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Quarta-feira, 26 de Outubro de 1988 II Série - Número 52-RC

DIÁRIO da Assembleia da República

V LEGISLATURA 2.ª SESSÃO LEGISLATIVA (1988-1989)

II REVISÃO CONSTITUCIONAL

COMISSÃO EVENTUAL PARA A REVISÃO CONSTITUCIONAL

ACTA N.° 50

Reunião do dia 22 de Julho de 1988

SUMÁRIO

Procedeu-se à discussão do artigo 276.° e respectivas propostas de alteração; da proposta de artigo novo - artigo 276. °-A - apresentada pela 1 D, e dos artigos 240.º a 243.° e respectivas propostas de alteração.

Durante o debate intervieram, a diverso titulo, para além do Vice-Presidente, Almeida Santos, no exercício da presidência, pela ordem indicada, os Srs. Deputados José Magalhães (PCP), Miguel Macedo e Silva (PSD), Rogério Moreira (PCP), Raul Castro (ID), Pais de Sousa (PSD), Rui Gomes da Silva (PSD), Ferreira de Campos (PSD), João Amaral (PCP), António Vitorino (PS), Carlos Encarnação (PSD) e Narana Coissoró (CDS).

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O Sr. Presidente (Almeida Santos): - Srs. Deputados, temos quorum, pelo que declaro aberta a reunião.

Eram 11 horas e 5 minutos.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, vamos começar com o artigo 276.° Há uma proposta coincidente do PCP e do PS, no sentido de que a defesa da Pátria seja não apenas um dever fundamental de todos os portugueses, mas um direito e um dever.

Há, também, uma proposta, apresentada pela Sra. Deputada Helena Roseta, no sentido de que "a defesa da Pátria e a protecção civil do território são deveres fundamentais de todos os portugueses"; portanto, põe a defesa da Pátria ao lado da protecção civil do território e vice-versa. No n.° 2 diz: "A prestação de um tempo de serviço nacional é obrigatória, nos termos e pelo período que a lei prescrever", portanto não seria apenas obrigatório o serviço militar, mas um serviço nacional que englobaria naturalmente o serviço militar. No n.° 3 diz: "Os cidadãos poderão optar por serviço militar armado, serviço militar não armado ou serviço cívico". Ficaria, portanto, à escolha do cidadão a prestação de qualquer destes serviços.

Quer o PCP justificar a sua proposta?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: O artigo da Constituição que tem por epígrafe "Defesa da Pátria, serviço militar e serviço cívico" é uma norma, com uma pluralidade de componentes, que se reveste de um alcance, jurídico-constitucional, extremamente relevante, do ponto de vista da fixação, por um lado, de um quadro geral no qual os cidadãos se devem movimentar no tocante à defesa da Pátria; por outro lado, estabelece, com razoável precisão, um feixe de deveres fundamentais e também um feixe de direitos que são precisamente definidos e relacionados com a mesma matéria e cujo estatuto é o de direitos análogos aos direitos, liberdades e garantias. A conexão entre esses direitos e esses deveres é evidente, mas por vezes suscita dificuldades. O próprio regime das obrigações públicas dos cidadãos reveste-se das complexidades que tivemos ocasião de nos aperceber durante o debate da parte primeira da Constituição.

As propostas do PCP, nesta matéria, têm uma inovação que pensamos susceptível de colher um generalizado apoio, pelo que nos pudemos aperceber de trocas de impressões formuladas a partir do momento da apresentação das propostas de revisão constitucional. Traduz-se a nossa proposta na consagração do direito fundamental dos cidadãos à defesa da Pátria. A razão básica deste aditamento é a de que a leitura da posição jurídica do cidadão, quanto a todas as questões de defesa nacional, não deve traduzir-se só, não se deve esgotar, na proclamação ou na garantia de que o cidadão deva, quando o Estado o entenda, prestar tal ou tal forma de serviço, sujeitar-se a este ou àquele dever (como sabemos, muitos são) na vasta gama de situações tornadas necessárias pela defesa da Pátria. A ideia de a defesa da Pátria ser um direito tem, naturalmente, todas as implicações decorrentes do facto de que, como direito, esta posição jurídica subjectiva dos cidadãos não é senão susceptível de ser lida com as garantias e com as cautelas de não restrição próprias de todos os direitos fundamentais.

A norma que propomos implica uma clarificação, mas, por outro lado, um acréscimo de tutela, impeditivo da marginalização ou da introdução legal e prática de medidas discriminatórias, de estatutos discriminatórios de qualquer categoria de cidadãos. A leitura das posições respectivas Estado-cidadãos tem de passar a fazer-se tendo em conta que o Estado, os órgãos de soberania não podem expropriar os cidadãos desta sua componente cívica, traduzida numa faculdade de "agir e exigir (na definição clássica) prestações e acções" em matéria de defesa nacional.

Creio, portanto, Sr. Presidente e Srs. Deputados, que, se o dever de defesa da Pátria é um dever total quanto a meios, quanto a situações e se se desdobra numa pluralidade de implicações, a consagração explícita e directa de um direito fundamental à defesa da Pátria vem enriquecer substancialmente fulcrais dimensões intersubjectivas e subjectivas relacionadas com esta importante temática.

E esse o sentido fundamental da proposta apresentada pelo Grupo Parlamentar do PCP.

O Sr. Presidente: - Também ao PS apareceu que o dever de defesa da Pátria não deve ser encarado como uma pena, como uma obrigação, mas que tem exactamente o outro lado, o lado que enobrece quem a defende. Isto pode ter consequências no domínio da contribuição das mulheres para a defesa da Pátria, em tarefas que sejam compatíveis com as suas aptidões específicas no aspecto físico.

Tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Macedo e Silva.

O Sr. Miguel Macedo e Silva (PSD): - Só para, de forma breve, dizer que, para os deputados do PSD, se perdeu mais uma oportunidade, durante este processo de revisão constitucional, para desconstitucionalizarmos a obrigatoriedade do serviço militar. Isto traduz uma posição política da JSD há muitos anos expressa, tanto quanto me lembro desde 1978, e mediante a assunção da qual estamos em desacordo com a posição, inclusive, do PSD e também, pelo que aqui se vê pelas propostas em relação a este artigo, com as dos restantes partidos políticos.

Em relação a esta matéria o nosso entendimento é o seguinte: não se trata de discutir, nesta sede e agora, se o serviço militar deve ou não ser obrigatório. O que nós defendemos é que não vemos razão, bem pelo contrário, para que o serviço militar seja constitucionalmente obrigatório. É esta posição que há muito vimos repetindo e em relação à qual tivemos o grato prazer de, bem recentemente, ter a adesão de outras forças políticas de juventude, mormente da Juventude Socialista, que, a este propósito, também já se pronunciou neste sentido. Aliás, acresce que se outras razões não houvessem - e há razões substanciais neste sentido -, estatísticas recentes, que vieram a lume acerca desta matéria, dão-nos razão criando, simultaneamente, alguns problemas relativamente a algumas destas propostas, muito embora sendo admissíveis em termos conceituais.

Mas aquilo que ainda há pouco tempo veio a público, através da comunicação social, é que, de facto, só uma parte minoritária, bastante minoritária, dos mancebos que em cada ano são recenseados para o serviço militar é que efectivamente o cumprem. E isto

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agravado pelo facto de não se saber exactamente quais os critérios que presidem à escolha dos mancebos recenseados e inspeccionados em cada ano para a prestação desse serviço militar. São assim criadas situações de grave injustiça, para além das críticas que todos fazemos relativamente à forma e às condições em que é prestado o serviço militar, que, na prática, é entendido por muitos jovens como, pura e simplesmente, um desperdício de tempo. Não é essa a posição que defendemos. Entendemos que a defesa nacional e o serviço militar são questões muito importantes e em relação às quais é merecida uma reflexão profunda e séria, mas, ainda a semana passada, um semanário trazia um inquérito em que pretendia traduzir a opinião que é, de facto, a opinião predominante no seio dos jovens em relação à questão do serviço militar. E porque existe essa opinião era importante que nós aqui, na revisão constitucional - e por isso disse que tínhamos perdido uma oportunidade -, tivéssemos porventura tido a possibilidade de discutir a vantagem ou desvantagem de ter constitucionalizado a obrigatoriedade do serviço militar.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Rogério Moreira.

O Sr. Rogério Moreira (PCP): - Queria fazer um pedido de esclarecimento ao Sr. Deputado Miguel Macedo.

O Sr. Presidente: - Faça favor, Sr. Deputado.

O Sr. Rogério Moreira (PCP): - O Sr. Deputado Miguel Macedo começou por dizer que não se tratava de discutir a obrigatoriedade. Depois, no fundo, a discussão que acabou por introduzir na sua intervenção relacionou-se directamente com o problema da obrigatoriedade do serviço militar. A dúvida que tenho e que gostaria que V. Exa. me procurasse esclarecer é: defendendo a sua organização (embora não tenha tido acolhimento em qualquer proposta, designadamente do seu grupo parlamentar, a apresentar em sede de revisão constitucional) a desconsagração do serviço militar como obrigatório, que tipo de serviço militar estão VV. Exas., no fundo, a pretender que seja instituído no nosso país?

Essa é a dúvida que importa tratar, porque não oferece dúvida que a JSD procura agradar aos jovens, para quem o serviço militar é extremamente penoso. Ora, sucede que o problema estará mais nas características e formas de prestação do serviço militar do que propriamente nas suas características de serviço militar obrigatório tal como está constitucionalmente definido.

Sendo evidente que a JSD procura desenvolver algum charme junto dos jovens que sentem uma situação tão aflitiva como é o cumprimento do serviço militar, o que importa é saber qual é a outra face da moeda. Não sendo o serviço militar obrigatório, o que é que seria o serviço militar obrigatório? Seria um serviço militar profissionalizado? É esse que defendem? E mais: qual o grau de ousadia, afinal de contas, das vossas propostas? Aquilo que verificamos é que é pouco frontal e bastante ínvio dizer: "a nossa atitude é outra, mas também não se trata agora de a discutir, ficará para outras núpcias". Em rigor, o que é que o Sr. Deputado Miguel Macedo tem a dizer-me quanto a estas considerações?

O Sr. Miguel Macedo e Silva (PSD): - Em relação a esta matéria, queria dizer o seguinte: esta posição, ao contrário daquilo que pode transparecer da sua pergunta, não é, em absoluto, uma posição cómoda para a JSD. E bem se vê pelo resultado das propostas de revisão constitucional apresentadas pelos restantes partidos. Nenhum é a favor da desconstitucionalização do serviço militar. Não se pretenda inculcar a ideia, errada, de que esta é uma posição fácil com a mirífica ideia da JSD de atrair muitos jovens ao seu seio, porque pretende a desconstitucionalização do serviço militar. Bem pelo contrário, esta é uma luta que já travamos há muitos anos, que me lembre desde 1978, e em relação à qual - e pagando o tributo por essa luta - temos arrostado, inclusive dentro do PSD, com algumas incompreensões e algumas dificuldades, coisa que se estende, e também tive oportunidade de referir no início desta minha intervenção, como se vê pelos projectos de revisão apresentados, a todos os outros partidos.

A posição política da JSD é que nós não vemos razão para a constitucionalização da obrigatoriedade do serviço militar.

Outra questão é saber se o serviço militar deve ou não ser obrigatório, e em que termos é que esse serviço militar deve ser prestado. Inclusive, nós, na altura em que se discutiu, julgo eu, a Lei de Defesa Nacional e a Lei de Enquadramento e quando se pôs, depois, a questão da redução da prestação do serviço militar obrigatório, uma ideia que perpassou no debate foi a de que, de facto, ainda não estão reunidas as condições para que os jovens, no exercício de uma obrigação constitucional, que é a prestação do serviço militar, possam, eles próprios, individualmente considerados, sentir-se realizados e ao mesmo tempo aproveitar uma experiência que, nós não desmentimos, pode ser rica e importante para a personalidade de cada pessoa, de cada indivíduo. Inclusive, eu, tendo a opinião que tenho, passei pelas fileiras das forças armadas e cumpri o meu dever como cidadão, coisa que não acontece com muitos que são a favor da prestação do serviço militar obrigatório. Mas, isso é outra matéria, não estamos - e isto que fique claro - com esta posição a defender umas quaisquer forças armadas profissionalizadas. A posição que, até este momento, tem prevalecido é que a desconstitucionalização do serviço militar não significa a profissionalização das forças armadas. Significa é que nós não vemos razão para que esta obrigatoriedade esteja constitucionalmente consagrada.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Rogério Moreira.

O Sr. Rogério Moreira (PCP): - Creio que a discussão anterior é extremamente útil e por si mesma demonstra os perigos que correríamos caso, em sede de revisão constitucional, introduzíssemos o debate a outro nível, qual seja o da desconstitucionalização do serviço militar obrigatório tal qual ele hoje se encontra consagrado.

É interessante que, como comprova a resposta que agora mesmo me foi dada pelo Sr. Deputado Miguel

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Macedo e Silva, aquilo que os defensores desta solução não conseguem demonstrar é qual a alternativa a um serviço militar não obrigatório. O Sr. Deputado Miguel Macedo e Silva, depois de vários circunlóquios, acabou por dizer que não defende um serviço militar profissionalizado, mas o problema é que o fio continua um pouco enredado e continuamos a não ver o final da meada: não sendo o serviço militar obrigatório, então para onde caminharíamos e que características teria o serviço militar a cumprir? Eis o que exige resposta inequívoca!

Quanto a nós, o problema não se traduz tanto na existência da norma constitucional, mas acima de tudo nas condições em que o serviço militar é prestado, na forma como os jovens são tratados no serviço militar, no grau de responsabilidade que é ou não atribuído aos jovens quando do cumprimento do serviço militar.

Aliás, é nosso entendimento que as condições actuais de prestação do serviço militar estão extraordinariamente aquém daquilo que seria útil, desejável e até daquilo que seria mais capaz de propiciar aos jovens, durante a prestação de serviço militar, um período de exercício da cidadania e de acquisição de noções relacionadas com a defesa da Pátria, com a defesa do nosso país, que pressupõe conhecimento apurado das suas realidades.

Isto verifica-se, acima de tudo, porque as lacunas ao nível da instrução dos jovens que prestam o serviço militar são enormes. Além do mais são inseguras, como ultimamente se tem verificado, de forma infelizmente assinalável, mas, em geral, as próprias condições materiais de vida nas unidades militares são extraordinariamente indesejáveis, e naturalmente provocam a repulsa e o desagrado de muitos jovens. Em nosso entender, há muito a alterar, desde a forma de pagamento dos jovens no serviço militar - hoje a níveis absolutamente ridículos e que não dão para satisfazer necessidades mínimas - até às próprias condições de alojamento, alimentação, transporte, que deve ser adequado para os jovens que prestam serviço militar quando saem das unidades e se dirigem às suas casas, até ao regime de ocupação dos próprios tempos livres nas unidades (que hoje ocorre, muitas vezes, sob formas menos correctas e mais propiciadoras de comportamentos desviantes dos jovens, do que de uma vida cultural e desportiva mínima nas unidades).

E por isso mesmo entendemos que a discussão profunda a ser travada é, sobre a forma como deve ser prestado o serviço militar, no actual quadro constitucional, que, previsivelmente, será aquele que se manterá após esta revisão. Esse é o debate, a que, visivelmente, outros se têm furtado, com recurso, essa resposta fácil, que não revela nitidamente o outro lado da moeda, como ainda há pouco me pareceu ter ficado relativamente demonstrado. Mas é esse debate, sem dúvida mais difícil (até porque menos facilitador de soluções, afinal de contas, impossíveis de concretizar), que importaria fazer. É nesse terreno que devem ser amadurecidas e confrontadas as opiniões.

Aliás, mesmo em sede de legislação ordinária, nós acabámos de entregar há dias no Plenário um projecto de lei que prevê formas de compensação, de melhoria de situação dos jovens no serviço militar, considerando que a própria Lei de Serviço Militar, aprovada o ano passado, não foi suficientemente longe nesse domínio.

Seria muito útil se todas as forças políticas, e especialmente os deputados jovens, neste caso concreto também, se disponibilizassem para discutir nessa sede.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Raul Castro.

O Sr. Raul Castro (ID): - Afigura-se-nos que as alterações propostas, quer pelo PCP, quer pelo PS, são, aliás, concordantes e traduzem um aspecto que para nós é muito importante e nos parece dever salientar.

Tal como estava redigida a Constituição, e ao considerar a defesa da Pátria apenas como um dever, naturalmente que a ideia que andaria associada a isto era a de que se trataria de impor alguma coisa, contra, porventura, a opinião dos cidadãos. Isto é, a ideia de que a defesa da Pátria era apenas um dever deixava de lado uma ideia complementar, que nos parece muito importante sublinhar: é que a defesa da Pátria não é só um dever, mas também um direito dos cidadãos. Isto, portanto, significa, em primeiro lugar, conduzir ao lugar próprio a natureza da defesa da Pátria e, por outro lado; contrabater um conceito que. formulado como estava, podia dar a impressão de que se tratava, quanto a uma matéria tão fundamental como esta, apenas de um dever e não de um direito.

Naturalmente que estas considerações têm alguma coisa a ver com a obrigatoriedade do serviço militar, porquanto, se se trata realmente, quanto à defesa da Pátria, de um direito e de um dever, com certeza terá de ser o serviço militar obrigatório. E dificilmente podemos ver como compatibilizar a ideia de desconstitucionalizar o serviço militar obrigatório com o desaparecimento da sua própria obrigatoriedade. Porquanto a alternativa que parece resultar da intervenção do Sr. Deputado Miguel Macedo seria, digamos, não contestar, tanto quanto percebi, essa obrigatoriedade, mas deixá-la relegada para a lei ordinária. Isto, portanto, entraria, a nosso ver, em choque com o próprio conceito, que é um conceito que, suponho, ninguém põe em causa, de que, efectivamente, a defesa da Pátria é um direito e um dever de todos os cidadãos.

Por estas razões, naturalmente, Sr. Presidente, subscrevemos as propostas do PS e do PCP.

O Sr. Presidente: - Aqui só estão em causa estas duas propostas, não está em causa constitucionalizar ou desconstitucionalizar a defesa obrigatória da Pátria, a prestação obrigatória do serviço militar; salvo no projecto n.° 6/V, da Sra. Deputada Helena Roseta, que infelizmente não temos aqui para a justificar.

Admito que se aproxime de nós um mundo novo em que todos estes conceitos possam merecer uma nova ponderação. Não creio que esse mundo tenha já chegado. Por outro lado, também tenho muito receio de duas coisas. Primeira: se nós viéssemos a desconstitucionalizar a obrigatoriedade da prestação do serviço militar, era quase impossível manter essa obrigatoriedade na lei geral, depois de ter estado na Constituição e deixado de estar. Compreendo os jovens, mas tenho um pouco a impressão de que, em relação a este problema, estão um pouco na atitude psicológica do contribuinte em relação aos impostos! De modo que teremos de aguardar que o tal mundo novo se aproxime de nós e não seja apenas uma perspectiva de futuro.

Tem a palavra o Sr. Deputado Pais de Sousa.

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O Sr. Pais de Sousa (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Muito brevemente, só para lavrar a posição do PSD, em sede do artigo 276.°

A nossa posição é a que decorre da não apresentação de qualquer proposta de alteração, e, portanto, da manutenção do princípio da defesa da Pátria, por um lado, e entre outros do princípio da obrigatoriedade do serviço militar.

Quanto às alterações propostas, quer pelo PCP quer pelo PS, ou seja, o entendimento da defesa da Pátria como um direito e dever, o nosso partido não tem qualquer objecção a essa posição. Resulta, de alguma maneira, de um certo debate teórico realizado até aqui na área da defesa nacional.

E queríamos ainda acrescentar, muito brevemente, quanto a algumas objecções colocadas, independentemente do acolhimento que possam ter, mas colocadas, particularmente, pelo Sr. Deputado Rogério Moreira, que nos parece que elas, independentemente da sua procedência ou improcedência, se colocam no terreno da lei ordinária. E é nessa sede que devem ser acauteladas e vistas com ponderação.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, vamos entrar na apreciação do capítulo referente ao poder local. O Sr. Deputado Raul Castro tem uma objecção?

Pausa.

Tem a palavra.

O Sr. Raul Castro (ID): - Sr. Presidente, lembro aquela proposta de aditamento, o artigo 276.°-A do nosso projecto.

O Sr. Presidente: - Esse não foi já discutido?

O Sr. Raul Castro (ID): - Eu creio que não!

O Sr. Presidente: - É que me foi dito só faltar este. Peço desculpa!

A ID, no seu projecto (n.° 7/V), prevê o aditamento do artigo 276.°-A, que estipula: "É proibido o fabrico, o estacionamento e o trânsito de armas nucleares em todo o território nacional".

Tem a palavra o Sr. Deputado Raul Castro.

O Sr. Raul Castro (ID): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Naturalmente que, por um lado, afigurou-se à ID que era este o local próprio para colocar esta nova disposição constitucional, e, por outro lado, quanto às razões de fundo que levaram à sua apresentação, elas decorrem daquilo que é já hoje um fortíssimo movimento não só em Portugal, mas em vários países estrangeiros, nomeadamente na vizinha Espanha, quando, a nível de municípios, vai alastrando a tomada de posição por parte destes no sentido de serem consideradas zonas livres de armas nucleares.

Parece, portanto, que, verificando-se que isto corresponde a uma tendência, que poderemos dizer crescente e cada vez mais generalizada, por parte dos nossos municípios, e também do movimento que não se limita ao nosso país, mas até a diversos países da Europa, como a Espanha, seria a Constituição a dever consagrar esta norma, que corresponde, digamos, a uma atitude já tomada pelas autarquias e que visa consagrar aquilo que, julgo, não merecerá objecção, visto

que na prática, pelo menos teoricamente, é um princípio já afirmado por toda a gente. Até se tem argumentado que, mesmo em relação a Portugal, nunca nenhuma arma nuclear aqui poderia ser estacionada, ou poderia aqui transitar, sem autorização do Governo Português.

Pois, se assim é, mais uma razão para se poder consagrar constitucionalmente esta nova disposição do artigo 276.°-A, que visa precisamente salvaguardar o perigo do trânsito, fabrico e estacionamento no nosso país de armas nucleares.

O Sr. Presidente: - Algum dos Srs. Deputados quer usar da palavra sobre esta matéria?

Pausa.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, já tivemos ocasião de abordar esta matéria quando discutimos, por um lado, aspectos de política internacional, das relações externas do Estado Português e, por outro lado, questões relacionadas com as competências próprias da Assembleia da República. Daria, portanto, por reproduzidas as considerações então feitas sobre o mérito, o alcance, os limites e as implicações de uma proposta deste tipo, sobretudo porque alguns dos Srs. Deputados de outras bancadas manifestaram uma intenção de voto negativa. Importa ter em boa conta esse facto anunciado.

Pela nossa parte, não gostaríamos que se produzissem quaisquer efeitos perversos, em termos hermenêuticos. A matéria deve ser encarada à luz das competências dos órgãos de soberania, tal qual elas se encontram definidas, e, por outro lado, à luz dos princípios pelos quais o Estado Português está vinculado em matérias de política internacional. Remeto, portanto, para o mérito dos autos nessa matéria.

O Sr. Presidente: - Mais algum dos Srs. Deputados deseja usar da palavra?

Pausa.

Nós também faremos o mesmo. Já tivemos oportunidade de discutir esta matéria e agora só juntávamos o seguinte: compreendendo embora as preocupações que estão na base desta proposta, que são comuns a todos nós, penso que constitucionalizar esta proibição era retirar ao Estado alguns trunfos diplomáticos. Daríamos uma garantia unilateral a outros países de que em caso nenhum isto aconteceria, sem que tenhamos a garantia recíproca desses mesmos países em relação a nós.

Penso, portanto, que se deve deixar ao Estado a liberdade de, através dos órgãos legítimos, se pronunciar, provavelmente neste sentido, mas sem dar uma garantia, que não temos dos outros países, em relação a nós próprios. É esta a nossa posição.

Tem a palavra o Sr. Deputado Rui Gomes da Silva.

O Sr. Rui Gomes da Silva (PSD): - O PSD também não vê razões para constitucionalizar este tipo de matérias. Até porque, em determinado momento, o PSD terá definido posições e, nomeadamente em relação à competência em termos internacionais do Estado Português, através dos seus órgãos de soberania competentes. Era só isto.

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O Sr. Presidente: - Creio que já discutimos o artigo 238.°, cuja epígrafe é "Categorias de autarquias locais e divisão administrativa".

Vamos passar ao projecto n.° 1/V, do CDS, que adita um novo n.° 4 ao artigo 240.°, segundo o qual "os municípios participam, por direito próprio e nos termos definidos pela lei, nas receitas efectivas do Estado". Já hoje assim acontece. Tratar-se-ia, portanto, da constitucionalização deste princípio, nestes termos genéricos.

O PCP tem também uma proposta, praticamente coincidente, no n.° 4 do artigo 240.° do seu projecto (n.° 2/V), que estipula: "As autarquias locais têm o direito de participar nas receitas do Estado, nos termos da lei".

Não está presente o CDS. O PCP quer justificar esta proposta?

Pausa.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente. Srs. Deputados: O leque de alterações que o PCP propõe, nesta matéria, é bem medido e visa apenas introduzir um número limitado e estritamente necessário de aperfeiçoamentos no estatuto constitucional das autarquias locais. Pareceu-nos que nesta matéria se justifica particularmente uma cláusula como a que agora é adiantada. Ela constitui, sem dúvida, uma importante garantia de que os municípios não sejam, a título algum, defraudados em relação a justas expectativas de obtenção de meios imprescindíveis para a realização das suas finalidades próprias.

A Constituição estabelece já que o regime das finanças locais deve ser fixado legalmente e visar aquilo a que se chama uma "justa repartição dos recursos públicos pelo Estado e pelas autarquias", como primeiro desiderato, e por outro lado, também, uma "correcção das desigualdades entre autarquias do mesmo grau", correcção que a Constituição entende - e bem - que é fundamental. O regime das finanças locais está assim correctamente delimitado, quanto às suas finalidades, quanto aos seus grandes objectivos.

Sabemos, no entanto, que um dos aspectos que nesse regime se reveste de interesse fundamental é a garantia de participação nas receitas do Estado. O debate que se tem feito nesta Assembleia, debate longo, recheado de vicissitudes, tanto no que diz respeito à legislação fundamental de enquadramento como no que diz respeito às concretas opções, anualmente praticadas nesta matéria, em sede de orçamento do Estado, aconselha a que neste assunto se caminhe, não no sentido de forçar as autarquias locais a crescentes processos de endividamento, a verdadeiras "OPVs", a expedientes que por vezes as colocam em melindrosa situação financeira e numa crescente dependência, mas antes no sentido de clarificar e reforçar os esteios fundamentais da autonomia financeira local.

Neste ponto, a proposta do PCP não é, devo sublinhar, excessivamente ambiciosa, uma vez que a cláusula proposta estabelece um direito geral, um direito geral de participação, e qualifica esse direito, definindo-lhe o objecto (é a participação nas receitas do Estado). É deixada, no entanto, ao legislador ordinário uma margem de decisão bastante para plasmar na lei de finanças locais as respectivas formas de efectivação,

para isso deverá fazer uma leitura integrada do actual n.° 2, do n.° 3 e deste número novo, que formam conjunto e devem ser lidos globalmente ou integradamente com as demais peças do travejamento constitucional, em matéria de regime financeiro das autarquias locais. É este, pois, Sr. Presidente, o sentido da proposta do PCP, que, de resto, tem um teor convergente com a outra apresentada pelo CDS nesta matéria.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Ferreira de Campos, tem a palavra.

O Sr. Ferreira de Campos (PSD): - Sr. Deputado José Magalhães, queria fazer uma pergunta que significa simultaneamente a reserva que o PSD põe à constitucionalização do dispositivo do n.° 4 do projecto do PCP.

É que nos parece, de facto, que este n.° 4 não acrescentará nada de novo em relação àquilo que consta do actual n.° 2, onde se dispõe claramente uma justa repartição de recursos públicos pelo Estado e pelas autarquias. Isso consta já, portanto, da Constituição, é um princípio constitucional, pelo que nos parece, e esta reserva acresce à interrogação que lhe faço: não lhe parece de qualquer modo redundante este acrescento que o PCP pretende introduzir no artigo 240.° da Constituição?

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado João Amaral.

O Sr. João Amaral (PCP): - Tem razão se for efectivamente assim, isto é, se se considerar que o que está no n.° 4, o direito de participação, já está contido no n.° 2, far-se-á uma certa leitura desse n.° 2, que se poderá resumir no seguinte: o n.° 2 consagra, como direito próprio, o direito de participação em receitas do Estado. Ora, é sabido que tem havido quem defenda que o n.° 2 permitiria regimes financeiros para as autarquias, em que não existiria, por direito próprio, um direito de participação nas receitas efectivas do Estado. Eu diria que se ficasse, em termos interpretativos, clarificado o sentido do n.° 2 já se teria dado um passo. Mas diria, que a dar-se esse passo, se dê, então, no sentido completo, clarificando o que há a clarificar através da introdução de um n.° 4, como este, isto é, estabelecendo com rigor que o sentido do n.° 2 é o de consagrar para as autarquias um direito próprio de participação nas receitas efectivas do Estado.

Direi que, face ao que acabou de afirmar, me parece vantajosa, até, a introdução do n.° 4.

O Sr. Ferreira de Campos (PSD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras iniciais do orador) [...] proposta do PCP seria o inciso "nas receitas efectivas do Estado". Mas isso será depois num momento posterior a ser considerado pelo PSD.

O Sr. João Amaral (PCP): - Exactamente. Poderia ser estabelecido como inciso no n.° 2, garantindo um direito próprio de participação nas receitas efectivas do Estado.

O Sr. Ferreira de Campos (PSD): - O PSD mantém a reserva, mas num momento posterior considerará a hipótese dessa clarificação.

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O Sr. Presidente: - Nós só seríamos favoráveis à consagração de uma proposta nos termos do n.° 4 do projecto do PCP. Não é que isso adiante nada, é evidente. Já é assim; só que dá ao direito força e consistência que hoje não tem. Nós seríamos favoráveis. Mas também entendemos que, se isso não ficar consagrado, não será motivo para as autarquias deixarem de participar nas receitas do Estado.

Para o artigo 241.°, sob a epígrafe "Órgãos deliberativos e executivos", o PS propõe que, onde se fala hoje em "consultas", se diga "referendos para consulta". O PSD adita, mais uma vez, "nos termos da lei", como sempre que se trata de dispositivos concernentes ao sistema eleitoral. A ID alarga a todas as autarquias a regra que hoje só existe para os órgãos da freguesia, no sentido de que "podem apresentar candidaturas para as eleições dos órgãos das autarquias locais, além dos partidos políticos, outros grupos de cidadãos eleitores, nos termos estabelecidos na lei". O PRD suprime o n.° 3, ou seja, a referência às consultas directas aos cidadãos eleitores, provavelmente por entender que isto teria sido uma primeira experiência preparatória ou introdutória da consagração do referendo em geral. Assim sendo, com essa consagração, que ele teve por admitida, deixaria de se justificar a consulta directa aos cidadãos eleitores, inclusivamente porque, tendo apenas a natureza consultiva, perderia justificação em relação ao referendo nacional vinculativo. O PS considera que, se se cria a figura do referendo, não se justifica que, noutro lugar, embora a consulta seja local, não tenha o mesmo qualificativo, falando-se num lado em referendo e noutro em consulta. Trata-se, pois, essencialmente de uma questão terminológica.

Srs. Deputados, dava por justificada a proposta do PS e penso que igualmente o PSD já justificou a sua proposta, na medida em que ela consiste num inciso que aparece como regra em todo o direito eleitoral. Já discutimos este problema e talvez não valha a pena perder mais tempo com isso.

Não estando o PRD presente, quererá a ID apresentar a sua proposta?

Pausa.

Tem a palavra o Sr. Deputado Raul Castro.

O Sr. Raul Castro (ID): - Sr. Presidente e Srs. Deputados: A proposta da ID resulta de algumas considerações fundamentais.

Em primeiro lugar, naturalmente, ela não põe em causa o papel relevante e fundamental que têm na vida nacional os partidos políticos. Simplesmente, entende-se que o processo eleitoral das eleições para as autarquias locais - e creio que nisto há um entendimento consensual - é inteiramente diferente do processo das eleições legislativas. Daí que se venha consagrar para as eleições autárquicas, em que estão em jogo não, digamos, directamente objectivos políticos mas a resolução de problemas concretos das populações, a possibilidade de listas de cidadãos, que não sejam listas partidárias, poderem concorrer a todos os órgãos das autarquias locais, alargando assim aos órgãos que são o município aquilo que actualmente está limitado às juntas de freguesia.

Voltamos a repetir: até o nosso próprio estatuto de associação política mostra que, neste capítulo, o nosso propósito foi o de reconhecer que os partidos políticos têm um papel fundamental na vida política do País. Por isso mesmo e por considerarmos que o quadro partidário português era um quadro genericamente estabilizado é que optámos pela forma de associação política. Consequentemente, nada disto tem a ver com o respeito que nos merece o alto papel dos partidos políticos numa democracia como é a democracia portuguesa; tem a ver, sim, com a natureza própria das eleições autárquicas e com as diferenças fundamentais que as distinguem das eleições legislativas. Foram essas as razões que levaram a ID a apresentar esta proposta do n.° 3 do artigo 241.°, no sentido de também em relação às eleições para as câmaras municipais ser possível a apresentação de listas de cidadãos eleitores.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Ferreira de Campos.

O Sr. Ferreira de Campos (PSD): - Sr. Presidente, pretendia apenas colocar uma pergunta que seria simultaneamente uma sugestão. Ao substituir a figura da consulta directa pela do referendo para consulta, verifico que o PS lhe retira a componente do voto secreto. Julgo que o fará em virtude de o voto secreto constituir uma componente essencial ao referendo; todavia, em termos de manutenção e consideração da proposta, perguntaria se o PS não teria utilidade em manter, apesar de tudo, o inciso "voto secreto" no conceito de referendo.

O Sr. Presidente: - Uma vez que atrás definimos o referendo como uma consulta directa, subentende-se que, pelo facto de o referendo previsto neste preceito ser local, não deixa de ter os mesmos requisitos do outro referendo. No entanto, especificar-se-á, caso seja necessário.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, gostaria apenas de formular uma pergunta ao PS em relação ao texto que apresenta. O Sr. Deputado Almeida Santos não foi excessivamente preciso ao justificar a proposta...

O Sr. Presidente: - Mas também não proibi as perguntas.

O Sr. José Magalhães (PCP): -... suponho que foi precisamente para estimular perguntas. Correspondendo a esse propósito, cheio de sageza, gostaria de lhe deixar uma.

O PS rebaptiza o instituto criado na primeira revisão constitucional, mas ao fazê-lo rebaptiza-o apenas ou faz uma opção quanto à natureza deste instituto? Um dos temas mais debatidos aquando das tantativas de elaborar, em sede de lei ordinária, um regime legal para esta figura foi precisamente o da sua natureza jurídica e da sua eficácia. A matéria foi debatida em termos que dispensam aqui reprodução. Em todo o caso, ao que agora importa, a redacção proposta pelo PS pode inculcar a ideia de que estas consultas directas aos cidadãos eleitores (porque o serão sempre, qualquer que seja o seu "nome de guerra") só devem ter carácter de não vinculatividade da entidade que as realiza. Se se estabelece a existência de referendos e, seguidamente,

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o próprio texto constitucional específica que esses referendos têm carácter consultivo, isto é, que visam a consulta aos cidadãos, qual é a consequência? Admitindo que a figura é consagrada com carácter nacional, que acontecerá se se sublinhar no regime geral sobre o referendo nacional que "os cidadãos são chamados a pronunciar-se directamente, a título vinculativo, através do referendo", enquanto neste domínio os cidadãos seriam chamados não a pronunciar-se directamente mas "a consulta"? Creio que dificilmente é possível fazer uma interpretação do tipo desta: "referendos previstos com carácter geral são vinculativos e só podem ser vinculativos; referendos locais só podem ser consultivos". Mas gostaria de saber qual é a ideia do PS...

O Sr. Presidente: - Nós não quisemos alterar o significado e a eficácia actual do referendo. Raciocinou muito bem quando referiu que, se são consultas, é para consultar e não mais do que isso. E apesar de se dizer "com a eficácia que a lei estabelecer" não deixam de ser consultivos, uma vez que são consultas. É por essa razão que não falamos em "referendos para consulta", mantivemos a ideia de consulta. Estamos abertos a que se discuta se devem deixar de ser consultivos e passar a ser vinculativos. No entanto, na nossa proposta, ao falarmos em referendos para consulta, pretendemos conservar a mesma eficácia que hoje decorre do texto constitucional.

Mas, repito, estamos abertos à discussão, sobretudo se vier a ser consagrado um referendo a nível nacional (não sabemos em definitivo se tal vai ou não acontecer) com carácter vinculativo, poderá nessa altura não ter lógica que as consultas a nível local tenham natureza apenas consultiva. Consequentemente, a meu ver, esta questão tem de ser discutida e medida em paralelismo com o que vier a ser aprovado relativamente ao referendo nacional. Quando tivemos a cautela de, a seguir a "referendos", especificarmos "para consulta", não quisemos alterar o que actualmente decorre hoje do texto da Constituição. Tudo depende de se vai ou não ser consagrado um referendo com eficácia do referendo local, na medida em que não faz muito sentido que a nível nacional seja vinculativo e a nível local o não seja, se bem que também não nos repugnaria que continuasse a ter uma eficácia meramente consultiva. Claro que se disséssemos "referendos aos cidadãos eleitores com a eficácia que a lei estabelecer" seria a própria lei que viria especificar se teriam eficácia vinculativa ou consultiva. Como dissemos "referendos para consulta", mantendo no mais a redacção actual, não quisemos alterar o que hoje se encontra consagrado em matéria de consulta local aos cidadãos eleitores. Mas penso que devemos aproximar a eficácia dos dois institutos, a nível nacional e a nível local, consoante o que vier a ser deliberado sobre o referendo nacional.

Pausa.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, estava à espera que se criasse um compasso de reflexão adicional. É que a questão introduzida pelo PS não sai dilucidada com tanta simplicidade quanto eu julguei que o Sr. Deputado Almeida Santos viesse a facultar.

A questão da articulação entre a problemática dos referendos locais e dos referendos nacionais é muito complexa. Dada a actual inexistência da figura do referendo nacional, a questão não se coloca neste momento. Em todo o caso, a própria avaliação de como através de uma conjugação de referendos locais se pudesse chegar a resultados de carácter nacional já implica, evidentemente, todo um campo de problematização que nos ocupou longas horas, na sede legislativa própria e no momento próprio, em termos inconcludentes.

Devo dizer, francamente, que o que me impressiona mais é que, não por acaso, como é evidente, foi impossível até este exacto momento definir um regime legal satisfatório que materializasse a indicação constitucional decorrente do artigo 241.°, n.° 3. Não deixa de ser impressionante que, provavelmente, essa impotência legislativa derive da dificuldade objectiva de trinchar a questão da eficácia jurídica. Quanto às cautelas gerais para garantir a definição rigorosa do objecto, há dificuldades, mas são, talvez, ultrapassáveis, e quanto às dificuldades relacionadas com a segurança, a igualdade de intervenção, a definição precisa das condições, a fiscalização preventiva, há obstáculos, mas são superáveis. Dificuldade existe seguramente em evitar uma perversão que transforme em nacional aquilo que deve ser local ou que pela cumulação de efeitos confira carácter nacional a uma série de consultas que dificilmente se deve aceitar que o tenham...

O Sr. Presidente: - Esse risco só existe na hipótese de se não consagrar o nacional, como é óbvio...

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, Sr. Presidente, era aí que eu iria chegar. É que - permita-me que retome - a exposição a dificuldade maior é seguramente a da eficácia jurídica. É em relação à questão da eficácia jurídica e em relação à conjugação entre referendos locais e referendos nacionais constituendos que a proposta do PS deixa mais perplexidade. Porque, repare-se: o PRD, por exemplo, suprime as consultas populares locais e define um regime de referendo nacional. A proposta do PS, nessa matéria, deixa completamente em aberto as articulações nacional/local/locais, o que não é o seu pior defeito.

O Sr. Presidente: - Remete para a lei...

O Sr. José Magalhães (PCP): - Exacto. Mas também sucede que não dá nenhuma indicação ao legislador.

O Sr. Presidente: - Não houve essa preocupação; não se esqueça que esta proposta foi elaborada num momento em que não tinha ainda tido lugar a discussão que se travou no Plenário sobre esta matéria. Estou-me, portanto, a reportar à data da elaboração da proposta. Posteriormente, esta questão já tem elementos novos ao nível da lei ordinária.

Porém, o que eu quero significar é que na altura, deliberadamente, não quisemos na nossa proposta alterar o significado e não quisemos vincular os órgãos ao resultado. Houve apenas a preocupação de adequar a linguagem. Se se chama referendo a nível nacional, seria esquisito que a nível local não tivesse a mesma designação. Não houve, pois, a preocupação de alte-

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rar a eficácia mas, agora, têm de ser tomados em conta dois factos: primeiro, o que se fez no Plenário no plano da lei ordinária, segundo, o que vier a ser decidido quanto ao referendo nacional. É por essa razão que, neste momento, não estou muito preocupado numa discussão em profundidade. De facto, temos de aprovar os dois institutos, ao nível nacional e ao nível local, consoante o que vier a ser aprovado lá atrás, e penso que, como é evidente, não podemos divorciar uma proposta da outra. E até digo mais: de algum modo, a proposta do PRD tem alguma justificação. No entanto, dado já existir uma lei ordinária a consagrar quais os termos da consulta local, o recuo talvez seja difícil. Mas a proposta do PRD teria alguma justificação e alguma lógica...

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, compreendo a dificuldade que está a equacionar e estou de acordo com a ideia de que a matéria carece de aprofundamento ulterior.

Alerto apenas para um aspecto: é que a redacção proposta pelo PS neste número não é uma "norma de conversão pura, com alteração semântica". Inculca uma determinada interpretação e essa interpretação vai mais no sentido de que estas formas de consulta popular local também tenham um carácter consultivo e não vinculativo do que no sentido contrário. Curiosamente, isto contrasta um pouco com a posição que o PS assumiu durante o debate da última versão das iniciativas legislativas nesta matéria. É para esse aspecto que alerto, sendo certo que, como é óbvio, a questão está em aberto, na medida em que vai ser objecto de leitura integrada, tendo em conta as opções a fazer adiante relativamente à problemática geral.

O Sr. Presidente: - Estou de acordo que "consultas directas aos cidadãos eleitores com a eficácia que a lei estabelecer" tem um conteúdo menos meramente consultivo do que "referendos para consulta". De qualquer modo, penso que o problema está em aberto. Depois veremos...

Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - Não concordo com o Sr. Deputado José Magalhães - aliás, nunca concordei - na interpretação do artigo 241.°, n.° 3, da Constituição. A interpretação que o Sr. Deputado José Magalhães faz é uma interpretação ajurídica, na medida em que tende a dar prevalência a uma interpretação semântica do conceito de consulta e a obnubilar na interpretação do n.° 3 do artigo 241.° o facto de o legislador constituinte ter pretendido remeter para a lei ordinária a decisão sobre a eficácia jurídica das consultas aos cidadãos eleitores a nível local. Aliás, creio que esse entendimento resulta não só do debate que na primeira revisão constitucional foi travado sobre o artigo 241.°, n.° 3, mas também do próprio parecer que a Comissão de Assuntos Constitucionais^ Direitos, Liberdades e Garantias elaborou na primeira vez que se debateram os projectos de lei sobre consultas directas aos cidadãos eleitores a nível local. Nesse parecer, elaborado pela então deputada Margarida Salema, colocava-se a questão de saber se, quando no texto da Constituição se falava em consultas, haveria ou não liberdade para o legislador ordinário consagrar uma fórmula de eficácia jurídica deliberativa dessas consultas directas aos cidadãos eleitores. E nesse parecer, que foi aprovado com os votos favoráveis do PS e do PSD e com os votos contra do PCP, concluía-se que o facto de a Constituição falar em consultas, mas uma vez que remetia a determinação da eficácia jurídica para a lei, não impedia que as consultas directas aos cidadãos eleitores a nível local tivessem eficácia deliberativa; mas não obrigava a que tivessem eficácia deliberativa. Não havia, portanto, uma cláusula fechada, deixando-se ao legislador ordinário a faculdade de, por exemplo, consagrar apenas consultas directas aos cidadãos eleitores a nível local com efeito consultivo, e apenas essas e mais nenhumas outras, ou consagrar duas modalidades, uma com eficácia consultiva e outra com eficácia deliberativa ou, até, consagrar apenas consultas directas com eficácia deliberativa.

A evolução do pensamento do PS sobre esta matéria é conhecida: na primeira versão do projecto de lei do PS as consultas tinham apenas eficácia consultiva e, neste momento, o projecto do PS consagra apenas as consultas directas aos cidadãos com eficácia deliberativa desde que convocadas em exclusivo pela assembleia municipal, mediante uma deliberação aprovada por dois terços dos seus membros. Nesse sentido, o projecto de lei do PS sobre as consultas directas aos cidadãos eleitores a nível local teve como objectivo adaptar-se e coordenar-se com aquilo que propusemos no nosso projecto de revisão constitucional para o referendo nacional. E nem me parece que na realidade se possa tentar encontrar uma contradição insanável na redacção que o PS adopta ao falar de referendos onde antes se falava de consultas. Aliás, afigura-se-me totalmente ilegítimo que se conclua que os referendos para consulta reforçam a vertente consultiva e aniquilam a vertente deliberativa do instituto, na medida em que o problema é que o referendo deliberativo a nível local tem de se traduzir, na nossa óptica, na colocação aos eleitores de uma questão, que deve ser formulada em termos claros e merecer uma resposta em termos inequívocos. E a resposta dada pelo eleitorado a essa questão é uma resposta deliberativa, no sentido de que vincula os órgãos autárquicos a decidir a questão submetida a referendo no sentido da pronúncia popular.

Questão diversa é a de ser colocada a referendo local uma deliberação completa de um órgão autárquico, nessa altura submetendo a ratificação ou a revogação dos cidadãos eleitores uma determinada deliberação em concreto dos órgãos autárquicos. Isso é que, em nosso entender, não cabe no texto da Constituição. Ou seja, o referendo a nível local que a Constituição consagra não é nem um referendo ratificativo de decisões dos órgãos autárquicos nem um referendo revogatório de decisões dos órgãos autárquicos; na nossa óptica, é um referendo de consulta, ou seja, um referendo em que os órgãos das autarquias, no âmbito da respectiva esfera de competência, colocam uma questão ao eleitorado, que por sua vez responde à questão colocada pelo órgão autárquico. E, questão que terá de ser dirimida no domínio da lei ordinária porque a Constituição mesmo na nova redacção que o PS tem para o preceito deixa isso em aberto, se a lei ordinária vier a determinar que a resposta do eleitorado é deliberativa, isto é, que vincula o órgão autárquico ao sentido da decisão, mesmo assim ainda caberá ao órgão autárquico a adopção da decisão ela própria e a formulação da

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decisão, só que no sentido definido pelo referendo local de natureza deliberativa. Neste contexto, não há contradição entre o referendo a nível nacional e o referendo a nível local, porque o referendo nacional (na nossa proposta pelo menos, não sabemos como é que ficará afinal na Constituição) é um referendo deliberativo (aí a Constituição não deixa para a lei ordinária a decisão sobre a eficácia) mas que pode versar sobre matéria que possa ser resolvida por acto legislativo ou por convenção internacional. De outra maneira, os referendos a nível local, que terão a eficácia que a lei determinar, mas que só podem versar sobre matéria que recaia na esfera de competência dos órgãos das autarquias locais, e só sobre essas matérias e nenhumas outras.

Não há, pois, coincidência de matéria: num caso, temos um referendo que versa sobre matéria que tenha de ser objecto de decisão sob forma legislativa ou convenção internacional e, no outro caso, temos um referendo sobre matéria que tenha de ser objecto de decisão no âmbito da esfera de competência dos órgãos das autarquias locais, onde, naturalmente, não há nenhuma matéria de conteúdo legislativo. E, nesse sentido, o separar de águas é feito também em razão da matéria e não só em razão da competência dos órgãos que convocam os referendos, seja o referendo nacional, seja o referendo local.

Naturalmente que outras questões se colocam mais atinentes ao regime jurídico do referendo nacional, mas, apesar de tudo, quanto à compatibilização destas duas figuras, do referendo nacional e do referendo local, creio que o projecto do PS faz o separar de águas com meridiana clareza.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, gostaria de fazer um breve comentário à intervenção do Sr. Deputado António Vitorino, que procurou situar-se no terreno da clarificação. Isso reveste-se de relevância analítica inegável tanto para a percepção da actual proposta do PS como para a percepção da curiosa evolução da posição do PS nesta matéria.

Devo dizer que a nossa preocupação não foi a de introduzir para a interpretação deste preceito critérios "ajurídicos" ou forçar "semantizações" indébitas e, menos ainda, "obnubiladoras". A proposta do PS é que realmente suscita a qualquer um (incluindo ao PS) algumas dificuldades de interpretação e é susceptível de obnubilar bastante alguns debates, como prova toda a experiência de discussão até agora tida na Assembleia da República. Sucede, Srs. Deputados, que houve efectivamente uma evolução do PS em relação à questão da eficácia das consultas e isso deve ser assumido frontalmente, para simplificar as coisas...

O Sr. António Vitorino (PS): - Já foi!

O Sr. José Magalhães (PCP): -... e assumido, digamos, até às últimas consequências. Tanto quanto me apercebi, o Sr. Deputado Vitorino só foi até às primeiras. Mas pode ter sido defeito meu, é evidente.

Houve evolução quanto à questão da eficácia das consultas, uma vez que no primeiro debate sobre esta matéria travado no Plenário da Assembleia da República, a favor da eficácia vinculativa em todas as situações, só se pronunciou o CDS, embora não propusesse mínimos quanto à participação eleitoral. Em sentido oposto estava o projecto do PS, que atribuía a todas as consultas (mas a todas) eficácia meramente consultiva; o PSD e a então existente UEDS pronunciavam-se por soluções intermédias. Em relação a esta solução da UEDS, tratava-se de facultar aos proponentes das questões sujeitas a referendo a opção entre duas naturezas, duas eficácias para o referendo, eficácia puramente consultiva ou eficácia deliberativa. O PSD, embora admitisse essa solução, conferia ao referendo local eficácia deliberativa apenas quando obtivesse um resultado suja expressão eleitoral fosse superior a 50% do número dos cidadãos recenseados na área da respectiva autarquia.

O parecer da Sra. Deputada Margarida Salema aqui citado (um trabalho curioso) e sendo sintético, quase diria exaustivo, de problematização das implicações da revisão constitucional neste ponto, visou precisamente situar as dificuldades de decisão e salientar (de resto, ao arrepio daquilo que vinha sendo sustentado por alguns nesta matéria) não ser obrigatório que o legislador pudesse conferir eficácia vinculativa às consultas realizadas nos termos deste artigo da Constituição. Nisso se cifrou o debate. Durante o debate em Plenário foram particularmente apologistas dessa orientação não só, naturalmente, os deputados do CDS mas o próprio membro do Governo em funções, o Dr. Durão Barroso, como espelha o Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.° 57, de 18 de Abril de 1986, pp. 2164 e 2178, especialmente.

Trago isto à colação unicamente para situar as oscilações interpretativas que nesta matéria se vieram a registar e as dificuldades de apuramento do legado da primeira revisão constitucional quanto aos contornos deste instituto.

A invocação da História não é despicienda, porque a articulação entre a proposta do PS de reconformação deste instituto, em sede constitucional, e as propostas de consagração de um referendo nacional, quaisquer que sejam os seus contornos, reveste melindres. Õ Sr. Deputado António Vitorino, procurando clarificar e desobnubilar, não deixou, apesar de tudo, de introduzir uma amálgama de critérios.

Na verdade, há alguma diferença entre a ponderação do que seja a eficácia deliberativa/consultiva e o problema da natureza do referendo local, designadamente se o mesmo pode ter natureza ratificativa ou abrogativa ou revogatória de deliberações verdadeiras e próprias de órgãos de poder local. Há aqui todo um campo de problemas que obedece a critérios próprios e a uma lógica própria quanto à natureza. Pode-se dizer claramente: "não, estes referendos não podem ou podem ter essa eficácia, tal ou tal natureza". Outro campo de problemas, bem diferente, é o de saber se se trata de auscultar para cumprir ou de auscultar para ouvir, com liberdade de decisão integral sobre a resposta à pergunta feita aos cidadãos eleitores.

Em relação a este segundo campo de problemas (foi só a esse segundo campo de problemas que me referi), creio que a questão que formulei, Sr. Deputado António Vitorino, não ficou respondida. Obviamente que nunca poderia ficar fechada, mas eu não gostaria que ficasse aberta meramente por equívoco. É que, ao propor claramente, como o PS propõe, no artigo 112.°-A

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(vamos toma-lo como base de trabalho) uma definição de referendo que incorpora como sua característica própria inarredável que os cidadãos se pronunciem directamente a título vinculativo, não deixa de se suscitar a questão de saber se quando se pronunciam nos termos do artigo 241.°, n.° 3, não terá de ser sempre a título não vinculativo. A questão, que já se colocava em sede de interpretação normal do artigo 241.°, n.° 3, por consideração complexiva e, neste caso, o mais possível jurídica (e não ajurídica) e o menos possível semântica (mas o mais possível também jurídica e normativa), coloca-se redobradamente! E é para este efeito, que, eventualmente, pode ser perverso, que eu gostaria de não deixar de alertar o Sr. Deputado António Vitorino. Porque isto tem a ver com a grelha ou com o critério lógico e a eficácia jurídica do referendo e não com a correlação com o objecto do debate. Uma confusão destas pode dar muito maus resultados em certas madrugadas de negociações.. .

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Encarnação.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Srs. Deputados, peço desculpa por esta interrupção, mas pretendia chamar a vossa atenção para o facto de que estamos a generalizar o debate em relação ao referendo, nesta matéria e nesta altura, quando, creio eu, deveríamos analisar todas estas questões sobre o referendo na altura própria, quando analisássemos as várias propostas apresentadas sobre esta matéria.

Na verdade, das duas uma: ou vamos duplicar a discussão, ou não a vamos fazer completamente agora, na medida em que ela vai surgir necessariamente depois. De facto, há artigos substancialmente complexos (por exemplo, a proposta do PRD em relação a esta matéria, e não só as propostas do PSD ou do PS, mas fundamentalmente a do PRD) e teremos necessariamente de esmiuçar este problema na ocasião.

O Sr. António Vitorino (PS): - Não vejo objecções, mas, atendendo a que me tinha sido feita uma pergunta, para quê deixá-la no ar até à próxima semana?

Sr. Deputado José Magalhães, não creio que tenha defendido a minha posição com base numa amálgama de critérios, o que defendo é que devem confluir na caracterização desta figura, quer do referendo a nível nacional, quer do referendo a nível local, vários tipos de critérios. Talvez não tenha sido suficientemente claro, mas enunciei-os, e o Sr. Deputado José Magalhães percebeu-os amalgamados.

Seja como for, o que pretendia dizer-lhe é que a sua operação de interpretação conjugada do que nós propomos no artigo 112.°-A e do que propomos no artigo 241.°, n.° 3, traduz-se juridicamente nisto: o Sr. Deputado conclui da conjugação das duas redacções que no artigo 241.°, n.° 3, as consultas são a título facultativo e só conclui isso a contrario sensu da interpretação do artigo 112.°-A, onde, explicitamente, se refere "a título vinculativo". Contudo, a sua interpretação a contrario sensu, como todas as interpretações a contrario sensu, já de si débeis, ainda por cima é contra legem porque é contra a afirmação explícita da letra do n.° 3 do artigo 241.°, que diz inequivocamente "com a eficácia que a lei estabelecer". É, portanto, completamente impossível, em termos de hermenêutica jurídica, retirar de uma interpretação a contrario sensu que do nosso artigo 241.°, n.° 3, resulta a ilegitimidade dos referendos locais a título deliberativo. É impossível, em termos de lógica jurídica!

O Sr. José Magalhães (PCP): - É possível, Sr. Deputado.

O Sr. António Vitorino (PS): - Não é!

O Sr. José Magalhães (PCP): - Basta que alguém tenha em atenção o conjunto de elementos que o Sr. Deputado acabou de verter para a acta quando referiu que a sua preocupação era a de que a eficácia nunca pudesse ser tal que através de consulta local se pudesse pôr em causa uma deliberação de um órgão autárquico...

O Sr. António Vitorino (PS): - Mas essa é uma opção decorrente do facto de a Constituição remeter para a lei ordinária a definição da eficácia jurídica. Eu não estou a dizer que seja inelutável que isso aconteça no caso dos referendos locais. Não é inelutável nos termos da Constituição, mas é o que o PS preconiza no projecto de lei sobre consultas locais. O que já é inelutável é que outro seja o desiderato no caso do artigo 112.°-A.

Porque o que é que nós dizemos no artigo 112.°-A? Dizemos que o que é colocado à decisão do eleitorado, em referendo, não é uma lei, não é uma convenção internacional, mas sim uma questão - aí somos explícitos, nos termos da Constituição - que tem de ser respondida pelo povo. Estabelece o n.° 5 do artigo 112.°-A: "Cada referendo só pode ter por objecto uma única matéria, devendo as questões ser formuladas com clareza e precisão, num número máximo de perguntas a fixar por lei, a qual determinará igualmente as demais condições de formulação e efectivação de referendos." Isto é claro e inequívoco! Aqui, é evidente que do que se trata não é de um referendo ratificativo, não é um referendo abrogativo, é, sim, de um referendo que se traduz em questões colocadas à população, que merecem resposta cujo sentido é vinculativo para os órgãos com competência para decidir sobre a matéria na formulação da própria decisão.

No artigo 241.°, n.° 3, a única coisa que para mim é totalmente evidente é que o legislador constituinte quis deixar, ao contrário do artigo 112.°-A, que nós propomos, a decisão da eficácia dos referendos para o legislador ordinário, o que não exclui que os referendos sejam só consultivos, o que não exclui que os referendos sejam só deliberativos, o que não exclui que os referendos locais sejam consultivos e deliberativos, consoante o que o legislador ordinário venha a definir como condições para cada um dos casos. Simplesmente, parece-me totalmente impossível, em termos de hermenêutica jurídica, retirar do artigo 112.°-A do projecto do PS conclusões que tornem o artigo 241.°, n.° 3, numa norma fechada, isto é, numa norma onde só teria cabimento uma interpretação do legislador ordinário destinada a consagrar referendos locais meramente consultivos. Isso é que me parece impossível.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, chamava agora a vossa atenção para a proposta da ID, sobre a qual

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ainda ninguém se pronunciou, embora também tenhamos que aproximá-la do artigo 246.°, o qual actualmente estabelece que só se podem apresentar candidaturas com base ou por iniciativa de grupos de cidadãos eleitores para os órgãos da freguesia.

A ID propõe que se possam também apresentar para as outras autarquias locais. Ou seja, neste momento, para os municípios e, no futuro, para as regiões administrativas.

Não sei se querem já pronunciar-se sobre isso.

Pausa.

Devo dizer que nós, em princípio, seríamos desfavoráveis ao alargamento deste direito. Compreendemos que tal possa acontecer ao nível da freguesia, por ser um nível em que todas as pessoas se conhecem, limitado numérica e geograficamente, mas não seríamos favoráveis ao alargamento desta prerrogativa. No entanto, esta é apenas uma posição de princípio.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, neste momento não se encontra presente o Sr. Deputado Raul Castro, pois teve de se ausentar. Penso que poderíamos considerar esta proposta quando o Sr. Deputado regressar.

O Sr. Presidente: - Se ele regressar, voltamos a isto. Tem a palavra o Sr. Deputado Ferreira de Campos.

O Sr. Ferreira de Campos (PSD): - Queria apenas corroborar a posição do PSD. O PSD vê com bastante reserva, corroborando também todas as razões que o Sr. Presidente expôs, o acrescento à nova redacção do n.° 3 proposto pela ID.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, relativamente ao artigo 242.° há uma proposta do PCP, que reza no seu n.° 2: "Cabe à assembleia das autarquias locais, nos termos da lei, a aprovação dos regulamentos de carácter tributário ou que impliquem encargos para os cidadãos."

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, a primeira revisão constitucional veio a alterar os contornos constitucionais do poder regulamentar das autarquias locais. Na sua versão primitiva, a Constituição estabelecida a competência exclusiva das assembleias das autarquias locais em matéria regulamentar, dispondo o preceito: "A assembleia das autarquias locais terá competência regulamentar próprias nos limites da Constituição, das leis e dos regulamentos emanados das autarquias de grau superior ou das autoridades com poder tutelar". A primeira revisão constitucional, como referi, veio alargar a margem de intervenção do legislador ordinário no tocante à repartição de competências do poder regulamentar, permitindo uma certa participação entre os diversos órgãos das autarquias locais. Parece-nos, no entanto, de acolher a ideia de que as assembleias das autarquias locais devem ter alguma reserva de poder regulamentar, evitando-se assim que o mesmo venha a ser exercido por executivos municipais (é em relação a este nível autárquico que a questão se pode colocar com mais agudeza enquanto não forem instituídas as regiões administrativas). As assembleias devem ter sempre, indelegavelmente, competência regulamentar no tocante a certo tipo de regulamentos. É uma solução de compromisso e de garantia cuja consagração constitucional se revestiria de importância considerável.

A proposta que o PCP apresenta define um critério geral, medido pela natureza dos regulamentos, quer através da sua caracterização directa como tributários, quer através de um critério geral aferido pelas implicações financeiras, e reza: "Cabe à assembleia das autarquias locais, nos termos da lei, a aprovação dos regulamentos de carácter tributário ou que impliquem encargos para os cidadãos". O legislador ordinário, na definição do quadro de normas aplicáveis ao poder regulamentar, haveria de ter que dilucidar, com mais precisão, que categorias de regulamentos se inserem neste último segmento normativo. Parece-nos que a norma seria, constitucionalmente, um passo em frente no sentido de se impedir a expropriação das assembleias das autarquias locais em relação à elaboração de normas que podem ter grande importância para os próprios cidadãos.

Se encaramos a proposta como positiva na óptica de uma boa repartição de poderes entre os órgãos das autarquias locais e consideramos que esta ideia institucional da insusceptibilidade de expropriação das assembleias autárquicas é importante, devo dizer que não reputamos menos importante a questão olhada pelo ângulo dos cidadãos. Para estes não deixa de ser importante que decisões normativas respeitantes a encargos, quer de carácter tributário, quer de outra natureza, sejam tomadas com a mais elevada garantia, decorrente do facto de serem tomadas por assembleias com a composição alargada que estas têm.

Assim como a composição ou a formação dos parlamentos se encontra ligada historicamente - como se sabe - ao próprio alargamento da margem de tutela devida aos cidadãos no que diz respeito às obrigações financeiras, é de ter em conta que não é pequena garantia, nem garantia despicienda, o facto de os cidadãos terem o direito de ver discutidas, pública e abertamente, através de decisões tomadas em assembleias como as das autarquias locais, decisões que vão traduzir-se na imposição de obrigações, de carácter fiscal, de carácter parafiscal ou outras com projecção no seu próprio património.

Esta dimensão subjectiva e de cidadania está, também, subjacente ao texto proposto pelo PCP. Trata-se, portanto, de agir tanto no plano institucional, como no plano do reforço das próprias garantias dos cidadãos. Não é esse, devo dizer, um dos aspectos menos importantes da proposta que agora apresentamos.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, a nós parecemos que tudo o que contribua para o reforço das garantias dos cidadãos e, de algum modo, para a valorização do órgão deliberativo das autarquias, nomeadamente as assembleias municipais e de freguesia - embora mais as municipais, porque as de freguesia têm mais dificuldade de funcionar e reunir - é positivo. A verdade é que há um grande desequilíbrio entre as competências dos órgãos deliberativos das autarquias e os respectivos órgãos executivos. O debate a que se assiste nas assembleias municipais é um debate construtivo porque estão lá os presidentes de junta e os

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representantes dos cidadãos. Devo dizer que já fui presidente de uma assembleia municipal e que entendo que isso assegura um reforço da garantia dos cidadãos quando se trate de criar para eles obrigações de carácter tributário ou encargos de outra ordem.

Assim, seríamos favoráveis a uma norma deste género, muito embora também a lei ordinária possa dizer isto mesmo. De qualquer modo, penso que era uma garantia importante e não seremos contra isso. Pelo contrário.

Ò PSD deseja dizer alguma coisa?

O Sr. Ferreira de Campos (PSD): - O PSD desejaria sustar na decisão sobre esta matéria.

O Sr. Presidente: - Com certeza. Srs. Deputados, passemos agora ao artigo 243.°

Relativamente a este artigo 243.°, o CDS propõe que onde hoje se exige apenas o parecer de um órgão autárquico para as medidas tutelares restritivas da autonomia local passe a referir-se "são precedidas de parecer de órgão representativo de insteresses locais", órgão esse que poderia, portanto, não ser autárquico, podendo ser orgânico ou corporativo - não se sabe -, uma vez que seria a lei a defini-lo. Devo dizer, desde já, que somos contra esta proposta.

O PCP propõe um número novo do seguinte teor: "A dissolução de órgãos autárquicos e, nos casos legalmente previstos, a cessação individual do mandato dos seus titulares por prática de actos ilegais só podem efectivar-se por via judicial".

Para justificar a proposta, tem a palavra o Sr. Deputado João Amaral.

O Sr. João Amaral (PCP): - Sr. Presidente, suponho que o que interessaria neste artigo sobre a tutela administrativa seria clarificar aquilo que, de alguma forma, resultou da redacção que lhe foi dada na revisão constitucional de 1982. A tutela administrativa consiste, exclusivamente, na verificação do cumprimento da lei, e, configurada nesses termos, a aplicação de medidas deveria, também ela, ser limitada em termos que pudessem garantir uma adequada autonomia por parte das autarquias locais.

O que se procura com este número é, por um lado, de alguma forma tipificar as sanções possíveis - a dissolução e a cessação individual de um mandato - em função de a responsabilidade ser do órgão ou de membros individualmente considerados e, por outro lado, considerar que o termo do processo de tutela na aplicação dessas sanções seria jurisdicionalizado com as garantias adequadas a não haver manipulação de um instrumento que é positivo em si (e como tal está consagrado e acolhido na Constituição), mas que só se for rodeado das devidas cautelas será exercido em termos que correspondam aos interesses que o fundamentam.

É dentro deste quadro que nos pareceria positivo que a própria Constituição consagrasse as sanções e o mecanismo da sua aplicação em termos que permitissem não só a sua efectivação por forma adequada, mas as garantias suficientes para ambas as partes envolvidas.

O Sr. Presidente: - Não acha que isso poderia tornar a intervenção, em casos mais do que chocantes, dependente da morosidade normal das decisões judiciais? Sobretudo com os direitos a recurso, que não poderíamos deixar de consagrar?

O Sr. João Amaral (PCP): - Sr. Presidente, é importante, também, registar o seguinte: o que se passa neste momento em matéria de tutela é extremamente negativo. Toda a regulamentação decorre ainda da Lei n.° 79/77, em termos claramente insuficientes. Foi feita a revisão da lei de atribuições das autarquias e da competência dos seus órgãos, foi aprovada uma lei de finanças locais, foram introduzidos numerosos mecanismos novos no quadro do funcionamento das autarquias, mas o regime da tutela nunca foi devidamente actualizado.

Ora, nós estamos num momento em que, se definirmos constitucionalmente, nos termos que o PCP propõe, o exercício da tutela quanto à aplicação das sanções, teremos depois, em sede legislativa, todas as possibilidades de adoptar os mecanismos adequados a que ela se processe com celeridade, evitando o problema que acabou de ser referido pelo Sr. Deputado Almeida Santos.

O Sr. Presidente: - Nós sabemos que impor celeridade ao sistema judiciário é um objectivo de difícil concretização.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Dá-me licença, Sr. Presidente?

O Sr. Presidente: - Faça favor, Sr. Deputado.

O Sr. José Magalhães (PCP): - O que me impressiona mais, apesar de tudo, nesse raciocínio é o seguinte: qual é a alternativa para a intervenção do poder judicial? É que a alternativa para a intervenção dos tribunais é a intervenção administrativa. Mais: é a intervenção governamental. Entre o rochedo dos tribunais e o rochedo da governamentalização há que optar, e a identificação entre a celeridade e a governamentalização parece-me ter alguns riscos. Aqui o que se pretende é, precisamente, imunizar as autarquias das incertezas, oscilações e, mesmo, elementos de condicionamento decorrentes de um sistema administrativizado de dissolução.

O Sr. Presidente: - Mas a intervenção dos tribunais a posteriori é sempre legítima e o direito de indemnização por prejuízos provocados por uma decisão injusta está sempre de pé. O problema é que, dado tratar-se de um mandato que tem duração limitada, que, normalmente, chega a não durar tanto quanto demora uma decisão judicial, na prática isso significaria desresponsabilizar agentes autárquicos por actos que podem ter a maior gravidade. Bem sei que a intervenção do Governo tem defeitos. Sei isso perfeitamente. Melhoremo-la, se é possível, mas não lhe retiremos a possibilidade da celeridade de que hoje se reveste.

A intervenção judicial dá todas as garantias de defesa - como é óbvio. Mas pode ser ineficaz e um agente autárquico pode continuar a cometer disparates durante meses, porventura anos, recorrendo, faltando, etc. Sabemos quanto é difícil assegurar a celeridade da máquina judiciária. Só se criássemos um instrumento novo, excepcionalmente expedito, o que também se faria sempre com redução de garantias de defesa e de contraditoriedade.

Assim, teremos de optar entre os dois valores: um certo expeditismo que evite que se prolongue uma situa-

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cão indesejável, embora com todas as garantias a posteriori - de indemnização, de recurso a tribunais, etc.., pois isto está sempre salvaguardado -, ou seja, entre uma justiça mais expedita e uma justiça mais perfeita. Parece-nos, no entanto, que o recurso à via judicial, neste caso, pode eternizar a apreciação de um determinado comportamento. Se fosse possível pôr os tribunais a decidir em duas ou três semanas ou mesmo em quinze dias, eu até acharia óptimo. Mas vamos pensar nisso. Não sou insensível aos valores que estão em causa na vossa proposta. Mas não esqueçam, também, os valores contrários. Tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Encarnação.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Sr. Presidente, esta é, evidentemente, uma matéria complexa e sensível. Já houve algumas propostas de lei em relação a esta matéria - e, recordo-me, nomeadamente em 1982 -, para tentar escalpelizar e definir o melhor possível a matéria da tutela administrativa. É certo que é uma das áreas onde há algumas falhas reconhecidas na legislação ordinária, sendo certo, também, que é uma matéria altamente discutível. O princípio de que o PCP se louva, ou seja, o princípio da dissolução por via judicial, é um princípio que, em teoria, poderia ser ideal. Todavia, ele esbarra com alguns escolhos e com algumas dificuldades que têm vindo a ser reconhecidas ao longo do tempo, não só aqui em Portugal, mas também em legislações estrangeiras. Aliás, algumas das aflorações já foram referidas abundantemente pelo Sr. Deputado Almeida Santos, fazendo referência à jurisprudência das cautelas mais do que a qualquer outra coisa.

O acto de dissolução tem de ser um acto expedito, rápido, e com a necessária salvaguarda das garantias jurisdicionais de controle e de recurso e, portanto, nestes termos, não é um acto que não possa deixar de ter estas características. A nosso ver, a questão principal não será propriamente garantir a nível constitucional uma inovação destas, mas será antes garantir que ao nível da legislação ordinária o regime seja melhorado, tornado mais expedito e que seja imbuído de maiores garantias. Por outro lado, entendemos que a nível constitucional não será necessário fazer uma alteração desta monta e muito menos fazer a consagração deste princípio ao nível do preceito constitucional.

Esta é a posição do PSD quanto a esta matéria.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, tenho uma observação a fazer em relação a um aspecto pontual. O meu camarada João Amaral fará o comentário geral às vossas apreciações.

O aspecto para que gostaria de chamar a vossa atenção é o respeitante à segunda componente da proposta apresentada pelo PCP. Há que distinguir entre todo o núcleo de problemas relacionados com a dissolução e esse outro relacionado com a cessação individual do mandato dos titulares por prática de actos ilegais. O principal problema - tanto quanto me apercebo - relacionado com esta segunda componente é o de que é preciso encontrar uma solução, com base constitucional adequada, que permita dar resposta às situações de cessação de mandatos por prática de actos ilegais,

sob pena de subverter a ordem de competências e a autonomia do poder local e de se colocar nas mãos do Governo a possibilidade de uma autêntica destituição de autarcas, figura que não está contemplada constitucionalmente e que seria uma entorse à definição do próprio perfil das autarquias locais e do estatuto dos que têm assento nos seus órgãos. Esta questão da garantia de jurisdicionalização dos processos relacionados com a cessação individual de mandato deveria ser objecto, em qualquer circunstância, de contemplação ou de apreciação, com vista a uma solução adequada, que, creio, dificilmente se pode considerar que não deva ser jurisdicional.

A ideia de que os tribunais são morosos, lentos e caros corresponde à realidade, mas não corresponde, evidentemente, a um imperativo, nem é uma inevitabilidade, como o fado. Em qualquer circunstância, tem de ser especialmente forte a tutela devida a direitos políticos (neste caso trata-se dos direitos emergentes de um vínculo resultante de sufrágio envolvendo a legitimidade para exercer cargos autárquicos). A ideia de que este feixe de direitos possa ser objecto de supressão através de acto governamental fundado na invocação de um certo juízo sobre a ilegalidade da conduta seria, evidentemente, um elementos de instabilização e de perturbação da independência do estatuto dos próprios membros das autarquias locais. Não é pensável!

Uma coisa são os crimes de responsabilidade - e aí entra em aplicação toda a bateria de implicações jurídicas decorrentes do facto de só os tribunais poderem apreciar tal matéria. Outra coisa são as eventuais ilegalidades que originem fenómenos de responsabilização que possam conduzir à suspensão individual do mandato. Para todos esses tipos de situações - e vários podem ser - é preciso encontrar resposta, que, em todo o caso, e foi isso que nos levou a apresentar esta proposta, tem de ter uma componente judicial, não pode passar por uma decisão governamental.

Era para este aspecto que gostava de alertar VV. Exas.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Narana Coissoró.

O Sr. Narana Coissoró (CDS): - Faço apenas uma interrupção, porque não quero saltar na piscina onde já estão muitos a nadar, e eu acabo de chegar à beira.

O único aspecto que me parece relevante na sua argumentação é o seguinte: naturalmente que a sindicância da ilegalidade deve pertencer, em princípio, aos tribunais. Nada melhor do que o juízo de legalidade ou ilegalidade ser deixado ao critério de um órgão independente como é o tribunal - disso ninguém tem dúvidas! Mas aqui o que se entrosa nisso é outro critério, igualmente legalista: o da tutela. O próprio conceito de tutela encerra em si o juízo de legalidade sobre o órgão tutelado e por isso não me choca muito que o Governo, que tem a tutela sobre as autarquias, possa fazer uso do juízo de legalidade, integrado no conceito de tutela, para a sindicância de actos ilegais praticados pelos autarcas ou pelas autarquias. É por essa via que, em meu entender, o poder governamental não ofende o poder geral dos tribunais ao sindicar dessa forma a ilegalidade.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado João Amaral.

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O Sr. João Amaral (PCP): - Registo, apesar de tudo, que aqui foi considerado pelo Sr. Deputado Carlos Encarnação que a solução ideal seria a que está aqui proposta e que ela só não será acolhida por razões, no fundamental, de eficácia, ou seja, quase que se pode dizer, de velocidade.

Se esta é a solução ideal, se tendencialmente será, então o que haveria que procurar era resolver os outros problemas, para que nos aproximássemos da boa solução. Estaremos de acordo que esta é a melhor solução, desde logo porque o que caracteriza o poder governamental de tutela é o facto de ser um poder instrumental investigatório, de recolher informação, de poder saber, por via directa, através de modos tipificados, como é que funciona a autarquia, nomeadamente no que respeita -é isso que interessa- à conformidade dos actos dos seus órgãos com as leis que estão em vigor.

Uma questão totalmente diferente é, depois, a da aplicação de sanções, porque se trata de verdadeiras sanções. Nunca até este momento, tirando o Sr. Deputado Narana Coissoró, ouvi dizer na aplicação de sanções que fosse excluída a intervenção judicial. Nomeadamente, na proposta de lei que aqui se referiu era feito o controle judicial, que implicava, desde logo, o poder do tribunal de anular a medida. Aqui, e curiosamente, os Srs. Deputados que criticam a proposta do PCP já não querem colocar problemas de eficácia. Isto é, o Governo pode ter manipulado o exercício da tutela, eventualmente (não estou a falar de nenhum governo, estou a trabalhar em termos abstractos), pode ter sucedido o que sucedeu, mas a sanção foi aplicada. O sistema de recurso, esse pode ser moroso, aí já não há problemas! Srs. Deputados, estamos a falar de órgãos eleitos directamente, com autonomia definida constitucionalmente, de um poder próprio, e estamos a falar não propriamente de um sistema associativo qualquer de terceira ordem! Estamos a falar de um órgão de estrutura autónoma e não a falar de um órgão da Direcção-Geral da Administração Autárquica, estamos a falar de órgãos de poder autárquico, de órgãos de poder local, com tudo o que isso representa dentro da estrutura do Estado. E estamos a falar das relações entre um órgão de soberania - o Governo - e esses órgãos que têm legitimidade directa pela eleição e têm assento constitucional e autonomia.

Sendo certo que, nesta relação, a intervenção do órgão de soberania tribunais na aplicação das sanções seria, já aqui foi considerado, essencial, procuremos as soluções adequadas para conseguir que ela se faça respeitando outros valores, os valores da eficácia, da protecção dos interesses gerais que estão incorporados nas leis. Procuremos essas soluções, mas aceitemos aquilo que é fundamental e que me parece que corresponde a uma situação concreta, reclamada e bem sentida no universo político e político-jurídico em Portugal.

O Sr. Narana Coissoró (CDS): - Se o conceito de tutela (e já chegámos à conclusão de que ele engloba a apreciação da legalidade ou ilegalidade) também engloba a aplicação de sanções, a tutela não pode apenas ficar no plano da investigação e o responsável dizer: "Há aqui ilegalidade, mas agora já não posso fazer nada. Vou remeter isto aos tribunais!" Isto porque, segundo o próprio conceito de tutela, o responsável por ela, quando chega à conclusão de que há uma ilegalidade, tem de extrair efeitos dessa ilegalidade, o que é, no fundo, sancionar, aplicar a sanção à ilegalidade. Não vejo, pois, que haja usurpação do poder judicial quando se tiram os efeitos dessa ilegalidade apreciada pela tutela, restando sempre o recurso ao poder jurisdicional, como acto administrativo que é, da aplicação de sanções.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Encarnação.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Sr. Presidente, em relação a esta área penso que há dois conceitos, ou melhor, duas zonas em que se desenvolve este preceito, como, aliás, há pouco salientou, e bem, o Sr. Deputado José Magalhães. Uma questão é a dissolução e outra é a cessação individual do mandato dos titulares, e poderíamos descortinar ainda uma outra, que será, e não está aqui prevista, a sanção política que também devia ser apreciada e teorizada em relação a este ponto. A sanção política, por exemplo a inegibilidade, decorrente dessa cessação individual devido à dissolução. São questões que são conexas e que é conveniente considerar. É inegável que o poder de tutela pertence ao Governo, a tal ponto o é que todos os constitucionalistas que se têm ocupado desta matéria o referem. A questão fundamental é saber, em relação à questão que agora é inovada da cessação individual do mandato, como é que ela, em termos finais, deve ser exercida. Deve ser remetida para o poder judicial ou deve também ser exercida pelo Governo? E esta a questão, inovatória, que o PCP coloca neste momento.

Quando, há pouco, estava a fazer aquele aparte à intervenção do Sr. Deputado João Amaral, estava a referir o seguinte: o interesse da eficácia, o interesse da rapidez da dissolução, o interesse em fazer cessar uma situação de ilegalidade documentada (ao fim e ao cabo do que se trata é disso) trata-se de finda a fase de investigação se chegar à conclusão que há ilegalidades graves, de que aquela administração sofre de ilegalidades graves. Nesse caso o interesse público ou as duas faces do interesse público são concretamente estas: saber se, ou saber em que medida, em que limites, é que devemos consagrar a autonomia ou que devemos fazer cessar uma administração que está recheada de ilegalidades e a ofender o mesmo interesse público, a ofender indirectamente a relevância dos princípios da autonomia e da dignidade do exercício das funções autárquicas.

Portanto, a questão que se põe é saber se nós em determinada altura estamos a proteger melhor o interesse público dando maiores condições de demora na resolução desta questão, deixando permanecer administrações que estão, manifestamente, em situação de ilegalidade, ou se transigimos com situações destas, alargamos os prazos, as fórmulas de apreciação da decisão e estamos, implicitamente, a reconhecer que estas situações vão continuando ao longo do tempo.

É um conflito de interesses dentro dos interesses públicos que estamos aqui a tentar dirimir. É um facto que disse que, do ponto de vista da solução ideal, provavelmente, a melhor seria a função jurisdicional (e mantenho-a), designadamente em relação à segunda parte do preceito, só que esta questão deverá ser subordinada às considerações que venho produzindo sobre a matéria.

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Por outro lado gostaria de lhe salientar que referi dois momentos normativos, o momento constitucional e o momento da legislação ordinária. Penso que de acordo com estes princípios não consideraria necessário que esta matéria viesse a ser consagrada em termos constitucionais. Consideraria necessário e adequado que esta matéria viesse a ter resolução ao nível da legislação ordinária e só. E considero isso, aliás, uma exigência.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Ferreira de Campos.

O Sr. Ferreira de Campos (PSD): - O que vou dizer não vai perturbar o debate. Dirigem-se a minha interrogação e a minha meditação muito concretamente à proposta do PCP e vai no seguinte sentido. Julgo que a dissolução do órgão autárquico reveste uma forma que tem que ser reapreciada, em sede de promulgação, pelo Presidente da República. Estou a lembrar-me concretamente em relação aos últimos actos de dissolução ou intenções de dissolução por parte do Governo de alguns órgãos autárquicos. Penso que a promulgação pelo Presidente da República desse acto será uma garantia adicional da via da tutela administrativa que impede ou afasta a bondade jurisdicional da proposta apresentada pelo PCP.

Era esta a questão que queria pôr ao PCP.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado João Amaral.

O Sr. João Amaral (PCP): - Agradeço esta intervenção, que de facto é importante. Estávamos todos com alguma dificuldade em situar a questão em toda a sua dimensão. Ainda bem que agora assim sucede e podemos discutir com mais franqueza.

E com mais franqueza o que se passa é que a transferência do poder de aplicação das sanções para os tribunais tem inegáveis vantagens no funcionamento global do sistema. E tem inegáveis vantagens que são bem situadas pelo que acaba de ser dito. Não é o ideal que a decisão de dissolução possa ser encarada como uma decisão de contornos políticos, ao sabor de uma iniciativa que é tomada ou não é, e em termos que nomeadamente introduzem zonas de conflitualidade que não têm nada a ver com o objecto da matéria. Este deve ser apenas saber se o acto é ilegal, se a ilegalidade é grave e se dela deve, por isso, decorrer a dissolução do órgão.

A questão, quando se coloque, deve ser apreciada por um sistema que garanta que não exista nenhuma, outra componente, na apreciação do processo, que não seja a própria apreciação da matéria em si, face à legislação. Ora, o sistema proposto pelo PCP e que, muito bem, foi considerado ideal resolve todo esse tipo de questões. Poderíamos, nada o impede na Constituição, fazer com que a lei ordinária o acolhesse. Poderia, nomeadamente, a Assembleia já ter aprovado um normativo deste género (aliás correu com insistência que era esse o sentido dos vários projectos e propostas que iriam aparecer sobre a matéria, portanto não direi que é uma matéria virgem).

Gostaria de acentuar outro ponto. É claro que do que estamos a falar é de tutela. Aliás, o ponto está, aqui, introduzido, precisamente, no artigo referente à tutela administrativa.

Parece-me que foram trazidos aqui bons argumentos para que a questão seja encarada de forma positiva e se continue um trabalho exploratório, para o que já se contribuiu aqui, mas que deverá tender a que se acolha uma solução deste tipo.

O Sr. Presidente: - Também reconheço que há uma diferença fundamental entre a dissolução de órgãos autárquicos, que está prevista no actual n.° 3, e a cessação individual do mandato, que não está prevista na Constituição em lado nenhum. E uma distinção em que podemos pensar numa próxima ocasião. Mas, de qualquer modo, não se esqueçam de que este artigo 43.°, que mantém os n.ºs 1, 2 e 3 actuais, trata da tutela administrativa, não trata de mais nada. E o que estão a propor é, no fundo, retirar um naco substancial deste artigo, esvaziando-o quase de conteúdo. Deixava de ser tutela administrativa para ser tutela judicial, é óbvio. Tinha significado o n.° 1. O n.° 2 e o n.° 3 tinham significado muito restrito.

Em relação à cessação individual do mandato temos abertura para considerar que não deva ser objecto de um acto administrativo, sobretudo jogando com a figura da suspensão que aqui também não está prevista. Quanto à tutela administrativa ela ficava reduzida a quase nada, porque ela hoje, praticamente, só tem este conteúdo, é a dissolução dos órgãos. Não vejo que tenha havido, na prática, intervenções de carácter tutelar e administrativo que não seja a dissolução dos órgãos. Não tenho dado conta de outra intervenção, quando muito a realização de inquérito, que ou conduz a algum resultado de natureza tutelar ou não conduz a resultado nenhum.

De qualquer modo, continua a parecer-nos que consagrar que a dissolução passa a ser só objecto de apreciação judicial, sem termos uma visão clara de que isso possa implicar de forma expedita, e não da forma arrastada como normalmente ocorrem as intervenções judiciais, o PS não iria por aí.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, gostaria de frisar apenas dois aspectos. O primeiro é que, na consulta que esta Comissão realizou aos municípios sobre esta matéria, o ponto tendente à clarificação e reforço de garantias, em matéria de dissolução, foi objecto de apreciável consenso autárquico. Não por acaso os municípios pronunciam-se pela consagração de uma solução deste tipo com vista a evitar os juízos de oportunidade política que receiam, em vez de juízos de legalidade, que são os que nesta matéria se impõem.

Creio que deveríamos ter isso em consideração, ou deveríamos ponderar sobre as razões que levaram a isto...

O Sr. Presidente: - Não tenho dúvidas, desculpe interrompê-lo, de que, do ponto de vista dos próprios tutelados, entregar a tutela aos tribunais merece o seu acordo de princípio! Acho é que deveremos ecoar essas preocupações na medida em que elas sejam nossas, não de juizes em causa própria.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, creio que as razões que levaram os municípios a pronunciarem-se, neste sentido, não serão propriamente dignas da suspeição que, no fundo, acaba de emitir...

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O Sr. Presidente: - Os juízos em causa própria são sempre, como é óbvio, desvalorizados.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, essa afirmação é irreversível. V. Exa., por exemplo, põe-se no papel de juiz em causa própria, quando se coloca na postura de governo que quer poderes e deseja bulir em autarcas! Nesta matéria + 1 - 1 = 0, isto é, o critério da "exclusão do juízo em causa própria" levaria a uma suspeição geral de que não ficariam isentos os defensores da governamentalização...

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, coloco-me na postura do legislador. É aquela em que estou e que não tem nada de governo. Também é da Assembleia da República, do País e de toda a gente.

E essa a minha posição. Não admito que possa supor que é outra. Mas não tenha dúvida do seguinte: invocar o ponto de vista de um juízo em causa própria é invocar um juízo desvalorizado. Sempre foi assim, sempre assim será.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, e enquanto houver governos sobre a Terra é legítimo formular a suspeição de que o que pretendem é acrescer poderes, mesmo que isso coloque em risco a garantia dos poderes de outros órgãos, quer a Constituição quer autónomos em relação ao Governo! Não queria colocar o debate neste terreno...

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, estamos numa democracia controlada, em que o Governo já não é - nem tem, necessariamente, que ser - aquele papão de quem devamos, em todas as circunstâncias e em todos os momentos, suspeitar por sistema. Ele tem também que prestar contas, tem controles legais e não legais, políticos, etc.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Essas palavras são felizes, Sr. Presidente. Entendo que V. Exa. deve, por uma questão de coerência, generalizar esse juízo de não suspeição a todos. É tanto juiz em causa própria o Governo, que pretende exercer as suas prerrogativas constitucionais, como a autarquia, que pretende não ver invadida a sua esfera de autonomia e não ver ultrapassados os seus poderes. Portanto, não façamos nenhuma suspeição. É esse o meu raciocínio! E confiemos a questão a tribunais cujo juiz seja, também, insuspeito!

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, o Governo é juiz, mas não em causa própria. O juiz julga, mas não julga a família, não se julga a si próprio. O juiz não julga nenhuma causa que seja dele. Está a julgar uma causa que é de outrem. Quando emite a opinião de que os presidentes das câmaras ou os autarcas em geral pretendem ficar sujeitos a uma tutela judicial, refere um juízo em causa própria. Não o é quando o Governo exerce um juízo tutelar. Não são duas situações paralelas. Estamos a viver em democracia, o Governo é controlado, sujeita-se à lei. Não temos razões para, em todos os casos, dele sistematicamente suspeitar. As soluções são melhores quando são entregues aos tribunais? São mas têm o defeito de ser morosas e até podem demorar mais do que o próprio mandato. Quando intervêm, a eficácia da intervenção é nula.

Por outro lado, a tutela de que se trata é a administrativa, o que não é por acaso. Em outras democracias também ainda ninguém abandonou a tutela administrativa das autarquias locais. É que não é fácil substituí-la pela tutela judicial. Se o fosse, eu também o acompanharia.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, em relação a essa matéria as contraposições radicais redundam em simplificação! Neste debate ninguém fez uma análise prescritiva da tutela administrativa. O tema que estamos a discutir é o da medida extrema, que é a dissolução. É dessa que estamos a falar. Ora, essa medida só pode aplicar-se aos casos de acções ou omissões ilegais graves. Discute-se se nessas circunstâncias o controle jurisdicional, que é constitucionalmente obrigatório, deve ser ex ante ou ex post. É isso que estamos a discutir! Se é ex post, é moroso, contra as autarquias. Se é ex ante, é moroso - e não sei porquê, já que podemos inventar um sistema processual que seja adequado -, mas moroso contra a aplicação de medidas dissolutivas. No primeiro caso, porém, as autarquias são fortemente lesadas...

O Sr. Presidente: - Nunca o consegui, Sr. Deputado. Já tentei consagrar na lei os prazos de oito e quinze dias para o julgamento das questões de comunicação social. Fizemos uma lei o mais expeditiva possível, mas não deu absolutamente nada. Continuou a demorar dois, três anos à espera da primeira amnistia. Quando vem a decisão já não tem eficácia nenhuma. Já ninguém a relaciona com o delito!

Por outro lado, não há, infelizmente, uma grande gama de formas de tutela administrativa.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Aí é que está o equívoco básico, Sr. Presidente. É que V. Exa. estabelece uma visão redutora do que seja a tutela e, no limite, até identifica a tutela com a dissolução. Devo dizer que é uma visão extremamente redutora, para não dizer mais, do conceito constitucional de tutela.

O Sr. Presidente: - Invoco a prática, Sr. Deputado. Na prática, o que acontece é isso. E até é bom que assim seja porque não concebo uma tutela que intervenha a propósito de coisas miúdas, que esteja permanentemente a massacrar o autarca a propósito de tudo ou de nada. Não é essa a minha concepção de tutela! Para mim a intervenção da tutela é a bomba atómica! Só quando se tratar de um caso extremamente grave é que a tutela administrativa deve operar. Na prática, o Sr. Deputado sabe que é assim! Salvos os casos de dissolução, na prática não tem havido mais nada.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, temos leituras totalmente diferentes do que tem sido a prática nessa matéria. Como a prática nessa matéria é uma questão de facto, que pela sua própria natureza só pode suscitar uma discussão limitada, devo dizer que, a nosso ver, o que tem acontecido é precisamente o contrário! Se no panorama da vida autárquica portuguesa tem havido factos infrequentes, a dissolução é um deles.

O Sr. Presidente: - Quais são os outros, Sr. Deputado?

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1636 II SÉRIE - NÚMERO 52-RC

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, é toda a vasta gama de factos decorrentes da aplicação de medidas de tutela, desde as actividades de inquirição múltiplas até aos actos preparatórios em que se desdobram essas inquirições, que podem ter carácter formal ou não, único ou sucessivo, traduzidos, por exemplo, no conhecimento de documentos, de actos praticados ou na realização dos elementos de contactos administração central/administração local, tendentes a esses efeitos...

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, quando os inquéritos não levam à dissolução conduzem, na prática, a quê?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Conduzem à adopção de medidas de carácter criminal, disciplinar ou de carácter sancionatório previstas na lei ou à elaboração de relatórios, recomendações, apoios técnicos...

O Sr. Presidente: - Criminal não é com certeza, Sr. Deputado. A matéria criminal não é da competência da tutela administrativa.

O Sr. José Magalhães (PCP): - É evidente que não é uma competência directa: ela tem que ser efectivada através do accionamento dos órgãos próprios, que são os tribunais.

O Sr. Presidente: - E há a Polícia Judiciária para averiguar os crimes. É quem deve fazê-lo! Aliás, ninguém pode fazê-lo a não ser uma autoridade judicial ou policial.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, como pode V. Exa. sustentar que a dissolução, essa arma atómica, tem sido o facto fulgurante da nossa vida autárquica?!

O Sr. Presidente: - Não é fulgurante, mas, sim, único, Sr. Deputado.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não vale a pena insistir, Sr. Presidente, gostaria só de situar um aspecto.

Creio que uma das facetas relevantes deste debate é que ele apela a muitas distinções, a muitas clarificações e proscreve algumas amálgamas. Penso que é extremamente importante fazer, pelo menos, três distinções. Primeiro, a distinção entre actos de autarcas isolados, por mais graves que sejam, e actos de órgãos. Esta é a primeira barreira que não podemos deixar de ter em conta.

O Sr. Presidente: - Estou de acordo, Sr. Deputado.

O Sr. José Magalhães (PCP): - É que, conseguiu, a amálgama gera confusões perigosíssimas!

Segundo: a distinção entre acções ou omissões graves dos órgãos propriamente ditos e as demais. Só as primeiras é que podem dar origem a uma dissolução!

A terceira distinção a fazer é entre os critérios de legalidade a aplicar para avaliar tudo isto e o uso de critérios de carácter político, a emissão de juízos assentes em outros factores que não os de mera legalidade. Os juízos do segundo tipo devem entrar em linha de conta para a produção destas decisões.

O Sr. Presidente: - Estou de acordo, Sr. Deputado. Só que a vossa proposta não faz nenhuma distinção. A vossa proposta é que é uma amálgama, porque submete tudo à mesma regra. Vai tudo para os tribunais. Isso é que não pode ser!

Se pudermos fazer essa distinção de forma construtiva e expeditiva estou de acordo.

O Sr. José Magalhães (PCP): - É o nosso voto, Sr. Presidente!

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, a próxima reunião será na próxima terça-feira, às 15 horas. Srs. Deputados, está encerrada a reunião.

Eram 13 horas e 15 minutos.

Comissão Eventual para a Revisão Constitucional

Reunião do dia 22 de Julho de 1988

Relação das presenças dos Srs. Deputados

Carlos Manuel de Sousa Encarnação (PSD).
Carlos Manuel Oliveira e Silva (PSD).
Carlos Lélis da Câmara Gonçalves (PSD).
José Augusto Ferreira de Campos (PSD).
Licínio Moreira da Silva (PSD).
Luís Filipe Garrido Pais de Sousa (PSD).
Maria da Assunção Andrade Esteves (PSD).
Mário Jorge Belo Maciel (PSD).
Miguel Bento de Macedo e Silva (PSD).
Rui Manuel Lobo Gomes da Silva (PSD).
Luís Filipe Meneses Lopes (PSD).
António de Almeida Santos (PS).
Alberto de Sousa Martins (PS).
António Manuel Ferreira Vitorino (PS).
Jorge Lacão Costa (PS).
José Manuel Mendes (PCP).
José Manuel Santos Magalhães (PCP).
Narana Sinai Coissoró (CDS).
Raul Fernandes de Morais e Castro (ID).

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