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Sexta-feira, 2 de Setembro de 1988 II série - Número 34-RC

DIÁRIO da Assembleia da República

V LEGISLATURA 1.ª SESSÃO LEGISLATIVA (1987-1988)

II REVISÃO CONSTITUCIONAL

COMISSÃO EVENTUAL PARA A REVISÃO CONSTITUCIONAL

ACTA N.° 32

Reunião do dia 22 de Junho de 1988

SUMÁRIO

Deu-se continuação à discussão do 11.° Relatório da Subcomissão da CERC respeitante aos artigos 96. ° a 104. ° e respectivas propostas de alteração.

Durante o debate intervieram, a diverso titulo, para além do presidente, Rui Machete, pela ordem indicada, os Srs. Deputados Pacheco Pereira (PSD), António Vitorino (PS), José Magalhães (PCP), Almeida Santos (PS), Rogério de Brito (PCP), Carlos Encarnação (PSD). Costa Andrade (PSD), Sousa Lara (PSD) e Maria da Assunção Esteves (PSD).

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O Sr. Presidente (Rui Machete): - Srs. Deputados, temos quorum, pelo que declaro aberta a reunião.

Eram 16 horas e 15 minutos.

Srs. Deputados, vamos iniciar os nossos trabalhos com a discussão do artigo 101.°, sobre as formas de exploração de terra alheia.

O Sr. Deputado Pacheco Pereira pediu a palavra para discutir o artigo 101.°?

O Sr. Pacheco Pereira (PSD): - Não, Sr. Presidente, queria apenas dizer que tive ocasião de ler as actas respeitantes a uma intervenção do Sr. Deputado Vera Jardim, bem como do Sr. Deputado José Magalhães e outros, que foram feitas sobre um artigo que publiquei no jornal Semanário. Não estive presente nessa reunião, mas tive ocasião de pedir ao Sr. Presidente na altura em exercício - o Sr. Deputado Almeida Santos - as respectivas actas e, como tive também ocasião de as ler, gostaria de me pronunciar sobre essa matéria antes da entrada na ordem do dia, o que farei com toda a brevidade.

O Sr. Presidente: - Faça favor, Sr. Deputado.

O Sr. Pacheco Pereira (PSD): - Já afirmei que não queria tomar muito tempo à Comissão e afirmo também com antecedência que, depois dos comentários que farei ao conteúdo das intervenções respectivas, não irei responder a contraprotestos e permanecerei silencioso, no sentido de não contribuir para um protelamento sistemático da reunião. Provavelmente, se tivesse estado presente nessa reunião, ter-me-ia limitado a fazer um pequeno comentário e não seria obrigado a fazer uma intervenção própria. Apenas o faço agora por não ter estado presente - visto que me encontrava, na altura, fora do País, a convite de um parlamento estrangeiro -, pois não posso deixar de comentar as intervenções que foram feitas.

Assim sendo, em relação à intervenção que levantou a questão do Sr. Deputado Vera Jardim, confesso a minha surpresa. Publiquei um artigo que não dizia respeito à matéria específica que tratámos nesta Comissão, em que não utilizei qualquer material que tenha a ver com o trabalhos que aqui estamos a realizar e não me pronunciei sobre qualquer dado ou elemento de que tivesse tido conhecimento nos trabalhos desta Comissão. Consequentemente, não posso ser acusado de quebrar qualquer compromisso ético em relação ao tipo de trabalhos que aqui realizámos.

Note-se que não ponho em causa que se façam críticas no plano político ao que escrevi; só que não admito que se singularize um artigo como se ele fosse excepcional em relação à prática corrente dos membros desta Comissão, e chamo a atenção para o facto de, no fim-de-semana imediatamente anterior ao do meu artigo, vários deputados desta Comissão terem dado entrevistas sobre a matéria dos nossos trabalhos ao jornal O Diário. Alguns deputados desta Comissão escrevem artigos, tendo feito também intervenções públicas sobre matéria que diz respeito ao processo da revisão constitucional e alguns desses artigos referem, especificamente, comentários e juízos de valor sobre o processo político da revisão constitucional, no sentido lato. Não precisarei, senão, de lembrar, por exemplo, os artigos que o Sr. Deputado José Magalhães escreveu no jornal O Tempo e o que escreveu, posteriormente, no Primeiro de Janeiro, artigos esses que emitem juízos sobre o comportamento dos partidos no processo de revisão constitucional. Se necessário for, poderei ler citações ou transcrições desses mesmos artigos, mas o facto é que sempre pensei ser uma prática corrente fazê-los.

Assim, fiquei surpreendido com a iniciativa do PS, que me pareceu, de facto, corresponder a uma pressão política que não tinha a ver com o facto em si, mas apenas com as opiniões expendidas, e direi que, quando entenderem discutir as questões políticas, estou disposto a fazê-lo, mas que não aceito recriminações no plano ético sobre algo que é normal no processo político democrático e sobre o qual há abundantes precedentes. Não poderei ser minimamente acusado de interferir para além da opinião pública que cada qual tem sobre o que escreve ou sobre o que pensa no processo dos trabalhos desta Comissão e, consequentemente, nessa matéria, devolvo integralmente as acusações que me foram feitas.

Devo dizer, aliás, que se traía apenas de exprimir uma vontade, no sentido da realização da revisão constitucional. Essa vontade existe, penso que na maioria dos membros desta Comissão, e merece-me respeito, independentemente das divergências quanto àquilo que deva ser o resultado desse processo - isto no que diz respeito à intervenção do PS.

Devo dizer ainda que tive ocasião de ler a intervenção do Sr. Deputado José Magalhães, que também me surpreendeu. De facto, ainda não perdi e ainda não estou vacinado contra a capacidade de me surpreender pelo tem insultuoso, insolente e arrogante que essas intervenções têm. É natural que a maioria dos meus colegas, que já cá estão há mais tempo, já estejam imunizados contra o tem geral dessas intervenções, mas confesso que eu não estou vacinado e que farei todo um esforço para o não estar, porque acho que há um potencial de indignação que é necessário para a actividade política.

E não me admiro que o Sr. Deputado José Magalhães seja capaz de nos invadir a todos com palavras, porque há três coisas que, normalmente, costumam impedir as pessoas de falar com inteira liberdade: o bom gosto, a boa educação e o bom senso. Ora, como o Sr. Deputado não tem nenhuma das três coisas, pode estar permanentemente a falar sem preocupação sobre o conteúdo e sobre o alcance do seu discurso. Como já tive ocasião de dizer, não deixarei de me indignar e de me surpreender e, cada vez que leio a acta, depois das afirmações terem sido feitas, penso ser um mau serviço à revisão constitucional e que não dignifica o nosso trabalho a sucessão, nas mesmas actas, de pequenos truques demagógicos e retóricos - que, aliás, se repetem - de processos de intenção e de insultos às pessoas.

O Sr. Deputado José Magalhães, aliás, tem o hábito, após lhe serem feitas este tipo de críticas, de apelar à Mesa, perguntando se as suas intervenções estão ou não dentro do âmbito daquilo que é normal. Devo dizer-lhe que escusa de fazer esse género de coisas porque, como é evidente, se eu estivesse na Mesa, também lhe responderia que a latitude da palavra lhe permite fazer esse tipo de afirmações. O Sr. Deputado já tem sido

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repreendido algumas vezes em Plenário pelo seu tem insultuoso e não lhe quero admitir o mesmo tipo de coisas, até porque o principal risco desse tipo de intervenções é que as pessoas calam no mesmo tem. Não pretendo fazê-lo, não o farei para sua pedagogia, porque não lhe quero responder no mesmo tem.

Assim, vou terminar a minha intervenção com uma pequena metáfora política que talvez lhe seja útil se for capaz de a compreender: há uma pequena história de Jorge Luís Borges que retrata como é que o filósofo calvinista Melanchthon foi mandado para o inferno. Foi enviado para um inferno muito especial, tendo sido colocado no meio do céu com uma mesa, uma caneta e um papel, e condenado a escrever eternamente as suas catilinárias enquanto os anjos ou os demónios lhe retiravam, progressivamente, a cadeira, a mesa, a caneta e o papel. O Sr. Deputado, pelos vistos, acredita na história e penso que a melhor resposta que lhe posso dar é que, provavelmente, a história lhe está a fazer a mesma coisa que os demónios fizeram a Melanchthon, ou seja, tirar-lhe a cadeira, a mesa, a caneta e o papel e deixá-lo a escrever - neste caso, a falar -, continuamente, com pequeno conteúdo, poucas ideias e pouca substância, mas muito insulto.

Devo dizer-lhe também que não lhe responderei a mais coisas que não digam respeito a matéria de facto, mas quero lavrar o meu protesto contra um estão que acho ser do pior na actividade parlamentar, ou seja, um permanente estão de intervenção - e faço apelo aos Srs. Deputados para que leiam a acta a frio e o que lá está escrito - de insulto contra as pessoas e de permanente processo de intenções que desmerece dos nossos trabalhos e que introduz uma degradação na actividade parlamentar que eu, pelo menos - e por mim falo -, não admito e a que não pretendo responder no mesmo tem.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Deputado Pacheco Pereira, como V. Exa. sabe, a questão foi levantada pelo Sr. Deputado Vera Jardim, que hoje não está presente - o que não tem problema nenhum porque ele também levantou a questão na sua ausência -, mas, como compreenderá, gostaria de deixar ressalvada a possibilidade de o Sr. Deputado Vera Jardim, directamente, querer fazer algum comentário àquilo que hoje V. Exa. acabou de dizer.

Quanto à questão de fundo, o que o PS pretendeu sublinhar - e foi certamente aquilo que o Sr. Deputado Pacheco Pereira claramente compreendeu - foi um alerta sobre aquilo que designei por CBMs, Confidence Building Measures, e a interpretação que tínhamos do facto de um membro desta Comissão, com a responsabilidade que tem, emitir uma opinião, da qual sob o ponto de vista político discordamos. Devo dizer que teremos ocasião de discordar de si todas as vezes que, a propósito de cada artigo, a emitir sobre as nossas propostas. Consequentemente, entendemos auspiciosa a sua resposta, no sentido de que poderemos contar com a sua presença para, em cada proposta, sermos postos à prova em face da sua crítica quanto aos resultados perversos das nossas próprias propostas e tentarmos demonstrar que o Sr. Deputado não tem razão.

Quanto ao empenhamento na revisão constitucional, pensamos que, pela nossa parte, esse alerta que lançámos é o testemunho mais claro do empenhamento que temos de que haja revisão constitucional.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: O debate que travámos na passada semana foi, quanto a mim, concludente relativamente aos parâmetros que devem reger a intervenção dos deputados com assento nesta Comissão. Face à interpelação do PS, tivemos ocasião, nessa sede, de sublinhar como nos parecia importante que não fossem estabelecidas diminuições de competência, não se entendesse que os membros da Comissão para a Revisão Constitucional estariam impedidos ou inibidos de exprimir livremente os seus pontos de vista, podendo, naturalmente, incorrer nos mecanismos de responsabilização que entre nós existem. Eles podem ser livremente efectivados pelas diversas entidades, nos diversos fóruns e tribunas possíveis, tanto aqui na CERC e na tribuna da Assembleia da República como, naturalmente, nos jornais e nos outros órgãos de comunicação social, na medida em que isso seja possível. Foi essa, precisamente, a posição que sustentámos em tese geral, como regra de conduta aplicável a todos, sem excepção, mesmo ao deputado Pacheco Pereira.

Quanto às suas intervenções públicas, pude pormenorizar aquilo que consta da acta e não me merece qualquer alteração. Tive, aliás, o cuidado de reler o texto e subscrevo-o por inteiro. Aquilo que me pareceu mais chocante no folhetim do deputado Pacheco Pereira foi a postura pessoal que pressupunha e a duplicidade que, da parte do PSD, igualmente pressupõe. O PSD entende inteiramente normal adoptar, em matéria de revisão constitucional, dois tons, dois estilos e duas metodologias, inteiramente diferentes, para atingir o mesmo resultado. De um lado, aquilo que chamei a "técnica do chá e torradas" e, do outro, o cacete. Ora, essa peça n.° 2 do folhetim em causa inscrevia-se, evidentemente, não na primeira vertente mas na segunda. Cacete com ínfima dimensão, com um vigor que é flébil, com acutilância nula, mas também com uma boa carga insultuosa. Foi isso que ressaltei.

E, mais ainda, sublinhei que em termos de discussão e de negociação política - Senhores! -, se aquilo é uma Confidence Building Measures, boa tarde e até logo! Façam muitas daquelas! É o único voto que posso formular. Assim, inquinam completamente o debate e alteram completamente os pressupostos para uma discussão minimamente saudável!

Acentuei, em segundo lugar, que, de todas as pessoas, o dito autor era das que tinham menos legitimidade para se proclamar ignorante do que se passa nesta Comissão, porque é membro de pleno direito da dita cuja. Só que não exerce - o que não é excessivamente censurável, pois pode-se não exercer - qualquer cargo. Só que a responsabilidade que se assume pelo facto de se ter uma qualidade que não se exerce tem de poder ser objecto de crítica. Cada vez que alguém acentue esse ponto, evidentemente que o visado tem direito de resposta, mas não tem grandíssima legitimidade para desatar aos berros, como se lhe tivessem tangido em parte

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sensível. Verdadeiramente, incorre numa responsabilidade e tem de a assumir. Quem é sócio correspondente deve, em coerência, assumir-se como tal!

É neste sentido que não relevo minimamente as observações do Sr. Deputado Pacheco Pereira em relação a tudo o que diga respeito ao tipo, ao estão e ao conteúdo das intervenções de qualquer dos membros desta Comissão e, designadamente, às minhas. Nessa matéria, cada qual oferece aquilo a que se chama o mérito (e o demérito) dos autos. Consequentemene quanto aos nossos ditos todos poderão observar tudo o que quiserem - as questões de carácter técnico-jurídico-científíco, as questões de estão de intervenção e a pertinência ou a impertinência dos argumentos utilizados.

Sucede apenas que o Sr. Deputado, em primeiro lugar, não se deu ao trabalho de estar aqui. Em segundo lugar, não curou sequer de ler as actas, porque isso exige um esforço, exige ponderação e não se compagina com nenhuma cassette preestabelecida, não se compadece com o espírito de frete, com a preocupação de seguir o último ditame cavaquista. É óbvio que dá trabalho, e implicava que S. Exa. passeasse os pés mentais por coisas elementares, tais como a Constituição processual penal, aspectos do regime dos direitos, liberdades e garantias - trezentos ou quatrocentos aspectos que implicam um mínimo de estudo prévio, de discussão e de ponderação.

É muitíssimo mais fácil agarrar num par de pára-quedas e dizer num jornal coisas brutais e grossas, tais como: "É inconcebível que uma Constituição limite a liberdade do legislador em relação aos despedimentos!" Foi isto que escreveu algures o colunista Pacheco Pereira. É inconcebível, nada! É ignorância propedêutica e absolutamente romboédrica em relação a noções elementares do constitucionalismo, é um fruto seco da perspectiva neoliberal.

É evidente que, nessa óptica uma Constituição nutrida em relação aos direitos dos trabalhadores é um "acirte", um "insulto" e um "horror". É evidente! E é evidente que o Sr. Deputado Pacheco Pereira hoje bebe nessas águas e encara sempre com um certo horror que alguém lhe evoque as outras coisas em que queimou velas, aos altares "marxistas-leninistas-manistas" em que sacrificou (nessa altura insultando tudo e todos, encrespando e chamando toda a espécie de coisas a toda a gente!) Aparentemente, é um penitente desses horrores e por isso é que fala obsessivamente dos tons "insultuosos", "arrogantes" e "insolentes" dos outros: a única arrogância (e a única intolerância) que acha boa é a sua própria.

Nessa matéria, o Sr. Deputado Pacheco Pereira já teve tempo para perceber que aqui, na Assembleia da República, quando é arrogante, pode acontecer que alguém seja mais arrogante do que S. Exa. e que, quando utiliza péssimos argumentos, pode acontecer que seja violentamente zurzido. E mais ainda: pode acontecer que queira crescer para o oponente e que lhe aconteça apenas crescer... para um espirro: foi o que aconteceu há pouco, de forma concludente.

Quanto aos argumentos imitativos de certa polémica "camiliana" do género "S. Exa. (o adversário), se tivesse bom gosto, boa educação e bom senso, faria isto ou aquilo" não colhem e não me impressionam minimamente. Aqui fazemos argumentação política e jurídico-constitucional com a extensão e com a profundidade possíveis, procurando debater, usando argumentos e não aceitando diktats nem postura de gente absentista que se toma por dona do mundo - é coisa que aqui não se aceita!

Sr. Presidente, em relação às questões de estão, estou absolutamente indisponível para qualquer discussão. Creio que isso é insindicável e que um dos aspectos mais ridículos da actual gestão do PSD é procurar transformar a maioria parlamentar não apenas em agente de debate político, mas também numa espécie de "árbitro de elegâncias políticas". Aquilo que por de mais aconteceu nesta legislatura (e que originou, aliás, algumas abjectas campanhas de imprensa, inspiradas por algumas assoas que encobriram sempre o rosto anonimamente) foi a tentativa de degradar o debate político parlamentar em debate de costumes ou debate de maneira. É uma tentativa apócrifa e bastante fruste de desvitalizar o funcionamento do Parlamento.

Seria acima de tudo ridícula (e perigosa) a ideia de um Parlamento "bem comportado", no sentido exacto de que a oposição, além de ter a limitação decorrente do cumprimento do Regimento, ainda tivesse a limitação decorrente da sensibilidade - que, de resto, exige cuidados dermatológicos urgentes - de alguns deputados do PSD que se tomam, já não só por consultores do poder, mas por donos da Assembleia. Nós não aceitamos isso e no primeiro dia em que o Sr. Deputado Pacheco Pereira procurou arvorar-se em Petrónio da Câmara teve, naturalmente, da parte da nossa bancada, a resposta exacta. S. Exa. será Petrónio no PSD, se o conseguir, mas Petrónio universal não é! E não somos minimamente sensíveis às suas regras sobre o tamanho da bainha do vestido parlamentar, sobre se o bivaque castanho é para aqui ou para ali e outras coisas de elegância que S. Exa. conhece e entenda adequadas. Vestirá as fatiotas que lhe apetecerem! Nós, pela nossa parte, não renunciamos às nossas próprias vestes nem temos necessidade de as mudar com a velocidade que S. Exa. habitualmente usa.

Em suma: recusamo-nos a aceitar que se transforme o debate político numa tentativa de arbitrar, já não só os argumentos políticos, mas o estão político de cada um, julgando se A ou B é "malcriado" (denunciando para a acta: "Que horror, está aí um malcriado!") É francamente de Parque Mayer e não da Assembleia da República! E foi por isso que cedo disse que as posturas de nenúfar da Assembleia da República dão dói-dói! É evidente! Dão feridas! Dão horrores! O Sr. Deputado Pacheco Pereira tem esse problema: ou compra já uma bisnaga de Hirudoid ou chega ao fim da legislatura perfeitamente esmoído! Porque se quer impor aos outros que, além de cumprirem a Constituição, a lei e o Regimento, tenham de lhe cumprir o cardápio íntimo, comigo e connosco não poderá contar! Não estamos absolutamente disponíveis para aceitar esse tipo de diktats.

Uma observação apenas em relação à questão das metáforas. Compreendo demasiado bem a história que o Sr. Deputado Pacheco Pereira contou - e acho que Borges é aqui invocado muito mal, tal, aliás, como a maior parte das citações do deputado Pacheco Pereira (creio que o Borges, lá onde está, mereceria, apesar de tudo, bons tratos1 e não maus tratos). Não mereceria, por certo, ser usado como encharcado, como arma de arremesso contra um deputado de um partido da oposição, unicamente porque este incomodou a paz e a

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tranquilidade interior de um labiríntico deputado da maioria. Diga-se que é uma invocação totalmente a despropósito: é particularmente infeliz este desejo expresso de tirar a alguém a cadeira, a caneta e tudo o mais (a voz, se possível!), no momento em que o PSD é responsável por actos monstruosos de censura. O Sr. Deputado Pacheco Pereira é neste momento, no fundo, apenas um ciumento por não ser um Coelho Ribeiro. Não digo em relação a ter exercido funções de censor no passado, mas em relação a esta coisa de não poder ser censor agora.

Sr. Deputado Pacheco Pereira, aquilo que lhe dói mais fundamente é não poder ser censor aqui e já! Não poder amordaçar! Só poder erguer-se nos bicos dos pés para dizer... Pim! pim! pim!, três pingas ínfimas para a acta. Que esforço tão grande para assumir, afinal, a dimensão do rato Mickey nesta matéria!

Sr. Presidente, creio, francamente, que o episódio é demasiado ridículo. Não é já de nenúfar nem de Borges que se trata: é puro Abranhos!

Por último, quanto à questão de fundo da revisão constitucional, creio que é, realmente, incorrecto que se zurza o deputado Pacheco Pereira, porque entendo que quanto às teses minimalistas sobre a Constituição, quanto às teses desvalorizadoras da Constituição, quanto à necessidade de não haver Constituição, quem nós devemos zurzir é o Primeiro-Ministro.

Por isso, não direi mais nada em relação aos folhetins, de carácter menor, publicados por alguns dos que assumem o frete de fazer defesas oficiosas das teses do chefe. Acho que vale a pena discutir as declarações do Primeiro-Ministro, como, de resto, fez esta manhã o Sr. Deputado Almeida Santos no Plenário. É nesses termos que o debate deve ser feito, e não assim: seria periférico, secundário. Não discutamos Abranhos quando podemos discutir o chefe.

Sr. Presidente, estamos, pois, na nossa bancada, em condições de passar ao debate das questões de fundo, esperando que o deputado Pacheco Pereira, apesar de tudo, também participe nele, questionando três ou quatro coisas que as pessoas possam ler na acta e possam julgar, em termos de competência científica, de competência política, siso, etc.. Ainda que possa, amanhã, ter de dizer o contrário, uma vez que essa é uma pecha do Sr. Deputado Pacheco Pereira...

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, julgo que a Mesa terá de reunir para ponderar a forma de tentar prevenir que exista um período de antes da ordem do dia como aquele que temos vindo a assistir, porque o mal é serem iniciados, e, naturalmente, depois não pode retirar-se a legitimidade para as respostas. Ainda por cima, as pessoas - e porque, naturalmente, todos nós temos capacidade de indignação - umas submetem-se a condição suspensiva, outras não, e depois passaremos a gastar uma parte substancial do nosso tempo - que já é escasso - dedicado a essas matérias, que não direi serem despiciendas, mas que são, certamente, alheias ao objectivo principal que aqui nos reúne como CERC.

Vamos então passar ao artigo 101.° (formas de exploração de terra alheia). Há uma única proposta e que é do CDS - segundo suponho, pois o texto não tem aqui nenhuma indicação - no sentido da sua eliminação. Suponho que não valerá a pena, neste momento, demorarmo-nos muito tempo nesta matéria, uma vez que estamos perante a ausência dos Srs. Deputados do CDS e nenhum outro partido subscreveu esta proposta. Todavia, perguntaria - antes de passar ao artigo 102.° - se alguém de V. Exas. quer usar da palavra.

O Sr. José Magalhães (PCP): - É que a única coisa que, provavelmente, seria relevante era a rápida expressão da posição de cada partido sobre esta matéria, se assim for entendido. Pela nossa parte, adianto já que evidentemente estamos contra.

O Sr. Presidente: - A posição dos partidos já está expressa e é no sentido da manutenção do texto actual.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, já ocorreu que não havendo disponibilidade inicial, houve depois - e o PSD fez isso várias vezes, incluindo em relação a posições do PS - uma adesão, por assim dizer.

O Sr. Presidente: - Sim, Sr. Deputado. Então o PCP está contra, e já manifestou a sua opinião, saindo da ordem habitual, o que não tem grande importância, pois ganhámos com isso.

Agora, o PS tem alguma observação a fazer a propósito da proposta do CDS?

O Sr. Almeida Santos (PS): - É evidente que não, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Muito bem, Sr. Deputado. O PSD também não está de acordo com a proposta do CDS.

O PRD e a ID não estão presentes, pelo que suponho que podemos passar ao artigo 102.°

Este artigo versa sobre o auxílio do Estado. Existem duas propostas de eliminação por parte do CDS e do PSD, uma proposta de alteração por parte do PS e, ainda, uma proposta de alteração por parte do PRD.

Iríamos começar por pedir ao PS o favor de justificar a sua proposta, tanto mais que o carácter ático da justificação dá a perceber que já foi dada uma explicação no artigo anterior.

Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PCP): - A explicação já foi dada, respondendo a uma pergunta suscitada ontem pelos Srs. Deputados do PCP.

O que se tratou foi de recuperar para a alínea d) do n.° 2 deste artigo 102.° aquilo que era o segmento útil que nós identificávamos no artigo 100.° da Constituição actual, cuja eliminação propusemos, e de adaptar o n.° 1 do artigo 102.° - onde se caracteriza a situação de um favor constitutionem - para o auxílio do Estado a um conjunto de identidades, de identificar as entidades que deveriam beneficiar desse auxílio no quadro dos objectivos da política agrícola, e, portanto, também já ontem tive ocasião de exprimir a abertura que tínhamos a ponderar a hipótese da recuperação integral das entidades que hoje estão discriminadas no n.° 1 do artigo 102.° da Constituição. Isto sem prejuízo de entendermos que a expressão "cooperativas e trabalhadores agrícolas" tem um sentido amplo e poderia abranger as várias formas de exploração já hoje contempladas na Constituição. Mas sem

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dúvida que a comparação do texto actual com o texto que propomos poderá merecer ainda algumas melhorias na sua formulação.

O Sr. Presidente: - Segue-se, agora, a justificação do PSD, que, muito sucintamente, eu faria.

O PSD propôs a supressão deste artigo 102.° fundamentalmente pela seguinte ordem de razões: nós não somos, obviamente, contra a ideia de trae o Estado deve auxiliar os pequenos e médios agricultores. Mas parece-nos que é menos curial num texto constitucional acentuar, sobretudo sob a forma de um direito que não se sabe bem como deve efectivar-se, encabeçado nos pequenos e médios agricultores - cujo grau de definição também não se sabe como é que há-de precisar-se -, essa possibilidade de exigir do Estado um auxílio, que também não se sabe qual será o seu conteúdo. Isto é, do ponto de vista técnico este artigo é de uma imprecisão total e, por outro lado, sublinha um aspecto do chamado Estado social de direito em termos que não parecem ser os mais convenientes. Afigura-se-nos que é perfeitamente suficiente referir - como o fazemos - os objectivos da política agrícola: o fomento e a constituição de explorações agrícolas viáveis com dimensão fundiária adequada; incentivar o associativismo dos agricultores e a exploração directa da terra; criar as condições necessárias para atingir a igualdade efectiva dos que trabalham na agricultura com os demais trabalhadores e evitar que o sector agrícola seja desfavorecido nas relações de troca com os outros sectores; assegurar o uso e a gestão racionais dos solos e dos restantes recursos naturais, bem como a manutenção da sua capacidade de regeneração, etc.. Estou a ler o artigo 96.° da nossa proposta partindo da alínea J) para cima - e, enfim, dispenso-me de ler as restantes alíneas.

Para além disso, existem outras razões adicionais que nos levaram a considerar menos útil a manutenção deste artigo. Elas dizem respeito, em primeiro lugar, a que a discriminação entre pequenos e médios agricultores também dá origem a uma certa óptica que não partilhamos inteiramente; por outro lado, a circunstância de se enunciar que os pequenos e médios agricultores são considerados individualmente, ou agrupados em cooperativas, sabendo-se que as cooperativas de trabalhadores agrícolas e outras formas de exploração colectiva por trabalhadores têm direito a auxílio do Estado, tudo isto dá a ideia de algo ligado a uma certa visão da reforma agrária que, como foi manifesto ao longo da discussão, não perfilhamos. Ainda acontece - e isso particularmente em relação ao n.° 2 - que aqui aparece um afloramento do papel que é atribuído ao Plano e que também tivemos ocasião de explanar que não subscrevemos. Depois, é óbvio que aquilo que aqui se encontra como exemplos do apoio do Estado são alguns exemplos importantes, pois há aqui matérias extremamente importantes, mas em relação a outras é duvidoso que devam ser aqui incluídas, e também é duvidoso que algumas omissões que se registam não devessem pelas mesmas razões vir a ser acrescentadas a esta enunciação. Trata-se, portanto, a nosso ver, de algo que é explicável pela ânsia que o legislador constitucional na altura teve de acentuar determinados aspectos neste domínio da reforma agrária. Já há pouco mencionei, aliás, as razões profundas pelas quais preferíamos que este artigo fosse suprimido, embora possamos convir em outras formulações menos ideológicas.

Já agora, para dar um exemplo daquilo que me parece ser excessivo na forma como a Constituição vê o apoio, quero mencionar, concretamente, o que diz respeito à socialização dos riscos resultantes dos acidentes climatéricos e fitopatológicos imprevisíveis ou incontroláveis. Há um problema que assenta, por vezes, numa certa visão miserabilistaX da empresa agrícola que não subscrevemos. A empresa agrícola tem riscos como as outras empresas; aceito que esses riscos em determinadas circunstâncias sejam minimizados, mas inscrever na Constituição e nestes termos que são feitos ad aeternum - ou, pelo menos, até à próxima revisão constitucional - parece-nos manifestamente exagerado.

No fundo r são estas as nossas razões. Mais uma vez repito que não se trata aqui de uma questão de fazer vencimento do nosso ponto de vista, e que nesse sentido para nós assuma um significado determinante, ou de encontrar alguma formulação que, retirando alguns aspectos mais chocantes do artigo 102.°, mantenha esta 'ideia do auxílio do Estado. Mas então gostaria na verdade, que - um pouco como faz o PS - se retirasse esta formulação de um direito cujos titulares, cujo conteúdo e cujo modo de exercício efectivamente se ignora como é que podem vir a ser concretizados e efectivados.

Suponho que não há mais nenhuma justificação, visto que os proponentes das outras propostas não se encontram presentes, e, por consequência, passávamos à discussão.

Tem a palavra o Sr. Deputado Rogério de Brito.

Entretanto assumiu a presidência o Sr. Vice-Presidente Almeida Santos.

O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Julgo que para avaliarmos da importância no conteúdo deste artigo 102.° - e que de algum modo o PS repõe, mas que o PSD, pura e simplesmente, elimina na sua proposta - teremos de atender à situação de atraso absoluto e relativo da agricultura portuguesa, às situações de profundo desequilíbrio estrutural da mesma - até tomando por base comparativa países de agricultura mais desenvolvida, incluindo da própria CEE. Importa ter presente, por exemplo, que a descapitalização da agricultura se tem acelerado nos últimos sete ou oito anos - aliás, ela sempre se verificou, mas tem agora acelerado - e que uma das componentes desta desvalorização ou desta descapitalização resulta, por exemplo, da excessiva absorção, por parte dos circuitos intermédios de comercialização, dos rendimentos gerados na produção agrícola. Há que ter presente, igualmente, que o diferencial entre os preços pagos ao produtor e os preços no consumidor dos últimos cinco anos, por exemplo, se agravaram em mais de 20%. Compreendemos, assim, a debilidade do sector produtivo primário, em relação aos restantes sectores da actividade económica, particularmente à comercialização. Não será por mera liberalização da actividade em termos de que "quem tem unhas toca guitarra" que iremos corrigir estas situações. Tal como quando a Constituição foi aprovada, e depois da revisão que se lhe seguiu, e agora nesta, as razões que justificaram a previsão do auxílio do Estado exactamente à pequena e à média exploração agrícola continuam a

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persistir - nalguns casos até eu diria que por razões acrescidas, dada a deterioração entretanto verificada nalgumas áreas, sobretudo da política de rendimentos.

Gostaria de dizer que não será possível desenvolver a agricultura deste país e muito menos criar-lhe condições de sustentação, em competição, por exemplo, com a agricultura comunitária, e tendo em conta o pequeno prazo de que se dispõe no período de transição, sem um forte esforço de potencialização, de valorização, do sector produtivo - e neste caso, sobretudo, da pequena e da média exploração agrícola, que são, manifestamente, as mais desfavorecidas, sendo certo que em contrapartida são aquelas que mais contribuem para gerar o produto agrícola bruto neste país.

Posto isto, pensamos que é indispensável manter-se este normativo sobre o apoio do Estado. E é bom que tenhamos presente que não se trata de defender sequer um posicionamento paternalista. Quando olhamos para o próprio processo de integração na Comunidade e para a política comunitária de apoio à modernização das explorações agrícolas, à organização do mercado, à dotação de infra-estruturas básicas de comercialização e transformação, verificamos que, apesar das críticas - e nós criticamos em muito a respectiva formulação -, de qualquer modo, a política agrícola comum acaba ela própria por diferenciar, e por não poder omitir a importância que deverão merecer a pequena e a média exploração agrícola no contexto da política comunitária. Isto, aliás, é tanto mais acentuado quanto tem crescido a crise e a necessidade de reforma da própria política agrícola comunitária. Com efeito, veja-se, por exemplo, a única via neste momento de financiamento às explorações agrícolas que é o Regulamento no 797 de modernização - não há outro nem é utilizado outro. Ele próprio estabelece fronteiras na concessão dos créditos, quer em termos de níveis mínimos, quer em termos de níveis máximos, e, quando muito, fica remetido para uma iniciativa nacional do Estado Português vir complementar, fora do quadro previsto no Regulamento Comunitário, o auxílio às outras explorações não contempladas. Portanto, o carácter de selectividade está sempre presente em qualquer política de crédito e de apoio. Ora bem, o que se pretende - pensamos nós e certamente que o PS, ao propor isto, também o estará a pensar - é que esta selectividade que inevitavelmente tem de existir constitucionalmente deverá privilegiar exactamente o sector que, sendo, por um lado, estruturalmente mais débil, é aquele que tem maior importância no contributo para o produto agrícola bruto neste país, e até como expressão social do próprio tecido económico-agrícola português.

O Sr. Presidente (Almeida Santos): - Tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Encarnação.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Volto a repetir aquilo que já disse em discussões de artigos anteriores: este conjunto de artigos tem de ser compreendido num todo, e continuo a dizê-lo porque realmente sinto que estamos a refazer uma série de discussões. Levanta-se em cada artigo questões particulares que no entanto têm a ver com a nossa visão global sobre o problema, visão essa que, aliás, compartilhamos com o PS.

Quando nas suas propostas falam em política agrícola em lugar de reforma agrária, o PS e o PSD estão

a entender esta questão como verdadeiro problema nacional, como uma questão nacional que tem de ser verificada de acordo com variadíssimos outros condicionalismos e não apenas com aqueles condicionalismos redutores que estiveram na base de alguns ou da maioria destes artigos, tal como a Constituição inicialmente os previu. Portanto, não devem VV. Exas. estranhar que a nossa posição seja fruto deste circunstancialismo e que acabemos por eliminar alguns ou a maioria dos artigos, transformando a substância destes preceitos em princípios gerais de dignidade, de valor e de nível constitucional que lhes sobrepomos substituindo-os. É por essa razão que VV. Exas. não verão nas nossas propostas, e com certeza não veriam na formulação final que resultaria da Constituição revista nesta matéria com as nossas propostas, muitas das coisas que aqui se consagravam. Quererá isto dizer que o PSD não entende útil grande parte das coisas que aqui estão? Quererá isto dizer que o PSD entenderá querer prejudicar as pequenas e médias explorações agrícolas? Certamente que não. Quando referimos a viabilidade das explorações, o apoio genérico a melhores condições de exploração da terra e de exercício da empresa agrícola, estamos a compaginar todas estas questões dentro da nossa ideia geral sobre a política agrícola. O que nós dizemos é que entretanto existem coisas que vão acontecendo de modo diferente e que necessitam de regulamentação mais a nível da legislação ordinária do que propriamente a nível da norma constitucional. Queremos aqui referir que, evidentemente, tudo aquilo que vem a surgir como aplicação da política agrícola comum ou como aplicação da política agrícola nacional tem de ter transposição para os preceitos da legislação ordinária. É a esse nível que iremos buscar todas as consequências das posições que tomamos, algumas das quais sufragamos, e que estão aqui afirmadas perante os agricultores e as explorações agrícolas em geral.

Em suma, não pretendemos tirar direitos nem benefícios, mas sim consagrar ao nível dos preceitos constitucionais as normas que essa dignidade deve ter, deixando ressalvadas nelas próprias todas as decorrências que ao nível da legislação ordinária devem ser exercidas.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Rogério de Brito.

O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Sr. Deputado Carlos Encarnação, penso que lhe é difícil defender sistematicamente a eliminação de princípios políticos que são fundamentais para definir a orientação, o conteúdo e o objectivo da política agrícola. E o objectivo desta política, em termos constitucionais, não é meramente aumentar a produção e a produtividade: é servir, é dar um conteúdo humano, social e económico, etc. Tem de haver parâmetros mínimos a defini-lo, tem de haver um sujeito privilegiado. Tem sempre de previlegiar-se um sujeito, não colhendo a ideia de que as coisas são no geral e que no geral se satisfazem por igual todos os interessados, mesmo quando inevitavelmente estão em conflito interesses que, muitas das vezes, são mais ou menos antagónicos. É, portanto, difícil equacionar, sistematicamente, todas estas questões ao abrigo das alíneas do artigo 96.°

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Desta vez não troquei nenhuma.

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O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Mas referiu-se a ele sem referir...

Entretanto, não consegui estar a ouvi-lo e alhear-me por exemplo daquilo que se passa no âmbito das discussões na própria Comissão de Agricultura - e peço que me permita que a invoque, porque penso que isso traduz de algum modo aquilo que inevitavelmente tenhamos presente neste processo negociai da revisão constitucional. De facto, quando discutíamos na especialidade as questões das medidas ligadas ao arrendamento rural e ao emparcelamento, por exemplo, procurámos que, em sede de alterações, fossem acautelados ou previlegiados ou priorizados apoios objectivos que salvaguardassem os direitos dos pequenos e médios agricultores, designadamente através da possibilidade do incentivo. Propusemos o incentivo ao associativismo de produção, mediante mecanismos lógicos de incentivo, tendo inclusivamente chamado a atenção para o facto de que esses mecanismos eram utilizados em termos da própria política comunitária. E repito sempre este aspecto na medida em que, nestas questões, rigorosamente e por sistema, é sempre invocada a Comunidade e a política comunitária, razão pela qual recorro a elas não apenas para apontar aspectos negativos mas também para aqueles a que, de algum modo, se deverá ater, neste caso o PS, ou seja, a aspectos que parecem apesar de tudo fundamentais e a que não se pode fugir. E, a dada altura, a resposta dada foi a seguinte: nós não apoiamos, não aprovamos qualquer medida que privilegie as cooperativas porque consideramos dever existir uma total liberdade de condições para todos os intervenientes económicos, para todos os agricultores, para todos os empresários sem distinção. Penso que isto que ali foi dito é muito importante. Não vou dizer que não é legítimo defender esse conceito, mas, em termos constitucionais, há-de admitir que é legítimo defender-se que não fique uma porta aberta a que prevaleçam conceitos destes. Porque repare: penso que conceitos destes são profundamente lesivos para o País, não tendo rigorosamente nada a ver com a realidade social, económica, sócio-estrutural, e afiguram-se por vezes - usando a gíria - uma tentativa de serem mais papistas que o papa na medida em que nem nos países mais desenvolvidos este conceito liberalizante é adoptado. De facto, haverá sempre mecanismos distintos, meios distintos conforme a dimensão dos próprios agentes, e, portanto, não aceitamos que não se previlegiem as cooperativas.

Devo dizer que não precisamos de estabelecer isto na Constituição, de tal forma é evidente a necessidade de se privilegiarem as cooperativas. Todavia, confrontado com a visão - que é a vossa - de que não se deve privilegiá-las, de que deve haver uma igualdade de tratamento absoluta, diria que isto é um perigo, uma verdadeira aberração. Por esta razão, penso que este conceito tem de ser pelo menos acautelado constitucionalmente, sob risco de se asfixiar, estrangular o desenvolvimento da agricultura neste país. No seio da CEE, os países mais desenvolvidos são exactamente aqueles que têm as formas e a organização cooperativa mais desenvolvidas, tendo para tal sido as mais apoiadas.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - E julga que esses países, cuja economia é efectivamente mais desenvolvida, têm normas como estas na Constituição?

O Sr. Rogério de Brito (PCP): - O Sr. Deputado fez-me uma pergunta à qual não lhe posso já dar resposta e o Sr. Deputado também não a poderá dar ...

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Posso dar-lha: a esmagadora maioria dos países aos quais se refere não tem normas constitucionais deste teor.

O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Penso que o facto de esses países não terem normas similares não implica que nós não as tenhamos. Em segundo lugar, provavelmente eles não têm lá, por exemplo, quem defenda que não se deve apoiar com carácter prioritário a organização cooperativa com o argumento de que se deve dar um "tratamento igual" a todos os agentes. E isto é grave, quando verificamos que a organização cooperativa apenas cobre uma pequeníssima parcela do País em termos espaciais e uma pequeníssima percentagem dos agricultores, em termos quantitativos e qualitativos. Essa tese não é defensável, pois, inevitavelmente, tem de haver auxílios.

Chamo a atenção para o facto de que mesmo persistindo actualmente estes princípios em termos constitucionais são violados na prática, mas não é pelo facto de não serem cumpridos ou respeitados que eles devem ser abolidos da Constituição. Pelo contrário, a existência desta situação deve alertar ainda mais para a necessidade de os acautelar: basta que olhemos a forma como tem estado a dar-se o acesso às ajudas comunitárias para verificarmos que se não houver mecanismos de protecção e de apoio real e eficaz a esses sectores que aqui se pretendem contemplar as assimetrias e os desequilíbrios se vão acentuar. Veja-se o que está a acontecer neste momento em termos geográficos, em termos da estrutura das explorações que estão a ser preferencialmente apoiadas. E isto que tem de ser acautelado - repito - e não nos podemos esquecer que estamos a discutir uma agricultura que, infelizmente, é a mais atrasada da Europa e que como tal carece de elementos acrescidos de pontencialização política na sua orientação.

Penso que isto é fundamental, tanto mais que, ao longo dos anos, têm sido exactamente os grandes detentores da terra aqueles que mais têm beneficiado dos auxílios do Estado e, infelizmente, até nisso para descapitalização do sector. Tudo isto, até pelas características da própria orientação de muitos anos desta política agrícola, impõe que sejam acautelados determinados interesses e direitos legítimos do sector que, afinal, é a substância da agricultura que temos e sem a qual, então, não teríamos rigorosamente nada.

Entretanto, assumiu a presidência o Sr. Secretário José Magalhães.

O Sr. Presidente (José Magalhães): - Tem a palavra o Sr. Deputado Sousa Lara.

O Sr. Sousa Lara (PSD): - Sr. Presidente, parece-me que o que está em questão são duas concepções de Constituição: uma, que tem a ver com a tradição de 1976, e outra, que, no fundo, tem a ver com a ideia de constituinte que é o momento que agora ocorre. Por conseguinte, a postura do PSD face a esta parte da Constituição é a de aproveitar a ocasião que a Constituição nos concede para mudar o estilo.

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E a nossa divergência assenta fundamentalmente no facto de entendermos que esta questão deve ser remetida para a lei ordinária e de o PCP e, eventualmente, o PS, entenderem que deve continuar na Constituição. Julgo que estamos todos de acordo quanto à bondade de muitas das questões tratadas no artigo 102.° Aproveitaria, inclusivamente, para da minha parte demonstrar aquilo que acabo de referir, ou seja, que noto na proposta do PS algumas benfeitorias. Devo dizer que em termos de doutrina, não constitucional, mas de forma abstracta, concordo com a parte final da alínea d) proposta pelo PS (esta proposta é, em meu entender, louvável, se bem que não deva ter assento constitucional) e com a eliminação, no n.° 2, do inciso "de acordo com o Plano". Em termos substanciais e abstractos, não estamos em desacordo no fundamental; em termos de sede, de colocação, estamos com certeza. A meu ver, não vale a pena insistir neste assunto, havendo aqui uma óbvia clivagem que não conduz a nada. É uma discussão de surdos.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Rogério de Brito.

O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Sr. Deputado Sousa Lara, está convencido de que dispomos, neste país, de uma política agrícola com uma natureza e com uma orientação perfeitamente definidas e com uma base consensual ampla ou que possuímos uma estratégia de desenvolvimento suficientemente consensualizada que nos permita, tendo em conta a realidade objectiva sobre a qual trabalhamos quanto ao sector, abdicar de cautelas mínimas no sentido de defender uma natureza e orientação dessa mesma política favorável aos agricultores mais desprotegidos?

O Sr. Sousa Lara (PSD): - O Sr. Deputado referiu há pouco que existe um largo consenso sobre esta matéria - estou a referir-me ao artigo 102.° Disse ainda que era o próprio a considerar que existia uma ampla base de acordo, se bem entendi a sua intervenção...

O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Não. Entendeu mal. Poderá depois reler o que eu disse...

O Sr. Sousa Lara (PSD): - Então peço desculpa, mas percebi isso da sua intervenção.

Em todo o caso, eu próprio noto que, em termos abstractos, existe uma ampla base de acordo sobre muitas destas disposições. Julgo que onde não existe e é óbvio a clivagem é na sua localização em termos do aparelho de Estado Português: na Constituição não na lei ordinária e em termos de propósito governativo, com certeza que sim. Parece que não há acordo, pelo que não vale a pena insistir neste assunto porque estaremos sempre "a chover no molhado". Basicamente há uma indisponibilidade para a discussão em termos da alteração do estão da Constituição.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Encarnação.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Sr. Deputado Rogério de Brito, acompanhando as palavras do Sr. Deputado Sousa Lara, estamos de facto "a chover no molhado". Como já referi variadíssimas vezes, existem duas concepções que nos afastam e algumas questões que nos aproximam. Estamos a tentar cingir-nos a essas questões que nos aproximam, se é que isso é possível, ou que pelo menos aproximam algumas preocupações que V. Exa. tem e que nós não deixamos de ter. E gostaria de lhe chamar a atenção em relação àquilo que referiu, designadamente quanto ao cooperativismo e à solução cooperativa, quanto à questão do apoio ou não apoio do Estado, e de lhe dizer a título particular - mas penso que posso com isto interpretar perfeitamente a doutrina que o PSD tem construído acerca deste assunto - o seguinte: nós entendemos que o associativismo dos agricultores deve ser defendido. Na verdade, entendemos que há regiões onde o associativismo dos agricultores na produção agrícola é absolutamente essencial, pelo que o temos aqui referido na alínea f) do artigo 96.°, e que existem outras zonas em que a forma de exploração da terra, designadamente o regime do arrendamento, deve salvaguardar os direitos dos pequenos e médios rendeiros e arrendatários. Com isso não suprimimos, como o fez o CDS, por exemplo, o artigo 101.° da Constituição.

Por outro lado, entendemos que há outras áreas onde a empresa agrícola tem de ser dinamizada e liberta de tutelas, e só assim é que, nessas outras áreas, a produção e o bem-estar agrícola em geral podem ser promovidos.

Portanto, não encaramos com miopia nem com enviesamento as questões do desenvolvimento da agricultura nacional. É com esta panóplia de soluções que pretendemos atacar o desenvolvimento da nossa agricultura.

Neste contexto, referimos o cooperativismo, e estou à vontade para lhe dizer que sou um adepto fervoroso da solução cooperativa em relação à maior parte dos casos. Recordo-lhe, inclusivamente, que foi um governo liderado pelo PSD que apresentou pela primeira vez neste país um código cooperativo. Isto bastaria para lhe demonstrar o interesse do PSD pela solução cooperativa.

Mas devo dizer-lhe o seguinte: no que não estamos interessados, e é nessa exacta medida que V. Exa. deve interpretar qualquer intervenção feita por um representante do PSD acerca desta matéria, é em criar cooperativismo forçado ou cooperativismo de favor. As soluções cooperativas têm de ser construídas em inteira liberdade pelos cooperadores. Têm de ser construídas pelos agricultores, e eles têm de entender realmente que esse será o caminho para muitos dos seus problemas.

No entanto, proteccionismo ao nível de criação de estruturas que não funcionem, das quais esteja toda a gente dependente sem saber exactamente o que é que quer, sem saber o que é que elas significam, isso connosco não. Esta é a nossa posição oficial relativamente a esta matéria.

Entretanto, assumiu a presidência o Sr. Vice-Presidente Almeida Santos.

O Sr. Presidente (Almeida Santos): - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Gostaria apenas de fazer um comentário geral, uma vez que o debate em relação a algumas das questões fulcrais que este artigo suscita está feito.

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O Sr. Deputado Sousa Lara tocou um aspecto que é relevante. É verdade que nós espelhamos aqui concepções diferentes acerca da Constituição e que isso nos define e traça a nossa própria identidade político-partidária.

Mas creio que seria muito redutor fazer aqui uma espécie de bipolarização forçada, em que colocaríamos frente a frente adeptos apaixonados e exacerbados de dois modelos completamente antitéticos, estando uns com a razão toda e outros com nenhuma. A norma em causa foi aprovada por geral consenso e é compromissória! Porquê alterá-la? Porquê prescindir da história nas suas diversas dimensões, falar de constituições em abstracto, como se houvesse um grande supermercado de constituições e consumidores que adorassem uns, textos constitucionais gordos e grandes e, outros, textos magrinhos e finos.

De facto não é isso que se passa. Os processos de construção histórica de que as constituições são fruto, e de que são peça e protagonista e elemento interactivo, explicam, por si mesmos, por que é que as constituições são mais encorpadas aqui ou ali.

Se o Sr. Deputado for agora ao Brasil encontrará uma Constituição encorpadíssima e em gestação adiantada. Ela está em riscos de enormíssimo inchaço, englobando normas pormenorizadíssimas, com definições de orientações políticas, algumas das quais deixam alguns críticos da Constituição Portuguesa inteiramente boquiabertos. Aqueles que estão habituados a dizer que temos uma Constituição nutrida não têm já adjectivos nem quaisquer palavras para descrever aquela Constituição verde-amarela. Isso não significa que essa Constituição seja censurável por tal. Seria absolutamente disparatado lê-la à luz da realidade de um outro país, seja, por exemplo, à luz da realidade portuguesa, seja britânica, face à qual ela nem sequer teria razão para existir com aquela forma.

Devemos fazer apelo a algum equilíbrio e a alguma ponderação na meditação de qual é a Constituição de tamanho adequado à nossa realidade. Para isso não podemos prescindir do enquadramento em que esta nasceu e das preocupações que a dominaram nos seus diversos momentos de concepção.

A Constituição Portuguesa é um texto engendrado já a caminho da segunda metade dos anos 70 e representa ela própria alguma coisa de inovador, o que se topa bem, por exemplo, verificando a experiência constitucional posterior de outros países, inclusivamente a do país vizinho, com projecções da nossa evidentes e por todos reconhecidas. Isso deve levar a matizar o juízo sobre esta matéria. Eram diferentes as constituições anteriores e posteriores à Segunda Guerra Mundial, são diferentes as constituições de Estados democráticos com um forte cunho social e as de Estados liberais ou as de Estados autoritários.

No nosso caso, o grande problema foi enunciado há pouco quando um dos Srs. Deputados - já não sei qual, mas seguramente com relevo e com pertinência - colocou a seguinte questão: porquê ter este artigo na Constituição? Creio que a pergunta se deve colocar ao contrário, ou seja, porquê deixar de tê-lo na Constituição? O que se tem fundamentar não é por que razão o artigo está estabelecido - isso seria e uma inversão da lógica da revisão constitucional -, mas por que é que há-de deixar de estar. São aspectos diferentes. O meu camarada Rogério de Brito evocou longamente a ratio e os objectivos do preceito, que são actualíssimos. Ora sucede que nós não estamos a partir para um processo constituinte, estamos numa revisão constitucional!

O que realmente me impressiona na vossa argumentação é o facto de não justificarem a eliminação do artigo em debate. Quase que pretenderiam que nós justificássemos ainda mais a sua manutenção ou que nós relegitimássemos 1976!

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - O que tentei fazer foi justamente o contrário: foi justificar por que é que o retirávamos.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Carlos Encarnação, ouvi atentamente a sua argumentação e a sua resposta foi apenas esta: "Não retiramos porque entendemos que deve ser uma questão do foro da política agrícola e da lei ordinária." E aí foi mais sincero, sobretudo nos desenvolvimentos que fez, em resposta às perguntas formuladas pelo meu camarada Rogério de Brito. Os Srs. Deputados de facto não estão de acordo com a orientação da Constituição quanto a este ponto, ou, melhor, não estão de acordo com os dois pontos fulcrais deste artigo.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Sr. Deputado, dissemos uma outra coisa. É que, a nosso ver, os grandes princípios constitucionais relativamente a esta matéria já estavam defendidos noutra sede, noutro local, e, portanto, deveríamos reconduzir a este nível apenas os normativos constitucionais acerca desta matéria.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado, isso conduz-me precisamente à segunda questão. O PSD nesta matéria conforta-se com os princípios; não quer ouvir falar de meios nem de instrumentos, e menos ainda dos instrumentos constitucionais, dos actuais ou dos novos propostos.

Porque estes, como o Sr. Deputado Carlos Encarnação aqui acabou por exprimir, implicam uma determinada graduação de interesses, uma determinada postura de "favor" (no sentido próprio), de protecção especial de certos interesses em detrimento de outros. Eles não igualizam, num reino em que "igualizar" significa realmente dar livre curso às diferenças, às desigualdades, permitindo que o grande esmague o pequeno.

Tudo isto se compreende à luz da experiência prática do PSD, que será autor de quantos códigos queira mas é responsável, designadamente, por uma política de liquidação de cooperativas e desvitalização do respectivo movimento, o qual enfrenta hoje dificuldades brutais. Portanto, o PSD discorda...

As questões que se me suscitam em relação à proposta apresentada pelo PS dizem respeito a tentativa de medir rigorosamente o grau da mudança introduzida. Em tese geral, a primeira mudança grande é a que o Sr. Deputado Carlos Encarnação tanto gosta de sublinhar, ou seja, a mudança do enquadramento.

Estamos a falar de protagonistas, mas pretende-se mudar o cenário em que os protagonistas se movem. Neste sentido, estando nós a falar do mesmo, estaríamos também a falar de uma coisa diferente. Evidentemente que movermo-nos no contexto de uma constituição agrícola, com um determinado cariz, com determinados objectivos, com um determinado con-

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teúdo, com uma determinada densidade e hierarquias de rumo, é uma coisa, deslocarmo-nos no quadro que resultaria da opção n.° 1 de que falámos nas nossas reuniões plenárias anteriores seria outra.

O segundo aspecto relevante para compreender a proposta diz respeito à transformação normativa proposta. A transformação é possível, ela é uma lei de vida. A questão aqui é a de saber o que se perde e o que se ganha, e se nesse processo de decantação não se perde alguma coisa.

Por isso, as perguntas que pretendo formular são sucintas. Em primeiro lugar, na lógica do artigo vigente e de acordo com o seu conteúdo deve haver beneficiários especiais da política agrícola. O PS transmuta essa acentuação para uma ideia de "apoio preferencial". Como se sabe, o apoio preferencial não exclui o apoio não preferencial, é uma evidência. A questão é medir e apurar qual o grau de diminuição de estatuto, em matéria de "favor", decorrente da proposta do PS.

Em segundo lugar, o articulado vigente enfatiza o papel das formas cooperativas e colectivas de exploração agrícola. Creio que, sob todas as ópticas, a proposta do PS desenfatiza esse papel. A questão consiste em saber se, nessa desenfatização, o PS não terá ido longe de mais, chegando à eliminação... Ontem o Sr. Deputado António Vitorino pré-respondeu a um dos aspectos que agora estou a focar, disponibilizando-se a aditar à alínea d) do artigo 96.° uma alusão a outras formas de apropriação colectiva da terra por trabalhadores. Este é um ponto que gostaria de ver debatido adicionalmente.

Um outro aspecto que me parece igualmente importante, e talvez ainda não abordado, é o da própria natureza da norma estabelecida no n.° 1 do artigo 97.° O actual n.° 1 não tem a estrutura de uma obrigação do Estado; encerra, assim, a natureza de uma específica, directa e clara estatuição ou outorga de um direito aos respectivos beneficiários. Esse direito goza, para todos os efeitos (sendo, como é, positivo), da eficácia jurídica própria dos direitos económicos e sociais, nos termos constitucionais usuais.

Há uma interrogação que nesta matéria habitualmente é feita a quem propõe coisas deste tipo e que se traduz em fazer o chamado "juízo de eficácia prática", que consiste, por sua vez, em olhar o texto constitucional, olhar para a realidade, verificar qual foi a projecção desse texto, com a sua estrutura, na realidade, e concluir: alteremos essa estrutura porque nada se perderá, dado que foi escasso o ganho decorrente da solução em apreço. Ou o contrário.

É um raciocínio melindroso, por vezes extremamente perigoso, e pela nossa parte não abusamos dele. Mas, no caso concreto, não sei sequer se é legítimo invocá-lo na medida em que o PS não adiantou nenhum raciocínio deste tipo, e, portanto, só com carácter cautelar e entre provisos é que o emiti. Será esse o caso? Que move o PS?

Deixarei de lado completamente, até porque já foram objecto de bastante análise, todos os aspectos relacionados com as concepções que o Sr. Deputado Rui Machete exprimiu acerca do que deva ser o Estado social nesta matéria, acerca do horror que é cheirar-lhe ainda a reforma agrária e a Plano neste domínio, etc., etc.

Em todo o caso, gostaria, en passant, que o Sr. Deputado António Vitorino pudesse relacionar esta proposta com as que o PS tem apresentado em matéria de planeamento democrático. Além disso, perguntar-lhe-ia por que é que considera tão relevante suprimir a alusão ao Plano no texto em debate, uma vez que na perspectivação do alcance do segmento normativo que refere o Plano neste n.° 2 é possível chegar a resultados perfeitamente razoáveis, a título algum incompatíveis com a filosofia que o PS exprimiu sobre este aspecto, pelo que a supressão em causa me surge como um "mais", sendo ela um "menos" na lógica do PS tal e qual eu a tinha entendido. Mas, porventura, entendi-a mal, coisa de que me penitencio, se for esse o caso.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Vou fazer uma curta intervenção, no desenvolvimento das intervenções feitas pelos meus colegas Carlos Encarnação e Sousa Lara.

Quero dizer fundamentalmente o seguinte: do nosso lado tem-se colocado em relevo a questão da dignidade - não dignidade constitucional - e a questão do modelo de Constituição para o qual devemos apontar.

A isto responde fundamentalmente o Sr. Deputado José Magalhães com a ideia de que não é possível pensarmos em modelos abstractos, num supermercado de modelos constitucionais ou num supermercado das ideias, numa taberna qualquer de Platão onde houvesse várias ideias de Constituição, porque estamos vinculados ou predeterminados pelo sentido e pelo lastro histórico-institucional e histórico-jurídico da nossa própria Constituição. Parece-me que é essencialmente esta postura que deve ser posta em causa. A nossa postura aqui deve ser predominantemente hermenêutica e cognitiva, no sentido de que têm mais peso as propostas de quem melhor interpreta o texto constitucional vigente. Por outras palavras, do que se trata é de acolher em termos de hermenêutica, o mais rigorosamente possível, a ideia da Constituição presente, e todas as propostas que relevem desta vantagem no plano cognitivo e hermenêutico têm prevalência sobre quaisquer outras.

Qual deve ser a nossa atitude fundamental: a de hermeneutas ou, pelo contrário, a de legisladores constituintes? Estamos a interpretar a actual Constituição ou a rever uma Constituição? Qual é o nosso modelo de acção: a essência da Constituição do momento ou uma outra ideia de texto constitucional à luz da qual queiramos modificar e melhorar o actual? A nossa postura deve ser eminentemente cognitiva no sentido da hermenêutica constitucional ou, pelo contrário, uma postura actante, uma postura prevalecentemente "polética"? Estamos a interpretar ou, pelo contrário, a modificar o texto constitucional à base de uma ideia?

Vozes.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, gostaria de chamar a atenção para o facto de a Comissão estar, neste momento, a funcionar sem quorum.

O Sr. Presidente: - Se o Sr. Deputado levanta o problema do quorum, suspende-se a reunião até haver de novo quorum de funcionamento.

Srs. Deputados, está suspensa a reunião.

Eram 17 horas e 35 minutos.

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Srs. Deputados, está reaberta a reunião.

Eram 18 horas.

Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Presidente, retomando o fio à meada, na medida do possível, penso que a crítica formulada pelo Sr. Deputado José Magalhães, no respeitante à nossa postura neste processo de revisão constitucional, não é pertinente. Pelo contrário - repito - não se trata de nos prendermos ao lastro histórico-jurídico do modo como esta Constituição foi gerada, mas sim de nos perfilarmos perante ela apenas numa perspectiva cognitiva e de hermenêutica, no sentido de que o melhor processo seria aquele que melhor espelhasse e interpretasse a actualmente vigente. Estamos num processo de revisão constitucional, pelo que o sujeito da nossa acção é precisamente a lei fundamental. E, se vamos rever a Constituição, devemos naturalmente fazê-lo em nome de outra ideia, que não apenas a essência e os imperativos da Constituição que temos. Não devemos, pois, perfilarmo-nos perante a Constituição numa atitude de direito natural do direito constitucional que lhe está subjacente, mas, pelo contrário, devemos converter o presente quadro normativo em sujeito da nossa intervenção legislativa no sentido da revisão.

É nestes parâmetros que se inscrevem as nossas propostas nesta matéria. Todos os meus colegas intervenientes neste processo estão imbuídos da melhor bondade das nossas propostas do ponto de vista de uma certa ideia da Constituição e, portanto, sem vinculação ao direito constituído.

O Sr. Deputado José Magalhães dirigiu-nos também a crítica de que nos preocupávamos muito com os princípios e silenciávamos completamente os meios. Isso não é verdade. De facto, como várias vezes foi dito nas nossas propostas, nomeadamente em relação ao artigo 96.°, não definimos apenas os fins, mas elencamos também alguns meios que, do nosso ponto de vista, devem figurar numa Constituição. Na parte em que não se procede desse modo, entendemos que tal tem razão de ser, uma vez que do que fundamentalmente se trata é de deixar um texto constitucional que permita - temo-lo dito e voltamos a repeti-lo - o livre jogo do funcionamento normal da democracia. As propostas em matéria de meios são naturalmente diferentes consoante o Governo seja gerido por um partido socialista, por um partido social-democrata, por um partido liberal ou por um partido comunista.

Sr. Presidente, Srs. Deputados: Perante isto, devo dizer que a nossa postura, como também foi já dito, vai no sentido da eliminação do artigo 102.° A ter de ficar alguma coisa, entendemos que deve ser algo parecido, embora melhorado, com aquilo que o PS propõe. As propostas quanto ao referido preceito apresentadas pelo PS têm duas vantagens fundamentais. A primeira é a de que elimina ou modifica a estrutura normativa do preceito, como, de resto, foi já acentuado. De facto, no n.° 1 do referido artigo 102.°, o PS substitui a expressão "têm direito ao auxílio do Estado" por uma ideia de dever de auxiliar, mas através da mediação dos objectivos da política agrícola do Estado. Há nesta proposta de substituição uma contingentação das acções e dos meios em função dos objectivos da política agrícola do Estado, política essa que tem parâmetros constitucionais nos termos dos artigos 96.° e seguintes, mas tem também o quantum de variabilidade e de maleabilidade consoante as forças políticas que, em obediência aos seus programas, venham a ter legitimação pelo voto popular para executar uma política agrícola. Nesta medida, as propostas do PS representam, até do ponto de vista técnico-jurídico, uma correcção, pois, como foi assinalado, não se sabe bem qual a consistência, o âmbito e o sentido da expressão "têm direito ao auxílio do Estado", inserta na redacção originária do n.° 1.

Por estas razões, considero que, a não vingar a nossa proposta de eliminação do preceito, daremos o nosso acordo à redacção apresentada pelo PS para este artigo, mas sugerindo algumas melhorias que nos parecem possíveis de acentuar.

O Sr. Presidente:-Tem agora a palavra o Sr. Deputado António Vitorino, pedindo-lhe, porém, que fosse o mais económico possível no tempo a despender com a sua intervenção.

O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, inscrevi-me para responder às perguntas formuladas pelo Sr. Deputado José Magalhães, mas devo confessar que, ao contrário do pedido de V. Exa., não consigo resistir a um comentário inicial, que é ao mesmo tempo uma declaração de estado de espírito.

Creio que o debate sobre os normativos da reforma agrária talvez tenha sido o que poderíamos considerar a verdadeira discussão exemplar desta revisão constitucional. E ficará como resultado, para o bom ou para o mau, das responsabilidades políticas dos partidos e do próprio significado do papel na revisão dos trabalhos desta Comissão. Os debates sobre a revisão constitucional dependem de dois grandes pontos: o tem e a táctica.

Quanto ao tem, este debate passou por todos os andamentos possíveis e imaginários. E o facto de as perguntas do Sr. Deputado José Magalhães já estarem num tem moderato cantabile não faz esconder que nem sempre foi esse o tem que o PCP quis imprimir ao debate da reforma agrária e em especial à apreciação das propostas do PS.

Quanto à táctica do debate, os autores das propostas não são donos das tácticas que sobre elas acabam por incidir. E são desapossados das suas próprias propostas em função das tácticas daqueles que são chamados a apreciá-las. Por isso, sobre as tácticas, a única coisa que diria é que nem as nossas propostas são o paradisismo daqueles que, pretendendo tudo ou quase tudo eliminar, desejam fazer crer que aquilo que propomos equivale a isso mesmo, nem são a consequência do miserabilismo daqueles que, no mesmíssimo comprimento de onda, querem ver naquilo que sugerimos a eliminação de tudo o que está em letra de lei, entenda-se, em letra do nosso próprio projecto.

No entanto, o debate sobre a reforma agrária não fica concluído neste ponto, ao contrário, talvez, da expectativa da Comissão. De facto, teremos ainda oportunidade de, no Plenário, afinar a pontaria e a força do tiro, o que será decerto muito importante para a interpretação futura da Constituição.

No respeitante às perguntas formuladas pelo Sr. Deputado José Magalhães e à questão do enquadramento, devo dizer-lhe que sobre essa matéria tenho uma ideia

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relativamente clara e que, em parte, coincide com uma parcela da exposição do Sr. Deputado Costa Andrade. O PS pretendeu sublinhar com as suas propostas que este título, que passa a ser consagrado à política agrícola, tem um instrumento chave: o artigo 96.° Este preceito estabelece os chamados objectivos da política agrícola, clarificando que esta tem uma componente constitucionalmente vinculada e uma outra deixada à livre decisão das forças políticas que em cada momento são legitimadas pelo sufrágio popular para conduzirem essa mesma política agrícola. E a componente vinculada é aquela que está no artigo 96.° e é uma vinculação quanto aos objectivos da política agrícola. Aliás, já na Constituição actual, a reforma agrária aparece como subordinada a esses objectivos da política agrícola. Mais claramente, devo dizer que a reforma agrária não é, na minha interpretação constitucional, uma finalidade, em si, que se coloca no texto da lei fundamental ao lado da política agrícola. Essa era a situação que se poderia inferir da redacção da Constituição originária de 1976. Mas, em 1982, a alteração do n.° 1 do artigo 96.° clarificou quais passavam a ser os objectivos da política agrícola, pelo que o n.° 2 refere explicitamente que a reforma agrária é um dos instrumentos fundamentais da realização dos objectivos da política agrícola. Portanto, todos os instrumentos de reforma agrária que a Constituição consagra já estavam, desde 1982, subordinados aos objectivos da política agrícola. E, nesse sentido, é possível dizer que as propostas do PS não são preservadoras da reforma agrária, mas é técnica e juridicamente possível defender que o estatuto dos instrumentos da reforma agrária, que são todos os recuperados na proposta relativa ao artigo 96.° do projecto do PS, continuam a ser aqueles que decorrem da subordinação dos instrumentos da reforma agrária aos objectivos da política agrícola. Não há, de facto, sob esse ponto de vista, nenhuma alteração qualitativa que legitime interpretações miserabilistas. Consequentemente, continua a deixar-se à livre disponibilidade de quem detém o Poder em cada momento a decisão livre de se socorrer dos instrumentos característicos da Lei de Bases da Reforma Agrária. A integração do peso relativo dos instrumentos da reforma agrária no quadro da condução da política agrícola, tendo em linha de conta os objectivos que o artigo 96.° prefigura para esta política agrícola, é dependente da vontade do poder político em cada momento legitimado pelo sufrágio universal. E isto parece-me ser de uma coerência democrática inatacável.

Nesse sentido, à pergunta que o Sr. Deputado José Magalhães fez no sentido de saber se o enquadramento jurídico-constitucional não varria tudo, responder-lhe-ei que não. Esta é, pois, a linha de defesa da minha interpretação no sentido das propostas apresentadas pelo PS.

Perguntou-me igualmente se não haveria uma certa diferença da óptica do artigo 102.° quando se contrapõe a expressão "beneficiários" a "apoio preferencial" e se altera a estrutura da norma que consagra hoje um direito - eu diria aparentemente - para passar a referir um mero apoio do Estado. Creio que não há alteração substancial naquilo que é a lógica do artigo. Mais: há uma importante clarificação deste título todo. E digo isto porque, se a epígrafe do artigo 102.° fosse "Direitos dos pequenos e médios agricultores, das cooperativas de trabalhadores agrícolas e de outras formas colectivas de exploração", o Sr. Deputado José Magalhães teria razão. Estaríamos, então, perante um artigo construído na óptica dos direitos. Porém, a própria epígrafe do artigo consagra a expressão "Auxílio do Estado". É uma norma toda ela construída no sentido de impor obrigações ao Estado. Dir-me-á o Sr. Deputado José Magalhães que não há obrigações sem direitos e, consequentemente, se o artigo 102.° faz impender sobre o Estado uma obrigação é porque há implícita a consagração de um direito. Isto é, de facto, verdade e esse direito, que se consagra desta forma...

O Sr. José Magalhães (PCP): - Desculpe interrompê-lo, Sr. Deputado, mas não é uma questão implícita, mas sim explícita, porque o actual n.° 1 do artigo 102.° refere, in fine, a expressão "têm direito ao auxílio do Estado".

O Sr. António Vitorino (PS): - Não, Sr. Deputado. Referia-me não ao texto actual da Constituição, mas à fórmula adoptada pelo PS na sua proposta de substituição do n.° 1 do artigo 102.°

O Sr. José Magalhães (PCP): - Mas a pergunta que lhe formulei incidiu sobre as razões da transformação estrutural com conversão de um explícito, directo e claro, direito dos cidadãos em mera obrigação do Estado. Sublinho, aliás, este último aspecto.

O Sr. António Vitorino (PS): - Não creio que V. Exa. tenha razão, pois a lógica da construção da norma é mais da imposição de deveres do Estado, e não de meras obrigações, do que propriamente a consagração de direitos. Na realidade, a norma desde o seu início, até pela própria epígrafe e construção do n.° 2, está construída na óptica da definição de incumbências do Estado mais do que na da consagração de direitos. Portanto, a interpretação que faço é a seguinte: da construção da norma que fazemos no artigo 102.° resulta uma coerência interna dela mesma e não a diminuição de direitos. É evidente que, perante o que se consagra no artigo 102.° com base nas propostas do PS, os pequenos e médios agricultores e as cooperativas de trabalhadores agrícolas têm direito ao auxílio do Estado. Acontece, porém, que esse auxílio do Estado só se faz na precisa medida da prossecução dos objectivos da política agrícola e de acordo com a vontade do poder político em cada momento.

Nesse sentido, não creio que haja consequências quanto à eficácia dos direitos económicos, sociais e culturais e à natureza do auxílio do Estado, que continua, aliás, a ter a mesma epígrafe, que o PS adopta para este preceito no seu próprio projecto.

Finalmente, quanto à alusão ao Plano feita por V. Exa., julgo que ontem o Sr. Deputado Almeida Santos já explicou por que é que entendemos que não faz sentido proceder a uma referência a ele neste capítulo.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, desejo apenas fazer uma curta observação. As afirmações produzidas pelo Sr. Deputado António Vitorino deixaram-me, de certa forma, perplexo. Dir-se-ia: são

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de um grande incêndio para o meu tão pequeno fósforo! A causa das chamas não está seguramente naquilo que perguntei, mas sim noutros factos antecedentes. Trata-se, portanto, do saldo de outro debate, de um saldo do passado. Digamos que a centelha do PCP não incendiou toda a pradaria do PS. Neste momento, o incêndio vem de outro sítio...

O Sr. António Vitorino (PS): - De maneira nenhuma, Sr. Deputado. Eu disse até que as perguntas do Sr. Deputado eram moderato contabile, pelo que mais melodioso do que isto não posso ser em relação a elas!

O Sr. José Magalhães (PCP): - Devo dizer que me preocupa bastante o facto de o Sr. Deputado António Vitorino retomar, noutro tem e, provavelmente, ao abrigo da mesma táctica - admito que não a tenha mudado de ontem para hoje -, aquilo que era o argumento ou a démarche mais preocupante do PS nas reuniões de trabalho pretéritas.

Na verdade; seis anos depois da primeira revisão constitucional, o Sr. Deputado António Vitorino traz-nos a esta sede uma reinterpretação do adquirido desse processo inteiramente inédita. A única coisa que apetece perguntar é como é que ninguém se lembrou deste outro "ovo de Colombo", neste caso, "ovo de Vitorino"? E pergunto isto porque é verdadeiramente um ovo maravilhoso, caso se trate de um ovo e não aconteça que tenha de se esborrachar quando se tenta pô-lo de pé em termos de lógica.

O Sr. Deputado António Vitorino diz que a Constituição estabelece, após a primeira revisão constitucional, que a reforma agrária é um instrumento de política agrícola, ergo, todos os instrumentos da reforma agrária já estão, no fundo, dependentes das orientações e do enquadramento decorrentes da política agrícola. Se tendo eles, assim, este estatuto ancilar, a política agrícola for de certo tipo, serão accionados desta ou daquela forma os mecanismos para a reforma agrária ou até poderão não o ser. Se for outra a política, as coisas decorrerão de outro modo.

O Sr. Deputado António Vitorino, com esta simples démarche, e, pura e simplesmente, alterando um dos pressupostos do seu longo silogismo, consegue fazer uma desnaturação de conteúdo constitucional, transformar comandos legais em não comandos, obrigações em faculdades e deveres em liberdades.

Poderá ser defeito meu, em matéria de apreensão da bibliografia sobre esta área, mas nunca vi invocada essa exacta tese, embora já tenha visto invocadas muitas coisas: que as normas da Constituição neste ponto são "horrendas", que a reforma agrária é "colectivista", miserabilista, etc. Isto é absurdo, vale o que vale. Mas que a reforma agrária "nunca existiu" e "não existe constitucionalmente", que pode existir "ou" não existir - devo dizer, francamente, que nunca tinha ouvido! Até porque os que propõem a sua supressão usam como primeiro argumento - V. Exa. foi uma excepção nessa matéria - o de que a coisa que querem destruir "existe" constitucionalmente. Normalmente, não se propõe a destruição de um "zero constitucional", de um facultativo constitucional. O Sr. Deputado António Vitorino fez a démarche contrária.

O Sr. António Vitorino (PS): - Não, não! Escusa de ir mais longe, porque posso esclarecer já o que foi o que eu disse exactamente: não disse que inexistiam normativos em matéria de reforma agrária. Não, não! Eles estão lá, existem e são claros e inequívocos! O que eu disse foi que o Sr. Deputado José Magalhães não tinha razão ao dizer que nós destruíamos o enquadramento da reforma agrária, na precisa medida em que, já hoje, no texto da Constituição saído de 1982, se torna claro qual é o enquadramento da reforma agrária no quadro constitucional - é um dos instrumentos fundamentais da política agrícola. Portanto, os objectivos da política agrícola que constam do artigo 96.°, n.° 1, da Constituição já são hoje pano de fundo norteador da própria reforma agrária, na medida em que o próprio n.° 2 do artigo 96.°, que ao n.° 1 se subordina, diz que a reforma agrária é um dos instrumentos fundamentais da realização dos objectivos da política agrícola. Foi exactamente isso que eu disse - da nossa proposta, neste aspecto, é ilegítimo concluir que havia uma alteração de enquadramento da reforma agrária; nesta sede, o enquadramento é o mesmo - é sempre instrumento de concretização dos objectivos da política agrícola. Agora, o que o Sr. Deputado José Magalhães me pode dizer é que o PS altera alguns dos instrumentos da reforma agrária constantes do texto constitucional - e isso é verdade. Mas coloque a questão sobre os instrumentos, não a coloque sobre o enquadramento.

O Sr. José Magalhães (PCP): - V. Exa. afirmou que a reforma agrária, que existe constitucionalmente, está ancilarmente dependente da política agrícola. Mas está tão dependente da política agrícola que até possa ser objecto de redução ao limite mínimo - que é, como se sabe, em aritmética, o limite zero? Se a orientação da política agrícola, de que é instrumento a reforma agrária, for a de a reforma agrária ser simbólica, ela será simbólica? Se optar por uma boa e grande reforma agrária, será grande e boa? O Sr. Deputado junta-se à teoria da "reforma agrária para todas as cores". Só que, por azar, elimina o n.° 2 do artigo em referência: portanto, pode não haver reforma agrária para ninguém? Este raciocínio é que nós rejeitamos, por razão óbvia, caso exista.

O Sr. António Vitorino (PS): - Não é esse o raciocínio que fiz. O artigo 81.°, alínea h), da Constituição estatui claramente, como incumbência prioritária do Estado no plano económico e social, a realização da reforma agrária. Portanto, o Sr. Deputado José Magalhães não tem legitimidade para dizer que eu disse que no texto actual, hoje, seria possível reduzir a reforma agrária até ao zero. E não pode porque eu não disse isso, porque tenho o hábito de interpretar conjugadamente a Constituição.

O Sr. José Magalhães (PCP): - V. Exa. sabe fazer interpretação conjugada e sabe fazer propostas de alteração que, conjugadamente, podem esvaziar o conteúdo constitucional. A minha preocupação não é a primeira arte. É, antes, a segunda.

Creio que há, no raciocínio que o PS desenvolve nessa matéria, um vício nos pressupostos. E o vício é este: nos termos da Constituição, a política agrícola que

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tem de ser feita não pode ser uma política de liquidação da reforma agrária. Mais: na parte que diga respeito á reforma agrária - que é um instrumento da política agrícola - a política a realizar não pode deixar de obedecer a certas regras, enquadramentos e directrizes constantes da Constituição, na parte respeitante especificamente à reforma agrária, designadamente no que diz respeito à eliminação dos latifúndios, no que diz respeito à entrega das terras, ao estatuto dos que beneficiem da terra...

O Sr. António Vitorino (PS): - Não lhe passou despercebido o facto de que, embora o PS no artigo 81.° suprima como incumbência do Estado a realização da reforma agrária, substitui a alínea h), lá colocando claramente como incumbência do Estado a eliminação dos latifúndios. Toda a argumentação dos Srs. Deputados do PCP em relação às propostas do PS passou discreta e distraidamente sobre a alínea h) do artigo 81.° da proposta do PS. Pelo que a conclusão extraída pelo PCP de que nós, na nossa própria proposta, permitíamos que a política agrícola pudesse levar a reforma agrária ao zero, isto é, à supressão da incumbência de eliminar o latifúndio, é uma acusação injusta.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado António Vitorino, agradeço a precisão, porque lança um elemento adicional para um esclarecimento indispensável. Lembro, porém, que estabelecer-se uma incumbência mas deixar-se na dependência do legislador ordinário a realização de tudo aquilo de que depende o cumprimento dessa incumbência pode significar - se a definição dos meios ou das obrigações for flébil - a impossibilitação da realização dessa incumbência, reduzindo-a ao grau zero. Se V. Exa. escreve: "tu, legislador, 'deves' expropriar" - isso é totalmente diferente de escrever: "tu legislador, 'podes' ordenar a expropriação". É diferente! É a diferença entre a faculdade e a obrigação. Não vale a pena entrarmos nisso, porque é elementar.

O Sr. António Vitorino (PS): - Mas, em termos práticos, V. Exa. reconhecerá que, nos últimos dez anos, em que não houve expropriações no âmbito da reforma agrária, o resultado prático do texto puro, duro, maduro e seguro que V. Exa. defende é exactamente o mesmo que V. Exa. identifica como resultando da proposta que o PS apresenta. Nesse aspecto, a prática desmente-o.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, Sr. Deputado. Por isto: por causa da questão do retorno e da proibição do retorno. Como V. Exa. sabe, à data da entrada em vigor da Constituição, expropriações tinha havido - e tinha havido em montante substancial. Havia ainda, e há, áreas por expropriar, mas havia um acervo de expropriações realizado, um adquirido que foi consagrado constitucionalmente. Se se entender que os Srs. Deputados do PS vêm sustentar - agora, em 1988 - que, afinal de contas, não há proibição de retorno, que, afinal de contas, é possível transformar uma obrigação constitucional numa faculdade, incluindo com aplicação de cláusulas de retorno, é evidente que não só o Estado e os órgãos de soberania ficam libertos da obrigação de andar para a frente, como poderiam alcançar um estatuto que lhes permita, até, andar para trás. E andar para trás, constitucionalmente, com cobertura constitucional - admitindo que o artigo 290.° é ultrapassável neste ponto. É isso que nos preocupa e, em relação à questão do enquadramento, é isso que eu gostava de deixar bem excluído.

Não fui eu que disse - foi outrem, e consta do Diário da Assembleia da República, 2.a série, n.° 18, de 21 de Novembro de 1981, p. 419:

Quando se diz que algo pode ser objecto de expropriação, é evidente que isso significa que também pode não ser. É uma alteração essencial [essencial sublinho eu, agora, José Magalhães], que [diz o mesmo deputado] viola o artigo 290.°; não é aceitável.

E mais adiante:

Há aqui uma alteração essencial [na proposta da AD, de então] que é o facto de as terras expropriadas poderem ser entregues em propriedade sem limitação de dimensão. Devo dizer que, para nós, é o princípio em si e não o problema da limitação de dimensão que é importante.

E adiante:

O facto de a terra expropriada poder ser transferida em propriedade sem qualquer limite, nomeadamente quanto à sua penhorabilidade ou posterior venda, é, nalgumas zonas do País ou em determinadas circunstâncias, o mesmo que prever a recriação de grandes explorações privadas, designadamente a reconstrução do latifúndio ou da grande exploração capitalista - porquê? Porque o processo de concentração da terra se fez e se faz exactamente por este processo: o pequeno proprietário que não tem condições para conseguir aguentar a exploração da terra começa por hipotecá-la e acaba por vendê-la. Esta transferência de propriedade que é aqui prevista é uma experiência historicamente conhecida: são as reformas agrárias capitalistas feitas no século XIX na Europa e que não foram feitas em Portugal - excepto no que respeita à terra das congregações religiosas; em Portugal não foi feito, nomeadamente no Sul do País. Aqui, trata-se de tentar fazer agora a reforma agrária capitalista que foi feita noutros países no século XIX - substituir a reforma agrária que temos hoje na Constituição por este tipo de reforma agrária não é, de facto, a nossa posição, e não podemos assistir a este terramoto, a este sismo constitucional [sic]. Este é o problema decisivo, que implica, de facto, questões de filosofia - foi reconhecido na subcomissão que eram estas as questões decisivas; foi reconhecido na subcomissão pela própria AD. Não se pode esperar que nestas questões nós possamos estar de acordo.

Tudo isto foi dito pelo Sr. Deputado Luís Nunes de Almeida e pelo Sr. Deputado Almeida Santos em 1981, a propósito desta mesmíssima matéria. Devo dizer que uma das coisas que me impressionam mais é a ambiguidade do PS - já que o Sr. Deputado António Vitorino quis colocar a questão nestes termos - em relação à questão do não retorno e à proibição do não retorno. Entende o PS que esta proibição do não

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retorno pode ser derrogada e que, portanto, seria possível, neste quadro, reentregar terras, sem violar o artigo 290.°? Parece-me perfeitamente impossível! Se o PS admite isto, então não vale a pena fazer exercícios como os do Sr. Deputado António Vitorino, designadamente quato ao carácter ancilar da reforma agrária, e por aí adiante. Porque então o PS autoriza, não apenas o grau zero de realização da reforma agrária, mas graus absurdos de liquidação, de retorno; autoriza, expressa, explícita e directamente, a reconstituição do latifúndio. Não nos interessa se é exactamente da mesma forma, ou se a entrega é exactamente aos mesmos - serão outros, alguns dos antigos já morreram. É a terra! É a terra que é reentregue!

O Sr. Presidente: - Nós somos pela propriedade. Nesse caso, é óbvio, não há retorno.

O Sr. José Magalhães (PCP): - A lógica com que o Sr. Deputado António Vitorino procurou sustentar a posição do PS suscita-nos estas interrogações. Curiosissimamente, a AD tinha uma proposta na primeira revisão precisamente com a formulação "as propriedades com extensão ou dimensão excessiva". Isso - a ser assim - tem implicações de terramoto e não podemos, pela nossa parte, pôr-nos em moderatos cantabile's quando está em causa um terramoto deste tipo. Aplicando agora isto ao artigo que estávamos a apreciar directamente (e já prescindindo das questões de enquadramento, embora não as ultrapassando e não as podendo esquecer). Sublinho que o Sr. Deputado António Vitorino não só não respondeu à pergunta se varre tudo como creio que faz uma démarche, igualmente criticável, quanto ao conteúdo do actual artigo; a certa altura, V. Exa. põe-se a fazer interpretações contra constitutionem abertamente. Mas abertamente!

O Sr. António Vitorino (PS): - V. Exa. tem o privilégio de dizer o que é interpretação conforme à Constituição?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado António Vitorino, não queria colocar isso no terreno da humildade jurídica, porque aí assumo que não tenho privilégio nenhum, nem poderia ter.

O Sr. António Vitorino (PS): - Mas é conveniente, porque a afirmação é forte.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Apenas queria que V. Exa. fundamentasse minimamente aquilo que nesta matéria sustentou. O Sr. Deputado António Vitorino invocou - ouvi, posso ter ouvido mal, é óbvio- a lógica da norma actual, disse-me que visse a epígrafe, disse-me: "Tal qual V. Exa. poderia apurar, olhando a epígrafe." (V. Exa. perfeitissimamente sabe do valor jurídico das epígrafes...)

O Sr. Presidente: - Não é só a epígrafe. Há pouco o Sr. Deputado António Vitorino chamou a atenção para um argumento que V. Exa. não quer considerar - não é só a epígrafe. A epígrafe foi promovida pelo PS, pela primeira vez, em incumbência prioritária do Estado. Mas não é só a epígrafe, não é uma faculdade como outra qualquer - é uma faculdade, se quiser, já o disse, no quadro de uma incumbência prioritária, e que é eliminar os latifúndios. Não creio, na verdade, que justifiquemos a acusação de terramoto.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Mas, Sr. Presidente, estamos a falar do artigo 102.°

O Sr. Presidente: - Chame-lhe o que quiser, é sempre o problema da faculdade. Mas não é uma faculdade, é uma incumbência prioritária, a eliminação dos latifúndios. No artigo 97.°, onde diz que deixou de ser um dever-ser para passar a ser um poder-ser, o redimensionamento está referido à obrigação de incumbência prioritária do Estado. Além dissemos: é uma incumbência prioritária eliminar os latifúndios. Aqui dizemos: o redimensionamento que há-de resultar ou conduzir à eliminação do latifúndio será... et caetera. Não é o caso de uma faculdade, pura e simplesmente. Quer dizer: se um governo quiser fazer, faz; se não quiser, não faz. Se V. Exa. entender que as incumbências prioritárias do Estado estão cá só por estar, muito bem, mas, se entender que estão cá para serem cumpridas, não é uma faculdade. Do nosso ponto de vista, não passou de um dever-ser a um poder-ser, puro e simples. Passou a uma incumbência prioritária do Estado, o que, até hoje, não era. O que, até hoje, não é!

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, deputado Almeida Santos: nesse caso, troquemos! Até hoje "não é", é péssimo que "não seja", é um menos. Então deixemos o texto estar como está! É "péssimo", é "horrível". Troquemos calmamente o vosso "mais" pelo actual "menos"!

O Sr. Presidente: - Mas o projecto é nosso! Não é vosso! O projecto é nosso, e não quero que lhe imputem defeitos que ele não tem! Do vosso ponto de vista terá defeitos, é óbvio! Como, para nós, a vossa posição imobilista tem defeitos. Mas do que não há dúvida nenhuma é de que V. Exa. não pode colocar isto em termos de um terramoto só porque um dever-ser passa a um poder-ser. O que, aliás, nem é verdade, ut supra.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, creio que nestas matérias é sempre melhor fazer os testes no papel do que na vida. Isto porque ensaiar terramotos na vida pode ter consequências bastante inconvenientes.

O Sr. Presidente: - Quem usou a palavra "terramoto" foi V. Exa.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não fui eu, não! Foi o Sr. Deputado Luís Nunes de Almeida, mas creio que com felicidade e com correcção.

O Sr. Presidente: - Não, V. Exa. ainda agora falou nisso.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Falei sim, mas em citação do Sr. Deputado Luís Nunes de Almeida.

O Sr. Presidente: - Disse: não podemos admitir um tal terramoto. Isso não é terramoto. Nós erigimos a eliminação dos latifúndios em incumbência prioritária do Estado e propusemos um artigo a dizer como é que se irá remeter para a lei ordinária. Como hoje: a lei fixará os limites. É a mesmíssima coisa.

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O Sr. José Magalhães (PCP): - Por desgraça, Sr. Presidente, há duas coisas que o PS faz, simultaneamente: primeiro, trata de eliminar o limite material de revisão correspondente; mas, em segundo lugar, pergunto eu: viola ou não o princípio do não retorno?

O Sr. Presidente: - Para futuro, não para hoje! Ainda não concordamos com a eliminação daquilo que propomos aqui! Quando, um dia, viermos a concordar, responsabilize-nos por isso. Neste momento, estamos a tentar consagrar aqui aquilo que propomos. Depois, quanto ao que acontecerá no futuro, queremos uma responsabilidade de cada vez. Não me responsabilizo já pelo que iremos fazer no futuro.

O Sr. José Magalhães (PCP): - O esclarecimento, de qualquer forma, nunca é inútil - é necessário. Devo dizer que a solução tendente a aumentar a componente livre - utilizando a terminologia, aliás rigorosa, do Sr. Deputado António Vitorino - e diminuir a componente constitucionalmente vinculada na política agrícola não só não merece o nosso apoio como merece o conjunto de interrogações e advertências que pudemos, nas reuniões de ontem e de hoje, produzir.

O Sr. António Vitorino (PS): - E não só!

O Sr. José Magalhães (PCP): - E não só, como, Sr. Deputado?

O Sr. António Vitorino (PS): - Não são só advertências e interrogações.

O Sr. José Magalhães (PCP): - E críticas, Sr. Deputado!

O Sr. António Vitorino (PS): - Vá lá! Vale a pena assumir tudo.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Mas assumimos tudo, naturalmente! Não podemos assumir menos do que tudo, nem é caso para outra coisa - porque qualquer ambiguidade nesta matéria é censurável!

O Sr. António Vitorino (PS): - Isso é muito importante que assumam.

O Sr. José Magalhães (PCP): - É evidente que assumimos e esperamos que VV. Exas. assumam também! Mas gostaríamos que não assumissem - e tudo faremos para que isso não aconteça, aliás, democrática e adequadamente - um resultado da máxima gravidade. Nisso nos empenharemos, de resto, o que não nos pode ser levado a mal - achamos mesmo que nos deve ser levado a bem.

O Sr. Presidente: - O seu "gravidómetro" é que não está aferido pelo nosso. Temos outro, a nossa noção de gravidade é outra. Também medimos a gravidade, mas o nosso aparelho não conduz aos mesmos resultados do vosso.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Os dois aspectos que me parecem desgarrar-se meridianamente das vossas alegações, contra-alegações e mesmo na tréplica - se é que já é tréplica- é a fragilidade evidente do argumento

de que este aumento da componente livre não conduz à criação de um quadro favorável à reconstituição de latifúndios. Isto não teve resposta por parte dos Srs. Deputados do PS, em relação ao artigo 102.°...

O Sr. Presidente: - Já disse ontem a V. Exa. - só se não quis ouvir, ou então não quer lembrar-se, já que tem boa memória -, se queremos dar a terra em propriedade aos pequenos e médios agricultores, como pode passar-lhe pela cabeça que consintamos em que se lhes a tire? Obviamente que não. Se isso aqui não está claro, conte connosco para o clarificar - já lhe disse isso ontem.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Creio que as questões colocadas relativas ao artigo 102.° merecem resposta por si, autonomamente. O Sr. Deputado António Vitorino fez uma interpretação que me pareceu contra constitutionem. Assinalei esse facto, o que o levou a insurgir-se e a reinterpretar o preceito, dizendo que, embora seja certo que a Constituição estabelece aqui um direito, que um direito é um direito, pertencente à categoria dos direitos económicos e sociais, "verdadeiramente" a lógica da norma estaria mais construída noutra óptica - e repare-se na subtileza da correcção, porque, como é evidente, não é possível sustentar que a norma não esteja construída por forma a consagrar um direito: está-o expressa, literal e abertamente. A norma estaria "mais" construída na óptica das incumbências do Estado do que na óptica da consagração de direitos. Por consequência, o PS visaria, afinal e tão-só, repor o conteúdo desejado originariamente pelos constituintes...

O Sr. António Vitorino (PS): - Não vou tão longe.

O Sr. José Magalhães (PCP): - O Sr. Deputado António Vitorino não vai tão longe mas a proposta vai, diria mesmo que vai até ao fim, no sentido de substituir a lógica actual por uma outra.

O Sr. Presidente: - Não consideramos que exista uma diferença tão grande entre "têm direito a auxílio", estabelecendo-se a seguir que "o auxílio compreende nomeadamente", e "apoiará prefencialmente", seguindo-se "o apoio do Estado compreende nomeadamente". Não consideramos que exista esse fosso incomensurável entre uma coisa e outra. Pelo contrário, de algum modo pensamos que um dever de apoio da parte do Estado pode ter mais conteúdo, sobretudo se for referido uma vez mais aos objectivos da política agrícola, do que um vago direito sem dimensão. Porque qual é a dimensão do direito? É o n.° 2, que não só deixámos intacto como ainda o reforçámos. De facto, o final, que vem do artigo 100.°, tem mais significado ao lado do associativismo do que na actual colocação. Portanto, qual é o conteúdo deste direito para além do que se discrimina no n.° 2? Nenhum! O conteúdo do direito pode ser apenas um pouco mais do que zero.. Mantivemos o "nomeadamente", já hoje constante, e ainda acrescentámos algo à alínea d). Não existe, pois, o fosso abissal que V. Exa. procura encontrar entre o direito ao auxílio do Estado e o dever do Estado de apoiar preferencialmente. Não sei qual a formulação que vale mais, mas não estou preocupado com a redução que assinala nem, sinceramente, a vejo.

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O Sr. José Magalhães (PCP): - Não encontra nenhuma diferença, Sr. Deputado?!

O Sr. Presidente: - Não, não encontrei. A única coisa que na verdade conscientemente cortámos e já vimos - que, se eliminámos "outras formas de exploração colectiva", não houve intenção de reduzir e, pelo contrário, sempre mantivemos os "favores" existentes na Constituição - foi a referência ao Plano. E essa eliminação foi assumida porque entendemos que o Plano não deve ser omnipresente e a cada passo referido na Constituição. Mas, tirando este aspecto, e se tomar em conta a circunstância de que "a eliminação dos latifúndios" deve ser entendida em articulação com este artigo, tendo sido erigida em incumbência prioritária do Estado, o que não acontecia, verificará que não há razão para as suas preocupações.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Creio que são evidentes as diferenças existentes entre a redacção actual com a sua específica técnica normativa e aquela que o PS propõe. A opção por um ou outro esquema depende de critérios políticos. O PS segue o critério de alterar esta solução, que, como sabe, é a todas as luzes, face à técnica constitucional, mais favorável do que o esquema puramente obrigacionista. Isso é sabido e não me parece que seja grandemente refutável. Aparentemente, o que o PS desvaloriza é o conteúdo deste esquema, preferindo um outro que tem um grau inferior. Mas essa inferioridade não o preocupa excessivamente. Não podemos partilhar essa atitude, esse mudar de forma de tutela, que de resto é susceptível de ser potenciado interpretativamente. De facto, como dizia o Sr. Deputado António Vitorino, "o PS não tem a posse das suas propostas", é desapossável das suas propostas. Pois claro que é! Aliás, esse é um dos problemas fulcrais de toda a revisão e a questão é que o PS o entenda. Pode abrir-se margem para algumas das tais hermenêuticas perversas e indesejáveis...

Por outro lado, uma questão a que curiosamente não foi dada resposta - mas estamos perfeitamente a tempo - é quanto à alteração da lógica ou do equilíbrio nas preferências ou no "favor" que o preceito contém, na sua actual redacção, designadamente quanto às formas de exploração colectiva por trabalhadores com direito a auxílio do Estado. Porque a verdade é que, hoje, as outras formas de exploração colectiva por trabalhadores têm direito ao auxílio do Estado.

O Sr. Presidente: - Como já dissemos, estamos dispostos a incluir essa referência, não tendo da nossa parte havido intenção de eliminar. Julgou-se que isso estava incluído na referência às cooperativas, pela razão de que hoje elas são formalmente cooperativas, na medida em que a entidade jurídica não é a UCP, não existe uma pessoa colectiva chamada UCP, mas sim uma entidade colectiva chamada cooperativa. E, como se trata do titular de um apoio, pareceu-nos que deveríamos incluí-las nas cooperativas. Mas, se consideram que devemos aqui manter a referência expressa, mantenha-se. Já foi esclarecido que não houve intenção de eliminar...

O Sr. José Magalhães (PCP): - E isso aplica-se tanto ao n.° 1 como ao n.° 2.

O Sr. Presidente: - É evidente. Mas pareceu-nos que o titular, o sujeito; é a cooperativa e não a UCP, que não é uma pessoa jurídica. Mas, se quer referir a entidade empresarial económica, digamos assim, pois refira-se...

Srs. Deputados, vamos agora iniciar a análise do artigo 103.° Relativamente a este preceito, o CDS propõe a eliminação integral. Pelo seu lado, o PS propõe a eliminação pela simples razão de que recuperou a primeira parte desta norma do n.° 2 do artigo 96.° Considera também o PS que a referência ao "escoamento de produtos agrícolas no âmbito da orientação definida para as políticas agrícola e alimentar" é programática e talvez até nem se justifique na medida em que hoje nos enquadramos num espaço que tem uma política agrícola comum.

Por fim, o PSD, de algum modo, salva também a primeira parte e elimina a segunda, embora, ao mesmo tempo que fala em ordenamento e reconversão, introduza aqui também a referência ao redimensionamento fundiário, colocando-o na mesma dependência ou concordância com os condicionalismos ecológicos e sociais do País, o que nós não entendemos. Ou seja, não vemos que o redimensionamento fundiário tenha de ser colocado numa relação de conexão com os condicionalismos ecológicos e sociais do País. Na realidade, se for só assim, pouco será o redimensionamento. Penso que não terá sido essa a vossa intenção, mas, de qualquer modo, gostaria de ouvir as vossas ideias sobre este ponto.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Naturalmente, aquilo que propomos para este artigo deve também interpretar-se no contexto das nossas propostas, nomeadamente as relativas ao artigo 96.° Neste preceito, quisemos salvaguardar a noção de redimensionamento fundiário, que, do nosso ponto de vista, absorve um pouco o que deve ser preservado daquilo que a Constituição actualmente inscreve sob a ideia de eliminação dos latifúndios e minifúndios, no sentido da nossa política de redimensionamento fundiário. Só que, por um certo contágio com o próprio texto de onde esta ideia advinha, mantivemos a referência aos equilíbrios ecológicos e sociais do País.

No entanto, Sr. Presidente, Srs. Deputados, penso que esta é uma das propostas que terá de ser articulada e reformulada em conexão com aquilo que vier a ser aprovado em relação aos outros artigos, na medida em que, se conseguirmos que as nossas preocupações nesta matéria venham a ser satisfeitas por consensos noutras áreas, também não teremos dificuldades...

O Sr. Presidente: - No fundo, nós salvamos a primeira parte do artigo, e parece-nos que o redimensionamento fundiário tem de ser salvo sem referência aos condicionalismos ecológicos...

O Sr. Costa Andrade (PSD): - É também um. Os sociais são outros...

O Sr. Presidente: - Se incluíssem aqui a expressão "nomeadamente", de acordo.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Enfim, é uma proposta que naturalmente se conexiona com tudo aquilo que está em causa, razão pela qual existe da nossa parte

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a abertura para a discutir noutro contexto. Pode até acontecer que possamos prescindir da nossa proposta...

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Rogério de Brito.

O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Sem pretender inventar pensamentos que tenham passado pela cabeça dos proponentes do PSD nesta matéria, receio que da insistência no elemento condicionador que é a ecologia se possa pretender inculcar a que, se, por um lado, nalguns sítios se justifica o redimensionamento das pequenas explorações agrícolas (a pretexto de racionalização técnica ou económica ou de necessidade), por outro, razões ecológicas, poderiam "legitimar" a existência de latifúndios. Poder-se-á dizer - aliás esse tem sido um argumento já por diversas vezes utilizado - "não, existe o latifúndio no Sul porque lá chove pouco, porque os terrenos são mais pobres", sendo então precisos uns milhares de hectares para compensar. Este argumento não pode colher, não é racional, e como tal deve ser tido em devida consideração. Julgo que a razão desta insistência no condicionalismo ecológico reside um pouco no facto de se pretender, por via dele, justificar uma distorção da estrutura da propriedade fundiária. Em meu entender, esta expressão não está cá por acaso e tem um objectivo; não se trata de um engano. O ordenamento e a reconversão agrárias para efeito de razões ecológicas não são o mesmo que redimensionamento por, razões ecológicas. Terá uma ligação, mas, no entanto, caberia ao PSD clarificar. Senão estamos aqui a fazer insinuações...

O Sr. Presidente: - Finalmente, estamos de acordo com o PCP!...

Vozes.

O Sr. Rogério de Brito (PCP): - O que é que nós teremos dito de errado?!

Risos.

Levantaria agora um outro problema, sendo certo que até admito não ser uma questão de força maior em termos constitucionais, mas já o é o facto de se pretender retirar da Constituição a garantia que consiste em o Estado dever assegurar "o escoamento dos produtos agrícolas no âmbito da orientação definida para as políticas agrícola e alimentar, fixando no início de cada campanha os respectivos preços de garantia".

Não se trata tanto da fixação dos preços de garantia, o que constitui uma prática tornada corrente, mas sim da obrigação de assegurar "o escoamento dos produtos agrícolas no âmbito definido para as políticas agrícola e alimentar". E porquê? O Sr. Deputado Almeida Santos levantou a questão, referindo o facto de estarmos integrados num espaço económico. É realmente esse o problema: saber se a definição da política agrícola e alimentar é uma incumbência e um dever nacional, em função das próprias necessidades internas do País, ou se cedemos a definição desta política agrícola e alimentar à política agrícola comunitária. Em meu entender, é esta a grande questão de fundo. Ao retirar-se do texto constitucional a incumbência de o Estado assegurar o escoamento da produção agro-alimentar estar-se-á exactamente a entregar à política agrícola comum a definição da política agro-alimentar que Portugal deve seguir? Isso não acautelaria devidamente os interesses nacionais! Dir-se-á que esta previsão não carece de assento constitucional para que qualquer governo defenda perante as Comunidades os nossos interesses próprios e legítimos a nossa aspiração a uma economia agro-alimentar que não seja tida no conceito das Comunidades como marginal. A verdade é que, por alguma razão, o PSD quer retirar esta incumbência da Constituição, e nós pensamos que a omissão constitucional poderia constituir exactamente o reconhecimento ou a aceitação de uma cedência, de uma subordinação da política agrícola agro-alimentar nacional à da CEE, com todos os custos que essa situação acarreta, tanto mais que conhecemos a dimensão da conflitualidade entre os interesses de uma Comunidade submersa em excedentes e os de um país altamente deficitário e com percentagens de produção que, no contexto comunitário, são quase ilegíveis, dado situarem-se na casa das décimas. Isto é mais do que suficiente para que devamos impor a salvaguarda de interesses estritamente nacionais.

O Sr. Presidente: - Não me parece que esta referência tenha equilíbrio constitucional no quadro de uma agricultura não dirigida e cada vez menos planificada - visto também cortarmos a referência ao Plano, que deixa de ser omnipresente -, prever-se e assegurar-se o escoamento dos produtos agrícolas. E por que não preverem-se aqui também as casas, os serviços, os produtos industriais? O que é que justifica que se estabeleça esta referência apenas aos produtos agrícolas? As casas são um dos sectores em que somos mais deficitários. E se toda a gente resolve cultivar melões? O Estado tem de comprar todo o melão? E se toda a gente recorre à batata porque momentaneamente tem um bom preço? O Estado tem de a comprar toda? Isso acontece, mas será que tem dignidade de programa constitucional isolado, como uma política sectorial divorciada de todas as outras? Esta norma não tem dignidade para continuar na Constituição, o que não quer dizer, como é óbvio, que o Estado não deva fazer o possível por assegurar esse escoamento. É um desequilíbrio da actual Constituição, razão pela qual nos permitimos suprimir esta referência, convictos de que, neste aspecto, a Constituição só ganha em ficar mais enxuta.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Almeida Santos, o Sr. Deputado Costa Andrade não o disse ainda, mas, na óptica minimalista, a proposta do PS é "melhor" do que a do PSD.

Vozes.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Portanto, para nós é pior... O PSD, timidamente, tinha ido ao artigo 103.° e disse: "Ora vejamos... Cortemos..." E cortou o segmento final (timorato verdadeiramente!) Digamos que a diferença em relação ao PS (além de todas as outras que nós sabemos e que já constam abundantemente dos autos, e muitas são) reside apenas em que o PSD "só" suprime a parte final...

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O Sr. António Vitorino (PS): - Muitos? Ouvi bem? Tem de fazer a recensão, que é para nós ficarmos a perceber.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sucede que neste caso o PSD, tendo demolido muito, chegou aqui e sentiu apenas a necessidade de demolir a parte final, deixando de pé a parte central do preceito. A parte que se preocupou em demolir é esta (realmente "preocupante"!) obrigação estadual de assegurar "o escoamento dos protutos agrícolas no âmbito da orientação definida para as políticas agrícola e alimentar, fixando no início de cada campanha os respectivos preços de garantia". Foi isto que o PSD demoliu, entendendo provavelmente tratar-se de matéria que deve estar na disponibilidade, já não sequer do legislador mas do Governo, que é quem nesta matéria mais ordena.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Mas isso é óbvio!...

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado, é extremamente "óbvio"! Como é extremamente óbvia a falência dos agricultores, como são extremamente óbvias as regras do mercado, extremamente óbvio que o ministro em funções se chama Barreto, extremamente óbvio que circula de Bruxelas para cá e que, nos intervalos das viagens, faz o que faz...

Em todo o caso, o grande problema é que esta norma está aqui e a Constituição não é um museu. Não é o facto de estar aqui fixada esta regra que nos deve levar a considerar que é alguma coisa que, tendo entrado na história, não deve sair dela e que, sendo embora uma relíquia, deve ser preservada. Sucede que deve sê-lo!

Não é uma relíquia, Srs. Deputados! A norma foi colocada na Constituição por corresponder a uma velhíssima aspiração e uma preocupação normal dos agricultores. Sobre esse aspecto o meu camarada Rogério de Brito falará com bastante mais acuidade. Realço apenas que se trata também de uma garantia útil. É uma aspiração do passado e é uma aspiração do futuro. O facto de a Constituição estabelecer essa garantia não é mau para os agricultores: é bom! É, naturalmente, mau para um governo que esteja empenhado em fazer uma política contrária a esses interesses. Mas isso, francamente, não nos comove nada. O que nos pode comover é, precisamente, o contrário! Quanto mais o Sr. Deputado Costa Andrade se empenha na demonstração de que isso é péssimo para os governos, naturalmente, mais nos convence de que não deve ser alterado, porque sendo péssimo para os governos, e sendo excelente para aqueles que são obrigados a trabalhar a terra, não deve a Constituição ser amputada dessa dimensão. Convirá a alguns, mas aqueles a quem não convém merecem-nos, certamente, mais estima, e entendemos que a protecção constitucional que lhes é assegurada não deve ser suprimida.

Nenhum argumento de arquitectura clássica tão usado pelo PS (do género "libertemos a Constituição de certas colunas e de certos ornatos") se pode aplicar aqui. Esta norma é, realmente, uma coluna extremamente desprezível numa óptica citadina, urbana e não agrícola. Mas de uma óptica agrícola não nos parece uma coluna menor e desprezível, pelo contrário.

O Sr. Presidente: - Mas o PS elimina a mesma coisa. Por que é então que a proposta do PSD vai menos longe?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Elimina menos, segundo creio.

O Sr. Presidente: - Não, Sr. Deputado. Peço desculpa, mas a parte que o PS salva está no artigo 96.°, n.° 2.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, verificarei.

O Sr. Presidente: - Nós entendemos que está.

O Sr. José Magalhães (PCP): - No artigo 96, n.° 2, os Srs. Deputados referem-se apenas...

O Sr. Presidente: - Apenas a quê, Sr. Deputado? Está cá o seguinte: "O Estado promoverá uma política de ordenamento e de reconversão agrária, de acordo com os condicionalismos ecológicos e sociais do País". Cortámos a mesma coisa. E até cortámos porque também não vemos isto em qualquer Constituição, sobretudo daquelas que, enfim, habitualmente lemos. Não vejo em nenhuma delas regras garantia relativas aos preços dos produtos agrícolas.

O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Sr. Presidente, com sua licença, cumpre-me dizer que, por acaso, sei que havia algumas razões para se terem estes cuidados. Vou-lhe dar um pequeno exemplo* fugindo um pouco aos termos constitucionais.

A dada altura produziram-se cerca de alguns milhares de toneladas de bovinos com hormonas. Entretanto, a própria CEE decidiu embargar o consumo dessa carne, por se considerar que eram ainda duvidosas as consequências para a saúde dos consumidores de carne nessas condições. Pois acontece que Portugal não só autorizou a importação que a Comunidade tinha proibido, como, ainda por cima, promoveu o desmantelamento aduaneiro para facilitar a vinda dessa carne. Isto é de uma gravidade tremenda. Agora dir-se-á: mas é possível que isso se passe num país que pretende ter estatuto de desenvolvido?

O Sr. Presidente: - Tem toda a razão, mas pergunto-lhe: qual é a utilidade desta norma?

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Dá razão ao PS, porque tornaria a política agrícola comum vinculativa.

O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Sr. Presidente, perguntar-lhe-ia se não há garantia nenhuma. É claro que não há garantia nenhuma, e V. Exa. dire-me-á o mesmo. A Constituição pode evidentemente (e ainda mal!) não ser cumprida, mas eu acrescentaria agora a segunda parte: é que não só se fez isto como se deixou de garantir a colocação da produção nacional no mercado. O problema é este: os nossos produtores estão a produzir sem conseguir comercializar e nós estamos a mandar vir de fora com desmantelamento aduaneiro a carne cujo consumo foi proibido pelas organizações de saúde da CEE.

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O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, como assinala o relatório da Subcomissão sobre este artigo, o PS propõe, realmente, a eliminação da segunda parte do preceito e a reinserção sistemática da parte primeira como n.° 2 do artigo 96.° Fui autor deste relatório, mas ele "evaporou-se-me" da memória, o que torna incorrecta a qualificação que fiz anteriormente - facto que fica agora, obviamente, assinalado.

O Sr. Presidente: - Não há problema.

O Sr. António Vitorino (PS): - Não há problema. Se fosse a única incorrecta!

O Sr. José Magalhães (PCP): - Lamentavelmente, desconfio que é a única!

O Sr. Presidente: - Temos aqui uma proposta do PCP, sobre o artigo 103.°-A, no sentido de que a lei estabeleça "as condições em que, por motivos de defesa nacional, de ordem pública ou de protecção do património, deve ser limitada a apropriação ao solo nacional por parte de estrangeiros".

Relativamente a esta proposta, só pergunto: porquê na política agrícola? E porquê só a propriedade do solo? Não seria esta uma daquelas normas que, a consagrarem-se, deviam começar por sê-lo na lei ordinária - até a título de alguma discrição e de alguma eficácia - em vez de a colocarmos no frontispício do edifício constitucional? Parece-me que é uma norma deslocada no capítulo da política agrícola. Seria, quando muito, uma norma genérica relativa a todos os valores imobiliários, e não apenas ao solo.

Por outro lado, "defesa nacional", "ordem pública" e "protecção do património", penso que os verdadeiros valores não são estes. É capaz de ser antes a "independência".

De qualquer modo, queria dizer que há aqui uma preocupação que também perfilho. Com efeito, penso que devemos preocupar-nos com fenómenos que estão na base desta proposta, mas não me parece que a Constituição deva ser a moldura de uma proposta deste tipo. Isto é apenas uma opinião pessoal. Pode ser que o PCP me convença com a sua justificação.

Tem a palavra a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Pensamos ser claramente desnecessária esta definição. É desnecessária e tem algumas perversidades, porque o artigo 103.° tem por destinatários directos os estrangeiros e tem em conta a eventual limitação da apropriação do solo por estrangeiros, limitação essa que, a ser aqui inscrita, pode, eventualmente, colidir com a interpretação de algumas regras e princípios constitucionalmente consagrados. Por exemplo, como é que se vai interpretar de modo conjugado o artigo 103.° com o princípio da reciprocidade consagrado no artigo 15.°, n.° 1, para os estrangeiros residentes?

Outras questões se podem pôr.

Já o artigo 86.° da Constituição refere a necessidade de a lei disciplinar a actividade económica de estrangeiros, sendo sabido que essa actividade económica inclui, para além de outras componentes, o direito de adquirir bens para essa mesma actividade. As referências que aqui são dadas como causas dessa limitação de apropriação são suficientes em sede própria para arredarem quer a ilimitada apropriação do solo por estrangeiros quer quaisquer outras causas que contendam com a sua própria razão de ser.

Quanto à defesa, entendo, tal como o Sr. Deputado Almeida Santos, que o PCP terá pretendido aqui - mais do que referir-se à defesa - referir-se ao problema da independência nacional na acepção que lhe é comummente assinalada.

Quanto às outras referências, "ordem pública" e "protecção do património", relativamente a esta última já o artigo 9.°, na alínea e), a indica como uma das tarefas fundamentais do Estado; relativamente à "ordem pública", ela é um limite normal do exercício de qualquer direito. É-o já na teoria civilística como limite que demarca a própria figura do abuso de direito, e, por maioria de razão - dado que na ordem jurídico-política pública não se trata relativamente ao exercício de direitos de uma esfera de licitude como se passa com os particulares, mas de âmbitos mais delimitados, isto é, de esferas de possibilidades legal e constitucionalmente conformadas -, o limite de ordem pública haverá de ser um limite natural decorrente dos princípios gerais de direito e da interpretação conjunta desses princípios e de direito público. Parece-me, portanto, que em sede própria quer a defesa nacional, quer a ordem pública como princípio genérico de limitação de exercício de direitos, quer a protecção do património requererão tanto esta medida como outras medidas. Portanto, seria também, de certo modo, criar com este artigo a necessidade de ligar a estes fins a exclusividade de um meio e o fechar de portas a outros meios. Tem a ver com o atingir mais facilmente ou não esse mesmo fim. Era apenas isto.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Rogério de Brito.

O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Quer se queira quer não, o solo, a terra constitui um elemento que não é indissociável daquilo a que se denominará, e penso que bem, a soberania e a independência nacional de um país. Dificilmente se conceberá a soberania de um país se, por exemplo, o seu território for todo ele propriedade de estrangeiros. Por outro lado, o conceito de defesa nacional não é uma mera questão de estratégia geográfica. Defesa nacional passam também pela própria política alimentar. A garantia de salvaguarda de recursos fundamentais à própria sobrevivência do Estado, tal como, por exemplo, o património cultural, é, também ela, uma forma de exercício de soberania e da independência de um país, devendo, por isso, ser acautelada. É evidente que quando se criam reservas naturais o próprio conceito de reserva natural constitui um travão claro.

Mas nem sempre esta realidade se verifica. Ainda não há muito tempo, salvo o erro, em Silves, um estrangeiro pôde dar-se ao luxo de destruir vestígios da presença da arte, da realidade social, etc., de povos que outrora aqui estiveram. Tratava-se de um património cultural que deveria ter sido protegido e que, por falta de medidas legislativas que permitissem travar a destruição daqueles bens, pura e simplesmente foi destruído porque não estava integrado numa zona de protecção.

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Por outro lado, nesta questão da protecção do solo não será irrelevante atentar no exemplo de outros países. Penso na Constituição Espanhola, onde está acautelada tal garantia, assim como em constituições de outros países. Na própria CEE se tem a noção de que quando se estabelecem condições de igualdade de tratamento entre os cidadãos da própria Comunidade, mesmo assim não se podem dispensar cláusulas de salvaguarda dos direitos de cada país em matéria de propriedade do solo. Daí que a própria Comunidade tenha directivas e regulamentos que possibilitam que cada Estado membro exerça os seus direitos de soberania, pondo travões ao acesso de estrangeiros à propriedade dos solos. Pretendemos, porventura, também aqui, ser mais papistas do que o papa? Vamos rejeitar, no fim de contas, mecanismos que outros países adoptam, até pela compreensão dos riscos de uma integração que é extremamente ampla, mas que, por isso mesmo, também tem de acautelar determinados instrumentos mínimos para o exercício da soberania, que não pode ser posta em causa? Temos, por outro lado, a consciência de que, neste momento, o que se está a passar em várias áreas e zonas deste país de apropriação por estrangeiros de solos é, francamente, preocupante. Dir-se-á: "Mas pode-se dar resposta a isso, por via de lei ordinária." Pensamos que a dimensão e a importância desta questão tem dignidade constitucional.

O Sr. Presidente: - Tenho dúvidas sobre se esta norma é necessária para constitucionalizar as limitações. Temos de reflectir sobre isso. Se for, eu próprio considero que a norma tem sentido, embora não se deva referi-la aos conceitos de "defesa nacional", "ordem pública". Disfarçá-la-íamos o mais possível! Acentuamos o direito de propriedade, as limitações desse direito devem constar da Constituição. O caso de expropriação, por exemplo, está previsto, mas relativamente a este ponto, se não ficarem na Constituição as condições estabelecidas, nada me impede de vender o que é meu a quem eu quiser. Por que é que não hei-de vender a um estrangeiro? Se nós entendermos que esta norma é necessária para que limitações neste domínio não sejam inconstitucionais, devemos pensar nisso muito seriamente.

Se a norma não for necessária, acho que o pior sítio para a pôr é na Constituição, pela razão simples de que é onde ela mais se vê.

E num país que entra para a CEE e que consagra a liberdade, a igualdade de direitos, etc.? Só vejo bem esta norma na Constituição - e aí nós próprios temos de fazer uma segunda reflexão - se ela for necessária para constitucionalizar essas limitações. Temos de pensar. Temos de situá-la na definição do direito de propriedade. Dir-se-á: "sem prejuízo de o Estado, por razões de interesse nacional, poder estabelecer limitações à compra ou aquisição por estrangeiros do solo", etc.. Tudo isto está conexionado com o problema de saber o destino que vai ter a proposta do PSD, de o direito de propriedade passar ou não a ser inserido no capítulo "Direitos, liberdades e garantias." Se passar, é evidente que as restrições têm de ser previstas pela Constituição. Se não passar, como é provável, não é necessário, porque a lei ordinária não está impedida de estabelecer as limitações que o interesse nacional justifique.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, só desejaríamos que durante essa reflexão se tivesse em conta, pelo menos, isto: é que o estatuto dos estrangeiros tem de ser relido face à adesão às Comunidades. Evidência grossa e grande.

O Sr. Presidente: - Certo. Já falámos nisso quando o meu amigo esteve lá fora.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Mas é preciso ter em atenção não só esse facto como os riscos que decorriam de um eventual reenquadramento - que espero ficcional - do estatuto da propriedade privada. A inexistência de uma cláusula desse tipo, nesse contexto, poderia originar dificuldades do género daquelas que citou, até porque se deve ter em conta o que dispõe o artigo 86.° e as obras que alguns dos Srs. Deputados pretendem fazer nele. O artigo 86.° respeita à actividade económica e investimentos estrangeiros. Se os senhores fazem releituras do artigo 86.° que não tenham em conta este aspecto (não admitindo já a hipótese grossa de reenquadramento do estatuto da propriedade privada!), podem criar uma situação para a qual não haja saída, em termos de defesa do interesse nacional.

O Sr. Presidente: - Não criaremos. Srs. Deputados, retomaremos os nossos trabalhos pelas 10 horas da manhã. Está encerrada a reunião.

Eram 19 horas e 20 minutos.

Comissão Eventual para a Revisão Constitucional

Reunião do dia 22 de Junho de 1988

Relação das presenças dos Srs. Deputados

Rui Manuel P. Chancerelle de Machete (PSD).
Carlos Manuel de Sousa Encarnação (PSD).
António Costa de Sousa Lara (PSD).
José Álvaro Pacheco Pereira (PSD).
José Augusto Ferreira de Campos (PSD).
José Luís Bonifácio Ramos (PSD).
Licínio Moreira da Silva (PSD).
Luís Filipe Garrido Pais de Sousa (PSD).
Manuel da Costa Andrade (PSD).
Mário Jorge Belo Maciel (PSD).
Miguel Bento da Costa Macedo e Silva (PSD).
Rui Alberto Limpo Salvada (PSD).
António de Almeida Santos (PS).
António Manuel Ferreira Vitorino (PS).
Jorge Lacão Costa (PS).
José Manuel Santos Magalhães (PCP).
Rogério de Sousa Brito (PCP).

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