógica, essa mesma lei quadro das privatizações. E são os limites dessa reprivatização que nós defendemos que devem constar de uma lei quadro. Esses limites têm a ver com o interesse nacional e não com bandeiras de luta, querelas ideológicas ou interesses de grupos, de sectores ávidos de se apropriarem de empresas rentáveis, deixando para o Estado a posta restante, isto é, as empresas não rentáveis, as empresas que dão prejuízo, as empresas que, naturalmente, não são atractivas para quem se mova única e exclusivamente segundo a lógica do lucro.

Quinta questão: "O PS sabe o que quer?". Sim, sabe muito bem. Não é necessário acrescentar mais nada.

À sexta questão, "A privatização é a recomposição dos monopólios?", a resposta é não forçosamente, porquanto o que está aqui em causa é compreender que certas regras de concorrência económica decorrem da participação de pleno direito de Portugal nas Comunidades Europeias. São regras que podem e devem ser asseguradas no Estado Português, no tecido económico interno e, dentro dessas regras, justifica-se proceder à privatização de empresas públicas e nacionalizadas após o 25 de Abril de 1974. É por isso que, na nossa óptica, o processo de privatizações deve estar sujeito a uma lei quadro que defina exactamente as condições de concorrência decorrentes do processo de privatizações. Ou seja, um processo de privatizações tendente a reconstituir grupos monopolistas constituiria a negação da própria lógica e filosofia política e económica da integração de Portugal nas Comunidades Europeias.

Toda e qualquer lógica de favorecimento de situações de monopólio no rescaldo de um processo de privatizações é, em princípio, contrária às normas comunitárias, é inclusivamente susceptível de ser sancionada pelas instâncias comunitárias, designadamente pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias. Quanto à questão "a paz alcança-se por via canibal?", a resposta aí é, de facto: "credo!" O que está aqui em causa é, essencialmente, a reformulação das bases do funcionamento do sistema económico e, naturalmente, o canibalismo não é o desfecho inevitável de um processo de privatizações. Tanto não é um desfecho inevitável que pensamos que este debate, que está aqui a ser travado, deve ser levado mais longe, para que se especifique com clareza quais são, na opinião de cada uma das forças políticas, as grandes balizas desse processo das privatizações. Estou certo que o PCP, sendo contrário ao processo das privatizações, não deixará também de ter as suas concepções próprias - mau grado a oposição de princípio - sobre os limites em concreto que um processo de privatizações deve revestir em Portugal.

Uma última observação: o Sr. Deputado Costa Andrade colocou o problema da subjectivação do interesse público dizendo: então não será de deixar à maioria circunstancial a definição do que é o interesse geral, do que é o interesse público que deve presidir a definição do processo das privatizações? É evidente! A nossa proposta não é uma forma de defraudar o processo normal em democracia, de subjectivar o interesse público - é uma proposta que só entendemos dentro dos limites dos princípios da separação de poderes e do respeito pela competência executiva. Mas, como o Sr. Deputado Costa Andrade sabe melhor do que eu, o processo de privatizações é um processo que pressupõe uma fase prévia de natureza legislativa - se quiser, de natureza político-legislativa - onde se entrecruzam o exercício da função legislativa, que é função co-natural do Parlamento, e o exercício da função de direcção política do Estado, que é uma função, em certa medida, difusa, dado que é partilhada, em diversos níveis e a diversas instâncias, por vários órgãos de soberania; mas essa função de direcção política do Estado é, também, uma função do Parlamento. Creio - para mim, pelo menos, é relativamente evidente - distinguir, dentro de um processo de privatizações, por exemplo, aquilo que é o plano político-legislativo, de definição de opções no plano legislativo e da direcção política do Estado, e aquilo que é o plano meramente executivo ou de exercício de competências características do Governo.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Quero só prestar o seguinte esclarecimento: quando falei na subjectivação da interpretação e da realização do interesse colectivo, não estava, naturalmente, a pôr o problema da especificação entre executivo e não executivo. Estava apenas a colocar o problema da legitimidade do poder político do momento, entendendo nesse conjunto o Executivo e o Parlamento. Não coloquei o problema da delimitação de competências entre Executivo e Parlamento. O problema era: "Parlamento sim, mas que Parlamento?"

Página 828

828 II SÉRIE - NÚMERO 28-RC

O Sr. António Vitorino (PS): - A minha opinião sobre isso é a seguinte: é que a Constituição Portuguesa tem, em veios fundamentais da sua existência, uma matriz consensual. As regras base que vão presidir à reformulação do sistema económico português, à luz de um objectivo que é amplamente consensual na sociedade portuguesa - que é o objectivo da integração europeia - devem ser, elas também, regras partilhadas por uma ampla maioria de representantes do povo português. Colocando a questão noutros termos: não está aqui em causa esbater, aniquilar as diferenças programáticas entre os vários partidos políticos, em matéria económica - na sociedade moderna, no Estado moderno, a alternância democrática do poder resulta menos de diferentes entendimentos acerca do exercício da democracia, mas resulta mais e essencialmente da alternância de concepções económicas e de modelos de solidariedade social. Mas para que essa alternância possa ser real é necessário que haja um arquétipo global sobre o funcionamento do sistema económico, que seja, ele próprio, consensual - se há uma ampla maioria de partidos na Assembleia da República que foram capazes de se pôr de acordo sobre uma lógica e sobre os pressupostos da integração plena de Portugal nas Comunidades Europeias, não vemos por que é que essa mesma maioria não possa chegar a acordo sobre as regras base da reformulação do sistema económico, que são, elas próprias, como objectivo final, adoptadas tendo em vista concretizar a integração de Portugal nas Comunidades Europeias. Não vemos que haja incompatibilidade nisso, nem vemos que haja ilegitimação do facto de se postular uma maioria alargada para esse desiderato - porque foi essa a maioria que presidiu aos passos fundamentais da integração de Portugal nas Comunidades Europeias que, no fundo, é a matriz de base da situação com que nós, neste momento, estamos confrontados e que explica a própria posição do PS, no sentido de defender a abertura da via da privatização a empresas públicas e nacionalizadas após 25 de Abril de 1974.

É dentro deste contexto que se deve entender a expressão que, há pouco, provocou alguns risos, quanto à solidariedade com o PSD, numa hipotética gesta privatizadora. Não foi uma declaração de franciscanismo constitucional, foi sim uma declaração coerente - que pode ser criticável, mas coerente, pensamos nós - com os pressupostos da matriz consensual do sistema político-constitucional que sempre defendemos e continuaremos a defender.

Uma última observação: o Sr. Deputado José Magalhães provavelmente terá sido surpreendido pelo teor, pelo tem deste debate, e, numa atitude que, em futebol, poderia considerar-se como "jogada de antecipação", tentou antecipar um tem de conclusões deste debate - dizendo que era uma conclusão da mais difícil saída. Penso que era, apesar de tudo, uma conclusão trazida de casa - estava suposta ser essa a conclusão a extrair deste debate. Provavelmente, este debate gerou uma situação que, para o PCP, é da mais difícil saída - por nós, achamos que as opiniões expendidas são interessantes, tomámos boa nota das posições do PCP e do PSD e vamos ponderá-las à luz dos critérios que sempre temos invocado como orientadores do nosso posicionamento nesta matéria da revisão constitucional. Nem dramatizámos, nem desdramatizámos - registámos, apenas.

O Sr. Presidente: - Tenho aqui alguns pedidos em relação aos quais necessitava, para saber a ordem pela qual devo atribuir a palavra, de saber se a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves pretende formular uma pergunta ou fazer uma intervenção.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Sr. Presidente, é difícil classificar se é pergunta ou intervenção - como pergunta é extensa, como intervenção é curta. De certo modo, dirige-se ao Sr. Deputado António Vitorino, mas tende a abranger intervenções anteriores, como sejam as dos Srs. Deputados Almeida Santos e José Magalhães. Seja como for, se V. Exa. me der a palavra, prometerei ser bastante rápida, mas não tenho nenhuma preferência em ser a primeira a tomar a palavra.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Assim poderemos continuar esta conversa amanhã, porque as perguntas que temos são muito imediatas para o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. Presidente: - São muito imediatas? E são curtas? Porque tenho aqui quatro inscrições, mas uma estava em condições similares à da Sra. Deputada Assunção Esteves.

Dou a palavra ao Sr. Deputado Octávio Teixeira, para formular uma pergunta - no Sr. Deputado Octávio Teixeira tenho confiança de que faz pergunta mesmo!

Risos.

Tem a palavra, Sr. Deputado.

O Sr. Octávio Teixeira (PCP): - De facto, gostaria de colocar duas ou três questões ao Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. Presidente: - Mau, mau, mau! Risos.

O Sr. Octávio Teixeira (PCP): - Sr. Presidente, escusa de se assustar, porque V. Exa. sabe que as minhas questões são sempre muito curtas, muito sintéticas.

O Sr. António Vitorino (PS): - Vale por um décimo de questão do Sr. Deputado José Magalhães.

Risos.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não diga isso, que já vai ouvi-la.

O Sr. Octávio Teixeira (PCP): - O Sr. Deputado António Vitorino argumentou substancialmente com a questão da necessidade de reformulação da economia portuguesa, decorrente da adesão à CEE e, fundamentalmente, com vista à criação do mercado único. Julgo que - aliás, o Sr. Deputado António Vitorino já o referiu esta tarde, tal como o Sr. Deputado Almeida Santos - o problema aí não se põe em termos jurídico-constitucionais: a adesão à CEE, o mercado único, etc., não põem problemas à existência de empresas nacionalizadas, nem põem problemas à existência do sector empresarial do Estado. Por conseguinte, passo por cima disso.

Página 829

21 DE JULHO DE 1988 829

Haverá outro tipo de questões, e é esse tipo de questões que não consegui nem consigo perceber. Porque, se o problema é o da inserção num tipo de economia de mercado - chamemos-lhe assim (não gosto muito dessa expressão, porque não é muito correcta, do meu ponto de vista) -, o que é que impede a inserção da economia portuguesa com uma organização económica mista? Não estou a ver a ligação da questão referida - reformulação da economia, devido ao mercado único - com este problema das desnacionalizações. Parece-me que, ao fim e ao cabo, o que se pretende não é permitir a livre iniciativa privada, mas impedir a iniciativa pública na economia em termos de implantação empresarial do sector público na economia - e gostaria que me dissesse o porquê.

Se o problema fosse apenas - coloco outra questão - o do chamado modelo de abertura da iniciativa privada, sem quaisquer limitações - nem falo das limitações gerais que já ninguém discute sequer -, por que é que o PS, em vez de avançar na perspectiva das desnacionalizações, não avançou apenas na perspectiva da abertura dos sectores? Por que é que há-de retirar dos sectores as empresas públicas que já lá estão neste momento? Se o problema não é um problema jurídico-constitucional, mas apenas um problema de filosofia de economia de mercado, o que me parece - foi a primeira questão que coloquei - é que não há qualquer incompatibilidade entre uma economia de mercado e uma organização económica mista, como a que temos. Sendo assim, e se é esse o problema, por que é que o PS não coloca tão-só a questão da alteração da lei de delimitação?

É evidente que haverá sempre os casos caricatos, como há pouco foi referido pelo Sr. Deputado Almeida Santos, o caso caricato da barbearia, mas - não vou pôr a pergunta a V. Exa. porque deveria tê-la colocado, logicamente se a considerasse demasiado importante, ao Sr. Deputado Almeida Santos - o que é que impede, no actual texto constitucional, que a barbearia seja privatizada? Não há nada que o impeça. É pequena e média empresa, não está nos sectores básicos da economia, etc.. Porquê? Faço justiça ao Sr. Deputado António Vitorino de não ter utilizado também este tipo de argumentos.

O Sr. António Vitorino (PS): - A minha barbearia é privada.

O Sr. Octávio Teixeira (PCP): - A terceira questão, Sr. Deputado António Vitorino, é esta: o próprio argumento utilizado por V. Exa. da criação do mercado único não fará reflectir V. Exa. em que, precisamente por isso, é acrescidamente necessário garantir um forte grupo económico em Portugal - pelo menos um, mas forte a nível da CEE - e que só há possibilidade de se ter esse forte grupo económico em Portugal com o sector empresarial do Estado? Se partir o sector empresarial do Estado, não consegue criar um grupo económico, a nível comunitário, que possa aguentar o embate da criação do mercado único e manter uma prevalência em Portugal de empresas portuguesas.

A quarta e última questão é sobre a reestruturação do sector empresarial do Estado, Sr. Deputado António Vitorino.

Se bem tenho acompanhado o problema da reestruturação do sector empresarial do Estado, na forma como ao longo dos anos tem vindo a ser posto pelo PS, julgo que o problema se coloca fundamentalmente nesta perspectiva: deverá haver uma unidade orgânica, sector empresarial do Estado, ou várias unidades orgânicas? Isto é, apenas um grupo ou vários grupos com determinadas ligações, cujos critérios poderão ser diversos? Tenho seguido essa posição do PS e, também aqui, não vejo que haja necessidade de avançar para a hipótese de desnacionalizações, nessa perspectiva de reestruturação. Porquê, então, a proposta do PS de permitir desnacionalizações?

Eram estas as quatro questões que gostaria de lhe colocar.

O Sr. Presidente: - Não sei se o Sr. Deputado José Magalhães também queria fazer uma pergunta, e assim talvez economizássemos em termos de resposta. Já as intervenções da Sra. Deputada Assunção Esteves e a minha ficariam para amanhã, visto que hoje será difícil. Mas talvez possamos, até para não quebrar o ritmo, aceitar que o Sr. Deputado José Magalhães formulasse a sua pergunta, que vai ser, certamente, curta.

O Sr. António Vitorino (PS): - Poderia talvez responder amanhã, não porque as perguntas sejam difíceis, mas porque tenho um jantar.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Proponho-me fazer a pergunta amanhã, e o Sr. Deputado António Vitorino responderia amanhã, porque também temos um afazer, e a noite pode propiciar um estudo e uma avaliação - V. Exa. falou na necessidade de não dramatizar e de o PCP ter uma difícil saída: ainda não percebi por que é que a saída é difícil, porque me parece que ela é difícil mas para o PS e para a democracia, e essa é a questão que nos preocupa.

O Sr. Presidente: - A saída é difícil, mas é nossa!

O Sr. António Vitorino (PS): - Não lhe conhecia essa arte de identificar o PS com a democracia, assim tão rapidamente.

Risos.

O Sr. José Magalhães (PCP): - - Eu não fiz bem isso, mas enfim...

Vozes.

O Sr. Presidente: - Amanhã, de acordo com o horário habitual, vamos reunir-nos às 10 horas da manhã. Faria votos para que nem o quarto de hora académico tivéssemos - podem ser votos pios, podem ser votos mais laicos, depende.

Recomeçaremos amanhã com a pergunta do Sr. Deputado José Magalhães, se V. Exa. estiver apto a "dispará-la" na altura, e depois com as respostas do Sr. Deputado António Vitorino. Se não, marchamos para o artigo 84.° em grande velocidade.

Srs. Deputados, está encerrada a reunião.

Eram 20 horas.

Página 830

830 II SÉRIE - NÚMERO 28-RC

Comissão Eventual para a Revisão Constitucional

Reunião do dia 8 de Junho de 1988

Relação das presenças dos Srs. Deputados

Rui Manuel P. Chancerelle de Machete (PSD).
Carlos Manuel Oliveira da Silva (PSD).
José Luís Bonifácio Ramos (PSD).
Licínio Moreira da Silva (PSD).
Luís Filipe Garrido Pais de Sousa (PSD).
Maria da Assunção Andrade Esteves (PSD).
Manuel da Costa Andrade (PSD).
Mário Jorge Belo Maciel (PSD).
Rui Alberto Limpo Salvada (PSD).
Rui Manuel Lobo Gomes da Silva (PSD).
António de Almeida Santos (PS).
Alberto de Sousa Martins (PS).
António Manuel Ferreira Vitorino (PS).
Jorge Lacão Costa (PS).
José Eduardo Vera Cruz Jardim (P$).
José Manuel Santos Magalhães (PCP).
Octávio Teixeira (PCP).

Descarregar páginas

Página Inicial Inválida
Página Final Inválida

×