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Quarta-feira, 29 de Junho de 1988 II Série - Número 20-RC

DIÁRIO da Assembleia da República

V LEGISLATURA 1.ª SESSÃO LEGISLATIVA (1987-1988)

II REVISÃO CONSTITUCIONAL

COMISSÃO EVENTUAL PARA A REVISÃO CONSTITUCIONAL

ACTA N.° 18

Reunião do dia 19 de Maio de 1988

SUMÁRIO

Deu-se continuação à discussão do 6. ° relatório da Subcomissão da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional (CERC), respeitante aos artigos 53. ° a 62." e respectivas propostas de alteração.

Durante o debate intervieram, a diverso título, para além do presidente, Rui Macheie, pela ordem indicada, os Srs. Deputados Sousa Lara (PSD), José Magalhães (PCP), António Vitorino (PS), José Luís Ramos (PSD), Pacheco Pereira (PSD), Jorge Lacão (PS), Carlos Encarnação (PSD), Alberto Martins (PS), Maria da Assunção Esteves (PSD), Raul Castro (ID), Costa Andrade (PSD), Miguel Macedo e Silva (PSD) e Odete Santos (PCP).

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O Sr. Presidente: - (Rui Machete): - Srs. Deputados, temos quórum, pelo que declaro aberta a reunião.

Eram 11 horas e 20 minutos.

Como VV. Exas. se recordarão, estávamos ainda a analisar o artigo 58.° E tinham pedido a palavra o Sr. Deputado Sousa Lara e eu próprio, actuando como parte.

Tem, então, a palavra o Sr. Deputado Sousa Lara.

O Sr. Sousa Lara (PSD): - Sr. Presidente, pretendo responder à questão colocada pelo Sr. Deputado Alberto Martins, quando se referiu à nossa proposta de eliminação do n.° 2 do artigo 58.° Suponho - e este é um entendimento pessoal - que nessa proposta de eliminação estão contidas duas propostas evidentemente complementares, mas, em todo o caso, de níveis valorativos diferentes. A primeira tem a ver com a eliminação da parte inicial do n.° 2, cuja redacção é do seguinte teor: "Compete aos trabalhadores definir o âmbito de interesses a defender através da greve. [...]" Esta estatuição é, para nós, menos grave e apenas constitui uma redundância, conforme foi já explicado pelos meus colegas. A segunda diz respeito à eliminação da parte final do referido n.° 2, que nos interessa muito mais, uma vez que tem a ver com a constitucionalização de formas de greve que não estão em nada associadas à defesa dos interesses laborais dos trabalhadores.

Distinguida, pois, estes dois níveis. Suponho até que seria interessante ouvir V. Exa. sobre esta divisão da nossa proposta de eliminação do articulado em causa.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, em primeiro lugar, devo dizer que, em relação à proposta de eliminação do n.° 3 do artigo 58.°, apresentada pelo CDS, julgamos não ser conveniente suprimir a menção expressa de que o lock-out se encontra proibido. E pensamos assim porque nesta matéria não há uma igualdade de forças, pois tal não se pode ver em termos puramente tecnicistas de equilíbrio de forças. Existem, de facto, problemas por detrás do lock-out que colocam em causa o mínimo de subsistência dos trabalhadores e, nessas circunstâncias, não se nos afigura possível conceber a ideia de que é admissível olhar a greve dos empresários ou lock-out exactamente nas mesmas circunstâncias da greve dos trabalhadores. De facto, não se pode concluir que existe apenas a diferença de que num caso são os trabalhadores que suspendem o trabalho e no outro são as entidades patronais.

Já no respeitante à nossa proposta de eliminação do n.° 2 do artigo 58.° ouvi com atenção, designadamente, as explicações dadas pelo Sr. Deputado Raul Castro, e penso que não tem razão, como, aliás, foi oportunamente justificado na intervenção do Sr. Deputado Pais de Sousa.

Ora, o que nos preocupa nesta matéria é que o n.° 2 do artigo 58.°, tal como se encontra redigido, vai certamente para além daquilo que é intenção do legislador, porque seria inadmissível que os trabalhadores tivessem uma competência legislativa para definir o âmbito dos interesses a defender através da greve que extravasasse do próprio conceito de conflito laborai.

O Sr. Deputado Nogueira de Brito colocou ontem a questão de algumas formas de greve poderem ser ou não admissíveis. O PSD não suscita tanto esse problema como o da finalidade para a qual é utilizada a greve. De facto, não pensamos que, estando consignado o direito à greve, seja possível diminuir o seu conteúdo essencial. Acontece até que o conteúdo essencial do direito à greve não permite, obviamente - e nesse aspecto responderia ao Sr. Deputado Alberto Martins -, que seja uma entidade diferente que venha dizer aquilo que os trabalhadores em cada caso podem ou não defender. Contudo, uma regulamentação mínima do sentido em que pode ser utilizada a greve parece-me necessária, porque seria inaceitável que houvesse uma espécie de desvio de poder manifesto quando ela fosse utilizada para finalidades políticas do tipo insurrecional, para a ideia de, directa e exclusivamente, nessa base substituir o Govêrno ou promover a dissolução da Assembleia da República ou, até, para coisas mais graves, como seria uma hipótese de tipo secessionista.

Em segundo lugar, não é de excluir que hoje as organizações sindicais, por razões compreensíveis, pensam em agregar a si instituições económicas e até financeiras. Por estes motivos ou ainda por outras razões de carácter estritamente político, não seria de excluir a hipótese de se realizarem greves com uma finalidade económico-punitiva pura e simples e portanto que não seja baseada directamente num conflito de trabalho. É para prevenir este tipo de hipóteses que pensámos que seria razoável voltar a dar ao legislador ordinário a competência que lhe é própria e que lhe foi retirada por este n.° 2 do artigo 58.° Admitimos, porém, que seja sublinhado na Constituição, se acaso se sentir a necessidade de o referir, que não se pretende que uma entidade administrativa, designadamente o Governo, possa dizer que esta greve extravasa do seu âmbito. De facto, tudo aquilo que eventualmente sirva para reforçar o conteúdo essencial do direito fundamental da greve temos intenção de o aceitar.

No entanto, e repito, parece-nos que é necessário definir sempre o que se entende por direito à greve, bem como qual o tipo de conflito que tem a possibilidade de suscitar um problema que pode resolver-se por essa via. Acontece também que isso carece sempre de encontrar uma delimitação, pois não pode ser ad libitum dos trabalhadores. Aliás, não se sabe quem é a entidade "trabalhadores": são os sindicatos? São as comissões de trabalhadores? São os operários de uma determinada empresa não organizados em comissão de trabalhadores? Esse aspecto também precisa de ser indicado.

Portanto, o nosso propósito é, por razões óbvias, bastante mais modesto do que aquele que nos foi atribuído pelo Sr. Deputado Raul Castro, ou seja, pretendemos apenas voltar a dar aquilo que é a competência normal do legislador ordinário, mas sem prejuízo da consagração inequívoca do direito à greve com o seu conteúdo próprio.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Creio que o debate até agora travado já torna inteiramente clara a importância das propostas apresentadas. Trata-se, realmente, de uma questão chave, de um dos pilares da Constituição laborai e também de um dos aspectos em que os trabalhadores vêem consagrado, de maneira mais clara e com uma malha mais densa e protectora, um instrumento

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para a defesa dos seus direitos. Portanto, os propósitos do PSD nesta matéria não são modestos mas, sim, extremamente ambiciosos. Aliás, basta ter em conta aquilo que foi veiculado por diversos Srs. Deputados da bancada do PSD e, em particular, o conjunto de observações feitas pelo Sr. Deputado Rui Machete, para se apreender que a mutação pretendida é abissal. Quando o Sr. Presidente refere que o intuito do PSD é "devolver ao legislador ordinário a competência que lhe foi retirada" - e bem! - "em 1976", está a situar rigorosamente, mas sem ênfase por razões compreensivas, que se pretende uma drástica regressão num domínio sensível.

É importante que o tenha sublinhado, uma vez que contribui para aclarar alguns dos contornos do n.° 2 do artigo 58.° E também porque uma das tendências que tinha aflorado, anteriormente, neste debate havia sido a de minimização do alcance do referido n.° 2. Vimos o PSD fazer a tentativa de o ler como um artigo sujeito às mesmas susceptibilidades de restrição que outros que estatuem direitos de trabalhadores. Neste caso, a não sujeição a reserva de lei restritiva é uma das componentes e características inegáveis do artigo. Daí fluem várias limitações de carácter determinante para o legislador ordinário, o que, aliás, foi desejado e importa, no nosso entendimento, salvaguardar.

O Sr. Presidente: - Desculpe interrompê-lo, Sr. Deputado José Magalhães, mas é só para perceber o sentido das suas observações. De facto, perguntar-lhe-ia se, no entendimento de V. Exa., esta redacção actual legítima que possa haver uma greve com intuitos exclusivamente de carácter político ou de uma política económica para liquidar, por exemplo, uma instituição financeira que é concorrente de uma outra na qual é dominante uma central sindical.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Responderei rigorosamente à questão ora colocada por V. Exa., mas faço-o na sequência própria, porque é importante não deixar em aberto qualquer dos problemas, mesmo os mais melindrosos de um regime jurídico como o do direito à greve.

Creio que uma das virtualidades deste sistema é a de, quanto a eventuais limites imanentes, só poder haver lugar a fenómenos de caracterização e identificação ou, como os comentaristas chamam, de "revelação" de tais limites. Porém, o que não pode haver é uma actividade restritiva como a genericamente aplicável a outros direitos. E isso importa salvaguardar. Realmente, entre nós, não há nenhuma razão, ao contrário do que o PSD vem sustentando ao longo de vários tempos e com diversas modalidades e formas, para proscrever determinados tipos de greve que o PSD detesta.

O nosso regime jurídico, dada a multiplicidade de fórmulas e de expressões do direito à greve, foi extremamente cauteloso do ponto de vista conceptual. E não há nenhuma razão constitucional para postergar à partida determinadas greves, podendo realizar-se entre nós, com plena cobertura e garantia constitucionais, tanto greves de carácter puramente profissional, como aquilo a que se chama ordinariamente greves de solidariedade, como mesmo de natureza política, desencadeadas explícita e directamente para exercer pressão sobre os órgãos do Poder por motivos que não estejam directa ou indirectamente ligados às condições laborais dos trabalhadores que as desencadeiem. Não é ilegítimo nem inconstitucional, entre nós, que se desencadeie uma greve para que se proteste contra acções de carácter belicista, como seja o envio de armas ou de munições para um país que pratique uma guerra injusta ou para realização de finalidades criminosas. Não é proibido fazer uma greve contra actividades de apoio aos bandos armados que actuam em Angola ou Moçambique ou para lutar por mudanças de cariz político, incluindo quanto à sacrossante questão dos titulares dos órgãos de poder político num determinado momento. Esta é uma das virtualidades do sistema e das cláusulas constitucionais vigentes.

Vistas as coisas de outro ângulo, são constitucionais as greves ditas clássicas e também as greves em que os trabalhadores não se ausentam dos locais de trabalho, ocupando-os. São constitucionais as greves "rotativas", as "greves-tromboses" que, por serem em sectores chaves, produzem estrangulamentos, as greves intermitentes, as greves de zelo, as greves de rendimento, etc. É evidente que pode haver greves ilícitas pelos interesses a defender e pelos objectivos que preconizam (pode até haver greves ilícitas com cruzamentos destes dois critérios!). Entretanto, seguramente, face à nossa ordem jurídica não é ilícita uma greve que vise uma alteração da composição dos órgãos de soberania, desde que não se preconize essa alteração por meios ilícitos ou o derrube da ordem constitucional por meios inconstitucionais (é lógico que isso recairia justamente sob a alçada do Código Penal). Contudo, não há nenhuma confusão possível entre estes últimos casos e a tentativa de prescrição de determinadas formas de greve que o PSD leva a cabo e, sobretudo, com a imensíssima confusão tendente a restringir este direito aos casos de greve profissional e até, eventualmente, à greve profissional no seu sentido mais restritivo imaginável.

Igualmente não têm a mínima cobertura constitucional teses como as que procuram o esvaziamento do direito à greve, através da definição exacerbada de regras processuais, de requisitos e pressupostos, de exigências e obrigações dos trabalhadores em greve, de poderes acrescidos tendentes a investir de privilégios "de defesa" os trabalhadores que não façam greve e de prerrogativas de ingerência as autoridades (com vista supostamente a garantir a harmonização de direitos) ou mesmo de fórmulas tendentes a permitir a utilização de mecanismos excepcionais. Nada disto tem cobertura entre nós e não seria bom que a adquirisse.

Compreende-se que o PSD vise esse objectivo. A política do PSD nesta parte vem sendo caracterizada por múltiplas tentativas, de resto cruzadas e conjugadas, de esvaziamento do direito à greve. O n.° 2 do artigo 58.° é uma poderosa barreira contra a efectivação ou, ao menos, a intensificação dessas orientações, e é extremamente importante que aquilo que no fundamental é consagrado através da Lei da Greve em vigor (ainda que contenha aspectos que nos parecem menos felizes ou rigorosos) não possa vir a ser objecto de desnaturação, de redução - menos ainda nos termos em que o PSD o propõe e, sobretudo, o pretenderá em sede de lei ordinária.

A questão que deve ser equacionada quando estamos a debater esta matéria é naturalmente o que se tira, da Constituição mas também o que pode vir a ser pre-

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visto. E a segunda questão preocupa-nos tanto como a primeira. Aliás, uma e outra são faces da mesma realidade.

Aquilo que o PSD pretenderia, em sede de lei ordinária, estabelecer, se fosse suprimida a cláusula que hoje está contida na Constituição, seria seguramente de extrema periculosidade para os trabalhadores e poderia conduzir a um esvaziamento do direito à grave. Ao contrário daquilo que acaba de ser dito pela bancada do PSD, ou seja, que não se trataria senão de devolver ao legislador ordinário a competência que lhe foi retirada sem prejuízo do direito à greve, nesse caso arriscar-nos-íamos a ter uma versão mais que plastificada, inoquizada e desvitalizada do direito à greve.

Compreendemos que o PSD o pretenda, porque visa, precisamente, adquirir a imunidade contra as expressões de democracia laborai em vertentes que não apenas as canalizáveis através da democracia representativa. Percebe-se que tenha uma visão diminuída dos próprios processos de expressão dos direitos dos trabalhadores. Em todo o caso, não é essa a concepção constitucional.

Sr. Presidente, Srs. Deputados: A nessa posição é francamente contrária a qualquer proposta do tipo da do PSD e também somos contra propostas como a apresentada pelo CDS. Este partido visa de resto, nesta matéria o pleno: não pretende apenas o esvaziamento do direito à greve como tal, usa um duplo processo, qual seja o de supressão do n.° 2 do artigo 58.° e o aditamento de um outro conteúdo normativo susceptível de ser ele próprio uma cláusula de esvaziamento. O CDS pretende, de facto, recolocar nas mãos das entidades patronais o poder desigual de desencadear o lock-out, o que visa abrir todo um campo de discussão que nos parece, felizmente, ultrapassado em termos de arquitectura constitucional.

Compreendo que o CDS tenha, tal como o PSD em certa medida, saudades de certos direitos deste tipo. Não se julgue que me estou a referir, malevolamente, aos da ordem jurídico-política derrubada em 25 de Abril, mas sim aos direitos vigentes em certos países da Comunidade e em concreto na RFA, em que o direito à greve vê os seus contornos definidos primacialmente através da jurisprudência constitucional, na sequência de penosas batalhas no termo das quais tem vindo a ser possível, aqui e ali, ver asseguradas efectivas possibilidades de defesa e de intervenção dos trabalhadores. Mas essas batalhas penosas e difíceis, essa debilidade decorrente da dependência de organismos jurisdicionais e de uma hostilidade do legislador, essa batalha contra os "silêncios constitucionais" não tem razão de ser em Portugal. A Constituição fala, fala bem. Infelizmente, não são mesmo assim suficientes para impedir a proliferação de fenómenos de ilegalidade, de tentativas de desnaturação do direito à greve, quer excluindo dele certos trabalhadores, quer procurando impedir que os trabalhadores sem vínculo possam exercer o direito à greve - é essa talvez uma das maiores constrições que, neste momento, no panorama laborai se perfilam -, quer através da multiplicação de outras formas de precarízação que são elas próprias um desincentivo ao exercício de direitos deste tipo, uma vez que não tem defesa aquele que não tem direitos. Por estas vias o patronato português tem logrado atacar posições vitais do movimento operário com consequências muito negativas. Todas essas ilegalidades, todos esses elementos patológicos da greve em Portugal têm-se desenvolvido num quadro marcado por fortes salvaguardas constitucionais. É essa barreira, Sr. Presidente e Srs. Deputados, que entendemos dever ser mantida.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Naturalmente que a análise de um artigo sobre uma matéria tão relevante não pode deixar de nos fazer reflectir sobre os condicionalismos - para utilizar uma expressão eufemística - em que, em Portugal, num passado longínquo e recente, o exercício do direito à greve esteve sujeito e nas próprias condições que levaram à concretização, no texto constitucional, do direito à greve, nos termos e segundo as formas que se contêm neste artigo 58.° da Constituição.

Uma sociedade democrática madura não pode deixar de sublinhar que o exercício do direito à greve, isto é, o recurso à greve aparece essencialmente como uma arma de recurso perante bloqueamentos negociais entre parceiros sociais e não como a arma-mater, digamos assim, de todas as lutas sociais, de todas as conflitualidades sociais. O PS defende, como já provou sucessivas vezes, que a resolução dos conflitos laborais deve ser prosseguida através de instrumentos de efectiva concertação social, sendo o recurso à greve um recurso extremo perante situações de bloqueamento, que a Constituição consagra em termos amplos mas também rigorosos.

Começando pelo rigor, parece-me inexplicável, na óptica do PSD, a eliminação da primeira parte do n.° 2 deste artigo 58.°, na medida em que, se se recordarem das condições que levaram à sua consagração e dos debates que tiveram lugar na Assembleia Constituinte, a lógica fundamental da consagração deste princípio era a de impedir que associações, ditas representativas dos trabalhadores, pudessem arrogar-se, unilateralmente e à margem dos próprios interesses dos trabalhadores, o direito ou a faculdade de declarar greves e definir o seu âmbito. O que se pretendeu exactamente sublinhar foi que a definição do âmbito da greve não era uma reserva ou apanágio de lideranças autoproclamadas ou de minorias iluminadas dentro das estruturas da burocracia sindical, mas essencialmente uma questão que pressupunha a participação do conjunto dos trabalhadores. E é por essa razão que aqui se estabelece que a definição do âmbito da grave compete aos trabalhadores, e não especificamente a sindicatos ou a comissões de trabalhadores, o que inculca a ideia de que a definição dos contornos de uma greve deve ser amplamente participada pelo conjunto dos trabalhadores de um determinado sector de actividade. Aliás, isto tem consagração estatutária em diversos sindicatos ao prever-se nos seus regulamentos internos que a greve tem de forçosamente ser declarada através, por exemplo, de referendo, de consulta à classe, o que é uma lógica que radica directamente neste n.° 2 do artigo 58.° da Constituição e que nele tem o seu principal apoio e fundamento. E a esmagadora maioria dos sindicatos prevê que a convocação da greve seja uma decisão da assembleia geral expressamente convocada para o efeito nos termos que a lei estipula.

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Este conceito é, portanto, rico em termos democráticos e de garantia da democracia sindical. Não é um conceito redutor e a sua eliminação poderia trazer consequências complexas ao nível do funcionamento da própria estrutura sindical, do funcionamento democrático das associações representativas dos trabalhadores.

Quanto à segunda questão, isto é, quanto ao problema de a lei não poder limitar o âmbito da greve, a eliminação proposta pelo PSD amplia, ipso facto, o campo de subjectivismo adjectivante das finalidades das greves. E, se é verdade que nestes debates, quer na Assembleia Constituinte, quer na revisão constitucional, se agita sempre o fantasma das greves políticas insurreccionais e depois, numa versão mais moderada, fala-se apenas de greves políticas, já não insurreccionais, a verdade é que alguns exemplos recentes, lamentavelmente vividos em Portugal, indiciam interpretações restritivas inadmissíveis do significado dos limites do exercício do direito à greve. Todas as greves gerais serão sempre greves políticas - vimos recentemente defender essa tese com relativa descontracção - e inclusivamente greves sectoriais em sectores estratégicos são pérfidas cabalas com intentos de natureza política, sintetizadas na súmula: "Faço greve, logo, privatizam-me." Esta situação desaconselha vivamente que possamos ignorar algumas das consequências possíveis que a eliminação do n.° 2 do artigo 58.° pode acarretar para a consagração de um direito tão relevante como é o direito à greve. Inclusivamente, penso que o exemplo das Comunidades Europeias desaconselha a que sigamos esse caminho. Nesta matéria, até me sinto bastante "thatcheriano". E o exemplo acabado de greve extremamente relevante, Thatcher versus Arthur Scargil em Inglaterra, demonstra claramente que o problema da limitação do exercício do direito à greve não é um problema burocrático-administrativo, não é um problema que se resolva pela obsessão repressivo-limitativa da lei sobre o exercício do direito à greve, mas essencialmente um problema de natureza política - e aqui não tenho medo nenhum de utilizar o nome. E a táctica seguida pelo governo da Sra. Thatcher na greve dos mineiros demonstrou clara e inequivocamente que, enquanto se tratou de uma greve com fundamentos sindicais, teve um largo apoio dos trabalhadores, mas, quando o Governo, através da táctica seguida na desarticulação da greve, a reduziu a uma greve política - onde ficou claramente demonstrado que era um preço grave e alto a pagar pela instrumentalização política e partidária do movimento sindical -, a base social de apoio, isto é, o tal âmbito da greve definido pelos trabalhadores foi drasticamente reduzido e os sindicatos averbaram uma gravíssima derrota política sem que a Sra. Thatcher tivesse tido necessidade de ir à Câmara dos Comuns pedir uma lei burocrática de redução unilateral do direito à greve.

Naturalmente, esta questão da tentação de qualificação das greves políticas ou de solidariedade como greves ilegítimas parece-me estar mais próxima das concepções que tem do direito à greve, por exemplo, o general Jaruzelsky do que propriamente a Sra. Thatcher. Na minha óptica, não é possível defender e apoiar as greves de solidariedade e até as greves políticas - por que não dizê-lo? - que o Solidariedade promove na Polónia e ser-se contra essas greves no Ocidente. Tal como também não é possível ser em Portugal a favor de greves de solidariedade e de greves políticas, mas, quando se trata de analisar o caso concreto da luta do Solidariedade na Polónia, ser contra essas greves de solidariedade e greves políticas no Estado polaco.

Consequentemente, penso que esta matéria abre uma porta perigosa para um vazio cujo preenchimento não me parece reforçar o dinamismo da sociedade civil na resolução dos conflitos sociais, sendo uma vez mais tributário de um certo atavismo de proteccionismo corporativo que, segundo creio, temos todos a obrigação de arredar do plano nacional, porque essa é, aliás, a óptica de que todos nós comungamos no tratamento dos direitos económicos, sociais e culturais dos trabalhadores portugueses.

O Sr. Presidente: - Estão inscritos para intervir o Sr. Deputado Pacheco Pereira, eu próprio e os Srs. Deputados José Luís Ramos e Costa Andrade.

Vozes.

Os Srs. Deputados José Luís Ramos e José Magalhães pretendem colocar perguntas ao Sr. Deputado António Vitorino. Desde que as perguntas não sejam usadas também utilizando o direito de o deputado definir o âmbito da pergunta em termos tais que se se substitua à intervenção e por esse facto alterem a ordem das inscrições, vou satisfazer os pedidos de palavra.

Faça favor, Sr. Deputado José Luís Ramos.

O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Pretendia formular duas perguntas muito sintéticas ao Sr. Deputado António Vitorino.

Em primeiro lugar, o Sr. Deputado referiu que, sendo suprimida a primeira parte do n.° 2 do artigo 58.°, haveria uma redução dos direitos dos trabalhadores e, se bem percebi, que nos próprios estatutos das associações sindicais e dos sindicatos se prevê frequentemente o recurso ao referendo e a outras formas que permitam saber se os trabalhadores devem ou não, naquele meio e naquele momento concreto, exercer o direito à greve. Pergunto-lhe, Sr. Deputado, se e de que forma são os direitos dos trabalhadores, eles próprios, restringidos no caso de se retirar esta primeira parte do n.° 2 do artigo 58.° Os estatutos das associações sindicais não terão que ser mudados por isso. Bem pelo contrário, os direitos dos trabalhadores continuam a ser exercidos na sua absoluta liberdade sem qualquer restrição, nesse ou noutro aspecto, e não vejo como é que a referida supressão pode ter alguma relação com isso. Bem pelo contrário. Aliás, se nos próprios estatutos das associações sindicais e de quaisquer outras estruturas dos trabalhadores, esses próprios mecanismos estão previstos, nomeadamente o referendo, que é um mecanismo absolutamente democrático, porquê então ter medo desta supressão, dizendo que há uma restrição aos direitos dos trabalhadores? Pelo contrário.

Quanto à segunda parte do n.° 2 do artigo 58. °, pretendia dizer-lhe, Sr. Deputado António Vitorino, que estou absolutamente de acordo com o que acabou de referir. Em meu entender, colocou muito bem a questão e eu estaria, deste lado, absolutamente disponível para aplaudir. Mas, a meu ver, a questão é outra. Se concatenar a segunda parte do n.° 2 do artigo 58.° com a primeira, deve concluir que: uma leitura exegética do n.° 2 do artigo 58.° é a de que o direito à greve, tal como está consagrado constitucionalmente - é óbvio

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que muitas das intervenções têm vindo dizer o contrário -, é um direito absoluto ou pode vier a sê-lo na estrita consequência de que são os trabalhadores que têm que definir o seu âmbito. Qualquer greve pode ter um âmbito vasto. Mas a questão que se coloca é saber, caso não se retire este n.° 2 do artigo 58.°, na segunda parte quem define o âmbito da greve. Retirar a segunda parte deste preceito pode não constituir obviamente uma tentativa de qualificação da greve, mas, ao manter-se esta norma tal como está -e esta é a segunda questão -, o direito à greve não é ou não pode vir a ser interpretado não como direito relativo, mas como direito absoluto?

Vozes.

O Sr. Presidente: - Tenho a sensação de que alguns Srs. Deputados talvez queiram convocar os seus pedidos de intervenção para perguntas.

Risos.

O Sr. António Vitorino (PS): - Eu não faço questão de responder ...

O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Eu fiz uma verdadeira pergunta.

O Sr. Presidente: - Ao fim de alguns minutos de considerandos, fez duas perguntas, Sr. Deputado. Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, creio que qualquer um de nós que, ao fazer uma pergunta, não fizesse uma verdadeira pergunta, não julgasse fazer uma verdadeira pergunta, era pelo menos distraído ou imprudente. Creio, portanto, que todos nós faremos as perguntas que pudermos e de que formos capazes. O Sr. Deputado António Vitorino seguramente dará as respostas. E é isso que neste momento me preocupa: porque um dos aspectos mais característicos deste sistema, tal qual está gizado, é uma certa prudência conceptual. E a Constituição não tem alta densidade na definição de greve, com o Sr. Deputado António Vitorino fácil e seguramente reconhecerá. A própria Lei n.° 65/77 não define "greve" e não é por acaso que não o faz - creio que o Sr. Deputado António Vitorino estará de acordo com isto - porque se teve essa prudência, dada a diversidade de situações e dada a experiência bastante rica que sucedeu aos tais tantos anos de greve proibida, perseguida e reprimida.

A noção constitucionalmente comportável é bastante rica e aquilo que me pareceu desgarrar-se das palavras do Sr. Deputado António Vitorino foi uma certa apreensão, embora não materializada em nenhuma proposta de alteração - tanto quanto eu percebi - e em nenhuma inclinação favorável em relação a qualquer proposta de alteração quanto às realidades comportáveis no conceito constitucional de greve.

De facto, creio que tem uma certa renitência em relação à cobertura constitucional de certas situações, sobretudo daquilo que podemos entender como greves com um cunho mais político (mais político porque, na verdade, greves inteiramente a políticas é difícil que existam). Por exemplo, a hipótese de uma greve como a que em Itália foi desencadeada na altura do rapto de Aldo Moro - claramente uma greve de protesto político, com objectivos políticos- é entre nós perfeitamente comportável constitucionalmente. Creio que nada disto se confunde com o problema que mais o apoquenta, e que, aliás, é um problema compreensível, ou seja, o da possibilidade de instrumentalização, questão totalmente diferente. Gostaria que, neste ponto, procurasse precisar entendimentos. Porque, sendo tudo, virtualmente tudo, mesmo as coisas puras, mais honestas, mais simples, mais cristalinas, "instrumentalizável" (no sentido de uma perversão de finalidades, no sentido de uma contra-interpretação, no sentido de uma campanha intoxicante, etc.) e sendo certo que as perversões de finalidades são sempre pagas, há em tais casos uma factura inequívoca, a saldar, pelo que uma greve assim conduzida ou uma greve com objectivos incorrectamente definidos não pode atingi-los, não os atinge e, em regra, pode produzir penalizações extremamente graves. Sendo tudo isto do mundo dos factos, qual é a ilação que tira para o mundo do direito e, em particular, para o mundo do direito constitucional? Segundo aspecto: é evidente que os eventuais membros do famoso "clube SOREL" que entre nós se contem têm pouca saída neste momento. Quer dizer, não conheço ninguém na circunstância política portuguesa que preconize a transformação social por via da grande explosão grevista. Isto é um pouco o que atormenta os pesadelos do Sr. Primeiro-Ministro Cavaco Silva, ou seja, a ideia de que uma greve, uma greve geral como a do dia 28, pudesse talvez produzir outros efeitos que não aqueles que os trabalhadores aventavam. Não foi o Primeiro-Ministro tão longe quanto as partes deliquescentes da "greve dos pregos" ou da "insurreição dos pregos", mas ouvimos coisas que se aproximam muito, muito desse estilo célebre. Ora isso só pode resultar de uma forma de intervenção política tendente a inibir os trabalhadores e a pôr-lhes na boca aquilo que na boca deles não está. Seria estranho que essa tese estivesse na boca do PS e creio que o Sr. Deputado de forma alguma o pretende inculcar. Aquilo que pretende inculcar é certamente uma coisa diferente. Curiosamente estabeleceu uma confusão entre a postura face ao regime do direito à greve e a questão da filosofia e da atitude geral perante a greve, como que dizendo: "és pela greve no Burundi, deves ser pela greve no 'Rococó', ou também na Polónia, ou também em Portugal, em Trás-os-Montes, na Madeira", em qualquer parte do território nacional, portanto. Compreendo esse seu problema, que realmente pode ser relevante, isto é, o de saber se se é pela greve numa perspectiva territorial ou numa perspectiva geral, se se tem uma postura globalizante ou se se tem uma postura restritiva, ou seja, se se é coerente ou se se é incoerente, que é, se bem percebi, no fundo, a questão que mais o atormentava.

Se me quer perguntar qual é a minha posição, o meu juízo concreto sobre uma greve em concreto, num momento histórico concreto, num sistema político concreto e numa ordem jurídica concreta, diga e eu respondo. Mas neste momento, Sr. Deputado António Vitorino, sendo a discussão sobre o direito à greve na Constituição Portuguesa, a pergunta que mais pode inquietar os trabalhadores é, finalmente, esta: está o PS na disponibilidade de não alterar em que quer que seja o actual dispositivo ou está o PS na disposição

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de acolher, em certa medida, as propostas do PSD? Neste caso, que propostas e em que medida é que está disponível para esse efeito?

Essa é a resposta que nos poderá tranquilizar. O resto será uma fundamentação relevante e interessante, mas não terá o impacte que, seguramente, tem direito a ter nestas actas.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado António Vitorino, quererá V. Exa. tecer já considerações sobre as reflexões relativas à violência e outras questões que lhe foram postas ou, uma vez que haverá intervenções que irão culminar em perguntas, quererá esperar pelo termo dessas intervenções?

O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, de acordo com as regras de funcionamento desta Comissão, respondia já às perguntas que, directamente, me fizeram, por uma razão simples: não sou autor de nenhuma proposta de alteração ao artigo 58.° da Constituição e, por consequência, não me arrogo nenhum direito de responder a quem quer que seja, respondendo apenas a quem pergunta. Quanto a outras intervenções, se entender dever pronunciar-me, pronunciar-me-ei.

Em relação à pergunta do Sr. Deputado José Luís Ramos, diria o seguinte: penso que não se pode analisar esta matéria com uma memória política curta. A primeira parte do n.° 2 do artigo 58.° da Constituição é uma norma programática, não retirei dela consequências jurídicas directas para a subsistência ou a insubsistência dos estatutos das associações sindicais e é óbvio e evidente que os estatutos das associações sindicais não estão prejudicados pela consagração deste n.° 2 ou pela sua eventual proposta de eliminação. Isso é evidente. O que coloquei não foi uma questão jurídica, mas sim uma questão política e foi exactamente como questão política que quis colocar todo este debate, pois o debate da revisão constitucional não é um debate meramente técnico-jurídico e muito menos nesta matéria. Ainda que, eventualmente, as questões políticas possam por vezes incomodar, pensando-se que esta Comissão é uma comissão asséptica e académica, ela não o é de facto.

Penso, sinceramente, que a eliminação do n.° 2 debilita a posição política daqueles que defendem que os estatutos dos sindicatos devem consagrar formas de democracia interna que garantam a participação efectiva dos trabalhadores na definição do âmbito da greve e que existe a possibilidade de retirar essa consequência política, caso o n.° 2 fosse eliminado, não sendo, além do mais, possível analisar o movimento sindical em bloco, como se ele fosse uma estrutura unitária. E mais: penso que o nosso movimento sindical ainda enfrenta, em certos aspectos, problemas de democraticidade interna que constituem desafios importantes à implantação da democracia em todos os planos do Estado Português. Consequentemente, não nos podemos alhear dessa vertente importante que é a da democraticidade interna das instâncias representativas de interesses políticos e sociais e entendo que, sinceramente, quanto à primeira questão, não há nenhuma consequência jurídica, sendo evidente que faço uma leitura política dessa matéria.

Quanto à segunda questão, devo dizer que o abrir as portas para a tentativa de um debate de adjectivação de quais são as greves legítimas e as ilegítimas nos termos da delimitação de uma lei ordinária é abrir as portas a um debate crispado que tem algo da concepção paternalista do Estado sobre o movimento social que penso não se coadunar com aquilo que é, sobretudo, a nova filosofia política do PSD. Portanto, aí, nem sequer reivindico nada para o PS.

Quanto à questão do Sr. Deputado José Magalhães, apreciei, sobretudo, a espantosa capacidade que o Sr. Deputado demonstrou em ler intenções, e, não fora a circunstância de estarmos no foro político, eu diria que o Sr. Deputado José Magalhães tentou psicanalizar a minha intervenção política. Por enquanto, ainda me vou mantendo dentro dos eixos equilibrados e vou prescindir dessa psicanálise. Daí que diga, desde logo, que não fiz confusão nenhuma entre a análise do direito à greve e a filosofia política do mesmo direito. Se o Sr. Deputado José Magalhães acha que esta matéria é uma questão que só pode ser analisada com toga ou beca, com luvas assépticas de borracha e dizendo-se "isto é uma questão jurídica", é uma posição surpreendente do Sr. Deputado José Magalhães, mas é a dele e não a minha.

Esta é, essencialmente, uma questão política; foi no plano político que a coloquei e é aí que convergimos e divergimos. Daí que, por exemplo, o problema da uniformidade da posição do direito à greve no Burundi ou em Portugal seja, efectivamente, um problema do Sr. Deputado José Magalhães. Não é o meu, e o exemplo do Burundi é um exemplo ao acaso. Há pouco dei outro e poderíamos dar o exemplo do Burkina Faso ou outro mais marcante. Agora, a resposta à questão que o Sr. Deputado José Magalhães colocou é esta: pessoalmente, entendo que não faz sentido abrir uma limitação ao direito à greve em função da lógica das finalidades dessa greve - e, nesse aspecto, provavelmente estaremos de acordo -, tal como entendo, com identidade de razões, que não faz sentido abrir o debate sobre as limitações do direito à greve em função do regime político onde os trabalhadores exercem ou não esse mesmo direito ou não lhes é permitido exercê-lo. Nesse aspecto, provavelmente, eu e o Sr. Deputado José Magalhães não estaremos de acordo.

Quanto ao seu apelo ao relativismo das análises das greves, devo dizer que não há uma filosofia geral sobre a greve, mas a análise de cada greve e de cada momento histórico em concreto e aquela será uma forma, em meu entender, de debilitar a coerência de uma posição de fundo sobre a protecção do direito à greve. O exemplo inglês só foi aqui citado dentro de dois pressupostos muito claros, o primeiro dos quais foi o de as greves se ganharem ou perderem em função da redução da base de apoio e, consequentemente, de se tornarem ilegítimas porque deixaram de defender os interesses dos trabalhadores, mais uma vez, portanto, competindo aos mesmos trabalhadores definir, em cada momento, o âmbito desse mesmo direito. Este é um exemplo de um culminar de um processo de partidarização do movimento sindical que teve efeitos negativos para aqueles que pensaram que, por vias burocrático-administrativas, conseguiam controlar o movimento sindical e, consequentemente, ter, em regime de permanência, o apoio dos trabalhadores. São essas concepções que saem derrotadas nesse exemplo concreto - e estou à vontade porque não estou a falar de nenhum país socialista, nem de nenhuma greve

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desencadeada sob a inspiração de um partido comunista. Estou à vontade porque estou a falar de questões de família e tentando pôr tudo em claro.

Relativamente à questão da greve política, Sr. Deputado José Magalhães, devo dizer que esta é legítima. Acabei de o dizer: "A greve política é legítima!" E, se o não fosse, a União Geral de Trabalhadores em Espanha não convocaria, infelizmente, com tanta frequência greves políticas de protesto em Espanha, o que, infelizmente, acontece a todo o momento, pois há terrorismo em Espanha. Acontecem formas de protesto através da greve, expressas com objectivos e finalidades exclusivamente políticas, e quero ver quem é que se atreve a contestar a legitimidade de uma greve política deste jaez! Assim, a minha posição é clara, não é saudosista, e penso não ser também incoerente.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Pacheco Pereira.

O Sr. Pacheco Pereira (PSD): - Ultrapassado este período de perguntas, gostaria de fazer alguns comentários sobre a primeira intervenção do Sr. Deputado José Magalhães, feita sob a forma de pergunta, e felicitar-me por essa intervenção, porque o seu conteúdo quase poderia servir de considerando às razões pelas quais o PSD propõe esta alteração do texto da Constituição.

Chamo a atenção para o facto de que, numa democracia política - e isto tem algo a ver com o que foi dito pelo Sr. Deputado António Vitorino -, aquilo que tem sido referido como democracia laborai é subordinado àquela. Ou seja, a qualidade de cidadão sobrepõe-se à qualidade de trabalhador e, consequentemente, a definição do tipo de intervenção e de acção política que pode ser tida na sociedade num dado momento resulta, por um lado, dos princípios e dos direitos fundamentais e, por outro, das formas que a conflitualidade política, na sua produção legislativa, tem a cada momento na sociedade. E é por isso que não se pode tomar, à partida, uma posição contra as greves políticas.

É preciso é ter em conta que a justificação para a politização do movimento grevista advém apenas da falência de outro tipo de instrumentos de intervenção na sociedade. É por isso que a comparação entre o que se passa na Polónia de Jaruzelski e na Inglaterra da Sra. Thatcher é completamente desprovida de fundamento quando colocada nesses termos, pois na Polónia não existem os direitos políticos fundamentais, sendo, portanto, legítimo aos cidadãos exercerem o seu direito de resistência e de acção política e utilizando todos os meios ao seu alcance, inclusivamente as greves, greves essas que ganham conteúdo político exactamente por não existir um processo pelo qual as reivindicações de tipo político possam traduzir-se na conflitualidade social e política. Em Inglaterra a situação é completamente distinta. A discussão relativa ao âmbito da acção sindical e sobre o papel dos sindicatos na intervenção social e política, no seu sentido mais lato, é directamente derivada da conflitualidade política, que se traduz através do sistema partidário e do funcionamento das instituições governativas. E a greve dos mineiros ingleses não se tornou política, no fim, devido à intervenção da Sra. Thatcher. Era política desde o início e o que se passou foi que o núcleo duro da greve se revelou à medida que a perda de popularidade da acção grevista se foi verificando. Não foi por acaso que falámos do Burundi, porque o Burundi, do ponto de vista da nossa discussão, é uma não entidade e um não país e, portanto, pode ser sempre utilizado como exemplo. Não foi por acaso, também, que o segundo exemplo dado é o de um país inexistente - o Rococó -, pois, como é óbvio, sem desprimor para o Burundi nem para o Rococó, com os quais não quero provocar nenhum conflito diplomático, do ponto de vista da discussão esses países não têm qualquer sentido, quando é certo que temos de discutir a questão em função de realidades políticas.

No que diz respeito às greves e ao âmbito dos interesses a defender através delas surpreendeu-me também que o Sr. Deputado José Magalhães tivesse esquecido alguns dos exemplos que traduziam bem a perversão dos interesses a defender, um dos quais, aliás, foi levantado pelo Sr. Deputado Rui Machete, nomeadamente o da utilização do direito à greve para sabotar o funcionamento de uma empresa concorrente. É que o próprio PCP sempre considerou que existiriam greves reaccionárias, contra as quais, aliás, lutou entre 1974 e 1975, exprimindo, portanto, um juízo político sobre os objectivos da greve. E certamente não estará de acordo com que possam ser considerados interesses dos trabalhadores a defender algumas das realidades concretas do movimento grevista que se têm verificado um pouco por toda a parte em países mais significativos que o Burundi.

Em relação ao âmbito da greve, penso que a questão da greve política e da greve não política ou a definição das finalidades e dos objectivos da greve não podem ser, evidentemente, diferenciados de uma análise sobre o conjunto do sistema político-partidário constitucional e que só na base de uma análise desse sistema é que se poderá concluir sobre as finalidades permissíveis a cumprir pela mesma greve.

Gostaria ainda de chamar a atenção para o facto de, embora nos processos de revisão constitucional anteriores possa ter sido intenção dos legisladores entender o n.° 2 do artigo 58.° como uma forma de estabelecer que a possibilidade de convocação de greves cabia a instâncias que não o conjunto dos trabalhadores, a prática do movimento sindical revelar que não foi essa parte do artigo 58.° que levou o movimento sindical a realizar amplas consultas para a condução dos movimentos grevistas. Conta-se pelos dedos da mão, como todos sabemos, o número de vezes em que os trabalhadores foram consultados de forma directa para a realização de movimentos grevistas. E o melhor exemplo disso é exactamente a última greve geral, em relação à qual foram poucas as consultas que ultrapassaram as estruturas sindicais, consultas essas que nalguns casos resultaram em pronunciamentos contra a greve que não foram seguidos por essas estruturas sindicais, o que se passou, por exemplo, num dos sindicatos da UGT. Efectivamente, o n.° 2 do artigo 58.° não impede que as organizações sindicais decidam a realização de greves nem o âmbito dos interesses a defender através das mesmas, sem que a consulta aos trabalhadores tenha qualquer significado.

São estes alguns dos considerandos que não queria deixar de referir sobre as razões pelas quais o PSD propõe a eliminação do n.° 2 do artigo 58.°

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O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Lacão.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Deputado Pacheco Pereira, gostaria de lhe perguntar se, na contraface das considerações que exprimiu e relativamente à questão do lock-out, essas considerações o levariam a ser favorável à supressão da proibição do mesmo e se, nessa circunstância, seria conduzido a suprimir a proibição do lock-out em todas as circunstâncias ou apenas em algumas.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Pacheco Pereira.

O Sr. Pacheco Pereira (PSD): - Sr. Deputado, não me pronunciei sobre o lock-out e qualquer das minhas afirmações anteriores não teve directamente a ver com a matéria objecto da pergunta.

Assim sendo, ou o Sr. Deputado está a fazer-me uma pergunta sobre uma matéria de que não falei, ou não reconheço qualquer relação entre o que eu próprio disse e a minha posição sobre o lock-out, que é também a posição do PSD sobre esta matéria.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - E não gostaria de aproveitar para dizer o seu pensamento sobre isso?

O Sr. Pacheco Pereira (PSD): - Eu já disse que a minha posição é a posição do PSD, ou seja, a da manutenção da proibição do lock-out.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Pacheco Pereira, é evidente que a discussão do direito à greve, sendo uma questão política por excelência, como aqui tem sido insistentemente referido, propicia excursos situados em todas as esferas, designadamente no terreno mais puramente político. Eu procurei, nas observações que fiz -e insistirei nisso naturalmente -, reconduzir o debate ao terreno jurídico-constitucional, que é aquele em que nos estamos a mover, sem que nos seja vedado - e longe de mim sustentá-lo a qualquer título - percorrer os demais terrenos, dada a posição que temos sobre o direito, o seu posicionamento, as suas interligações e as suas formas de produção. Só que o facto de o Sr. Deputado ter optado por esse caminho distanciou-o, automaticamente, de algumas das questões chaves em relação ao regime constitucional e, em geral, em relação ao regime jurídico do direito à greve em Portugal.

Por outro lado, parecem preocupá-lo particularmente certas concepções. Gostava que aprofundasse algumas delas porque são moeda falsa, constitucionalmente falando. Qualquer concepção tendente a sustentar que, em Portugal, a democracia laboral é subordinada a democracia política, num sentido funcionalizador, é deformante e gostaria que pudesse precisar os seus pontos de vista, porque isso poderá ter uma inequívoca gravidade. Se houve preocupação na caracterização do direito à greve em termos constitucionais, foi a de não hipotecar esse direito a nenhuma finalidade ou ordem de valores predeterminados. Assim sendo, a não adesão a qualquer ideia de funcionalidade é uma das características do direito à greve entre nós, o que tem consequências jurídico-constitucionais e legais muito importantes, porque, como sabe, quando se avança em concepções funcionalizantes, desemboca-se, normalmente, no próprio instituto da perda do direito - é aquilo a que o Sr. Presidente gostará de chamar Verwirkung, que tem consequências muito graves...

O Sr. António Vitorino (PS): - Isso é a sua Weltanschauung!

O Sr. Presidente: - Registo, com muito prazer, que a dogmática alemã começa a influenciar os deputados do PCP mais argutos.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Há muito tempo, Sr. Presidente, que nos influencia a todos - a boa!

O Sr. Pacheco Pereira (PSD): - Existe, aliás, uma grande continuidade da dogmática alemã na sua capacidade de formulação conceptual.

O Sr. Presidente: - V. Exa. tem de falar ao microfone, senão perde-se a Weltanschauung.

O Sr. Pacheco Pereira (PSD): - Era apenas um aparte.

O Sr. José Magalhães (PCP): - A questão está precisamente em que concepções desse tipo, como aquela que o Sr. Deputado Pacheco Pereira aqui expendeu, desembocam na perda de direitos, e, curiosamente, na perda de direitos figura que não têm consagração constitucional nenhuma entre nós - tem-na noutras ordens jurídicas. Não estou a falar agora de nenhum país sem sentido; neste caso concreto até estou a falar de um respeitável país, pelo qual seguramente V. Exa. nutre grande admiração, e no qual esse instituto tem consagração - refiro-me à RFA. Não há, em matéria de direito à greve, nenhum paralelo entre o nosso ordenamento e o da RFA; e é extremamente importante que essa diferença seja mantida neste ponto, não me refiro a outros. Considero realmente espantoso que se veiculem, com uma tão grande insensibilidade, concepções tão diametralmente opostas às que estão constitucionalmente consagradas e são obrigatórias - porque isso depois tem implicações e afloramentos terríveis.

Há sinais disso, por exemplo, quando se diz - quanto à greve geral de 28 de Março - que havia uma irresistível vontade popular, laborai neste caso concreto, de não a fazer e foi, contudo desencadeada; quando o Sr. Deputado Pacheco Pereira explicitamente refere o facto de os trabalhadores "não terem sido consultados" e de haver, se tivessem sido consultados, "uma vontade diferente" daquela que emanou das organizações sindicais (pelo menos, é o que está implicitado!), é grave...

O Sr. Pacheco Pereira (PSD): - Isso não é exacto, não foi o que eu disse. O que afirmei foi que, nos poucos casos em que foram consultados, nalguns desses poucos casos a resposta foi negativa. Não me pronunciei sobre a vontade.

O Sr. António Vitorino (PS): - A consulta não é só fazer referendos!

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O Sr. Pacheco Pereira (PSD): - Mas também não é apenas pela via...

O Sr. António Vitorino (PS): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)

O Sr. Presidente: - V. Exa. tem de falar ao microfone. Mesmo a adenda substanciosa convém que fique registada.

O Sr. António Vitorino (PS): - Quando eu falava em consulta dos trabalhadores, não era só a questão do referendo que visava, era também a convocação obrigatória de assembleias gerais dos sindicatos para decidir da greve e do seu âmbito. Claro está que sabemos que não são participadas por todos os inscritos no sindicato, mas a convocação pressupõe que possam ser participadas por todos - e não será apenas a direcção sindical, unilateralmente, a definir a convocação da greve e a definição do seu âmbito. Era isso que eu há pouco queria dizer, quando falava em participação.

O Sr. Pacheco Pereira (PSD): - Mas não nega, com certeza, que na maioria dos casos nem essa situação se verificou.

O Sr. António Vitorino (PS): - Da maioria, não tenho dados estatísticos. Se V. Exa. quiser dar-me os dados que tem, terei prazer em vê-los.

O Sr. Pacheco Pereira (PSD): - Dou-lhos com todo o gosto. Tendo em conta o que vem nos jornais.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Esta questão foi introduzida por mim como exemplo dos resultados a que podem conduzir concepções como as que o Sr. Deputado Pacheco Pereira começou por expender. O que lhe pergunto, quanto a este ponto, é: qual a cobertura constitucional para esse tipo de concepções? É evidente que a supressão desta cláusula talvez pudesse facilitar a sua veiculação por lei ordinária e até a sua concretização - mas isso é inteiramente vedado. Claro que é livre a expressão desse seu pensamento, nos termos gerais da Constituição, mas não há nenhuma cobertura constitucional para tornar obrigatória - para nós, designadamente, que não a temos, e sobretudo para os trabalhadores - essa concepção funcionalizadora.

O segundo aspecto é que só devemos imputar aos responsáveis aquilo de que são responsáveis, mas não aquilo a que são completamente alheios. É, pelo menos, dúbia a solução consagrada legalmente pela Lei n.° 65/77 quanto ao monopólio sindical de convocação da greve. Estabelecendo a Constituição que compete aos trabalhadores definir o âmbito dos interesses a defender através da greve, não podendo a lei definir esse âmbito, daqui fluiria - deveria fluir - uma concepção não monopolizadora, a favor das entidades sindicais, do poder de desencadear a greve. No entanto, nos termos da lei sindical em vigor, podem desencadear a greve as organizações sindicais - é o que prevê o artigo 2.°, n.° 1 - e as assembleias de trabalhadores da empresa, nos casos em que a maioria não esteja representada por associações sindicais -, estabelece isto o artigo 2.°, n.° 2, dessa lei. Isso suscita dúvidas de constitucionalidade, dado o facto de a greve ser definida constitucionalmente como um direito dos trabalhadores, como tais; não se vê a razão para fazer essa restrição. Sucede que a norma foi aprovada pelo partido de V. Exa., ou futuro partido, em qualquer caso pelo PSD, em termos que são os que a memória regista, não são outros. Gostava apenas que não se imputasse aos trabalhadores a responsabilidade por uma coisa que compete ao legislador. Portanto, se entre nós as greves são desencadeadas como são, é porque as organizações sindicais se movem no quadro da lei e não contra a lei - quem se move contra a lei é o Govêrno e o PSD, e quer mover-se mais e com mais à-vontade. Gostava que pudesse, pelo menos, rectificar isto, se é um lapso, ou reiterar, se é uma concepção errada.

O terceiro aspecto é que é evidente poder haver exemplos de abuso. Nenhum de nós assume as vestes níveas da Branca de Neve; portanto todos sabemos que poderá haver casos em que a lei seja violada, poderá haver situações em que não seja acatada nos seus precisos termos, embora haja, como vários deputados e deputadas desta Comissão sabem, um direito de resistência, que não é um pecado terrível que nos manche a todos ou que manche especialmente os trabalhadores.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado José Magalhães, V. Exa. está a fazer uma pergunta, não é verdade?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Estou, sim, Sr. Presidente. Já formulei duas.

O Sr. Presidente: - O Sr. Deputado Carlos Encarnação, pensando que V. Exa. estava a fazer uma intervenção, já queria formular uma pergunta - e eu disse que V. Exa. estava apenas a interrogar, a formular uma interrogação.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, tenho sido bastamente interrogativo. Queria mesmo perguntar ao Sr. Deputado Pacheco Pereira se não seria capaz de ser mais preciso na sua noção de abuso, porque já fez a defesa das concepções restritivas que estiveram no centro das preocupações aquando do 28 de Março. Mas gostava de lhe perguntar, mais concretamente, e já agora, em termos mais rigorosos, em termos técnico-jurídicos, se entende, na sua concepção e no regime constitucional em que estamos todos, inevitavelmente, que são inconstitucionais ou prescritíveis, por exemplo, as chamadas greves "de trombose". Acha que são prescritíveis as greves "de trombose"? Acha que as greves rotativas podem ser proscritas? Acha que as greves de zelo são proscritas, como ontem o Sr. Deputado Nogueira de Brito queria? Acha que as greves de baixa de rendimento são proscritas? Acha que as greves com ocupação dos locais de trabalho, por exemplo, que se distinguem das greves clássicas, são proscritas? Constitucionalmente são indesejáveis e gafadas?

O Sr. Pacheco Pereira (PSD): - Essa foi a matéria sobre a qual não me pronunciei.

O Sr. José Magalhães (PCP): - A dúvida está aí - é que V. Exa. fugiu a pronunciar-se em termos claros e evocou o passado histórico para dizer: o PCP, em

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determinado momento, emitiu juízos críticos em relação a determinadas greves. Aí pensou e falou em termos históricos. Se quer obrigar-me a fazer uma prospectiva até ao 3.° milénio, vamos a isso. A questão é que, ao imputar aos outros a emissão de juízos críticos sobre determinadas greves, fugiu a precisar o seu pensamento quanto àquilo que entende como abusos. O que é que V. Exa. entende por abusos? Estes casos todos que citei - intermitência, rotatividade, greves não clássicas - são abusos, na sua concepção? Isto é fundamental para medirmos qual o grau de alteração que o PSD pretende introduzir na ordem jurídica portuguesa. Porque, se V. Exa. suprime a cláusula do n.° 2 e, simultaneamente, tem uma concepção da qual flui que tudo isto são abusos, então ficamos conversadíssimos sobre o que é o uso: é um espaço restrito, carcerário quase, em que, esmagados por uma concepção, ainda por cima, funcionalizante, os trabalhadores ficariam obrigados a apenas fazer greve para efeitos estritamente profissionais, entendidos na acepção mais descarnada que é possível imaginar e, ainda por cima, sujeitos a um diktat político, nos termos do qual seriam invocados elementos de cidadania para lhes castrar a expressão em termos de exercício de direitos laborais. Sr. Deputado Pacheco Pereira, se é essa a sua concepção, é extremamente reveladora, mas seria bom que não ficasse nenhuma dúvida.

O Sr. Pacheco Pereira (PSD): - Vou ter muita dificuldade em responder à sua pergunta...

O Sr. José Magalhães (PCP): - São cinco perguntas!

O Sr. Pacheco Pereira (PSD): - São cinco? Confesso que não tomei nota de tantas.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Desdobradas em quinze!

O Sr. Pacheco Pereira (PSD): - Não, o que V. Exa. fez foi uma intervenção, formulando a teoria que está subjacente à pergunta, formulando as respostas e as opções dessa teoria. Evidentemente que não vou discutir, pelo menos agora, matérias que não sejam aquelas que digam directamente respeito à minha intervenção; não vou discutir processos de intenção sobre questões de que não falei.

O Sr. José Magalhães (PCP): - V. Exa. quer que eu sumarize as perguntas, formal e sucintamente?

O Sr. Presidente: - Penso que isso não será necessário.

O Sr. Pacheco Pereira (PSD): - Não preciso que sumarize as perguntas. Vou ater-me às questões de carácter político, deixando-lhe depois a incumbência, que com certeza assumirá com gosto, de retirar as conclusões técnico-jurídicas das afirmações políticas que irei fazer.

Chamo a atenção de V. Exa. para o facto de não me ter pronunciado sobre o n.° 1 do artigo 58.°; pronunciei-me sobre o n.° 2, mas grande parte dos considerandos das perguntas que o Sr. Deputado me fez respeita ao n.° 1 do artigo 58.° e não ao n.° 2. Para não perdermos muito tempo com matérias que não foram levantadas, pronunciar-me-ei apenas sobre o n.° 2 e sobre o conteúdo político da minha intervenção no sentido de satisfazer a curiosidade de V. Exa. Evidentemente, percebo muito bem qual a intenção que está subjacente aos desenvolvimentos que V. Exa. já fez, pronunciando-se, antes da minha resposta, sobre o conteúdo das minhas afirmações. O que me limito a dizer é muito simples: numa democracia política como a portuguesa, com o ordenamento constitucional que tem e com as possibilidades de alteração subjacentes ao processo de revisão constitucional que estamos a trabalhar - não nos podemos esquecer de que estamos num processo de discussão e de alteração da Constituição actualmente vigente, pelo que não servem como argumentos de autoridade as fórmulas anteriores -, temos disponibilidade, se chegarmos a um acordo de dois terços, para as alterar. Limitei-me a dizer isto, que é muito simples. E V. Exa. sabe muito bem - é a resposta às suas cinco perguntas - que, numa democracia política, quanto à subordinação de qualquer interesse sectorial ou de uma eventual democracia laborai, naquilo que não diz respeito aos direitos fundamentais (que ninguém pôs em causa), entre os quais o direito à greve, o que se passa é que não podem ser utilizados instrumentos que não aqueles constitucionalmente previstos para intervir no domínio político. No domínio político, existem instrumentos políticos definidos - o voto, os partidos, a acção política tal como ela é regulamentada na Constituição - e não é legítimo circuitar ou fazer intervenções utilizando outro tipo de instrumentos para directamente substituir os meios políticos que estão à nossa disposição. A democracia ou aquilo que V. Exa. referiu como democracia laboral, naquilo que não é directamente derivado do direito à greve ou dos direitos fundamentais, não pode ser considerada igual ou superior ou competitiva ou conflitual com as formas de democracia política. Esses são os fundamentos da vida política em qualquer democracia ocidental, dos quais, como V. Exa. sabe, derivam limitações quanto à utilização do direito à greve com objectivos que directamente colidem com as formas de intervenção política típicas de uma democracia ocidental.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Portanto, isso ilegaliza o 28 de Março, se bem estou a perceber.

O Sr. Pacheco Pereira (PSD): - Não, não ilegaliza o 28 de Março, nem fiz qualquer declaração que o levasse a tirar essa conclusão.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Fico mais descansado, mas isso quer dizer, Sr. Presidente, que ficaram em aberto as observações em relação aos exemplos de abusos.

O Sr. Pacheco Pereira (PSD): - Ficaram, exactamente porque dizem respeito às formas de utilização do direito à greve e não à substância dessa utilização, ou seja, ao conteúdo material das greves. Estou a pronunciar-me sobre o primeiro e não sobre o segundo.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Registo, Sr. Presidente.

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O Sr. Presidente: - Inscrevi-me, não para fazer uma pergunta, mas para tentar situar o problema no âmbito da revisão constitucional, que é á sede na qual estamos a discuti-lo, e não em termos de considerações de política geral sobre o sindicalismo e a filosofia política. Compreendo, por exemplo, que o Sr. Deputado António Vitorino tenha feito, aliás, uma brilhante intervenção, que foi uma intervenção político-jurídica - ou, melhor, político-política e depois um pouco jurídica -, e não jurídico-política. E percebo por dois motivos: por um lado, porque é sempre útil, numa sede como esta, sublinhar que não estamos num seminário universitário; por outro lado, porque o problema da greve, naturalmente, tem uma carga política extremamente importante. Todavia, trata-se de uma questão em que o problema que está em causa é o da formulação do n.° 2, ou seja, da supressão do n.° 2 do artigo 58.° Gostaria de referir, uma vez mais, que rejeito completamente quaisquer insinuações que se façam acerca de uma posição do PSD e, neste caso em particular, de mim próprio, em termos de tentar instrumentalizar ou manipular a greve ou de diminuir o seu alcance. Por outra parte, todos nós reconhecemos, e isso foi salientado de uma maneira particularmente nítida, designadamente pelo Sr. Deputado António Vitorino, que a greve corresponde a uma situação de defesa natural, de estado de acção violenta que, por isso mesmo, pressupõe, na sociedade em que seja utilizada, que o seja em termos cautelosos e que não exista um abuso que acaba, em última análise, por recair sobre o próprio movimento sindical e por ter repercussões negativas. Sobre essa matéria, estamos de acordo; e estamos ainda de acordo, penso eu, quanto à ideia de que toda a greve tem alguma conotação política, e seria perigoso permitir que o governo da altura pudesse qualificar uma determinada greve como uma greve política e daí retirar consequências limitativas.

Julgo que, no que diz respeito à proposta do PSD, existe, em primeiro lugar, uma primeira observação, que está na raiz da nossa proposta e que, efectivamente, nos impulsionou; é que o n.° 2, tal como se encontra formulado, parece reservar um espaço de estado de natureza, de um estado anterior à constituição da sociedade política, que é reservado, neste caso, aos trabalhadores. E é essa concepção de que existe uma espécie de situação pré-sociedade política, pré-contratual - em termos de contrato político -, que é reservada aos trabalhadores, que suscita uma primeira observação de inconveniência de perspectiva.

Em segundo lugar, existe um posicionamento de desfavor e de desconfiança em relação ao legislador ordinário, que também não subscrevemos. Compreenderia melhor que se dissesse: será útil que, para além da afirmação clara da garantia do direito à greve e como se faz a propósito de outros direitos fundamentais, se explicitem algumas notas que limitem a liberdade do legislador ordinário - isso eu compreenderia. E diria que aceitava facilmente essa observação crítica em relação à proposta do PSD, dizendo: talvez seja preferível encontrar aqui uma. fórmula que não permita interpretações - tendo em conta a história do preceito - que vão além daquilo que o PSD propôs, a alteração ou a supressão do n.° 2. É normal, aliás, que o legislador constitucional limite de algum modo o legislador ordinário - mas aqui dá-se uma completa inversão das coisas, e confere-se aos trabalhadores essa competência, o que é, convenhamos, pelo menos, singular no direito constitucional europeu democrático. E, apesar do historicismo hermenêutico que foi há pouco salientado pelo Sr. Deputado António Vitorino, a verdade é que nada garante que a interpretação que ele deu ao preceito em apreciação - e que terá justificado, de acordo com os trabalhos de elaboração da Constituição e após a revisão constitucional de 1982, a redacção do actual n.° 2 - seja a única possível. Isto porque é perfeitamente aceitável que o preceito comporte, dentro de uma interpretação actualista, outros tipos de solução para a competência dos trabalhadores em definir o âmbito da greve.

Assim, encontramo-nos aqui perante uma situação em que, por um lado, nós, PSD, não desejaríamos coonestar qualquer interpretação que signifique que a greve é um meio naturalíssimo em democracia e alternativo aos sistemas de designação dos titulares do poder político e aos sistemas políticos em geral. Por outras palavras, actualmente a greve tem na Constituição um favor particular intenso relativamente às fórmulas eleitorais. Parece-nos que isso é extremamente negativo e não deveríamos aceitá-lo.

Mas, por outra parte, somos sensíveis às cautelas que é necessário ter para que, influenciados naturalmente pela prática da política do momento, não haja tentativas de, pela via da qualificação da greve, vir a acabar por restringir o seu próprio conteúdo. Todavia, não me parece correcto - repito - que isso se traduza no sentido de inverter o normal posicionamento do legislador ordinário em relação aos destinatários dos seus actos, como aqui se verifica. No fundo, colocam-se, de algum modo em termos indeterminados, os destinatários das normas acima do próprio legislador ordinário. Compreendo isso em matéria de direitos fundamentais quando eles são devidamente concretizados, mas não o compreendo em termos de uma espécie de restituição do Estado-natureza, como aqui é feito.

Principalmente, também não gostaríamos que isso abrisse a porta à subsistência de modelos, como tive ocasião de sublinhar ontem, em que aparece a ideia do exercício do poder político pelas classes trabalhadoras como a forma mais legítima - com uma legitimidade superior a outras - para a realização de uma sociedade sem classes, ou seja o que for. Parece-nos que nesse aspecto esta formulação é infeliz, e isso explica claramente o nosso intuito ao propor a supressão do referido n.° 2.

Se se considerar necessário - volto a repetir - que se dê uma nota clara de que a Constituição não quer permitir, pela via de uma instrumentalização do legislador ordinário, que se venham a fazer qualificações do direito de greve que sejam limitativas do seu conteúdo essencial, penso, que, em coerência com o objectivo da nossa proposta, estamos abertos a encontrar esse tipo de formulações.

Contudo, o que não se pretende, e que rejeitamos energicamente, é que nos inculquem propósitos que poderíamos aceitar se porventura acompanhássemos a ideia da supressão da proibição do lock-out, o que não é o caso, e se entenda que pretendemos uma manipulação do direito de greve, o qual na nossa proposta é mantido intocado nos termos dos outros direitos fundamentais consignados na Constituição.

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O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, permita-me que lhe faça uma pergunta. Creio que V. Exa. reconduziu o debate a um terreno onde, pela nossa parte, tínhamos procurado que ele estivesse primacialmente - digo isto sem nenhum intuito de crítica reservada a quem entendeu conduzi-lo predominantemente no terreno político.

Seria capaz de precisar mais ainda o pensamento do PSD? O primeiro aspecto a considerar é o seguinte: ninguém neste debate, que eu tivesse percebido, ergueu o estandarte que o Sr. Presidente considera mais temível. Não vi aqui ninguém a sustentar - e, portanto, V. Exa. não pode coonestar uma coisa que não há - que a greve seja um meio alternativo a colocar ao lado de outros meios, ou até contra eles, designadamente das eleições, etc. Ninguém sustentou essa concepção. Ela, além de não ter cobertura constitucional, seria politicamente kamikase, e apenas teria a virtualidade de permitir ao PSD usá-la como elemento tendente à definição da sua própria posição como "centrista" e "equilibrada".

O Sr. Presidente: - Sábias palavras, Sr. Deputado.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Portanto, trata-se de um falso pilar de cartão, cuja única finalidade é atenuar a gravidade das péssimas concepções e das posições do PSD nesta matéria (ainda que o PSD não proponha o derrube do pilar de betão, que é a proibição do lock-out). Não vale a pena é pôr ao lado do pilar de betão um pilar de cartão para nos esquecermos do segundo olhando para o primeiro.

Aquilo que o Sr. Presidente pretende é que o legislador seja reconduzido a determinados parâmetros de actuação legiferante no tocante ao direito à greve. E, ao que parece, pretenderia que outros coonestassem - suponho que não se dirigia a nós - uma fórmula que permitisse...

O Sr. Presidente: - Erga omnes, Sr. Deputado! A todos os espíritos de boa vontade.

O Sr. António Vitorino (PS): - Mesmo contra a automarginalização!

Risos.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, fico verdadeiramente comovido com esta postura "aberta" e "dialogante", mas, de facto, o risco é de que o convite seja para causas pouco abonatórias em matéria política e jurídico-constitucional. E esse tipo de convites, sendo naturalmente legítimos para quem os faz, podem não ser honrosos para quem os recebe.

Ora, no caso concreto, Sr. Presidente, e tanto quando nos apercebemos, tratar-se-ia de trabalhar uma fórmula que permitisse ir mais além do n.° 2 do artigo 58.°, e suponho que para chegar aos limites do artigo 18.° Aquilo que o PSD pretende aparentemente é o regime normal.

Simplesmente, nesse caso é necessário ter em atenção que ninguém sustenta que o artigo 58.° proclama um direito absoluto. Gostaria, já agora, que V. Exa. aprofundasse melhor dois dos problemas que há em relação aos limites colocáveis face à actual ordem constitucional no tocante ao direito à greve, quais sejam a área das obrigações imponíveis às associações sindicais, e a área em que o Govêrno ou o poder político pode ter uma certa margem de intervenção em nome da salvaguarda do interesse público.

A definição de perspectivas quanto a estes dois pontos e a imagem que o PSD tenha dos limites já hoje possíveis dão-nos exactamente a medida do que seria a majoração ou a potenciação dessa capacidade limitativa caso fosse alterada a fórmula em vigor. Por outras palavras, se o PSD não nos dá um retrato de qual a sua concepção face à barreira hoje vigente e às suas limitações, é extremamente difícil medir o que pretende quando propõe a supressão dessa alínea, porque evidentemente que ela alargaria muito mais aquilo que já hoje é comportável. Como o Sr. Presidente sabe, o PSD tem, por exemplo, uma concepção abusiva dos poderes de requisição civil, e tem uma concepção exorbitante dos serviços mínimos susceptíveis de serem impostos.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, não é essa a questão que estamos a discutir. Quando se fala no problema do âmbito dos interesses a defender apenas de uma maneira muito lata, poderemos considerar que a questão dos serviços mínimos está aí envolvida.

Relativamente a esta matéria, trata-se, sim, de saber quais são os objectivos susceptíveis de serem prosseguidos pela greve.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, evidentemente alarguei o debate a problemática dos limites do direito à greve, tal e qual ele flui do artigo 58.° na sua conformação e em todas as componentes, o que não é despiciendo. Compreendo que V. Exa. está mais preocupado com o aspecto técnico do âmbito (em sentido técnico-jurídico), embora aí, como sabe, também se possa tentar uma limitação do direito à greve a pretexto, por exemplo, de uma noção difusa de interesse geral da comunidade, de interesse público, de interesse da estabilidade, de interesse da democracia política, e outras causas "virtuosas" que pudemos aqui apreciar pela boca do Sr. Deputado Pacheco Pereira.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado José Magalhães, em matéria de definições, mesmo com o n.° 2, é impossível deixar de ter uma noção clara acerca do que é a greve, e obviamente que é o conflito que permite que a greve seja uma reacção, sob pena de que, se não houvesse essas limitações, não saberíamos exactamente qual era o âmbito do artigo. Por essa via algumas das coisas que o n.° 2 aborda podem ser resolvidas.

O meu problema é um pouco o inverso do problema que o Sr. Deputado José Magalhães coloca, ou seja, é o de saber em que é que o n.° 2 deste artigo 58.° altera aquilo que já resultaria do artigo 18.° E diria que a nossa posição é muito mais uma posição declarativa, aclarando e simultaneamente declarando os limites do artigo 18.°, repondo-o na sua exacta medida, do que outra coisa.

Se V. Exa. me diz que o n.° 2 não tem outro significado senão aquilo que, na prática, já existe no artigo 18.°, diria que estaríamos a discutir aparentemente um falso problema.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não disse isso, Sr. Presidente. O referido n.° 2, como V. Exa. sabe, diz bastante mais do que o artigo 18.°

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O Sr. Presidente: - Mas, Sr. Deputado, é essa a questão. Por outras palavras, quando se restringem os termos da lei ordinária da forma que é feita, pelas razões que já expus, propendemos a pensar que essa é uma solução incorrecta de jure condendo, como é evidente.

Simplesmente, as considerações que foram aqui expendidas, as preocupações que foram manifestadas nos termos de poder, em casos limites, haver riscos que no fundo restringem o conteúdo essencial do direito, mas que se podem verificar, nas situações conflituais como são aquelas em que o direito à greve vai ser exercido, levam-me a admitir que seja possível uma explicitação cautelar que garanta de uma maneira nítida e eficaz que o conteúdo essencial seja efectivamente mantido. Nesse sentido, estamos abertos às várias formulações apresentadas e podemos ponderá-las.

Todavia, o que nos preocupa é essa ideia que V. Exa. manifesta, a qual penso que está realmente consignada no n.° 2, ou seja, o irmos para além daquilo que resultaria do artigo 18.° da Constituição e da matéria dos direitos fundamentais, repondo, como referi há pouco; uma certa situação de estado-de-natureza. E essa filosofia que pensamos não ser a adequada.

O Sr. José Magalhães (PCP): - O Sr. Presidente referia-se rigorosamente ao artigo 18.°, ou a este artigo mais alguns limites adicionais?

O Sr. Presidente: - Os quais são, no fundo, aclaradores ou especificadores das ideias contidas nesse artigo.

Tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Encarnação.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Sr. Presidente, gostaria de fazer uma intervenção que se circunscreve a uma pergunta - contrariamente àquilo que tem sido feito até agora, por curioso que isto possa ser.

Fundamentalmente, e não invalidando as considerações que o Sr. Presidente há pouco produziu, designadamente sobre a ligação do n.° 2 do artigo 58.° ao artigo 18.°, gostaria de colocar uma questão ao Sr. Deputado António Vitorino. Devo dizer que ouvi sempre com deleite as suas intervenções, excelentes no campo dos princípios, designadamente no que respeita à questão particular -, não a compreendo muito bem, mas certamente que V. Exa. ma explicará - da identidade entre o regime polaco e o regime democrático português. Com certeza que o Sr. Deputado tem uma interpretação particular em relação a isso. De qualquer modo, pergunto-lhe o seguinte: estaria o Partido Socialista eventualmente aberto a uma formulação que, pura e simplesmente, eliminasse não todo o texto do n.° 2 do artigo 58.° mas apenas a parte final desse artigo, terminando o texto em "defender através da greve", ou por outras palavras, que eliminasse a expressão final "não podendo a lei limitar esse âmbito"?

Isso porque da decorrência do que se tem passado, em termos concretos, em relação à aplicação do direito à greve, direito que o PSD evidentemente não elimina, antes defende e continua a consagrar a sua defesa absoluta,...

O Sr. José Magalhães (PCP): - Absoluta?

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Absoluta, Sr. Deputado, mantendo, entre outros, o n.° 1 do artigo 58.° e, como não pode deixar de ser, o respectivo n.° 3, ou seja, a contrapartida directa deste mesmo artigo.

Perguntaria, pois, se o Partido Socialista não estaria disposto a encarar, em termos de razoabilidade, a eliminação da parte final do n.° 2 do artigo 58.°

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Alberto Martins.

O Sr. Alberto Martins (PS): - Sr. Presidente, a intervenção que me propunha fazer na altura em que fiz a respectiva inscrição está em larga medida prejudicada, uma vez que estamos a entrar já numa fase conclusiva do debate.

Ela ia no sentido de estabelecer uma distinção de ordem metodológica entre dois pontos da proposta apresentada pelo PSD. O primeiro diz respeito à questão das greves ilegítimas, e creio que aí há já um consenso relativamente estabelecido. A greve não é um valor absoluto, a consagração do direito à greve não significa a consagração do abuso desse direito e, naturalmente, os limites do artigo 18.° e da ilicitude da grave estão contidos no texto constitucional.

Portanto, a supressão do n.° 2 do artigo 58.°, proposta pelo PSD, nesse plano procuraria resolver algo que está resolvido em termos constitucionais, uma vez que um direito não consagra o seu abuso. Além disso, há limites que me parecem intocáveis relativamente ao direito à greve, e a jurisprudência estrangeira nesse aspecto é coincidente entre si, quando, a respeito das questões relativas à requisição civil, considera que o direito à saúde, à segurança e à vida são limites intangíveis no direito à greve. Portanto, facilmente identificaríamos esse núcleo como subsumível no artigo 18.°

Uma outra questão é, no fundo, a do referido n.° 2 proposto pelo PSD, a da regulação do âmbito relativo aos trabalhadores, dos interesses que devem ser protegidos na greve. Creio que, no fundo, a questão que aqui se coloca é, sobretudo, uma questão de poder político e de democracia política.

E poder-se-ia levantar uma questão - e eu faço-o - decorrente do facto de a diminuição destes interesses, destes direitos e deste plano de participação na definição dos intereses a salvaguardar não se colocar imediatamente no terreno de uma norma que é insusceptível de revisão, dado tratar-se de um limite material.

Portanto, não é tanto a ilicitude ou o abuso que está resolvido, mas mais o exercício de um poder político, o qual corresponderá ao exercício da democracia sindical ou exercício de cidadania específica. Ora, e em acordo com as alíneas e) ou l) do artigo 290.°, essa matéria é uma matéria intangível.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Sr. Presidente, já não pensava fazer esta pergunta, que aliás tinha reservado para algumas intervenções anteriores. No entanto, a intervenção do Sr. Deputado Alberto Martins provoca-me, de certo modo, esta vontade de formular a pergunta.

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Em primeiro lugar, e não esquecendo aquilo que o Sr. Deputado Pacheco Ferreira há pouco referiu quando, ainda que de modo menos analítico, procedeu a uma distinção entre o modus da greve e a sua vocação, entendo que a greve tem uma vocação particular, de classe, que obviamente não é o mesmo que uma vocação política geral. Isto porque, a atendermos à ideia de que a greve tem esse tipo de vocação, insistimos na descrença dos modos legítimos de contestação política em democracia e que são variados, como é do conhecimento comum.

Sr. Deputado Alberto Martins, relativamente à sua preocupação com a questão da democracia política, e pondo já de parte o problema do abuso de direito e indo ainda de encontro ao que afirmou há pouco o Sr. Deputado José Magalhães, creio que o problema que aqui se refere é o da diferença entre o modus e a vocação da greve, e o que aqui está em evidência é o problema da vocação do direito de greve e da degenerescência eventual dessa vocação. Ora, o que gostaria de lhe perguntar é o seguinte: V. Exa. entende ou não que o n.° 2 do artigo 58.°, ao preocupar-se com problemas de democracia política, o está a fazer a partir de uma dissociação entre trabalhadores e lei ou, mais concretamente, entre trabalhadores e poder legislativo? E isso não é, de certo modo, sonegar a ideia clara de que o poder legislativo consagra já, em si, a intervenção dos trabalhadores por via do esquema representativo?

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Alberto Martins, a minha pergunta situa-se numa outra esfera, uma vez que, pela minha parte, dou de barato e, provavelmente, também V. Exa., algumas das apontadas características da Constituição.

De facto, a Constituição é pletórica, pois ama todos os modos e não descrê da democracia que, de resto, vem no plural, ou seja, é política, social, cultural e laborai. Além disso, articula e conjuga harmoniosamente estas pluralidades. Entrosa-as e, portanto, rejeita concepções empobrecidas de democracia.

Ora, a minha preocupação não é essa, mas, sim, outra, qual seja a de saber quais são os limites da posição do PS nesta matéria. E formulo esta questão porque, colocado no terreno da concreta interpelação, o PS diz uma evidência, isto é, que a greve não é um direito absoluto. É, de facto, um dado conhecido, mas o problema é que, como se sabe, têm feito circulação entre nós certas ideias restritivas e, designadamente, uma que nos parece extremamente perigosa, qual seja a de que esse direito poderia ser limitado em função de um interesse geral da comunidade como realidade difusa e tida como absoluta. E também se sabe que alguns elementos na doutrina, ao reflectirem sobre a licitude dos objectivos da greve, têm preconizado um entendimento fortemente restritivo, mesmo quanto ao alcance a dar directamente ao n.° 2 do artigo 58.° da Constituição.

Perante isso e face às últimas evoluções da posição do PSD que resulta corrigida pelas declarações sucessivas, embora contraditórias - umas mais analíticas, outras mais confusas -, de alguns dos Srs. Deputados, perguntaria: qual é a posição do PS? Está disponível

para encarar versões que majorem a margem de actuação do legislador ordinário? E formulo estas questões porque tudo aquilo que o Sr. Deputado Alberto Martins disse situa-se dentro das possibilidades actuais do legislador ordinário. Não é preciso acrescentar uma vírgula, um ponto final ou um erro ortográfico para que isso seja possível, ainda que as concepções deformadas tenham também curso livre mesmo neste enquadramento.

Não lhe parece que a alteração da Constituição neste ponto poderia impulsionar num sentido perverso outras interpretações aleijadas e aleijantes como aquelas que o Govêrno tem feito quanto ao conceito de greve, designadamente através do abuso da requisição civil?

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Alberto Martins.

O Sr. Alberto Martins (PS): - Sr. Deputado José Magalhães, remetia a resposta a estas questões formuladas por V. Exa. para a intervenção que sobre a mesma matéria vai fazer o Sr. Deputado António Vitorino.

Quanto à questão colocada pela Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves, que não sei se entendi com toda a precisão, não obstante a elegância da formulação literária, devo dizer que tenho pelo menos o entendimento de que o regime jurídico constitucional é uma democracia constitucional. E, nesse sentido, ele é articulável entre um sistema representativo, que nunca o entendi como um sistema de pendor exclusivamente republicano, e um sistema de democracia participativa. Este é um afloramento da democracia participativa ou, pelo menos, de participação política mais lata do que aquela que é concebida tout court nos limites da democracia representativa.

Por isso, em termos do adquirido não faria muito sentido que aquilo que está adquirido por certos segmentos sociais possa ser perdido na remissão para um hipotético, hábil e harmonioso legislador ordinário. Não se vai naturalmente abrir mão de um direito de participação, que está adquirido, para um legislador ordinário cuja harmonia e rigor de soluções, pela experiência recente, nem sempre têm sido os melhores. E o caso da requisição civil, que está conexa com esta matéria, é suficientemente expressivo.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, perante estas duas OPCs (ofertas públicas de conúbio), ou seja, a primeira vinda do Sr. Deputado Carlos Encarnação e a segunda do Sr. Deputado José Magalhães, penso que seria deselegante deixar que essa questão ficasse pendente, constituindo para um e para outro angústia para o almoço.

Quero, então dizer somente o seguinte: colocando-me no plano da razoabilidade, a que, aliás, se fez apelo, a proposta de eliminação do n.° 2 do artigo 58.° é irrazoável. E sobre propostas alternativas o PSD vai ter primeiro que se decidir sobre qual a via que vai querer escolher para abordar este problema, na medida em que oscilou neste debate entre as duas posições que foram expostas. De facto, o PSD oscilou entre a propositura de algumas limitações adicionais com os limi-

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tes do artigo 18.°, em termos que não ficaram para mim claros - este é um exercício que se reveste de alguma dificuldade, mas que estaremos sempre disponíveis para ver, claramente visto, o que é que vão propor -, e a eliminação tout court.

Quanto ao Sr. Deputado José Magalhães, devo dizer-lhe que a nossa posição é claríssima e inflexível. Aliás, até dissemos que, se fosse necessário introduzir alguma alteração à Constituição, tê-la-íamos proposto. Porém, não o fizemos e isso explica qual é a nossa posição sobre esta matéria, bem como o enquadramento político que lhe quis dar. Aliás, penitencio-me disso porque não posso deixar de interpretar como uma reprimenda subjectiva a referência a política político-jurídica. Portanto, esforçar-me-ei por me manter dentro dos limites jurisdicistas a que, eventualmente, se desejaria que a revisão constitucional se reconduzisse de modo exclusivo.

Em relação ao Sr. Deputado Carlos Encarnação, direi que não há da minha parte - se, acaso, essa ideia ficou no ar, peço imensa desculpa - qualquer confusão entre o regime polaco e o português, mais a mais agora quando o português já não tem à frente do Estado um general de óculos escuros.

Risos.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, iríamos recomeçar os nossos trabalhos às 15 horas e 30 minutos.

Pediria, desde já, ao Sr. Deputado José Magalhães o favor de assegurar a presidência da Comissão, visto que tenho de ir depor a um tribunal como testemunha.

Srs. Deputados, está suspensa a reunião.

Eram 13 horas e 20 minutos.

Entretanto, assumiu a presidência o Sr. Secretário José Magalhães.

O Sr. Presidente (José Magalhães): - Srs. Deputados, está reaberta a reunião.

Eram 16 horas e 10 minutos.

Srs. Deputados, estão reunidas as condições para reiniciarmos os. trabalhos. Gostaria, entretanto, de saber se alguém deseja ainda inscrever-se para intervir na apreciação das matérias que abordámos no período da manhã, ou seja, sobre o regime jurídico do direito à greve.

Pausa.

Como não há nenhum Sr. Deputado que deseje ainda manifestar-se sobre este assunto, poderíamos passar à apreciação das alterações respeitantes ao título m, sobre os direitos e deveres económicos, sociais e culturais, e também às alterações do capítulo i, que respeitam a direitos e deveres económicos na parte concernente ao direito ao trabalho e aos direitos dos trabalhadores.

O primeiro conjunto de propostas de alteração é relativo ao artigo 59.°, cuja epígrafe é "Direito ao trabalho", e às propostas de alteração do PSD e da ID. Nenhum partido ou força política propõe a eliminação ou a alteração da epígrafe. O PSD propõe no corpo do n.° 3 do artigo 59.° a substituição do inciso "planos" por "medidas" e na alínea a) do referido n.° 3 defende a substituição do texto vigente, isto é, "a execução de políticas de pleno emprego" por "a execução de planos e programas que permitam a criação de emprego". Por sua vez, a ID propõe o aditamento de um novo n.° 4 ao artigo 59.°, e não um n.° 3, como, por lapso, refere o seu projecto de lei, que é do seguinte teor: "4 - É proibida a contratação de menores em idade escolar." São, pois, estas as propostas em debate.

O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, no nosso projecto de lei o n.° 3 do artigo 59.° mantém-se.

O Sr. Raul Castro (ID): - Sr. Presidente, a ID tem a mesma posição.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Presidente, a ID propõe o aditamento de um novo n.° 4 e não de um n.° 3, não é assim?

O Sr. Presidente: - Exactamente, Sr. Deputado. Aliás, a correcção em causa consta do relatório da subcomissão.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Luís Ramos.

O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Sr. Presidente, quero muito sinteticamente apresentar as razões de ser das nossas propostas de substituição relativas ao n.° 3 do artigo 59.°

De facto, devo dizer que elas têm de ser vistas em sintonia com aquilo que é proposto pelo PSD relativamente ao Plano. Assim, o PSD propõe a supressão dos artigos relativamente ao Plano e a substituição deles pelo artigo 91.°-A, por força do qual o Plano deixa de assumir aquela perspectiva dirigista para passar a haver vários planos, ou seja, os chamados "planos de desenvolvimento económico e social" com as respectivas execuções. Neste sentido, preconizamos esta redacção para a alínea a) do artigo 59.°: "A execução de planos e programas que permitam a criação de emprego."

Além disso, não faz sentido, e é algo de programático e absolutamente irreal, falar-se hoje em dia em políticas de pleno emprego. Nessa perspectiva, também o PSD retira na alínea a) do n.° 3 a expressão "de pleno emprego" para utilizar a expressão "a criação de emprego."

Quanto ao corpo do n.° 3, a expressão "planos de política económica e social" constante do texto inicial é substituída por "medidas de política económica e social". Já na alínea a) a expressão "políticas de pleno emprego" é substituída por "planos e programas que permitam a criação de emprego", como aliás o artigo 91.°-A aconselha - isto na formulação da nossa proposta de aditamento.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Raul Castro.

O Sr. Raul Castro (ID): - Sr. Presidente, a proposta de aditamento de um novo n.° 4 ao artigo 59.° não necessita de grande fundamentação, pois, é, por si só, relativamente evidente.

Poder-se-á perguntar por que razão só agora foi apresentada. É que, desde a revisão constitucional de 1982 até à presente data, só agora foi possível surpreender em Portugal um fenómeno da maior gravidade que

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é o do trabalho infantil. Ainda há dias - julgo que anteontem - um dos órgãos da comunicação social falava da existência de 200 000 crianças a trabalhar ilegalmente no nosso país. Trata-se, portanto, de um fenómeno da maior gravidade, o qual, por isso, merece a consagração constitucional de uma nova alínea que, com base na própria Constituição, proíba a contratação de menores em idade escolar. É esse o objectivo da nossa proposta de aditamento.

Aliás, só na anterior legislatura foi pela primeira vez tal problema suscitado na Assembleia da República - e recordo-me que fui eu quem o equacionou, numa pergunta colocada ao Governo. Depois disso, esse fenómeno teve um desenvolvimento e uma acuidade que chamou a atenção não só de diversas organizações sindicais, que já tinham iniciado a sua abordagem, como até de várias forças partidárias e do próprio Governo, e que também levou à apresentação de projectos de lei com vista à proibição da utilização do trabalho infantil.

Tudo isto me parece suficientemente justificativo para se aditar este novo n.° 4 ao artigo 59.°

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, como corresponde à regra nesta matéria, generalizaríamos então o debate, a não ser que algum dos Srs. Deputados deseje complementar a apresentação que produziu o Sr. Deputado José Luís Ramos.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Luís Ramos.

O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Sr. Deputado Raul Castro, gostaria de saber em relação à vossa proposta de aditamento, que em princípio não terei posição contrária, se a expressão "menores em idade escolar" coincide com a idade de escolaridade obrigatória.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Raul Castro.

O Sr. Raul Castro (ID): - Sr. Deputado José Luís Ramos, é naturalmente aquela idade que coincide com a definição da idade mínima para se poder ser trabalhador por conta de outrem.

O Sr. Presidente: - Algum dos Srs. Deputados deseja inscrever-se para, num primeiro momento, tomar posição ou produzir comentários às propostas que foram apresentadas?

O Sr. António Vitorino (PS): - Peço a palavra, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Faça favor, Sr. Deputado.

O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, desejo muito rapidamente dizer o seguinte: quanto à questão que o PSD coloca na sua proposta de substituição sobre o papel dos planos e o novo estatuto que preconiza para eles, é uma matéria que com maior propriedade deverá ser debatida em sede própria, ou seja, nos artigos constitucionais referentes ao planeamento democrático. Portanto, não creio que haja grandes vantagens em antecipar a este propósito considerações sobre a matéria.

Assim, não vemos grandes vantagens em substituir no corpo do n.° 3 do artigo 59.° a expressão constitucional "planos de política económica e social" por "medidas de política económica e social". Contudo, esta é matéria meramente adjectiva que decorre da opção que se tomar sobre a problemática do planeamento democrático.

Relativamente à proposta de alteração da alínea a) do n.° 3 do artigo 59.°, apresentada igualmente pelo PSD, no sentido de se substituir a expressão "a execução de políticas de pleno emprego" por "a execução de planos e programas que permitam a criação de emprego", creio que são duas questões distintas. Poder-se-ia abrir nesta sede um debate interessantíssimo sobre a questão de saber se a política liberal do PSD leva tão longe a ruptura com o keynesianismo que até já o simples facto de uma norma programática constitucional falar de políticas de pleno emprego merece o cuidado do olho crítico do revisor constitucional. Poderíamos inclusivamente perguntar se o Bernstein não se está a revolver na tumba ao ver que, afinal, os seus continuadores sociais-democratas portugueses assassinaram as políticas de pleno emprego em normas programáticas.

No entanto, sempre se poderá dizer que se trata de adequar a Constituição a um realismo, isto é, à real-politica. De facto, se a adaptação ao realismo da vida contemporânea leva a dizer que o pleno emprego é um objectivo utópico e não realizável, então o fundamental é criar mais postos de emprego. Assim, a questão está em saber se na fórmula que o PSD lhe dá ainda faz sentido conter uma norma programática, pois uma coisa é uma norma deste tipo referir que o Estado desenvolverá políticas de pleno emprego, e outra é o Estado ter de incrementar políticas e programas que permitam a criação de emprego. E o que seria espantoso era se o contrário estivesse previsto na letra da Constituição, ou seja, que o Estado devia promover políticas de criação de desemprego!... Creio, pois, que criar emprego é obrigação de todo o Estado.

Portanto, a desvalorização da dimensão do emprego na proposta de substituição do PSD da alínea a) do n.° 3 do artigo 59.° nem sequer é mais emprego, mas, sim, só emprego. Não sei se ainda justifica a manutenção, na óptica dos proponentes, de uma norma deste género que, aliás, será sempre de natureza programática. E, como tal, também não vale a pena desenvolver muito mais considerações à volta disto.

Sobre a proposta de aditamento apresentada pela ID devo dizer que tem a nossa total simpatia e adesão.

O Sr. Presidente: - Em relação às propostas de substituição apresentadas pelo PSD, creio que se colocam questões bastante distintas: a primeira relaciona-se com a questão do planeamento democrático; a segunda é relativa ao objectivo ou à incumbência do Estado nesta matéria. As duas questões estão conexionadas, pelo que nos podemos mesmo interrogar sobre se o objectivo é atingível fora de um determinado quadro e de uma certa metodologia. Em todo o caso, elas têm alguma autonomia relativa que nos permite tratadas de forma diferenciada ou, pelo menos, em momentos distintos.

Quanto ao aspecto do objectivo do Estado, em si mesmo, nesta matéria, acontece que a Constituição consagra neste momento como sua incumbência, clara e inequivocamente, a execução de políticas de pleno emprego - a norma tem a natureza que tem e traduz-se numa vinculação dos órgãos de soberania a desen-

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cadear os esforços necessários e adequados para que o dito objectivo possa ser atingido. O grau de vinculação e o grau de sindicação do incumprimento é aquele que todos conhecemos. Em todo o caso, a substituição desta cláusula por uma que vem proposta pelo PSD não deixaria de ter implicações: não deixaria de ter a implicação de uma menor garantia, de uma degradação, no sentido verdadeiro e próprio, do conteúdo constitucional nesta matéria. Interrogo-me realmente - aliás, no mesmo sentido que o Sr. Deputado António Vitorino -, sobre as razões fundas que levam o PSD a insistir, a este ponto, na inscrição constitucional de uma mensagem de desespero, ou de uma mensagem de descrença, de não plenitude, em relação a um objectivo tão relevante como é o da garantia do emprego. Sabe-se que certos ventos que sopram proclamam o facto de o emprego dever ser uma componente secundária ou menos relevante das políticas económicas; sabe-se que isso envolve uma certa noção subvalorizadora da força de trabalho, isto é, dos direitos dos trabalhadores e da garantia da satisfação dessa aspiração vital e fundamental que é a aspiração ao trabalho, ao emprego, a um posto de trabalho, com todo o seu significado.

Em todo o caso, no quadro desta revisão constitucional e no quadro desta organização económica de que, no fundo, este ponto é subparte, porquê propor, neste momento em Portugal, esta concreta alteração? Isto é, qual a causa de justificação para uma tal coisa? Que margem acrescida de actuação pretende uma força política quando propõe o que aqui se propõe?

Em nossa opinião, do acolhimento de uma proposta como a que agora vem apresentada nada de bom resultaria. Primeiro, porque, se alguma coisa importa neste momento em Portugal, é levar a cabo, é executar aquilo que constitui um objectivo largamente incumprido e largamente inexecutado. A execução de uma política de pleno emprego pressupõe uma economia suficientemente organizada, orientada e programada, que permita um equilíbrio, um ajustamento entre a procura e a oferta de mão-de-obra. Em todo o caso, sabemos bem como na realidade estamos distantes de atingir esse objectivo, ainda que o Govêrno se gabe aqui ou além de imaginários êxitos que, de resto, procura transformar em ganhos eleitorais e não tanto, infelizmente, em ganhos de rendimentos para os trabalhadores (bom seria que esse objectivo fosse alcançado em realidade e não apenas em palavra propagandística!).

De qualquer forma, que eu saiba, a margem de manobra governamental e, digamos, do poder político, face à Constituição na sua redacção vigente, é tudo menos insuficiente. Existe uma ampla margem de manobra governativa. Que eu saiba, o Governo, a Assembleia da República, na sua composição actual, não topou, não encalhou com esta norma constitucional, não tropeçou nela, não lhe causou absolutamente nenhum engulho, a não ser um que, ao que parece, pretende ser suprimido. E esse engulho é o de que temos uma Constituição convocação de plenitude, neste e noutros pontos: veja-se o artigo 81.°, alínea c), que aponta como incumbência prioritária do Estado em matéria económica "assegurar o pleno emprego das forças produtivas", de que seguramente a força de trabalho é uma das partes integrantes e não uma das menos relevantes. Os ventos liberais que por aí sopram no PSD, qualquer que venha a ser a sua futura identidade, implicam a renúncia à luta Delo pleno emprego? É "quimérica"? É "utópica"? E "indesejável"? É obrigatório que a Constituição proclame a contingência do emprego? É necessário que a Constituição proclame a possibilidade, a inevitabilidade e até a desejabilidade do desemprego, como componente de uma política económica? É isto que a Constituição não pretende e é isto que aparentemente o PSD pretende inserir na Constituição.

Quanto a nós, o caminho a adoptar há-de ser o inverso, há-se ser o de garantir um determinado rendimento aos desempregados - que muitos são e que têm um esquema de protecção altamente débil -, há-de ser o tendente a diminuir o mais possível os períodos em que os cidadãos são forçados a estar desempregados, há-de ser o de preencher esses períodos com acções efectivas de reconversão, de valorização do trabalhador e não de desmotivação e de liquidação do trabalhador, mas, pelo contrário, de aproveitamento para melhor apetrechamento, a fim de responder às necessidades do próprio trabalho. É preciso garantir um sistema adequado de reinserção no emprego, de preparação para mudanças, para alterações, para inovações tecnológicas, de motivação dos trabalhadores para esse esforço com flexibilidade (mas com garantia de que essa renovação do trabalhador, essa sua adequação aos desafios presentes se faça em condições de dignidade, de humanidade e não em condições de aviltamento).

Nesse sentido, Srs. Deputados, entendo que a consagração de uma norma deste tipo é inadequada e que seria muito perigosa. Não que ela implicasse a erecção em objectivo do Estado da promoção do desemprego, mas porque poderia debilitar a obrigação que impende sobre os órgãos de soberania de se baterem nas concretas condições que a circunstância histórica ofereça, a fim de que o emprego seja o maior possível, isto é, pleno. É esse o significado da cláusula constitucional em debate.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Luís Ramos.

O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Sr. Presidente, pretendia rapidamente responder às críticas que aqui foram colocadas.

O PSD não quer, nem nunca quis, substituir uma Constituição de índole socialista por uma Constituição de índole social-democrata. Consequentemente, nesse sentido, todos os argumentos de pendor ideológico aqui trazidos são relativos. Aliás, já que se fala em argumentos de pendor ideológico, pretendia igualmente dizer que, nesta matéria e em relação ao pleno emprego, a doutrina keynesiana, ela própria, já é posta de parte há bastante tempo, não sendo novidade de 1988 em sede de revisão constitucional.

Quanto ao facto de aqui se referir que o PSD pretende abolir ou, de alguma forma, pôr em causa a garantia de emprego, a verdade é que não o quer. Bem pelo contrário. Quando na proposta do PSD se fala em execução de planos e programas que permitam a criação de emprego, pretende-se exactamente ajustar a garantia de emprego em sede constitucional. Porque dizer-se como até aqui se dizia - ou se continuará a dizer caso não se proceda a esta alteração - que o Estado deve promover políticas de pleno emprego - e toda a gente sabe que isso não é possível - é irrealista. Dessa forma não se perscrutam as garantias constitucionais nesta matéria. Bem pelo contrário.

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Por outro lado, dizer-se que devemos fazer uma Constituição com plenitude, com um carácter absolutista em muitas das coisas seria tão válido para a questão do pleno emprego como o seria para outras, nomeadamente a do socialismo. O PSD é a favor da retirada da Constituição de algumas normas programáticas pelas razões que já tivemos oportunidade de expressar noutras sedes e que teremos ainda oportunidade de defender. Julgo que não faz sentido continuar a defender esta questão pelas razões já adiantadas. Não pretendemos retirar a expressão "pleno emprego" porque sejamos a favor do desemprego ou do menos emprego; não se pretende retirar a expressão "pleno emprego" por se querer mais desemprego, mas sim apenas porque pretendemos adequar a Constituição à realidade e, por outro lado, há que retirar normas programáticas que não façam sentido, nem sequer em termos teóricos, quanto mais em termos de realidade constitucional e do país que queremos construir a partir da revisão constitucional.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Raul Castro.

O Sr. Raul Castro (ID): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Já foi assinalado - inicialmente, foi-o mesmo pelo PSD - que a razão de ser destas propostas se liga em parte à tomada de posição, mais genérica, quanto à eliminação do planeamento democrático da Constituição. Isso não nos impede - até porque ainda agora foi assumida a defesa destas posições -, antes nos obriga a dizer algo sobre isso.

A primeira questão a colocar é aquela que o Sr. Deputado José Luís Ramos acaba de levantar quanto ao facto de o PSD não ter a pretensão de transformar a actual Constituição numa Constituição social-democrata. Em nosso entender, o PSD tem é a pretensão de tornar a Constituição numa Constituição neoliberal, o que é diferente de a transformar numa Constituição social-democrata. Para isto, bastará a eliminação dos elementos ideológicos que a actual Constituição contém (e cujo desaparecimento seria naturalmente negativo) substituindo as características ideológicas da Constituição, e nela expressas, por "fórmulas em branco", que se identificam com o próprio vazio ideológico do neoliberalismo. Nesta matéria, bastará, pela retirada das posições de sentido contrário, consagrar tudo aquilo que diz respeito ao auto-equilíbrio interno do sistema capitalista para termos aí uma das características do neoliberalismo, sem se tornar necessário dizer que esta é uma Constituição que o PSD defende como uma Constituição com determinadas características ideológicas.

Esta análise levar-nos-ia naturalmente mais longe. Para já, e em face da afirmação do Sr. Deputado José Luís Ramos, queria apenas frisar que há neste caso uma maneira de levar a água ao seu moinho que permite identificar esta Constituição, na óptica do projecto do PSD, com uma Constituição de características neo-liberais, mas também eliminar as posições que desmentem e tornam impossível encontrar esse sentido na actual Constituição.

O facto de também se retirar a expressão "pleno emprego" é um outro argumento que milita em favor do que se referiu. Na realidade, quando a Constituição fala em pleno emprego, fá-lo em mais do que um sentido, um dos quais consiste no que é o contrário, nomeadamente, das formas de trabalho precário. Sabendo nós que o PSD é um defensor das formas de trabalho precário, ainda que, naturalmente, não com esta designação, é compreensível, mas não aceitável, que se queiram adaptar ao ideário e ao programa do PSD as normas constitucionais, que não têm, ou não devem ter, nada a ver com o ideário deste ou daquele partido.

Isso significa, portanto, que, sem prejuízo de se retomar a análise da questão do planeamento democrático em momento ulterior, nos devemos desde já pronunciar em sentido contrário às propostas de alteração apresentadas pelo PSD, na medida em que não são conformes com as próprias traves mestras do sistema constitucional actual. De resto, não quero deixar de recordar - e é pena que já não esteja presente o Sr. Deputado Rui Machete - que, num estudo da revista Direito e Estudos Sociais, o mesmo Sr. Deputado Rui Machete refere precisamente que um dos objectivos a atingir na revisão constitucional é a eliminação do planeamento democrático, do Plano. O afloramento dessa ideia está aqui patente, o que, naturalmente, evidência o grande interesse que o PSD liga a tal eliminação. Pela nossa parte, por razões opostas e porque nos identificamos com as linhas mestras da actual Constituição, tais propostas não poderão merecer a nossa concordância.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Alberto Martins.

O Sr. Alberto Martins (PS): - Creio que o pleno emprego é naturalmente um objectivo do Estado social e um objectivo de justiça social. Em consequência, a ideia de políticas de pleno emprego tem que necessariamente ser prosseguida por um Estado que não seja um Estado liberal. Isto não quer naturalmente dizer que essa política de pleno emprego possa ser ou não realizada; ou seja, enquanto objectivo programático não tem mediações na sua realização. Hoje, a ideia recente do trabalho parcelar ou do trabalho parcial não colide com esta ideia de plenitude do emprego.

Aliás, se a nossa Constituição é programática, existe um argumento lógico e até gramatical que inviabilizaria esta proposta do PSD. De facto, o n.° 1 do artigo 59.° estabelece que "todos têm direito ao trabalho", o que é um objectivo programático. Ora, se todos têm direito ao trabalho, a execução de planos e programas que permitam a criação de emprego é criação de emprego para todos, como objectivo programático; logo, a criação de emprego para todos estará ínsita na leitura de "todos têm direito ao trabalho". E, se é criação de emprego, é criação de emprego para todos; logo, é criação de pleno emprego como objectivo programático. Consequentemente, não faz sentido tirar o "pleno" em termos de uma interpretação lógica e gramatical.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - Em primeiro lugar, pretendia dizer que longe estaria de mim abrir aqui uma querela ideológica em torno da revisão da Constituição com o Sr. Deputado José Luís Ramos. Seja como

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for, longe de mim também estaria a ideia de que o conceito de pleno emprego fosse uma reserva socialista. Daqui á pouco teríamos o PSD a denunciar o Keynes como um perigoso marxista, e sabe-se lá que mais! Não apelando ao rigor dos princípios, tenha-se pelo menos respeito pelos mortos!

Porém, muito bom democrata-cristão defende políticas de pleno emprego. Em meu entender, o conceito de pleno emprego consagrado na Constituição não é um conceito ideologicamente apropriado. E é mau pensar que poderia ser ideologicamente apropriado porque estaremos todos de acordo em que o objectivo do Estado é criar cada vez mais emprego e que o desejável seria que todos tivessem emprego. Porque, como disse o meu colega Alberto Martins, para que a todos fosse garantido o direito ao trabalho, o direito ao trabalho carece, para concretização, da existência de um emprego para cada cidadão.

Também não partilho do optimismo do Sr. Deputado José Luís Ramos quando refere que o keynesianismo já está a ser afastado há muito tempo. Acho é que o PSD está a entrar em ruptura com o keynesianismo muito tarde: tão tarde que o está a abandonar no momento em que outros liberais europeus o começam a retomar, se bem que em novos moldes, claro. Nunca convém passar certidões de óbito a ideias, porque as ideias não morrem com essa facilidade. Nesse caso, dentro desta lógica, gostaria de perguntar em que medida é que a Constituição ganha por substituir esta norma de pleno emprego, que é uma norma que se compreende, como norma desejável e tendencial, mas não como valor absoluto nem valor concretizável a curto prazo, por uma norma na verdade mais enxuta mas muito menos expressiva e que, digamos assim, não tem força. Pretende-se criar emprego, naturalmente, mas não me parece que, sob o ponto de vista programático, seja uma norma muito relevante para a Constituição. Mas enfim, pela minha parte, não creio que seja matéria que me faça perder noites de sono.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - É evidente que não estamos perante uma daquelas questões pelas quais valha a pena terçar grandes armas.

Em primeiro lugar, damos por adquirido que a aspiração de plenitude de que releva a ideia de pleno emprego é uma aspiração em que todos estamos empenhados. Na execução das várias políticas, todos pensamos na ideia de pleno emprego, o que não quer dizer que, ao elaborarmos as normas jurídico-constitucionais relativas ao direito ao trabalho, a devamos estabelecer como meta, mais a mais reforçada com a garantia de o Estado ter de assegurar a execução do pleno emprego. É uma norma programática com especial força, com especiais exigências, tão fortes e tão consistentes que são quotidianamente violadas. Já foi dito que este tem sido um ideal incumprido mas a verdade é que, mais do que incumprido, é na prática incumprível. Em consequência, tudo está em saber se, por um lado, do ponto de vista da verdade jurídico-constitucional e, por outro, e sobretudo, do ponto de vista da real vinculação da actuação do Estado, se debilita ou, pelo contrário, se reforça o direito ao trabalho substituindo a expressão "políticas de pleno emprego" por "criação de emprego". Temos consciência de que com tal alteração se reforça a obrigação que impende sobre o Estado de aumentar ou criar emprego. De facto, quando se faz impender sobre o Estado uma, obrigação que à partida se define como incumprida e, mais do que isso, como incumprível, preferimos submeter o Estado a uma obrigação pelo menos cumprível e sindicável, que é a do aumento progressivo do emprego.

As críticas que foram feitas às propostas do PSD têm, do nosso ponto de vista, pertinência no sentido em que, por deficiente redacção e porventura - por que não admiti-lo? - por deficiente visão das coisas no momento da feitura da proposta, demos à redacção uma formulação de certa maneira um pouco estática. É que, no fundo, o Estado ficaria desincumbido da obrigação de criar um emprego se ao fim de um ano ou de uma legislatura criasse um emprego. Em vez da fórmula "criação de um emprego", deveríamos adoptar uma ideia com tendência expansiva, como "criação e aumento de emprego" ou "criação e aumento progressivo de emprego", ou seja, qualquer ideia que torne a obrigação que impende sobre o Estado numa obrigação exequível e controlável e retire ao Estado a incumbência do pleno emprego, que, por ser nobre e ter aspiração de plenitude, todos temos consciência de não se poder cumprir. O que não tem remédio remediado está. É uma ideia bonita, de plenitude, é uma norma programática, mas não vale a pena aspirarmos ao pleno emprego. Na verdade, o Estado nunca se pôs em situação de desobediência a esta norma - pelo menos nunca ninguém pôs em questão a sindicabilidade da actuação do Estado por força desta norma. Penso que seria mais facilmente posta em causa a condução de uma política de emprego se a norma estivesse desenhada como propomos, admitindo de boa mente que a criação de emprego deveria ser qualificada como a exigência não só de criar mas também de criar progressivamente e aumentar a tendência expansiva do emprego.

Penso que não deveremos perder muito tempo com esta questão. Entendemos que o direito ao emprego ganharia mais consistência com a nossa formulação do que com uma fórmula que é mais nobre, como aspiração de plenitude, mas que manifestamente não está ao nosso alcance. Creio que ninguém irá sindicar a actuação do Estado por em cada momento não ter pleno emprego - nunca ninguém o fez.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Macedo e Silva.

O Sr. Miguel Macedo e Silva (PSD): - Quero apenas comentar duas afirmações feitas, uma delas quando se disse que não fazia sentido a alteração proposta pelo PSD à alínea a) do n.° 3 do artigo 59.°, porque o n.° 1 do mesmo artigo consagrava, e consagra, que todos têm direito ao trabalho e que, esta sim, era uma norma programática. Ora, não é assim. Esta é a consagração de uma norma positiva; aliás, seguindo de perto o ensinamento referido pela Constituição da República Anotada, por Gomes Canotilho e Vital Moreira, esta é, de facto, uma norma positiva e que tem um conteúdo diverso da que está expressa na alínea d) do n.° 3 deste mesmo artigo 59.° - que, esta sim, é uma norma programática. Senão, atentemos - e permito-me citar

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aqui a anotação n.° 6 a este mesmo artigo, feita pelos autores já referidos - no que se diz quando se escreve que "a execução de uma política de pleno emprego pressupõe uma economia suficientemente planificada ou programada que possa assegurar a adequação entre a oferta e a procura de mão-de-obra"; entre outras coisas que depois se seguem e não são relevantes para esta matéria, esta disposição, sim, é programática e é uma disposição programática que impõe - ao contrário daquilo que nós, PSD, pensamos e ao contrário daquilo que propomos no nosso projecto de revisão constitucional - uma planificação de economia com a qual não estamos de acordo. Tiramos daí as consequências necessárias, ao propor a supressão do artigo respectivo do texto constitucional.

Por isso, não é exactamente igual o conteúdo e a natureza das duas normas que estamos a analisar e, assim, as conclusões que foram tiradas não podem sê-lo através dessa comparação.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Luís Ramos.

O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Em primeiro lugar, queria responder ao Sr. Deputado António Vitorino. Não pensamos, de maneira nenhuma, pelo menos eu não quis dizê-lo, que as teorias keynesianas estão postas de parte - apenas no que tocava à questão do pleno emprego e mais, até, em termos económicos do que propriamente de doutrina política. Nesta questão, porém, é que eu afirmava o desajuste destas doutrinas. Quanto ao mais, muitas coisas já foram respondidas tanto pelo Sr. Deputado Costa Andrade, como pelo Sr. Deputado Miguel Macedo, com o que concordo totalmente, aliás.

Queria dizer ainda, em relação à divergência que há entre o n.° 1 e a alínea a) do n.° 3 que existe ainda uma outra situação que é esta: além da dessintonia das normas, pode haver e, em termos abstractos, pode enquadrar-se o facto de toda a gente ter direito ao trabalho mas haver pessoas que, livremente, possam ter direito a não querer trabalhar e não querer ter emprego. Podem legitimamente existir cidadãos que optem por não ter emprego. Isto não quer dizer, obviamente, que uma coisa implique a outra, aliás, mais: a política de pleno emprego é resultante, e pode ser mais resultante de uma economia chamada planificada, do que de uma economia de mercado ou social de mercado. O plano é uma característica dessas economias, de uma economia dirigista e à qual somos contrários. Nesse sentido, e só nesse, é que estas propostas podem ser enquadradas.

Estas são as razões que justificam as propostas que, neste artigo, fazemos.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Alberto Martins.

O Sr. Alberto Martins (PS): - Queria tentar precisar algo do que disse, em resposta ao Sr. Deputado Miguel Macedo, que tem a ver com o seguinte: as duas normas - "todos têm direito ao trabalho" e "a possibilidade de execução de planos e programas que permitam a criação de emprego" - são ambas de natureza programática, uma vez que nenhuma delas confere direitos subjectivos; isto é, o cidadão individualmente considerado que esteja numa situação de desemprego ou de não trabalho não tem a possibilidade de, contenciosamente, responsabilizar o Estado - portanto, são normas que conferem direitos objectivos e não subjectivos. Não há aqui um sujeito parte em acção contenciosa ou sindicável que possa, nalguma medida, responsabilizar o Estado por isto - creio, aliás, que é este o ensinamento do Prof. Jorge Miranda relativamente a estas normas.

O que digo é que estas duas normas do mesmo artigo têm de ter uma leitura homóloga neste sentido: se todos têm direito ao trabalho, tem de haver a garantia para todos da possibilidade de emprego, e isto implica um objectivo programático, que é o da garantia do pleno emprego. Nesse sentido, evoquei um argumento lógico e gramatical: a ideia do pleno emprego é indissociável da ideia do direito ao trabalho. Creio que esta leitura, feita, na sequência do debate que temos tido, pelo Sr. Deputado Costa Andrade, aponta um pouco para isso, quando admite um sentido dinâmico para esta ideia de consagração do direito ao trabalho para todos.

O Sr. Miguel Macedo e Silva (PSD): - Peço desculpa por esta interrupção, mas queria dizer que não estou de acordo com essa interpretação. Ela vale, de facto, mas para o n.° 2 do artigo 59.°, onde está em causa a dimensão subjectiva do direito ao trabalho e do direito de trabalhar. Não para o n.° 1, que é a consagração positiva de uma norma que está constitucionalizada e que vale por si e vale como tal. Esta é a interpretação que eu faço e, neste sentido, se diferencia claramente do sentido que detecto na alínea a) do n.° 3.

O Sr. Alberto Martins (PS): - Mas a minha resposta é no sentido de que a consagração da plenitude dessa norma só é realizada, articulada com uma política de pleno emprego, porque só ela garante o direito ao trabalho de todos. Por isso fiz uma leitura lógica das duas asserções. Mas, de qualquer forma, não me parece uma questão extremanente relevante.

O Sr. Presidente: - Em relação à marcha deste debate, gostaria de fazer algumas observações: creio que se avançou bastante na clarificação dos objectivos e das posições recíprocas de cada partido sobre esta questão - introduziram-se, no entanto, talvez, algumas imprecisões, naturalmente propositadas ou premeditadas; em todo o caso, seria mau, pelo menos pela nossa parte, que não procurássemos contribuir para dilucidar o que seja possível dilucidar nesta sede e neste momento.

Primeiro aspecto, sabendo nós todos que o direito ao trabalho não confere um direito subjectivo a um concreto posto de trabalho, como tal, não pode, no entanto, reduzir-se a nada a protecção constitucional do direito ao trabalho, e, se há, seguramente, uma dimensão importante a considerar no direito ao trabalho, essa consiste na obrigação, imposta ao Estado, de criar postos de trabalho ou de contribuir para a criação de postos de trabalho através dos diversos meios e instrumentos aptos para a produção desse concreto efeito. Trata-se de uma inequívoca e clara obrigação do Estado, está como tal estabelecido, consta da alínea a) que temos precisamente em debate e todos sabemos que o incumprimento dessa norma não é despro-

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vido de consequência, ao contrário daquilo que aflorava de algumas intervenções aqui produzidas, porque pode inclusive originar, no sistema de fiscalização da constitucionalidade que temos neste momento em vigor, uma omissão inconstitucional. Quais sejam as condições em que se verifique uma omissão inconstitucional e que eficácia têm os mecanismos constitucionais para dar resposta à omissão constitucional, é toda uma outra questão - sabemos que não estamos perante uma arma atómica, sabemos todos que não estamos perante uma sindicação de eficácia máxima, sabemos que as mediações, em termos de estruturas e meios de poder, são muitas e, portanto, a capacidade de resistência ou de réplica à acção inconstitucional de um poder político apostado em não desenvolver uma política de pleno emprego tem limitações. A nossa circunstância política é a melhor demonstração de tudo isto que estou a afirmar, embora, naturalmente, a luta contra o desemprego e por uma política de reabsorção do desemprego esteja em curso aos olhos de todos.

Pela nossa parte, assumimos como estandarte e como objectivo de luta muito importante a questão da luta pelo emprego e o movimento operário toma esse objectivo neste momento e nesta circunstância histórica como um objectivo fulcral, até como reforço das próprias condições em que os trabalhadores possam exercer todos os demais direitos, uma vez que não se é trabalhador sem se trabalhar, é-se trabalhador inocupado e logo um trabalhador debilitado quanto à livre e plena expressão das suas próprias capacidades. Esse é um aspecto fulcral, em relação ao qual creio ser extremamente importante que cada um assuma as suas próprias responsabilidades. Não vale a pena minimizar os conteúdos constitucionais onde eles existem - e a prova melhor que eles existem é que o PSD quer debilitá-los, diminuí-los e amputá-los. É isso que deve ser, a qualquer título, clarificado.

Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Usaria a terminologia juscivilística, formulando-lhe a seguinte questão: V. Exa. considera ser debilitar o teor de um direito fazer-lhe corresponder uma obrigação de resultado que à partida se reconhece como inexequível ou, pelo contrário, fazer impender sobre o Estado uma obrigação de meios a que se reconhece alguma sindicabilidade e, pelo menos, alguma exequibilidade prática? A nossa proposta faz impender sobre o Estado uma obrigação de meios com alguma consistência. VV. Exas. estão a fazer impender sobre o Estado uma obrigação de resultado que reconhecem ser incumprível.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Costa Andrade, tudo está em afirmar o que V. Exa. afirma pela sua própria boca, seguramente não pela minha. Porque em nenhum momento lobrigou V. Exa. no que eu disse - creio que também não o lobrigou na boca de ninguém mais - a afirmação da incumpribilidade do objectivo constitucional. Pela minha parte, não produzi tal afirmação.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Então V. Exa. acredita na cumpribilidade actualmente em Portugal dessa meta, ou dessa obrigação de resultado? Acredita que é cumprível em Portugal?

O Sr. Presidente: - Vírgula, neste momento, três pontinhos! Sr. Deputado Costa Andrade, é difícil imaginar coisa mais limitada que uma leitura conjunturalizada, momentizada de um texto constitucional.

Assim como o texto constitucional aponta para várias dimensões da felicidade na Terra, sem garantir que seja "já, já, já", também no que diz respeito ao pleno emprego o texto constitucional não é "já-já-já-jazista"! Portanto, não desiste - e é esse o significado mais fulcral desta norma - de tal objectivo, recusando-se a cantar um requiem pelo pleno emprego. Aquilo que o PSD quer é um requiem pelo pleno emprego e um elogio do pequeno emprego, isto é o elogio da limitação, da parcialização e da relativização nesta matéria. Substituir a cláusula pletórica constitucional por uma cláusula que diria: a execução de planos e de programas que permitam, sabe-se lá como e em que grau, a criação de emprego (que emprego? que tipo de emprego?) é uma diminuição, e séria, daquilo que é, hoje, uma expressão de plenitude. Repito, quem disse que é inconsistente? Quem disse que é uma fórmula nobre, inalcançável? Uma e uma pessoa apenas: o Sr. Deputado Costa Andrade! Mais ninguém, e seguramente a Constituição não!

Se isto significa fazer com que o Lord Keynes se agite na tumba, por ser vilipendiado pela enésima vez, é uma questão de somenos. Este não é seguramente um diálogo com a tumba de Lord Keynes - é um diálogo que passa por uma luta intensa, política, económica e social neste momento em Portugal; essa luta terá o desfecho que se há-de ver e nessa luta o PSD saberá, pelas suas próprias mãos, com os seus próprios olhos, qual o impacte de "assassinar Keynes" ou, mais exactamente, de lançar trabalhadores para o desemprego.

E isso me leva à segunda e última questão que desejaria abordar nesta sede e neste momento. Creio que, se alguma coisa pode resumir melhor e mais rigorosamente aquilo que pode ser uma aspiração reconhecível e amável - no sentido exacto de ser susceptível de ser desejada e querida pelos trabalhadores -, é a consigna de "mais emprego e melhor emprego". E não é a proposta do PSD, Sr. Deputado Costa Andrade. Se V. Exa. quiser, como V. Exa. é dotado de caneta e do saber bastante, pode escrever isso - mas, ainda que escreva "mais emprego e melhor emprego", deve ler-se (agora que o ouvimos): "o emprego que for, incluindo o desemprego que seja". E isso é totalmente diferente da consigna que citei porque, realmente, neste momento, em Portugal, o mapa do emprego e do desemprego dá-nos volumes de desemprego significativos, substanciais e lamentáveis.

Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Penso que a proposta que adiantei na minha intervenção ia no sentido exactamente correspondente ao que há pouco foi objecto de um aparte meu. A nossa proposta visa dinamizar a ideia de criação de emprego, com o sentido de dinamismo e de aumento de emprego. É uma proposta que fazemos, não por escrito, mas oralmente - a linguagem, entre homens sérios, também é uma maneira de comunicar e de fazer propostas.

O Sr. Presidente: - Em suma, Sr. Deputado Costa Andrade, se se trata de dizer, de uma maneira pior, aquilo que a Constituição hoje diz de maneira melhor;

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se se trata de dizer mais emprego e melhor emprego, então digamos pleno emprego - que já recobre todas as dimensões desejáveis, incluindo o mais e o melhor. Quanto às formas de realização, quanto a isso, há muito a imprimir, e muita forma diferente de imprimir velocidade e rumo ao Estado para garantir esse objectivo.

É evidente que um "Estado laranja" tem implicações em relação ao emprego - sim, sim! Os trabalhadores portugueses que digam! E também tem implicações em relação à qualidade do emprego. Não é por acaso que - segundo as estatísticas informam - quase 70% das pessoas que entraram em actividades económicas, ao serviço de entidades económicas, entre Julho e Setembro do ano passado, por exemplo, foram contratadas "a prazo"! Esse é o tipo de emprego que há. Não é por acaso que um terço das pessoas que saíram das actividades económicas foi por cessação de contratos a prazo. Por outro lado, não é por acaso que temos tantos desempregados de longa duração - o que é uma situação de extremíssima debilidade para os trabalhadores. E também não é por acaso que, das pessoas à procura do primeiro emprego no 3.° trimestre de 1987, quase 70$ eram mulheres, que, como todos sabemos, conhecem uma taxa de desemprego que é dupla da dos homens. Por outro lado ainda, não ignoramos nós, a título nenhum, a proliferação de formas de trabalho clandestino, trabalho precário, trabalho em condições perfeitamente desumanas - esse é o emprego que vai havendo. Estamos, portanto, muito longe do pleno emprego, no sentido próprio; estamos muito perto, demasiado perto do subemprego, da desqualificação, da má qualificação, do emprego de fraca, de baixa remuneração e de nenhuma garantia para o trabalhador. É essa a situação que temos. Pela nossa parte, não estamos minimamente disponíveis para substituir a actual cláusula constitucional por uma que diga o mesmo em pior e, menos ainda, por uma cláusula que diga pior do que aquilo que está, coisa que parece ser a trágica aspiração do PSD nesta matéria.

Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, pretendia dizer que, se esta discussão não tivesse outra virtude, teria já tido, pelo menos como desiderato interessante, a de ver o PCP terçar armas em defesa de um lord, Keynes.

O Sr. Presidente: - Também há lordes algo bons pelos vistos...

Risos.

O Sr. António Vitorino (PS): - É um adquirido cultural importante. Não penso que seja vantajoso minimizar esta questão. E a minha intervenção de há pouco não tinha por objectivo minimizá-la, sob o ponto devista programático. Penso aliás que, enquanto discussão programática, cada partido toma as suas posições e parece-me suficientemente clara qual a lógica de todas as posições aqui presentes.

Pretendi chamar a atenção para que se tornava necessário situacionar com rigor os efeitos práticos de normas programáticas deste género. Nesse sentido, não acompanharei a interpretação que o Sr. Deputado José Magalhães fez do que seria uma eventual declaração de inconstitucionalidade por omissão de uma política concreta, em função desta norma do pleno emprego. Inclusivamente, penso que a interpretação que o deputado José Magalhães fez é perigosa, na medida em que faria incorrer a interpretação das normas programáticas e a própria lógica do mecanismo de inconstitucionalidade por omissão num ónus que me parece difícil de preencher. Na realidade, quando se consagra aqui uma norma de pleno emprego, só se verificaria qualquer inconstitucionalidade por omissão à base desta norma em situações de aplicação de políticas incentivadoras do desemprego como objectivo da sua prossecução, o que já não seria o caso da possibilidade de, ao abrigo desta norma, se desenvolverem várias políticas de promoção do emprego, ainda que entre elas existissem métodos distintos da promoção desse mesmo emprego.

Gostaria, portanto, de chamar a atenção para o facto de que uma norma programática deste género não ilegítima, por si só, a pluralidade de políticas de promoção do emprego por métodos muito distintos. Inclusivamente - o PS discorda naturalmente dessa lógica - a promoção do emprego precário ainda é uma política de promoção do emprego. Há que reconhecê-lo, sob o ponto de vista objectivo, muito embora o PS discorde dessa política e entenda ser essa a política da promoção do falso emprego, do emprego ilusório, e também que a precariedade do emprego não corresponde aos objectivos não só desta norma programática, que para isso vale pouco, mas do conjunto das normas constitucionais que enquadram o tratamento da questão do emprego e da segurança no emprego.

O Sr. Presidente: - Dá-me licença que o interrompa, Sr. Deputado?

O Sr. António Vitorino (PS): - Faça favor, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - O Sr. Deputado António Vitorino vai poder verificar que, quando situei as condições em que poderia ocorrer uma hipótese de omissão insconstitucional, não excluí de forma alguma situações como aquelas que acabou de elencar, nem a pluralidade de vias, nem a pluralidade de formas.

O Sr. António Vitorino (PS): - Foi desatenção minha, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Aquilo que depois da sua intervenção é relevante é perguntar-lhe: entende que é inconcebível, face ao actual sistema, que uma atitude de incumprimento reiterado desta obrigação (e teríamos que nos entender sobre o que seja o incumprimento: aí é que está a questão) por parte do Estado seja susceptível de accionar esse mecanismo, nas condições previstas na arquitectura constitucional portuguesa? Na sua opinião, não o é em circunstância nenhuma? Esta é que é a questão.

O Sr. António Vitorino (PS): - Como é evidente, em relação a normas deste género, temos de reconhecer que, em termos jurídicos, pedir a um Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade por omissão de uma dada política governamental em matérias como esta constitui uma situação que só poderia ser prefigurada, com alguma segurança, perante

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políticas que, clara e inequivocamente, incentivassem o desemprego. Mas trata-se de uma questão que, creio eu, não se coloca exclusivamente perante uma norma como esta, que fala do pleno emprego, que tem alguma conotação mais pesada sob o ponto de vista ideológico, mas que também se poderia colocar, por identidade de razões, perante a norma que estabelece a todos ser assegurada uma habitação. Nesse aspecto, quem pretende alterar esta norma deveria, por identidade de razões, debruçar-se também sobre se não será uma utopia bonita e galante o facto de a Constituição dizer que a todos é assegurada uma habitação. Levar-nos-ia horas a discutir quão longe o nosso país está do pleno emprego e quão longe está da plena habitação, chamemos-lhe assim, da existência de condições objectivas que garantissem uma habitação condigna para todos, com aquelas características simpáticas que a Constituição enumera no artigo 66.° E teríamos talvez de chegar ao ridículo de dizer que afinal estamos mais próximos da plena habitação do que do pleno emprego, pelo que se justificaria manter a plena habitação mas não já o pleno emprego. Trata-se de um tipo de debate extremamente difícil de travar, razão pela qual entendemos que. sob o ponto de vista programático, é um debate improfícuo e carecido de utilidade prática.

Não minimizamos a importância dos princípios, mas também não queremos abrir a este propósito uma querela ideológica sobre toda a parte programática da Constituição, o maior ou menor alcance dessas normas programáticas e o eventual espectro da declaração de inconstitucionalidades por omissão que este tipo de normas em si comportam.

O Sr. Presidente: - Se nenhum dos Srs. Deputados pretende usar da palavra sobre a proposta apresentada pelo PSD, passaríamos ao debate referente à proposta apresentada pela ID.

Pausa.

Tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Macedo e Silva.

O Sr. Miguel Macedo e Silva (PSD): - Pretendia apenas dizer que, por parte do PSD, vemos com simpatia esta proposta da ID, sem prejuízo de considerarmos que a redacção que lhe é dada poderá porventura ser melhorada. Isto tem a ver, por exemplo, com a questão que há pouco o meu companheiro José Luís Ramos colocou ao Sr. Deputado da ID, na medida em que, da forma como está redigida esta proposta, a precisão quanto à idade em que é admitida a entrada dos jovens no mercado de trabalho pode, em meu entender, ficar relativa e indesejavelmente incerta. Julgo que daí poderiam advir inconvenientes a ponderar, nesta sede, muito embora possam ficar deferidos para outro momento que não este.

No fundo, pretendia aqui salientar a nossa simpatia por esta proposta, que vem ao encontro de preocupações que já manifestámos e em relação às quais demos, recentemente, alguns passos positivos.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sra. Deputada Odete Santos.

A Sra. Odete Santos (PCP): -A este respeito, o PCP apresentou também uma proposta em sede no artigo 74.°, n.° 4, preceito que nos pareceu mais apropriado para um inciso desta natureza. De qualquer forma, o objectivo que preside à proposta da ID está bem patente face às condições que se vivem em alguns pontos do País, devendo, em nosso entender, ser constitucionalizada uma proibição deste género.

Quanto à questão levantada pelo Sr. Deputado Miguel Macedo e Silva relativamente à idade em que é admitida a entrada de jovens no mercado de trabalho, fazemos na nossa proposta referência à escolaridade obrigatória. De facto, pensamos que deve ser assegurada a escolaridade obrigatória e proibido o trabalho de menores durante esse período, que efectivamente tem evoluções. Mas é este o princípio geral que. de vemos deixar inscrito.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Macedo e Silva.

O Sr. Miguel Macedo e Silva (PSD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras iniciais do orador.) De facto, uma das reservas que pretendia colocar e que não explicitei era a de saber - e neste momento não tenho opinião formada em relação a este ponto - se o artigo 59.° é a sede própria para a inclusão de uma norma deste tipo. E também não sei se deverá ser o artigo 74.° Trata-se de uma questão sobre a qual nos poderemos debruçar com mais cuidado, nomeadamente depois de procedermos à discussão de outros preceitos que se seguem. Poderá ser incluído outro artigo: estou-me a lembrar, por exemplo, do preceito referente à juventude, o artigo 70.°, em que se consagram alguns dos direitos mais fundamentais, mais especiais, de um estrato etário que é o dos jovens. Trata-se de uma questão a ponderar melhor e em momento subsequente.

No entanto, julgo que é importante destacar a concordância e o consenso existentes em torno de uma proposta deste género, embora também me pareça que não é pela simples constitucionalização de uma norma deste tipo que se resolvem os graves problemas do trabalho infantil.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Independentemente das questões referidas pelo Sr. Deputado Miguel Macedo e Silva, a Sra. Deputada Assunção Esteves acaba de me sublinhar que o artigo 74.° seria talvez o local mais adequado à inserção desta norma, argumentando, parece que com pertinência, ser preferível não introduzirmos uma proibição em sede de direito ao trabalho, na medida em que, estando-se a falar do direito ao trabalho, estaríamos a estabelecer uma proibição de trabalho. É evidente que, do ponto de vista substancial, se trata de defender o direito ao trabalho. Mas penso que existe alguma lógica na sugestão da Sra. Deputada Assunção Esteves.

Como já foi referido, o princípio é evidentemente de aplaudir, embora tenhamos de adoptar algumas cautelas e não devamos ser muito rígidos em termos constitucionais. A este propósito, a formulação do PCP relativa ao artigo 74.° parece-me mais correcta, sendo certo que, no fundo, a ideia é a mesma. Esta formulação tem sobretudo uma maior plasticidade na medida em que - e não me refiro agora às medidas necessárias

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à eliminação, pois não é isso o que está em causa - fala da proibição da utilização legal do trabalho de menores, fazendo assim uma certa referência à lei. Ou, então, talvez devêssemos, em sede constitucional, estabelecer uma idade mínima. Existem limites muito variáveis, como, por exemplo, o de saber o que é um "menor". É necessária muita cautela. Talvez pudéssemos adoptar uma redacção do tipo: "O Estado assegurará a proibição e a punição da utilização ilegal do trabalho de menores". Manter-se-ia sempre esta ideia de ilegalidade, que nos remete para a lei ordinária, que, a seu tempo, concretizaria melhor tal ideia, porque há diferenças de menores para menores. E, se a ideia de protecção dos menores é importante, devemos evitar igualmente o pecado oposto do excesso de paternalismo. É sempre muito difícil falar em nome dos menores, pelo que devemos ter sempre muito cuidado. Existem, pois, duas vertentes: se há a da protecção, que tem as suas exigências próprias, nós, adultos ou pessoas que pelo menos ultrapassámos certa idade, devemos porém ser muito comedidos nessa protecção. De facto, ultrapassados certos limites, entra-se no paternalismo, que pode ser indesejável e até filosófico-culturalmente negativo.

Consequentemente, se bem que estejamos de acordo com a ideia, pensamos que haverá de proceder com muito cuidado na fixação dos limites da protecção. Qual é, por exemplo, o critério de menoridade? O da lei civil ou outro?

Sintetizando, e sem desprimor para com a proposta da ID, que já mereceu a nossa concordância quanto à ideia de fundo, penso que neste aspecto uma formulação como a do PCP é mais prudente. Quando me refiro à proposta do PCP, faço-o relativamente à parte que refere a "utilização ilegal do trabalho de menores", e não àquela em que se estabelece que o "Estado promove as medidas necessárias [...]". Como já várias vezes dissemos, entendemos que não se deve estar sempre a repetir este refrão, porque senão teríamos de o fazer relativamente a cada direito, falando na promoção das medidas necessárias ao direito à vida, ao direito a saúde, ao direito a "isto", ao direito "àquilo", etc. Penso que isto decorre da proclamação dos direitos.

Quanto à questão que estamos a tratar, a fórmula que o PCP propõe parece ser mais adequada, pelo que talvez devêssemos remeter esta questão para a discussão do artigo 74.° Desde já, e tal como já foi dito pelo meu colega, damos o nosso apoio à proposta da ID no que ela contém de substancial.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Raul Castro.

O Sr. Raul Castro (ID): - Sr. Presidente, verifico, naturalmente com satisfação, que, de uma forma geral, existe consenso quanto à ideia contida na nossa proposta de aditamento de um n.° 4 ao artigo 59.° e que as divergências se localizam não tanto na ideia, mas na redacção e na colocação sistemática do preceito (aqui ou no artigo 74.°).

A fórmula usada na proposta do PCP relativa ao artigo 74.° não se limita a referir o trabalho de menores, porque acrescenta "assegurando a todos o cumprimento da escolaridade obrigatória". Complementa, pois, a que espécie de menores se refere, fixando para tal uma idade limite. Mas não nos move o propósito de fazer finca-pé a que esta proibição venha a ter lugar nesta ou naquela disposição. É-nos de certo modo indiferente que se mantenha aqui ou esteja inserida noutro preceito constitucional. O que para nós é importante (o que é, aliás, compreensível) é que esta medida conste da Constituição, em virtude da gravidade que nos últimos anos este problema assumiu no nosso país, inclusivamente desde a última revisão constitucional, o que explica, portanto, a necessidade de contemplar tal medida na Constituição.

Estamos, pois, abertos à modificação e à melhor explicitação da sua redacção no que diz respeito aos limites, sem embargo de nos parecer que o limite fixado na proposta do PCP relativa ao artigo 74.° não pode ser abandonado, e muito embora não façamos fica-pé a que se mantenha neste artigo tal formulação. No artigo 59.° ou no artigo 74.°, o que nos parece importante é que se constitucionalize esta ideia, que, aliás, parece merecer a aceitação de todos os Srs. Deputados.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sra. Deputada Odete Santos.

A Sra. Odete Santos (PCP): - Sr. Presidente, pretendia apenas deixar aqui três notas.

Em primeiro lugar, quero congratular-me pelo facto de, nesta matéria, em torno da primeira parte da proposta apresentada pelo PCP - que, penso eu, será discutida na altura própria - se ter chegado a um certo acordo, o que é de louvar.

Em segundo lugar, no que se refere à sede, creio que já foram aqui aduzidas razões para que a sede própria seja, de facto, o capítulo da educação. Devo dizer que discordo da sugestão do Sr. Deputado Miguel Macedo quanto aos artigos sobre a juventude, pois esta matéria relativa aos menores cobre também a exploração do trabalho infantil e uma certa zona etária em que os menores não são jovens, mas ainda crianças. Assim, penso que o capítulo da educação seria a sede mais apropriada.

Por último, em relação à intervenção do Sr. Deputado Costa Andrade, quando - pareceu-me - sugeriu que se inscrevesse aqui uma idade limite, devo dizer que creio não ser possível fazê-lo, quer porque algumas crianças começam a escolaridade com uma certa idade, terminando-a com outra, e começando-a outras crianças mais tarde, quer até pela própria evolução do conceito de escolaridade obrigatória, que se vai alargando. A nível internacional, a convenção apontava que os 14 anos fosse a idade própria para trabalhar, mas isso já foi alterado e não sabemos se no futuro ainda irá ser alterado para mais. Assim, não é possível inscrever aqui mais do que um princípio genérico e uma referência aos menores e à escolaridade obrigatória, sendo certo que, em nossa opinião - e parece que isso é claro -, essa matéria acabará, afinal, por ser remetida para a lei do sistema educativo, que a definirá exactamente.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, desejam ainda usar da palavra sobre esta matéria do trabalho infantil, apurando algum ponto de vista ou adiantando alguma sugestão?

Pausa.

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Srs. Deputados, consoante tive ocasião de lhes comunicar, tenho necessidade de uma suspensão dos trabalhos que creio não se prolongará para além de 10 a 15 minutos. Assim, propunha que retomássemos os nossos trabalhos às 17 horas e 45 minutos.

Srs. Deputados, está suspensa a reunião.

Eram 17 horas e 20 minutos.

Srs. Deputados, está reaberta a reunião. Eram 18 horas.

Srs. Deputados, encerrado o debate das propostas de alteração referentes ao artigo 59.°, iríamos encetar o debate das relativas ao artigo 60.°, havendo, neste domínio, propostas de alteração do PCP e do PRD. Ninguém propõe qualquer alteração da epígrafe e o PCP propõe o aditamento de um novo n.° 3, relativo à forma de garantia e ao universo dos garantidos pela cláusula constitucional respectiva, o aditamento de um novo n.° 4, sobre o regime de organização e funcionamento da empresa, e o aditamento de um novo n.° 5. respeitante à administração do trabalho, à inspecção do trabalho e à justiça laborai. O PRD, por seu lado, propõe a substituição da parte final da alínea é) do n.° 2, que reza "[...] a garantia dos benefícios sociais dos trabalhadores emigrantes", por "[...] a garantia dos benefícios sociais de todos os trabalhadores, incluindo os emigrantes", propondo também o aditamento de um novo n.° 3 com a seguinte redacção: "O Estado fiscalizará o cumprimento das leis e demais normas de trabalho, designadamente através de uma inspecção de trabalho."

Tem a palavra a Sra. Deputada Odete Santos.

A Sra. Odete Santos (PCP): - Sr. Presidente, em relação ao n.° 3 proposto pelo PCP, devo dizer que esta proposta tem em vista consagrar aqui iguais direitos para os trabalhadores, independentemente do vínculo. Na verdade, a prática tem-nos dito que não tem sido defendido em legislação ordinária que, por exemplo, os trabalhadores contratados a prazo tenham os mesmos direitos que os trabalhadores efectivos. E citaria como exemplo o caso das férias dos trabalhadores contratados a prazo, caso em que chegou até a haver um despacho do Ministério do Trabalho dizendo que estes trabalhadores poderiam receber as férias em dinheiro, mas não gozá-las, o que implicaria que, se um trabalhador estivesse um ano inteiro, por dois períodos de seis meses, ao serviço de uma empresa, nunca gozaria férias, e, por exemplo, o caso da promoção em categorias profissionais, relativamente ao qual há também quem entenda - e já assim se entendeu - que um trabalhador contratado a prazo não tem direito à promoção automática para uma nova categoria profissional, como acontece com os trabalhadores efectivos.

Assim, este n.° 3 destina-se a garantir constitucionalmente a igualdade de direitos dos trabalhadores, seja qual for o seu vínculo.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, existe uma outra proposta, apresentada pelo PCP, relativa ao n.° 4. Trata-se da proposta de aditamento de um novo número e o seu conteúdo e alcance resulta meridianamente e de forma bastante clara da própria redacção do preceito. Trata-se de explicitar, afinal, alguma coisa que decorre do próprio conteúdo da Constituição nas suas diversas vertentes, e não apenas na estrita dimensão da constituição laborai. É que não pode conceber-se que a organização e funcionamento da empresa deixe de respeitar o facto de o trabalhador ser trabalhado.- e de, como tal, ter um vínculo determinado, o que implica que este exerça o seu trabalho em condições de subordinação. Essa subordinação exerce-se e funciona dentro dos limites do contrato de trabalho, mas não transforma o trabalhador em entidade subordinada à entidade empregadora, em qualquer dimensão que não aquela que estritamente decorre do mesmo contrato de trabalho. O trabalhador, pelo facto de o ser, não deixa de ser cidadão e a circunstância de se integrar no universo empresarial não exerce sobre ele um efeito castrante, não o amputa do exercício dos seus direitos, exercício esse que, no entanto, nós aqui procurámos qualificar, tratando-se, naturalmente, do "normal exercício" dos direitos fundamentais.

Creio tratar-se de dar aqui da empresa uma noção que corresponde àquilo que, em termos de modernidade; é uma reclamação inultrapassável. A empresa há-de ser espaço de liberdade e de liberdades, há-de realizar as suas finalidades produtivas sem exercer efeitos amputativos nos seus trabalhadores, além de ser um espaço de democracia na dimensão estritamente laborai e um espaço em que o trabalhador tem direitos fundamentais e garantias desses direitos, incluindo os de acção e de organização colectiva. Há-de ser, também, um espaço em que a entrada do trabalhador não significa um corte com as outras dimensões da sua vivência, designadamente as democráticas, o que implica, naturalmente, um conjunto de decorrências de carácter positivo e negativo. Isto é, o trabalhador tem o direito a não ser incomodado ou a não ser tolhido por razões de opção sua, qualquer que seja a dimensão e a esfera em que essa opção se situa e, por outro lado, tem diversos direitos positivos.

É isso que, no fundo, se pretende corporizar através desta explicitacão com a qual a Constituição ganha um acento ou uma ênfase, embora a margem de inovação não seja total, como se depreende daquilo que acabei de dizer.

Aproveitaria, ainda, para fazer sumariamente a apresentação do n.° 5, dizendo que aí se trata de colocar o acento tónico numa preocupação que nos parece fulcral neste momento face à experiência de tantos e tantos anos de aplicação - e infelizmente também de desaplicação - dos normativos constitucionais nesta esfera. Visa-se aqui sublinhar fortemente a importância da efectivação prática dos direitos dos trabalhadores. Sabemos todos que, sendo vastas as incumbências do Estado neste domínio e sendo, precisamente, formulados, em muitos casos, os direitos dos trabalhadores como direitos fundamentais com todas as decorrências em termos de tutela constitucional, há, no conjunto dos elementos relevantes, em termos de ordem jurídica, debilidades manifestas das quais decorre a ineficácia prática e a inefectividade prática de muitos e muitos direitos dos trabalhadores.

Múltiplos são os domínios em que este fenómeno patológico se verifica. Dispenso-me, neste momento e nestas circunstâncias, de os enumerar a todos. Apreciámos, há pouco, um afloramento patológico parti-

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cularmente sensível e flagelante neste momento, qual seja o do trabalho infantil, mas muitos são, no entanto, os outros afloramentos patológicos de ineficácia ou de falta de tutela prática de direitos constitucionalmente e até legalmente previstos.

A proposta do PCP não visa esgotar os domínios em que a incumbência do Estado deve efectivar-se. Limita-se a salientar, como domínio particularmente importante, que o Estado deve organizar devidamente as estruturas da administração, por forma a assegurar a sua eficácia. Trata-se aqui de dar corporização, em matéria de "administração do trabalho" - assim chamada correntemente - a uma obrigação constitucional, por força das normas aplicáveis à Administração Pública em geral, na parte correspondente da Constituição da República. Enfatiza-se, também, a importância do princípio da participação dos interessados, sendo certo que ela tem aqui plena e perfeita justificação e sendo muito importante que as estruturas da Administração Pública relacionadas com as questões laborais tenham uma atitude não hostil, mas, pelo contrário, participada ou de abertura à participação dos trabalhadores.

As fórmulas que daqui decorrem poderão ser as mais diversas e não se fecha, de forma alguma, qualquer dos caminhos da participação possível. Essa filosofia participativa é plenamente constitucional, é um dos domínios em que a dimensão democrático-participativa da Constituição se pode exprimir de maneira mais clara e também mais útil e a proposta do PCP não visa mais nada do que estabelecer uma cláusula geral nesta matéria.

A segunda componente que traduz uma segunda preocupação é a relativa à inspecção do trabalho. E, se bem que a nossa proposta se aproxime da do PRD, parece-nos ser mais sistematizada, uma vez que procura recobrir os três domínios em que a questão da garantia da efectividade prática se coloca. Primeiro, o domínio da Administração, depois, o domínio do controle da mesma pela própria Administração e, finalmente, o controle da Administração pelos tribunais com a sua específica gama de competências e poderes próprios. A necessidade de uma cláusula deste tipo resulta de todo o quadro que os Srs. Deputados conhecem, e o facto de se consagrar aqui a existência de uma inspecção do trabalho como tal traduz-se no enriquecimento do universo conceptual e até terminológico da Constituição, correspondendo a uma preocupação de controle interno da Administração pela Administração, com garantias de eficácia e de independência relativa.

Por outro lado, alude-se aqui à necessidade da existência de um sistema de sanções pela violação das leis do trabalho e das convenções colectivas de trabalho. Não especificámos - nem o pretendemos fazer - os tipos de sanções, nem quisemos qualificar ou sobrequalificar o sistema previsto. Esse sistema aparece puramente qualificado como "apropriado", adjectivo cujas conotações não são, no entanto, tão imprecisas que este não mereça a sua própria inserção no texto constitucional. Tem algum valor conformador e foi nesse valor conformador que pensámos quando propusemos esta redacção. Estamos, obviamente, disponíveis para considerar outras formulações que permitam exprimir melhor e mais correctamente o nosso desiderato de que a Constituição não seja silenciosa quanto ao sancionamento das condutas violadoras das leis e das convenções colectivas de trabalho como fonte do direito, com o estatuto e a implicação que todos conhecemos.

Por último, alude-se à justiça do trabalho, cuja importância dispensa considerações adicionais. Sabemos da crise profunda que a assola e não se trata aqui de encontrar a alavanca de Arquimedes para a sua resolução, mas, tão-só, de procurar sublinhar a importância que os processos judiciais têm para dirimir conflitos (ainda que não tenhamos da resolução dos conflitos uma visão puramente jurisdicionalizada e que o nosso projecto de revisão constitucional, na sede própria, isto é, no título respeitante aos tribunais, adiante varias propostas tendentes a patrocinar e a impulsionar meios informais de composição de conflitos). Esses meios podem ter, naturalmente, vantagens de informalidade, de presteza e de mútua satisfação para ambas as partes, que é o objectivo supremo de qualquer clausulado desse tipo, na nossa óptica.

Neste caso, a cláusula que apresentamos procura qualificar as características do processo judicial do trabalho, sublinhando que estas devem ser a celeridade, a simplicidade e, no plano teleológico, a preocupação de promover a igualdade real entre as partes, problema fulcral do direito de trabalho e também do processo de trabalho em que a obtenção da igualdade das partes é um dificílimo objectivo, mas, em nossa opinião, atingível e nobre - no sentido que o Sr. Deputado Costa Andrade gostaria de o utilizar e o utiliza frequentemente. Estando em condições de considerar outras sugestões, outras redacções e outros aspectos, consideramos particularmente importante que seja encarada com alguma simpatia a possibilidade de enriquecimento da Constituição nesta esfera.

Tem a palavra a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Sr. Presidente, todas as propostas de aditamento do PCP exigem, da parte do PSD, em confronto com a sua proposta de não alteração, ou seja, com o facto de não ter dito mais nada sobre o artigo 60.°, um conjunto de considerações que, na minha opinião, fundamentarão melhor a nossa posição quanto a essas mesmas propostas de aditamento. A matéria sobre que versa o artigo 60.° integra-se já num novo capítulo da Constituição, que, ainda que integrando também todo o grande conjunto dos direitos fundamentais, se destaca, de certo modo, das regras de jogo que respeitam aos direitos, liberdades e garantias. De facto, aqui, as posições jurídicas subjectivas têm uma estrutura diferente e as normas têm um sentido perceptivo diferente, ficando os próprios destinatários dessas normas imbuídos de deveres de teor diferente. Onde, nos direitos, liberdades e garantias, nos deparávamos com verdadeiras obrigações do Estado, normalmente de abstenção, contrapostas a direitos dos cidadãos, no sentido alemão do recht, encontramo-nos, neste momento, com um conjunto de direitos fundamentais em que, de um lado temos como sujeito passivo o Estado, ao qual já não são cometidas obrigações no sentido jurídico estrito do termo, mas ao qual são impostas tarefas - a ideia da auftràge - e a essas tarefas contrapõe-se, da parte dos cidadãos, uma posição jurídica activa traduzida, já não num direito subjectivo realizável coactivamente, mas numa pretensão.

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Tendo em conta esta natureza distinta dos direitos económicos, sociais e culturais, nos quais se integra todo o conteúdo do artigo 60.°, é de indagar até que ponto o acrescentamento dos meios pelos quais o Estado tem de cumprir os desideratos que aí se inserem deve ser acrescentado ou desenvolvido. Entendemos que, dada a natureza destes direitos, isto é, dado o facto de eles imporem ao Estado já não uma obrigação em sentido estrito, mas uma atitude positiva que se caracteriza como tarefa, deve haver aqui um enaltecimento mais dos fins e das metas do que dos meios. Isto é, na medida em que o Estado aqui tem um dever de optimizar todas as condições que potenciem a realização máxima possível destes direitos - que não é, como sabemos, directamente sindicável de modo estrito -, digamos que o acrescentamento da indicação de meios é uma forma de limitar essas possibilidades de o Estado optimizar os mesmos meios, no sentido de atingir os fins que, esses sim, são, de facto, prescritos constitucionalmente. Entendemos, portanto, que o que está aqui em causa é, de facto, um conjunto de metas que o PSD entende deverem manter-se com a mesma formulação do actuai texto da Constituição e entendemos também - agora passando a uma forma mais analítica da minha intervenção - que mesmo alguns acrescentos encontram já consagração a vários níveis, quer da Constituição, quer dos próprios princípios inalteráveis da teoria geral do direito, como também o n.° 4 quando se refere ao funcionamento da empresa, o que não é mais do que o apontar para um círculo de protecção institucional do trabalho a nível da empresa. Parece também haver já consagrado essa imposição a alínea b) do n.° 1 do artigo 60.°, tal como está.

Para além disso, o n.° 5 vem, no fundo, acrescentar que é já evidente, porque é óbvio, que as imposições feitas ao Estado em matéria de actuação positiva impõem, obviamente, uma conformação da Administração no sentido de uma certa eficácia na realização destes direitos.

O caso do processo judicial de trabalho está já assegurado, independentemente de o estar já neste conjunto, na alínea c), porque outros preceitos constitucionais a outros níveis do direito asseguram um processo judicial do trabalho em matéria de questões do trabalho.

Já o PSD tem algumas dúvidas, não sobre o que disse a Sra. Deputada Odete Santos, mas acerca da hipótese de podermos atender aos argumentos dela no que respeita ao n.° 3 do referido artigo 60.° Parece que este número tem algo de mais novo do que o que está já dito no artigo 60.° Nesse sentido, o PSD afirma que deverá considerar o conteúdo do mesmo n.° 3.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sra. Deputada Odete Santos.

A Sra. Odete Santos (PCP): - Sr. Presidente, não quero exprimir-me em relação ao n.° 3 do artigo 60.°, pois parece que mereceu concordância, mas sim quanto à questão do processo judicial do trabalho.

Suponho, entretanto, ter entendido que a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves considera que o processo judicial do trabalho, com as características que propomos, já existe, que deve ser um processo judicial diferente do cível pelas características especiais das partes intervenientes nessa lide.

Assim, o pedido de esclarecimento que lhe quero formular é o seguinte: V. Exa. considera que o processo judicial do trabalho deve ter estas características que nós exarámos? De facto, não me parece que isso decorra da Constituição tão claramente, como decorreria da alínea c) do n.° 3 do artigo 60.°, embora possamos conjugar outras disposições legais. Contudo, com isso ficaria claro que este processo judicial de trabalho tem de ser diferente de todos os outros.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Sra. Deputada Odete Santos, não estou de acordo com o facto de V. Exa. dizer que tenha de ser um processo diferente. Porém, já concordo consigo quando diz que o processo de trabalho tem de ser célere e simples. Penso que não deve haver um processo de trabalho com uma natureza privilegiada em relação aos outros processos e às outras questões de justiça. Devem, pois, ter uma dimensão idêntica.

Portanto, o que é preciso é criar uma justiça célere a todos os níveis, e não privilegiar quer os processos de trabalho, quer quaisquer outros. Aliás, isto vem na linha da posição defenida pelo PSD quando nos referimos a uma outra proposta de alteração, apresentada pelo PCP, sobre a celeridade de processos em matéria de direitos fundamentais. De facto, há a necessidade de criar condições quer a nível do direito, quer a nível institucional, para que a justiça seja célere, mas não deve existir uma espécie de criação prioritária da tutela de certos direitos sobre os outros. E é nesse sentido que julgamos que não será necessário consagrar isso em sede constitucional, mas sim fazer incluir e interpretar toda a matéria de direitos relativos ao trabalho com uma problemática eivada de dignidade, mas não de mais dignidade do que todos os outros direitos.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Numa primeira apreciação destas propostas da autoria do PCP, iria, antes de emitir propriamente uma opinião, suscitar algumas questões.

Em relação ao n.° 3 do artigo 60.°, ao ouvir a Sra. Deputada Odete Santos, fica-se com a ideia de que aquilo que ela disse acerca da razão de ser desse n.° 3 faria realmente sentido. Contudo, a pergunta que me parece que se deve colocar é se o PCP, na formulação da sua proposta de aditamento, não terá ido ultra vires para além das forças que, a si próprio, se pretendia responder ou contemplar. A proposta de aditamento em causa tem o seguinte teor: "A lei garante os direitos dos trabalhadores independentemente da natureza e duração do respectivo vínculo." Esta estatuição leva-me a perguntar se, por exemplo, o direito à reforma é ou não um direito dependente da natureza do vínculo. Não será consentível a existência de discriminações num direito fundamental dos trabalhadores, como o direito à reforma, em função da natureza do vínculo

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que liga o trabalhador a uma unidade empresarial, desde logo na função pública mas também no sector privado? Não será que esta formulação, porque é demasiado ampla, ilegítima destrinças que se podem fazer ao nível da legislação ordinária - e que me parece que a esse nível ninguém as contesta?

A segunda questão respeita à proposta de aditamento de um novo n.° 4 do artigo 60.°, que tem a seguinte redacção: "A organização e funcionamento da empresa deve respeitar e em caso algum pode impedir o normal exercício dos direitos fundamentais." Penso que sempre se deverá entender que esta norma já está contida na Constituição e decorre do conjunto das normas referentes a esta matéria. Porém, pergunto se não será de reconhecer às questões que têm a ver com a organização da empresa uma relevância de assento constitucional, que elas próprias não justificam, ou que, a utilizarmos este critério, teríamos de ser mais amplos e abrangentes e considerar outros aspectos não só das empresas, mas também da própria Administração Pública. Aliás, nos serviços públicos também se deve garantir o exercício dos direitos fundamentais dos trabalhadores. Por que é que a norma, proposta em aditamento, só prevê a noção restrita de empresa? De facto, também há trabalhadores fora da empresa, ou seja, nos serviços públicos. Portanto, não sei se não estaremos nesta sede perante um caso que o então deputado Vital Moreira em 1982 designaria como "benfeitoria sumptuária".

Quanto à proposta de aditamento de um novo n.° 5 ao artigo 60.°, devo dizer que, em relação à alínea a), já não se trata de uma benfeitoria sumptuária, mas antes de uma benfeitoria verdadeiramente luxuriante, porque, embora seja incumbência do Estado assegurar a efectividade dos direitos dos trabalhadores, organizando as estruturas competentes da Administração Pública de forma eficaz com a participação dos interessados, tal incumbência prefigura um objectivo que, salvo o devido respeito, não me parece restringir-se ao campo dos direitos dos trabalhadores. É, de facto, um objectivo geral do Estado, que diz respeito à Administração Pública no seu conjunto, quer seja para efectivar direitos dos trabalhadores, quer seja para realizar direitos dos cidadãos em geral. Isso já está, aliás, contemplado no artigo 268.° da Constituição e que, no meu entendimento, pode ainda ser ampliado na sede própria.

Quanto à alínea b) do n.° 5 do artigo 60.°, na redacção dada pela proposta de aditamento agora em discussão, não sei se não estaremos a ir longe de mais na constitucionalização de um serviço da Administração Pública, como seja a Inspecção do Trabalho. Numa Constituição onde, até este momento, os tribunais administrativos, por exemplo, não são instâncias jurisdicionais com consagração constitucional, esta consagração constitucional da Inspecção do Trabalho parece-me ser um pouco excessiva. Assim, sempre se deverá naturalmente entender que o Estado tem vários instrumentos de inspecção no exercício da sua actividade e da conformidade da actuação dos particulares em relação à lei, sejam eles empresários e trabalhadores, sejam eles cidadãos tomados no seu conjunto. Portanto, não sei se não será ir longe de mais constitucionalizar um serviço interno de um ministério da República.

Quanto à alínea c) do n.° 5 do artigo 60.°, constante da referida proposta, não vou reeditar nesta sede a discussão que já tivemos sobre o significado da pormenorização, a propósito de cada tipo de processo judicial, das características desse mesmo processo. Creio que já trocámos impressões com suficiente detalhe sobre essa matéria, quando o PCP propunha a consagração de um processo judicial especial para a defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos. Na altura, cometi a ignomínia de acusar o PCP de não ter feito outro tanto para a defesa dos direitos dos trabalhadores. Fui repelido a toda a brida com esta alínea c) do n.° 5 do artigo 60.° e, naturalmente, dou por reproduzidas sobre tal alínea as considerações que então expendi acerca da proposta do PCP da criação de um processo especial para efectivação dos direitos fundamentais dos cidadãos.

Assim, a título introdutório, eram estas as observações que me inspirava esta proposta de alteração do PCP. Nós, por nós, em relação ao artigo 60.°, que é um preceito de folgo, estamos contentes com a formulação que ele tem. Julgamos positivo que ninguém apresente propostas no sentido restritivo, mas aguardamos os esclarecimentos dos Srs. Deputados do PCP para o PS formular uma opinião final sobre as propostas de aditamento que apresentaram.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Pacheco Pereira.

O Sr. Pacheco Pereira (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Não tive oportunidade de assistir à parte inicial da discussão. Mas gostaria de fazer uma pequena observação de carácter político geral, em particular sobre a proposta de aditamento de um novo n.° 5 do artigo 60.°, mais concretamente quanto à sua alínea a), apresentada pelo PCP. Esta proposta de aditamento é, aliás, reminiscente de outras propostas que foram apresentadas em seu devido tempo. Lembro-me, em particular, de algumas apresentadas no primeiro congresso da Intersindical, ocorrido, salvo erro, em 1975. Tais propostas representam, do ponto de vista político, uma forma de corporativismo de Estado que, levada às suas últimas consequências, poderia colocar em causa a independência do movimento sindical.

De facto, quando se refere, no corpo e alínea a) do n.° 5 do artigo 60.°, ora em discussão, que "incumbe ao Estado assegurar a efectividade prática dos direitos dos trabalhadores, nomeadamente [...] organizando as estruturas competentes da Administração Pública de forma eficaz, com a participação dos interessados", abre-se um precedente que é o de permitir a participação das estruturas de trabalhadores e do movimento sindical no próprio aparelho do Estado, que tradicionalmente sempre esteve mais associado a regimes de tipo corporativo do que a democracias ocidentais, nas quais há uma independência real entre o movimento sindical e o Estado. Evidentemente que a forma como se faria esta organização das estruturas dependeria da conflitualidade política e social. É muito mais uma oferta para o futuro do que uma análise sobre a realidade do presente. Em termos políticos, propostas deste género têm um nome que gostaria que ficasse registado: são, efectivamente, propostas corporativas que implicam uma influência das estruturas do movimento sindical no âmbito da estrutura do Estado, muito para além do que é legítimo em função da interdependência dos dois tipos de instituições.

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O Sr. Presidente: - Algum dos Srs. Deputados do PS deseja usar da palavra sobre a mesma matéria?

Pausa.

Visto não haver pedidos de palavra para esse feito, daria a palavra à Sra. Deputada Odete Santos.

A Sra. Odete Santos (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Vou exprimir somente duas breves notas.

Em primeiro lugar, desejo dizer ao Sr. Deputado António Vitorino que creio que os seus receios em relação ao novo n.° 3 do artigo 60.°, proposto pelo PCP, são, de facto, infundados, na medida em que referimos até a natureza e a duração do respectivo vínculo e daí decorrerá que haverá sempre, conforme essas características, estatutos diferenciados. E os casos que referi verificam-se na realidade, podendo até citar-lhe outros, como sejam os respeitantes à legislação sobre acidentes de trabalho, que é necessário reformular, porque há trabalhadores que desempenham tarefas ocasionais que, segundo esse regime legal, em muitos casos nem sequer têm direito a receber a pensão por acidente de trabalho.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Encarnação.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras iniciais do orador.)... ou por necessidade de garantia constitucional?

A Sra. Odete Santos (PCP): - Sr. Deputado Carlos Encarnação, penso que é necessário garantir constitucionalmente, na medida em que isso ficará então claro. De facto, isso hoje não é transparente, uma vez que há muitos trabalhadores que não têm qualquer protecção nos casos de acidentes de trabalho. Há até trabalhadores que não têm direito à Segurança Social, e a Administração Publica nem sequer actua nesses casos porque refere que não pode actuar, embora se trate realmente de trabalhadores.

Portanto, parece-nos que o n.° 3 do artigo 60.°, a aditar, quer significar é tão-só aquilo que eu disse e nada mais do que isso.

Porém, haverá estatutos diferenciados, pois é evidente que, se um trabalhador contratado a prazo, e isto se se justificar que esteja sob o regime laboral, for, nos termos da lei, confrontado em determinada altura com a denúncia do contrato, terá de deixar o seu posto de trabalho. Repito, há estatutos diferentes, mas também existem direitos que levam à discriminação de trabalhadores só por causa do seu vínculo.

No que concerne à intervenção produzida pela Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves sobre o processo judicial do trabalho, devo dizer que já decorria de preceitos constitucionais, como, por exemplo, o artigo 13.°, que ele tem de ser um processo especial revestido de garantias para colocar as partes em igualdade. De facto, tenho vindo lamentavelmente a ouvir no Plenário que em matéria de contrato de trabalho rege a liberdade das partes. Acontece que este é um conceito que juristas, mesmo a nível europeu, consideram ultrapassadíssimo, pois no contrato de trabalho as partes não estão em igualdade, mas sim em desigualdade. E esta pende contra o trabalhador. Por isso, é necessário que o Estado actue nesse caso garantindo a igualdade, inserindo normas positivas para assegurar a igualdade do trabalhador em relação à entidade patronal.

Deste modo, dizer que eles são iguais é, na minha opinião, estar a defraudar tudo o que existe e conhecemos, porque toda a gente sabe que uma entidade patronal pode encontrar testemunhas entre os seus trabalhadores contra um outro que despediu à vontade. Pode encontrar pessoas que vão dizer no tribunal que não é verdade o que o trabalhador argumenta, e este já não tem essa facilidade.

Penso que continuar a defender que as partes já são iguais, mesmo em matéria de processo judicial, é estar a fugir à realidade e a dizer uma coisa que toda a gente sabe que não é assim; nomeadamente, as pessoas que andam pelos tribunais a defender estes casos e até advogados das entidades patronais têm consciência disso. E é por isso que defendemos a inscrição deste princípio na alínea c) do n.° 5 do artigo 60.° Ele parece-nos inteiramente justificado, pois o actual Código de Processo do Trabalho não é suficiente para garantir esta

O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves.

A Sr." Maria da Assunção Esteves (PSD): - De facto, Sra. Deputada Odete Santos, a relação jurídica de trabalho tem, de um lado e de outro, aspectos diferentes. Portanto, as partes não têm um estatuto idêntico - e isto dada a estrutura e a especificidade da própria relação em causa. Contudo, o problema da igualdade das partes num processo judicial é já uma questão diferente. E relativamente a esse aspecto que suscitou de a entidade patronal não estar, mesmo no processo judicial, numa posição de igualdade, leva-me a perguntar-lhe o seguinte: em que é que a celeridade e a simplicidade do processo poderiam impedir a entidade patronal, no exemplo oferecido por V. Exa., de poder arranjar testemunhas com a facilidade que refere? De facto, penso que a celeridade e a simplicidade processuais não interferem numa diferenciação real das partes no quadro da relação jurídica laborai. É uma questão formal de processo.

A Sra. Odete Santos (PCP): - Sra. Deputada, é óbvio que na minha intervenção não toquei nessa primeira parte da alínea c) do n.° 5 do artigo 60.° Referi-me, antes, à questão da igualdade real entre as partes porque me pareceu que V. Exa. afirmou que o processo dó trabalho não devia ser diferente do cível. Porém, posso referir-me à questão da celeridade e simplicidade.

Na verdade, a justiça do trabalho, mais do que qualquer outra, tem de ser célere porque, em muitos casos, existe o próprio direito à subsistência material de todos os dias por parte do trabalhador. Acontece, então, que há acções que se arrastam no tempo porque um dado questionário não é feito pelo juiz por força de ele estar sobrecarregado de trabalho. Daí que um questionário esteja dois ou três anos para ser elaborado. Isto leva-me a dizer que em processo de trabalho - e porque fazemos muitas acções sem questionário - não há razão nenhuma para que continuemos a exigir a exis-

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tência dessa peça precessual. Esta é uma maneira de tornar mais célere e simples o processo de trabalho, o que não tem nada a ver com outra questão que abordei, ou seja, a da igualdade real entre as partes.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, gostaria de fazer algumas observações na sequência das intervenções que entenderam formular quanto à proposta apresentada pelo PCP.

Creio que neste domínio, tal como em todos os demais, é justo colocar a exigência que o Sr. Deputado António Vitorino aqui deixou: prove-se a necessidade e a bondade das propostas apresentadas. Este é o teste a que todos temos naturalmente que nos submeter.

Pela nossa parte, procurámos aduzir argumentos tendentes a provar a utilidade de cada proposta, mas é evidente que demonstrar a mera utilidade não é suficiente, tem de se demonstrar a boa utilidade ou até mesmo a "indispensável utilidade" das propostas apresentadas. Refiro a utilidade em sede de texto constitucional, a qual é qualificada e especialmente exigente.

Claro que a Constituição pode conter tudo, mas também é evidente que não deve ser assim. No caso concreto, pretenderíamos que ela contivesse mais do que contém. Se esse mais há-de ser muito mais ou algo mais, eis o que está por dirimir. Pareceu-me que, em relação à proposta atinente ao n.° 3 do artigo 60.°, haveria uma relativa simpatia, da parte dos diversos grupos parlamentares, para com uma preocupação expressa pelo Sr. Deputado António Vitorino no sentido de que o PCP não fosse ultra vires.

Creio que da explicação dada pela minha camarada Odete Santos resulta que os termos da nossa proposta não excluem a diferenciação de funções, e as outras diferenciações que podem acarretar as mais diversas diferenças específicas na situação concreta de trabalhadores em todos os domínios em que a relação salarial se decompõe.

Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, o problema não é bem esse. A questão é a de saber se com esta formulação não fica ilegitimada a possibilidade de excluir alguns direitos dos trabalhadores em função da natureza do vínculo ou da duração do contrato. É o problema dos descontos para a reforma dos contratatos a prazo ou do subsídio de almoço.

O Sr. Presidente: - Compreendo perfeitamente a observação que fez, Sr. Deputado. Devo dizer que com esta redacção do n.° 3 do artigo 60.° não se visa a exclusão que referiu, e creio que do seu teor, adequadamente interpretado - e, para isso, o contributo deste debate é extremamente positivo -, não se extrai que não sejam possíveis diversas variantes de regulamentação das relações de trabalho, com tudo o que isso implique. Ou seja, relativamente à retribuição ou a certo tipo de direitos, incluindo os da Segurança Social, as diferenciações são possíveis.

Aquilo que se visa estabelecer é uma margem comum de garantia, sobretudo pela negativa, isto é, que não haja gente sem garantia, que não haja verdadeiros gafados das relações laborais, como hoje ocorre. Por outras palavras, existem hoje verdadeiros sujeitos sem direitos ou deles amputados. Tem que haver um mínimo, e é o direito a esse mínimo (sem prejuízo do máximo, e dos mais e do diferente, do aliud) que se pretende aqui estabelecer. Trata-se aqui disto e apenas disto.

Neste âmbito, se a formulação pode ser burilada no sentido de que isto, e apenas isto, flua do preceito, então excelente, estamos completamente disponíveis para tal. Mas essa base comum, que é importante para que não haja excluídos, deve ser, em nosso entender, assegurada. De resto, o preceito reza que "a lei garante", o que não aponta para um sistema unicitário ou para um sistema homogéneo no sentido de uniformizador.

No entanto, como todos sabemos, a diferença entre homens existe mas trata-se de uma diferença entre homens, não da diferença entre escravos e homens. É esse aspecto que pretende situar rigorosamente esta terminologia com as suas implicações conceptuais.

Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Presidente, o referido n.° 3 da proposta do PCP é precisamente aquele que nos suscita algumas dúvidas e nos obriga, honestamente, a reflectir. Em relação aos outros números, e como já referiu a minha colega Maria da Assunção Esteves, a nossa predisposição é no sentido de não entender desnecessárias as propostas apresentadas, as quais, todavia, são inconvenientes nalguns aspectos - e algumas delas até particularmente inconvenientes, como anotou o meu colega Pacheco Pereira.

Em relação ao n.° 3, que é, na nossa óptica, aquele que mais vale a pena discutir, e a ter em conta o que o Sr. Deputado acaba de enunciar, não considera V. Exa. que a sua lógica de argumentação levaria a substituir a actual redacção do citado número, ou seja, a expressão "independentemente da natureza e duração do respectivo vínculo", por "sem prejuízo da especificidade da natureza e duração do respectivo vínculo"?

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Costa Andrade, consideramos naturalmente a sugestão de redacção que está a fazer...

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Assim a lógica seria diferente. Ficaria estabelecida a garantia dos direitos de todos os trabalhadores, mas ressalvada a especificidade da natureza e duração do vínculo. Como está formulado, o texto implica que a planificação passa por cima da especificidade que resulta da natureza e duração do respectivo vínculo; se o texto estivesse redigido no sentido inverso - e, honestamente, estou ainda a reflectir sobre isso -, talvez se aplanassem algumas dificuldades.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Costa Andrade, a sua preocupação é perceptível e pela nossa parte vamos considerá-la com a atenção adequada.

Creio que a nossa preocupação não deveria ser - e procuraremos fazer o possível para que isso não aconteça - objecto de qualquer inversão do actual sentido da lei. Menos do que tudo pretenderíamos consagrar uma cláusula que exaltasse ou, como alguém aqui há pouco dizia, enaltecesse as diferenças decorrentes da natureza e da duração dos vínculos.

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Porque há uma pluralidade de vínculos, e ela pode existir desde que não contenda com a natureza e com os princípios decorrentes designadamente do artigo 53.° Aludo evidentemente às questões da segurança no emprego.

Diz o texto afinal: "O vínculo ou falta dele não pode conduzir à escravização ou para escravização dos trabalhadores." Longe de nós querer consagrar qualquer cláusula na qual se possa vislumbrar o enaltecimento da precarização do trabalho, ou a consagração de uma espécie de impulso para as diferenciações acintosas ou amputadoras de direitos. Por outras palavras, menos do que tudo pretenderíamos a constitucionalização de patamares ou de estatutos que envolvessem qualquer discriminação do género "todos os direitos para uns, nenhuns direitos para outros, e tudo isso é constitucional". Esse é o nosso limite, a nossa baliza, ou seja, esse é o objectivo que não queríamos que fosse atingido. Nos antípodas está a indiferenciação, que também não foi desejada.

O Sr. Deputado Costa Andrade e o PSD estão preocupados com a homogeneização e com a proclamação constitucional de uma uniformidade estatutária. Ora, isso está longe da nossa preocupação e não foi esse o nosso objectivo. Que se encontre uma formulação situada entre o antípoda um e o antípoda dois parecer-nos-ia adequado, calibrado e positivo no sentido exacto de garantir uma margem comum de direitos. Isto é inevitável sob pena de estarmos a estabelecer de um lado uma pletora de direitos e do outro lado uma inexistência de direitos.

Vamos, portanto, considerar as observações feitas, e muito positivo nos parecia que houvesse da parte dos diversos partidos alguma conjugação de esforços com vista a lograr-se uma redacção que acrescentasse à Constituição algo que consistiria, na nossa óptica, num significativo enriquecimento. Por outro lado, ela corresponderia à própria realidade social, à realidade do nosso universo laborai, tal e qual ela se desenha hoje (repito: não pretenderíamos que ele fosse configurado em termos de agravamento de diferenciações).

Quando às outras observações, gostaria apenas de não deixar sem alguma resposta uma questão que foi aqui abordada pelo Sr. Deputado António Vitorino e, também, em certa medida, pela Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves. É evidente da nossa parte a preocupação em relação aos meios, designadamente em estabelecer uma escala de meios e acentuar as responsabilidades do Estado em relação a alguns, para não dizer em todos os domínios que temos estado a abordar.

Obviamente que a Constituição está bem como está, e pela nossa parte não pretenderíamos diminuí-la. O que estamos aqui a debater é se há alguma margem de enriquecimento possível em algumas das vertentes em que a Constituição está bem.

A vertente relativa à efectivação de certos direitos através dos tribunais (e, portanto, no fundo um subaspecto da questão grande do acesso ao direito e aos tribunais, em matéria de direito do trabalho) é particularmente importante.

Assim, a pergunta que se coloca é se não será realmente relevante que encastremos aqui, que é a sede própria, um núcleo conformador do direito processual laborai, e até da organização judiciária do trabalho, com a preocupação de enunciar apenas grandes pilares - não mais do que isso -, correspondendo a ideias que não são património especial de nenhum partido. Quero significar que as ideias que estão expressas na alínea c) do n.° 5, proposto pelo PCP e relativo ao artigo 60.°, são susceptíveis de ser reclamadas pelos mais diversos quadrantes; nomeadamente a ideia de "celeridade do processo laborai", a ideia da "simplicidade", a ideia de "igualdade real" entre as partes são objectivos cujas formas de concretização podem ser muitas. Aqui a preocupação de pluralidade que o Sr. Deputado António Vitorino há pouco manifestava a propósito de uma outra questão tem pleno cabimento, e é caracterizada por uma plena possibilidade de execução.

Portanto, não estamos a apontar para um modelo único de direito do trabalho, mas, sim, para um enquadramento que permite diversos tipos de regimes processuais laborais, enformados naturalmente por grandes preocupações que nos parecem ser extremamente importantes e partilháveis.

Aliás, em relação a este aditamento, ou seja, a alínea c) do n.° 5, noto que o Sr. Deputado António Vitorino não utilizou qualquer argumento relacionado com a teoria das benfeitorias, e esta não a qualificou como voluptuária;

Esta realmente não é voluptuária, e até pode ser extremamente útil e necessária, e em nosso entender é-o mesmo. Neste sentido, ou a revisão constitucional consiste num processo em que é possível enriquecer a Constituição, ou, então, se ela é encarada como um processo puramente amputacional (que é a visão um tanto malthusiana do PSD), isso gera uma enormíssima dificuldade de discussão. Porque quem quer tudo tirar e nada acrescentar tem uma visão leonina dos processos de discussão, e é naturalmente isso que entendemos que não pode ser aceite.

Srs. Deputados, permitam-me uma última observação: as afirmações da Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves estão mais situadas dentro do campo do "já está" na Constituição: enalteçamos mais as metas que os meios (adoptar meios limita a possibilidade de ataque aos fins, etc). Esta é toda uma linha de argumentação que percebemos e à qual poderíamos chamar "a linha do bacalhau espiritual": pouco bacalhau e muita imaginação, ou seja, deixemos estar a Constituição como está, imaginemos que toda a gente a cumpre, e não nos preocupemos em enriquecê-la. Não é aceitável da nossa parte, mas é perceptível.

Mas há ainda uma terceira atitude possível - ela é um tanto pára-quedista, e imputo isso ao facto de o Sr. Deputado Pacheco Pereira não ter podido acompanhar os debates - que ele aqui nos trouxe.

É que apreciei devidamente o argumento do Sr. Deputado António Vitorino no sentido de que a alínea a) do referido n.° 5 proposto pelo PCP seria uma benfeitoria do reino do luxo. O Sr. Deputado António Vitorino teve ocasião de procurar fazer a demonstração do porquê da afirmação em causa, mas o Sr. Deputado Pacheco Pereira manifestamente perdeu essa demonstração porque ela lhe teria poupado seguramente o ter utilizado o argumento que utilizou, qual seja o de que incrustar na Constituição em relação a este ponto aquilo que o PCP propõe seria verdadeiramente uma reminiscência do primeiro congresso da Intersindical, cheiraria horrivelmente a propostas cooperativas restauradas e seria uma excrescência incompatível com o Estado de direito democrático tal

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e qual ele é. Ora, sucede que este Estado deve ser encarado tal e qual ele é realmente e não tal e qual é pintado. Tem a palavra o Sr. Deputado Pacheco Pereira.

O Sr. Pacheco Pereira (PSD): - Sr. Presidente, apenas pretendi chamar a atenção - e posso a partir da leitura dos preceitos que propõem acrescentar nesta matéria, não tendo tido, por isso, necessidade de estar presente quando da discussão anterior - para o facto de existir uma contradição patente nas propostas do PCP no que diz respeito ao mundo empresarial. A posição comunista neste campo é essencialmente de desresponsabilização das estruturas dos trabalhadores, sendo, portanto, conflitual e traduzindo-se, face ao Estado, numa atitude de colaboração que tem um nome em termos de ciência política: corporativismo. Apenas pretendi fazer a constatação da diferença existente entre os dois tipos de propostas apresentadas, chamando a atenção para o facto de o reforço da participação e do entrosamento das organizações dos trabalhadores enquanto tais, ou dos trabalhadores por via dessa representação, no aparelho do Estado ter sido sempre entendido como algo de perigoso, na medida em que pode conduzir a uma perda de independência das organizações sindicais e dos próprios trabalhadores, o que, aliás, é conhecido na discussão acerca dos financiamentos das centrais sindicais e relativamente a outras discussões do mesmo tipo. Chamei apenas a atenção para uma diferença de entendimento.

No que diz respeito ao mundo empresarial, as propostas do PCP param numa desresponsabilização em relação aos fins últimos das empresas e, portanto, são essencialmente de teor conflitual, isto é, pretendem exercer apenas um poder. No domínio do Estado, as referidas propostas sobre o mesmo tipo de matérias são do tipo colaborativo, e isso tem de facto um nome, que é "corporativismo". Foi apenas essa a observação que pretendi fazer.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Pacheco Pereira, o grande problema é que demonstrações desse tipo - visando qualificar as propostas de um partido - na realidade constitucional portuguesa qualificam o regime democrático tal e qual ele se apresenta.

É que o regime democrático-constitucional português só raramente é classificado como corporativista. De facto, conheço poucos autores capazes de o desenharem como tal. Haverá algumas sobrevivências corporativas aqui e ali, e muitas delas são da excelente responsabilidade do PSD ao longo destes anos todos, acarinhadas, acalentadas e mantidas ciosamente como quem mantém os leões no jardim zoológico.

No entanto, devo dizer que raramente tenho ouvido qualificar de cooperativa a questão da participação dos cidadãos na Administração Pública.

Na verdade, o que o Sr. Deputado António Vitorino procurou sublinhar, e foi nesse sentido e não no sentido da censura por uma ausência que não seria objectável nem objecto de qualquer reparo que eu disse o que disse, é que a proposta do PCP consiste na mera aplicação à realidade da administração laborai, a chamada administração do trabalho, que é uma coisa que V. Exa. sabe que existe. Na Praça de Londres não há um ministério das corporações embora lá esteja um ministro um bocado corporativo às vezes. Portanto, a nossa proposta apenas visa aplicar à administração do trabalho aquilo que é regra obrigatória para toda a Administração Pública.

É que V. Exa., quando chegar ao artigo 267.° da Constituição, vai arrepiar os cabelos porque vai chegar à conclusão de que a lei fundamental tem horrendas excrescências corporativas, as quais são absolutamente arrepiantes.

O Sr. Pacheco Pereira (PSD): - O todo e a parte não são a mesma coisa!

O Sr. Presidente: - Todos sabemos isso, mas sabemos também que a Administração Pública tem várias componentes e que na componente administração do trabalho ela deve ser participada. É o que bem reza o artigo 267.° no seu n.° 1, quando alude à participação dos interessados na gestão efectiva, isto é, a administração do trabalho não é imune a este princípio e ninguém vê nisso um resquício de corporativismo a título nenhum.

Nesse sentido há muitos resquícios de corporativismo. Por exemplo, as normas que prevêem a participação das organizações de trabalhadores na gestão do sistema unificado de segurança social são horrendamente "corporativas". As outras que prevêem participações em outras estruturas que dizem respeito à defesa dos direitos dos trabalhadores também são horrendamente "corporativistas".

Mas esse "corporativismo", que não é corporativismo nenhum, é muito positivo para as organizações de trabalhadores, e extremamente importante como componente da nossa democracia participada. Este é o conceito que verdadeiramente se deve utilizar, e não é por acaso que os adversários desse tipo de democracia vêem moinhos de vento e dragões onde não existem, ou seja, alertam para perigos que ninguém vê como forma de escamotearem a necessidade e a utilidade da intervenção das organizações de trabalhadores com plenos poderes ou com plenos direitos em estruturas que são fundamentais para a defesa dos seus interesses. Esta é uma démarche de maquilhagem ideológica não invulgar.

Portanto, gostaria de sublinhar estes aspectos, e, do mesmo passo, sublinhar que é muito interessante o debate acerca de onde é que vêm os perigos para a independência das organizações dos trabalhadores. De onde é que eles vêm, e sobretudo de onde é que não vêm.

Assim, vêm perigos para a independência dos trabalhadores de concepções de tipo colaboracionista, que colocam as organizações sindicais pela arreata do patronato, servindo as suas finalidades quer no universo microempresarial, quer em domínios mais gerais de funcionamento da economia, designadamente em estruturas que alguns gostariam que tivessem uma feição corporati vizante, e que não a têm no nosso direito. Ou, então, uma feição concertadora num sentido domesticador da intervenção dos trabalhadores e das suas organizações na vida económica, social e política do País.

Por outro lado, perigo para a independência das organizações dos trabalhadores vem também de actuações governamentais e do poder político que não respeitam a sua livre actuação e que procuram sujeitá-las a uma canga, denegando-lhes direitos, procurando-lhes criar dificuldades...

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O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Presidente, isso não é certamente connosco?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Isso sucede demasiadas vezes, infelizmente com quem está no Governo.

Quem está no Govêrno é naturalmente o PSD quem na Praça de Londres desencadeia diversas ingerências e diversas formas de colocação em questão de independência das organizações dos trabalhadores! E seguramente o partido do Govêrno é aquele que tem das organizações dos trabalhadores uma visão de que só são boas quando aplaudem, só são boas quando estão contra a greve geral, o que, como se sabe, não ocorreu recentemente de forma que alguém tivesse visto, embora o Primeiro-Ministro, em matéria de visão, se perturbe bastante com as greves gerais.

Em suma, Sr. Presidente, Srs. Deputados, aquilo que o PSD nesta matéria vê como perigoso parece-nos vantajoso porque chama-se participação democrática. Que cada um se posicione claramente face à questão da participação democrática pode apenas ser positivo em termos de transparência e de verdade dos debates políticos.

Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - Pretendia muito rapidamente dizer só duas coisas. A primeira é que, de facto, em relação à alínea c) do n.° 5, não a qualifiquei como uma benfeitoria, na medida em que a caracterização que fiz dos antecedentes desta proposta visavam caracterizá-la essencialmente como uma "feitoria", uma feitoria do PCP, claro está, que já tinha feito uma proposta anterior que nós tínhamos rebatido com os argumentos que nos pareceram justos e que escusei-me agora de reeditar, digamos assim. Portanto, não se trata de verdadeiramente uma benfeitoria, trata-se de uma verdadeira e própria feitoria. Quanto à questão do n.° 3...

O Sr. Presidente: - Mas V. Exa. não disse malfeitoria, se bem o ouvi. Portanto, é uma mera feitoria, se bem entendo o Sr. Deputado.

O Sr. António Vitorino (PS): - Não, não sou tão maniqueísta quanto isso - só existem boas e más feitorias - e também admito versões intermédias. Contudo, ainda alertava para o n.° 3. Não fiquei sinceramente convencido com os vossos argumentos porque, embora reconhecendo razão de ser às preocupações que lhes estão subjacentes, enfim, não é para tomar uma posição, mas deixava à vossa reflexão que a fórmula que aqui vem emprege suscita, pelo menos na sua interpretação, três dúvidas fundamentais.

A primeira é esta: a lei garante os direitos dos trabalhadores, independentemente da natureza e duração do vínculo. Questão n.° 1 (ou interpretação n.° 1): todos os direitos dos trabalhadores, sem excepção? Ou (interpretação n.° 2): a lei garante, para citar o que o Sr. Deputado José Magalhães disse, expressamente, um mínimo comum de direitos dos trabalhadores independentemente da natureza do vínculo para que se trate de uma destrinça entre homens e não entre homens e escravos. Mas a interpretação restritiva de um mínimo comum pressupõe a clarificação de quais, isto é, quais os tais mínimos direitos comuns dos trabalhadores que a lei garante sem possibilidade de restrição em função da natureza, do vínculo e da duração do trabalho? Terceira interpretação possível: a lei garante apenas os direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores, aqueles contidos nos artigos 53.° a 58.° da Constituição, independentemente da natureza do vínculo e da duração. É a terceira interpretação possível. Mas, na primeira e na terceira interpretações, na que diz que a lei garante todos os direitos e na que diz que a lei garante os direitos, liberdades e garantias, parece-me que, por exemplo, resulta ilegitimada por esse facto em sede constitucional toda e qualquer fórmula de trabalho precário, toda e qualquer forma de contratação a prazo. Não estou a dizer que sejamos contra isso; só estou a dizer que aparentemente, de acordo com a primeira e a terceira interpretações, esse será o desiderato da fórmula proposta pelo PCP.

O Sr. Presidente: - É precisamente o contrário, Sr. Deputado António Vitorino. É a norma relativa aos contratos a prazo, Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - Não vejo que seja o n.° 3 do artigo 54.° Talvez o n.° 2 do artigo 53.° Mas isso não altera a linha de rumo que estava a seguir. Nós não somos contra uma solução desse género. A questão é esta: saber se nesta interpretação cabe ou não a conclusão que acabei de tirar, ou seja, de que a lei não pode, em função da natureza do vínculo, restringir, em certos sectores, a prestação do trabalho a contratos a prazo. Não sei se ficou claro.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado António Vitorino, a nossa ideia não é a de fazer uma proscrição, mas a de estabelecer uma garantia contra a nulificação nessa área, nesse segmento que referiu por último. Isto é, não se pretende um impulso para a precarização, não se pretende a proscrição de certas formas de trabalho em que o vínculo não é aquele que consideramos mais estimável; pretende-se uma solução que equilibradamente estabeleça que, quando esse vínculo não seja o mais seguro, haja, ainda aí, a garantia aos trabalhadores desse elenco de direitos impostergável, na medida e pela forma que seja adequada à concreta situação.

O Sr. António Vitorino (PS): - Em relação a essa última questão, estou esclarecido quanto à interpretação. Não estou esclarecido quanto à primeira, que é a de saber qual a abrangência dos direitos dos trabalhadores que terão de ser sempre respeitados pela lei, independentemente da natureza e duração do respectivo vínculo. Porque esse tal mínimo comum tem de ter um critério de determinação, ou, se não tem critério de determinação constitucionalmente vinculado, ao legislador ordinário sempre será possível, com grande flexibilidade, dizer que o sistema actualmente existente, e que foi denunciado, com razão, pela Sra. Deputada Odete Santos, é compaginável mesmo com esta norma constitucional. Não sei se me fiz entender.

O Sr. Presidente: - Sr Deputado António Vitorino, creio que teremos interesse em prolongar, na medida do possível, nestas circunstâncias, o diálogo sobre esta matéria. Só posso observar-lhe que, por um lado, podem ser diferentes os períodos de férias, mas não deve

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suprimir-se, em relação a uma dada categoria de cidadãos, o direito a férias. O salário, seguramente, pode ser diferente e será sempre diferente - a retribuição é uma componente indesligável em qualquer das variantes -, mas não pode haver uma diferenciação tal que redunde numa situação de sobreimposição a uma determinada categoria de cidadãos em função do vínculo (idem aspas em relação às durações e a outros direitos de carácter social, designadamente o direito a ter segurança social, que é um direito absolutamente fundamental). Sr. Deputado Miguel Macedo: o direito já está na Constituição?! O direito já está na Constituição, mas a questão é que se estabeleça claramente que está na Constituição para todos, independentemente do vínculo. Para todos, independentemente do vínculo! Se o PSD está de acordo com essa ideia - V. Exa. está a afirmá-lo precisamente -, então que o explicite, que se explicite, este exacto conteúdo, para que não sobrem dúvidas. Como V. Exa. sabe, neste momento, essa situação não está acautelada, esse desiderato não está acautelado, e infelizmente há, no terreno do nosso mercado de trabalho, situações (de resto em proliferação, e aliás atentatórias fortemente contra a dignidade dos próprios trabalhadores) em que há denegação pura de diversos direitos. E isso é objecto de fenómenos de multiplicação e até mesmo de certo encorajamento, por vezes. Tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Macedo e Silva.

O Sr. Miguel Macedo e Silva (PSD): - Quero apenas salientar que essa é uma situação diferente e é um caso diferente daquilo que afirmei, que é a de que esses direitos fundamentais, que valem para os trabalhadores, já estão consagrados na Constituição. Qual é exactamente, e em termos práticos, em termos factuais, a efectivação ou a medida em que estão cumpridos esses direitos constitucionais é uma outra questão, que tem a ver, naturalmente, com a questão do ambiente social, do ambiente político, do ambiente económico que a cada momento se verifica e se pode constatar. O que não se pode - isso é que julgo ser perigoso - é vir dizer aqui que esses direitos não estão consagrados na Constituição, e que só através, porventura, da aprovação destas propostas do PCP é que eles adquiririam toda a sua dimensão, que, julgo, já está a ser vertida no texto constitucional. E era isto que queria salientar.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Miguel Macedo e Silva, V. Exa. considera que é ilegítimo constitucionalmente denegar o direito de férias a qualquer espécie de trabalhadores?

Pausa.

Tem a palavra a Sra. Deputada Odete Santos.

A Sra. Odete Santos (PCP): - Esta é uma das questões que para mim tem sido flagrante em relação aos contratados a prazo. É que há trabalhadores contratados a prazo que ficam três anos sem gozar férias. Em princípio, entendia que quinze dias antes do contrato terminar a entidade patronal devia conceder férias ao trabalhador. Mas saiu, como disse há pouco, um despacho do Ministério do Trabalho a dizer que não era assim, ou seja, que o patrão pode denunciar o contrato com oito dias de antecedência, pagando ao trabalhador quinze dias de férias e tornando depois a contratá-lo (ou o mesmo patrão ou outro). Seguidamente, o trabalhador é contratado por seis meses, recebendo mais quinze dias de férias e quinze de subsídio, e está nesta situação durante três anos sem gozar férias. Este é um caso flagrante em que é preciso que a Constituição consagre a igualdade. E isto não tem nada a ver com a natureza do vínculo.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Encarnação.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Mas foi exactamente aquilo que eu há pouco disse. É que me parece que o direito em geral está claramente consignado, por exemplo, na alínea d) do n.° 1. A questão que está a colocar é a da imprecisão da lei ordinária. Em relação à lei ordinária, é que penso que serão bem-vindas todas as sugestões de alteração, e aí haveria ocasião para introduzir todo esse tipo de alterações. Não aqui, onde penso não ser necessário fazê-las.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sra. Deputada Odete Santos.

A Sra. Odete Santos (PCP): - Isso não está aqui previsto. Porque, se um trabalhador está seis meses contratado, com oito dias de antecedência a entidade patronal denuncia o contrato, chega ao fim do contrato, paga-lhe as férias e torna a contratá-lo com um novo contrato. Onde é que está violado este direito ao repouso e aos lazeres pela entidade patronal? Se acabou o contrato, pagou-lhe, começou um novo contrato. Portanto, essa alínea não resolve este problema.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Macedo e Silva.

O Sr. Miguel Macedo e Silva (PSD): - As matérias que a Sra. Deputada Odete Santos aqui traz na discussão deste artigo são matérias importantes e preocupantes. Mas julgo, tal qual já referiu o Sr. Deputado Carlos Encarnação, que, de facto, em termos de consagração constitucional dos direitos, eles têm consagração, por exemplo, na alínea d) do n.° 1 do artigo 60.° Isso para mim é líquido e evidente. Não conheço o teor do despacho que a Sra. Deputada Odete Santos invoca. Julgo, no entanto, que essa matéria, ou a discussão pormenorizada e especificada dessa matéria, não colhe aqui como argumento para forçar a necessidade de consagrarmos uma proposta tal qual o Partido Comunista o faz, e muito menos, julgo eu, da forma como o faz, tal qual salientaram ha pouco quer o Sr. Deputado António Vitorino, quer o Sr. Deputado Costa Andrade, que puseram a nu, com grande evidência, a fragilidade do texto proposto pelo Partido Comunista para o n.° 3 do artigo 60.°

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, creio que nos aproximamos, então, da conclusão do debate sobre as propostas de alteração referentes ao artigo 60.° Creio que seria adequado não encerrar o debate sem nos pro-

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nunciarmos, ordenadamente, sobre a outra proposta existente, ou seja, a referente ao aditamento de uma alínea é) ao n.° 2 do artigo 60.°, proposta apresentada pelo PRD. Quanto ao n.° 3, o debate está consumido, ou foi realizado a propósito da proposta de aditamento do n.° 5, alínea b)t apresentada pelo PCP. Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - Nós não vemos grande vantagem nesta alínea e) do n.° 2 do artigo 60.°, porque aquilo que ela pretende fazer estender a todos os trabalhadores já está extensa e detalhadamente contido na Constituição. E o sentido da alínea e) do n.° 2 do artigo 60.° da Constituição é sublinhar o caso específico dos emigrantes; por isso existe uma alínea própria para esse efeito. Aqui ficaria diluído numa alínea mais geral, que seria um pouco tautológico em relação ao que já está contido no resto do texto da Constituição. Mas, enfim, sem prejuízo de podermos reponderar se o PRD tiver algum argumento secreto que depois nos possa vir a explanar aqui na Comissão.

Quanto ao n.° 3, apesar de tudo, há uma pequena diferença entre o do PRD e o do PCP, que é: a existência de uma "inspecção de trabalho" é diferente de "através da Inspecção do Trabalho". Há uma diferença substancial. Uma coisa é que deve haver uma inspecção de trabalho - é um conceito a que nós até podemos aderir em abstracto -, outra coisa é dizer "através da Inspecção do Trabalho". São coisas, apesar de tudo, distintas. Mas, enfim, o efeito útil já está discutido.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Macedo e Silva.

O Sr. Miguel Macedo e Silva (PSD): - Em relação às propostas do PRD, nomeadamente à proposta avançada para a alínea e) do n.° 2, tal qual referiu anteriormente o Sr. Deputado António Vitorino, nós também não vemos qualquer vantagem, nem prática nem outra, na inclusão desta alínea, porque, de facto, o que acontece hoje no texto da Constituição é que no n.° 1 do artigo 60.° estão determinados os direitos, nomeadamente quanto a benefícios sociais, e outros, para os trabalhadores em geral, e depois a alínea é) especifica-os em relação aos emigrantes. Penso que poderíamos mesmo perder, ou que o texto constitucional poderá, pela amálgama que faz numa única alínea destas duas situações, que julgo, apesar de tudo, serem diferentes, embora não diferentes em termos do respeito que ambas obviamente merecem a todos nós.

Em relação ao n.° 3 proposto pelo PRD, é bem verdade que esta proposta é diferente da do PCP, mas julgo também que não há aqui qualquer interesse prático na consagração de uma proposta deste género, porque está também já consagrado no texto constitucional a obrigatoriedade de o Estado fiscalizar, pela forma orgânica que entender melhor, as condições de prestação do trabalho. E julgo, portanto, que, se é uma inspecção de trabalho ou se é a Inspecção do Trabalho, é uma questão de somenos importância mas que, seguramente, não tem que ter consagração constitucional.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, sobre a proposta do PRD gostaria de dizer, quanto à primeira, que aguardaremos que o PRD a fundamente e, quanto à segunda, que realmente há uma diferença, que foi assinalada pelo Sr. Deputado António Vitorino, na redacção da proposta do PRD e na apresentada pelo PCP.

Devo dizer, aliás, que, pela nossa parte, com todo o gosto nos dispomos e aprestamos a reformular a nossa proposta por forma que o i maiúsculo passe a i minúsculo, a que o t maiúsculo passe a t minúsculo, o "do" passe a "de" e o "da" passe a "de uma", o que, como todos sabemos, terá o significado de aludir à existência de um mecanismo de fiscalização que não se identifica com uma específica corporização de um determinado momento histórico, mas que aponta para a existência, como procurei sublinhar verdadeiramente com um apoio literal insuficiente - como, sem perdão, o Sr. Deputado António Vitorino anotou - de uma estrutura de controle interno da Administração pela Administração, sob forma inspectiva. É isto que queremos. Não estamos minimamente apegados à formulação, mas estamos realmente apegados à ideia e parece-nos muito importante que, sob esta ou outra forma, a Constituição venha a incorporar alguma benfeitoria ou, pelo menos, uma "feitoria" de alguma utilidade nesta matéria que para os trabalhadores seria, seguramente, extremamente útil. Isto não dispensaria a administração de violar menos as leis do trabalho e não dispensaria a inspecção de ser, realmente, inspectiva, embora a Constituição, nesta parte, não tenha por ora inspectores que não sejamos todos nós - naturalmente, no bom sentido -, tratando-se de a dotar com mais um instrumento. Depois da sua execução, rezará a história, através dos seus protagonistas, pela forma boa.

Srs. Deputados, creio que, se o PSD exprimisse o seu ponto de vista, poderíamos passar à fase seguinte dos trabalhos.

Tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Macedo e Silva.

O Sr. Miguel Macedo e Silva (PSD): - Sr. Presidente, era, precisamente, sobre essa questão metodológica que gostaria de dizer que o PSD entende que deveríamos, por hoje, encerrar aqui os nossos trabalhos, até porque vamos ter, agora, votações no Plenário. Assim, se os outros grupos parlamentares estivessem de acordo, encerraríamos agora os nossos trabalhos.

O Sr. Presidente: - Os Srs. Deputados do PS estão de acordo?

O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, não levantamos nenhuma objecção ao pedido do PSD.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, o Grupo Parlamentar do PCP não tem objecções a aquiescer à proposta do Sr. Deputado Miguel Macedo. A Comissão reunirá na próxima terça-feira, às 10 horas, segundo entendimento que me foi transmitido pelo Sr. Presidente, Dr. Rui Machete.

Srs. Deputados, está encerrada a reunião.

Eram 19 horas e 20 minutos.

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Comissão Eventual para a Revisão Constitucional

Reunião do dia 19 de Maio de 1988

Relação das presenças dos Srs. Deputados

Rui Manuel P. Chancerelle de Machete (PSD).
Carlos Manuel de Sousa Encarnação (PSD).
António Costa de Sousa Lara (PSD).
Carlos Manuel Oliveira da Silva (PSD).
Fernando Manuel Cardoso Ferreira (PSD).
José Álvaro Pacheco Pereira (PSD).
José Luís Bonifácio Ramos (PSD).
Licínio Moreira da Silva (PSD).
Luís Filipe Garrido Pais de Sousa (PSD).
Manuel da Costa Andrade (PSD).
Maria da Assunção Andrade Esteves (PSD).
Miguel Bento da Costa Macedo e Silva (PSD).
Rui Manuel Lobo Gomes da Silva (PSD).
Alberto de Sousa Martins (PS).
António Manuel Ferreira Vitorino (PS).
José Manuel Santos Magalhães (PCP).
Maria Odete dos Santos (PCP).
Raul Fernandes de Morais e Castro (ID).

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