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CAMARA DOS SENHORES DEPUTADOS

SESSÃO DE 22 DE FEVEREIRO DE 1865

PRESIDENCIA DO SR. CESARIO AUGUSTO DE AZEVEDO PEREIRA

Secretarios os srs.

Joaquim Xavier Pinto da Silva

José de Menezes Toste

Chamada: — Presentes 60 srs. deputados.

Presentes á abertura da sessão — os srs. Affonso Botelho,

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Annibal, Braamcamp, Vidal, Soares de Moraes, Quaresma, Brandão, Barros e Sá, Seixas, Magalhães Aguiar, Faria Barbosa, B. F. de Abranches, Carlos Bento, Cesario, Delphim Ferreira, Eduardo Cunha, F. J. Vieira, Ignacio Lopes, Valladares, Pereira de Carvalho e Abreu, Sant'Anna e Vasconcellos, Reis Moraes, J. A. de Sepulveda, J. A. de Sousa, Mártens Ferrão, Assis Pereira de Mello, Ayres de Campos, Mendonça Castello Branco, Loureiro, Sepulveda Teixeira, Teixeira Soares, Albuquerque Caldeira, Torres e Almeida, Noutel, Xavier Pinto, J. A. Maia, Correia de Oliveira, Tavares Pontes, Freire Falcão, Homem de Gouveia, Alves Chaves, Luciano de Castro, D. José de Alarcão, Frazão, Toste, José de Moraes, Sampaio e Mello, Julião Mascarenhas, Julio do Carvalhal, Sá Coutinho, Alves do Rio, Macedo Souto Maior, Sousa Junior, Leite Ribeiro, Lavado de Brito, Tenreiro, Placido de Abreu, Ricardo Guimarães, Carvalho e Lima e Thomás Ribeiro.

Entraram durante a sessão — os srs. Garcia de Lima, Teixeira de Vasconcellos, Ayres de Gouveia, Gonçalves de Freitas, Pinto Ferreira, Lemos e Napoles, Antonio Pequito, Pinto de Albuquerque, Antonio de Serpa, Barjona de Freitas, Barão do Rio Zezere, Bento de Freitas, Pereira Garcez, Almeida Pessanha, Custodio Freire, Domingos de Barros, Quental, Diogo de Sá, Francisco Costa, Mello Soares de Freitas, Cadabal, Guilhermino de Barros, Medeiros, Blanc, Silveira da Mota, Abreu e Lima, Gomes de Castro, Santos e Silva, Costa Xavier, Fonseca Coutinho, Barros o Cunha, Aragão Mascarenhas, Tavares de Almeida, Lisboa, Matos Correia, Proença Vieira, Rodrigues Camara, J. Pinto de Magalhães, J. T. Lobo d'Avila, J. A. da Gama, Barbosa e Silva, Vieira de Castro, Sette, Fernandes Vaz, Casal Ribeiro, J. M. Lobo d'Avila, Alvares da Guerra, Sieuve de Menezes, Barros e Lima, Mexia, Levy, Freitas Branco, Amaral Carvalho, Rocha Peixoto, Mendes Leite, Mathias de Carvalho, Miguel Osorio, Monteiro Castello Branco, R. Lobo d'Avila, Pinto Pizarro, Teixeira Pinto, Visconde dos Olivaes e Visconde de Pindella.

Não compareceram — os srs. Adriano Pequito, Abilio, Camillo, Carlos da Maia, A. Pinto de Magalhães, Belchior Garcez, Albuquerque e Amaral, Poppe, P. Coelho, Claudio Nunes, Eduardo Cabral, F. F. de Mello, Bivar, Coelho do Amaral, Lampreia, Gavicho, Bicudo Correia, F. M. da Cunha, Gaspar Pereira, J. A. de Carvalho, João Chrysostomo, Alcantara, Calça e Pina, Infante Passanha, Garrido, Rojão, Gonçalves Correia, Oliveira Baptista, Mendes Leal, Marquez de Monfalim, Severo de Carvalho e R. F. da Gama.

Abertura: — Á uma hora e um quarto da tarde.

Acta: — Approvada.

EXPEDIENTE

1.° Um officio do sr. José Maria da Costa e Silva, participando que não tem podido apresentar-se ainda na camara por incommodo de saude, e que se apresentará logo que possa. — Inteirada.

2.° Do ministerio da marinha, dando os esclarecimentos que existem n'aquella secretaria, relativos ao estado da fazenda publica na provincia de Angola; satisfazendo assim a um requerimento dos srs. A. J. de Seixas e Pinto de Magalhães (Antonio). — Para a secretaria.

3.° Quatro representações: da confraria do Santissimo Sacramento, da freguezia da Palmeira; da irmandade de S. Sebastião, da mesma freguezia; da irmandade do Bom Jesus dos Passos, Santa Cruz e Sant'Anna; e da real casa da misericordia e administradores do hospital de S. Marcos, todas da cidade de Braga; representando contra as disposições do projecto de lei n.° 8. — Á commissão de fazenda.

4.° Do continuo da repartição de fazenda do districto da Guarda, pedindo augmento de vencimento. — Á mesma commissão.

5.° Quinze requerimentos de officiaes do exercito, pedindo a approvação do projecto de lei apresentado pelo sr. Alcantara. — Á commissão de guerra.

EXPEDIENTE

A QUE SE DEU DESTINO PELA MESA

REQUERIMENTOS

1.° Requeiro que, pelo ministerio do reino, se peça ao governo mando a esta camara copia de toda a correspondencia e documentos sobre a cessação do fornecimento de gaz á cidade de Setubal pela respectiva companhia. = Aragão Mascarenhas.

2.° Requeiro se peça, pela secretaria dos negocios do reino, a consulta da junta de districto de Braga, pertencente ao anno preterito de 1864.

Requeiro mais se peça, pela mesma secretaria, o resultado da syndicancia ou inquerito a que se procedeu no mesmo districto, sobre a conducta dos partidos e factos acontecidos nas passadas eleições, e quaes os cidadãos que estão em processo por esse motivo.

Peço a urgencia. = Antonio do Rego de Faria Barbosa.

3.° Tendo requerido na sessão passada para o governo mandar estudar a estrada da estação do Mato de Miranda a Alcanena, no concelho de Torres Novas, requeiro que sejam remettidas a esta camara copias dos mesmos estudos e do orçamento da sua despeza pelo ministerio das obras publicas. = Sieuve de Menezes.

4.° Requeiro se peça, pela secretaria dos negocios da fazenda, o contrato feito com a companhia de Xabregas para a venda do papel sellado e os privilegios que lhe foram con cedidos.

Requeiro mais se peça, pela mesma secretaria, toda a somma da divida fluctuante, e toda a somma do producto da venda dos fóros e pensões dos bens nacionaes desde o seu começo e por annos. Peço a urgencia. = Antonio do Rego de Faria Barbosa.

Foram remettidos ao governo.

SEGUNDAS LEITURAS

PROPOSTA DE LEI N.° 15-BBB

Senhores. — A uma longa serie de abundantes colheitas de cereaes seguiu-se outra de annos escassos, e de producção inferior ás exigencias do consumo; do que resultou a necessidade de se abrirem os portos do reino, fechados aos cereaes estrangeiros por disposições legislativas que se reputavam protectoras da producção nacional.

A carta de lei de 29 de julho de 1854 auctorisou o governo a decretar a importação do milho estrangeiro pelos portos seccos e molhados do continente do reino, e na ilha da Madeira, pelo porto do Funchal, até 31 de dezembro do referido anno.

A esta medida seguiram-se as cartas de lei de 5 de julho de 1855, 31 de maio e 3 de julho de 1856, 3 de junho de 1859, 27 de março de 1860 e 11 de setembro de 1861.

O governo, em virtude das auctorisações que estas cartas de lai lhe conferiram, publicou dezenove decretos, o ultimo tem a data do 14 de agosto de 1862, permittindo a introducção do cereaes estrangeiros até 21 de abril de 1863.

Promulgaram-se pois, em nove annos, dezenove medidas provisorias!

Este facto condemna irrevogavelmente o systema dos expedientes, e demonstra com a maior evidencia a necessidade de uma lei permanente.

O governo declinando de si a responsabilidade da continuação d'este estado anomalo, tão prejudicial aos productores como aos consumidores, pede a vossa attenção sobre as considerações que servem de fundamento á proposta, que logo terei a honra de vos ler.

A primeira necessidade social é a da alimentação publica, e os cereaes são a base d'essa alimentação. Compete pois á administração superior velar, sobretudo pelas subsistencias do povo, dentro da orbita das suas attribuições.

Acreditava-se em outros tempos que a nação mais rica era a que satisfazia, com os seus productos, ás suas proprias necessidades. O systema da prohibição assentou sobre este deploravel erro. Protejam-se as industrias nacionaes, para que sem dependencia das alheias possa o paiz produzir tudo o de que precisa para satisfação de todas as suas necessidades. Este era o thema dos economistas, ou, para melhor dizer, dos estadistas, que por muitos annos governaram as principaes nações da Europa.

Hoje não se acredita, e demonstra-se com a luz da evidencia, que um paiz deve voltar a sua actividade sómente para aquellas industrias, que têem por si o favor do clima e do sólo, e o indispensavel auxilio das condições economicas.

Sobre esta verdade inconcussa está fundamentado o systema da liberdade industrial e commercial, de que tem manado a prosperidade dos povos que o adoptaram. Protejam-se por todos os meios indirectos, que não estorvem o livre exercicio da actividade individual, aquellas industrias, que no paiz encontram as condições do seu fecundo desenvolvimento, e permutem-se com as nações estrangeiras os generos, que nós vantajosamente produzimos, por outros que ellas tambem produzem vantajosamente. É esta a doutrina orthodoxa, que substituiu as maximas erroneas dos antigos estadistas, e que preside actualmente aos conselhos de todas as administrações superiores, progressistas e illustradas.

Applicando estes luminosos principios á questão das subsistencias e manifesta a missão do governo. Promover o melhoramento das condições geraes da producção dos cereaes, empregando para este effeito os meios indirectos que dependem dos poderes publicos, e deixar inteiramente livre a acção do commercio para levar aos mercados estrangeiros o sobrante do consumo nacional, ou trazer d'elles os supprimentos de que o paiz carecer, é quanto o governo póde e deve fazer.

Se, dado o melhoramento das condições geraes da producção, ainda assim a nossa lavoura não poder competir com os productores do cereaes estrangeiros, deverá ella restringir a area d'esta cultura, e aproveitar a aptidão do nosso clima e sólo para outras cultivações naturalmente favorecidas.

Mas ter-se-ha realisado o melhoramento das condições geraes da producção agricola?

As memorias dos nossos sabios academicos, e outros escriptos de naturaes e estranhos, descrevendo com tristes côres o estado da nossa agricultura, antes da memoravel epocha de 1820, apontaram as causas da sua extrema decadencia, enumerando assim as principaes:

Os foraes, com todos os privilegios odiosos, que os acompanhavam - os direitos banaes — os extensos baldios, maninhos e coutadas — as terras amortisadas em poder das ordens religiosas — os vinculos — os dizimos, as jugadas e outras alcavalas — os rebanhos transhumantes e os pastos communs — a instituição das ordenanças e das milicias — os detestaveis abusos da lei do recrutamento e do tempo de serviço na tropa de linha — os embargos para o fornecimento de viveres e transportes do exercito — a falta de vias de communicação — a despovoação do reino — o pessimo systema de arrendamentos — e finalmente, a repugnancia dos nobres para a vida rural.

Foi sobre este quadro tão fiel, como sombrio, que se reflectiram os primeiros raios da aurora da liberdade. Os que a saudaram poderam apenas lançar os alicerces da obra da nossa regeneração social, tantas vezes estremecida e abalada; mas nem por isso faltaram obreiros para a continuar. Se a obra ainda não está completa é porque ella é grandiosa, demanda sacrificios, e só a mão do tempo a pôde polir e rematar.

Sejamos justos. O aspecto do paiz está transformado pelas variadas manifestações da civilisação, e não é a industria agricola a que menos tem participado dos beneficios do progresso. A liberdade não é o fim, mas é um meio, uma condição essencial da mais productiva applicação da actividade humana. Aquelles que pedem a liberdade da terra não a podem negar ao commercio.

E não a devem negar, porque a liberdade do commercio não prejudica, antes favorece o progresso agricola.

Os interesses mal entendidos são os que lançam raizes mais fundas e que mais custam a extirpar. As prohibições e as protecções mal entendidas estão n'este caso. Todas as industrias as quizeram, todas as pediram e todas as têem defendido, porque se fundaram e mantiveram por largos annos á sombra dellas. Sombra funesta, que lhes entorpeceu a vida e o movimento, enfraquecendo-as a ponto de não poderem sustentar a sua posição no campo da concorrencia.

Entre os tres systemas — a prohibição, a protecção e a livre troca, ha muitos annos que se travou uma luta incessante. O systema prohibitivo foi o primeiro que largou o campo; era o menos sustentavel, porque impedindo o movimento do commercio retardava o progresso das nações, privando-as dos beneficos resultados da mutua permutação dos productos, que umas podiam offerecer e outras procurar.

O systema protector exagerado é a prohibição mascarada com um nome enganoso, porque nada protege. Quando se entendia que uma nação, para ser independente e rica, era preciso que produzisse tudo o de que necessitava, acreditava-se, para esse effeito, na efficacia do systema altamente protector; porém logo que se reconheceu que a divisão do trabalho e a especialisação das industrias eram leis supremas do progresso, desmoronaram-se as barreiras que separavam os povos, desappareceram as nacionalidades, e a unica bandeira que protege as industrias é a superioridade dos seus productos, verificada no campo da livre concorrencia.

As lutas da liberdade economica ainda que mais pacificas do que as da liberdade politica, nem por isso deixaram de ser tenazes. Ha mais de um seculo que ellas duram, e comquanto o dominio da liberdade economica tenda rapidamente á vassallagem universal, ainda assim encontra resistencias em um ou outro ponto.

Custa a dize-lo, Portugal é um d'esses pontos! Não podemos, dizem os nossos lavradores de cereaes, concorrer com os estrangeiros.

Concedemos que esta asserção se podesse sustentar com argumentos, mais ou menos rasoaveis, em outro tempo; hoje não póde ter essa argumentação igual força.

A terra desamortisada, livro e desaffrontada da multidão de alcavalas que avexavam os seus cultivadores; mais de 2:000 kilometros de estradas ordinarias, já construidas pelos systemas mais aperfeiçoados; uma importante rede de caminhos de ferro, que liga os principaes centros da população do reino; a fundação de diversos estabelecimentos de credito, fabris, metallurgicos e industriaes, que são poderosos auxiliares da agricultura; a diffusão do ensino primario; os successivos aperfeiçoamentos da instrucção agricola e veterinaria, professada no instituto agricola: eis, em resumo, alem de outras de menos importancia, a serie de medidas que os poderes publicos têem effectuado, em beneficio commum do paiz, e muito principalmente da nossa agricultura.

Alguns dos que defendem a legislação prohibitiva e protectora apoiam-se em uma consideração que apparenta o valor da rasão concludente. «Seja abolido o systema protector para todas as industrias». Mas cumpre attender que é menos a titulo de protecção, do que com intuito fiscal, que se conservam, nas pautas das alfandegas, direitos bastante elevados sobre alguns artigos de importação. As alfandegas do continente do reino rendem mais de 6.000:000$000 réis por anno, e a contribuição predial pouco excede a sexta parte d'aquella quantia. Diminuída a receita das alfandegas, metade que fosse, pela reducção dos direitos de importação, seria forçoso duplicar ou triplicar a contribuição predial, para occorrer ás despezas publicas, que tendem a successivo e indispensavel augmento. Portanto sendo as alfandegas um instrumento fiscal, o desfalque do producto dellas teria de ser derramado sobre a collecta predial. Outros exageram os receios da concorrencia. Abertos os portos, dizem elles, os cereaes estrangeiros invadiriam os nossos mercados, porque nos paizes mais atrazados, como a Russia, o preço da cultura é insignificante, e nos paizes adiantados, como França, Belgica e Inglaterra, os aperfeiçoamentos da agricultura reduzem tambem o preço da producção; e por isso nem com uns nem com outros nós podemos competir.

É manifesta a sem rasão d'estes discursos. A Russia produz cereaes baratos no interior, e a grandes distancias dos centros de consumo e de exportação. Fóra d'ahi o preço dos cereaes é cotado pelos mercados reguladores. A Inglaterra é o primeiro consumidor do cereaes; só de trigo importa, em media annual, 25.000:000 de hectolitros (alqueires 181.000:000). É este grande mercado que taxa os preços, cujos registos attestam que nos ultimos vinte annos, a contar de 1840 a 1860, o valor do trigo tem variado, por hectolitro, entre 5$600 e 2$980 réis, ou por alqueire 770 a 410 réis. Vê-se pois que a Portugal nunca póde vir trigo estrangeiro a menos de 410 réis o alqueire, pois que nunca foi á Inglaterra, mercado principal e centro das mais importantes especulações mercantis, por menor preço do que o de 410 réis referido ao anno de 1851.

O mercado regulador dos trigos da Russia, no Mar Negro, é Odessa, e n'este porto, no mencionado periodo de vinte annos, nunca o trigo baixou de 1$640 réis por hectolitro, ou 225 réis por alqueire. Ora se na Inglaterra nunca se vendeu este genero, em preço annual, por menos de 410 réis o alqueire, é patente que para os mercados do reino não poderia vir tambem por menor preço de 410 réis, pela

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rasão obvia de que o commercio para as grandes praças é sempre mais vantajoso, attenta a facilidade de todas as transacções.

Verdade é que os trigos danubianos e os do Egypto são muito mais baratos do que os de Odessa; mas nem uns nem outros, pela sua pessima qualidade, podem affluir aos nossos mercados; os do Egypto, principalmente, em consequencia de um cheiro detestavel, são improprios para a panificação, e na Inglaterra empregam-se exclusivamente para a extracção da fecula.

Os trigos do Baltico são bons para a panificação, porém grande parte d'elles são seccos em fornos, perdendo por este motivo a força germinativa, e por isso todo o seu valor como sementes; o que lhes dá uma certa depreciação, em concorrencia com outros, que preenchem os dois fins — da alimentação e da reproducção. Acresce mais que as transacções para aquellas paragens são acompanhadas de muita incerteza, proveniente dos impedimentos que oppõe á navegação o gelo dos mares. Navios ha, que indo ali buscar carga, ficam sem movimento emquanto dura a estação invernosa. Estes riscos diminuem o valor das mercadorias que estão sujeitas a soffre-los.

Restam os trigos dos Estados Unidos, que não passam de mediana qualidade, e que se não podem importar por taes preços que assombrem os nossos. No referido periodo de vinte annos, o menor preço do trigo em New-York foi do 2$403 réis por hectolitro ou 335 réis por alqueire. Se a esta somma acrescentarmos todas as despezas de commissões, embarque e desembarque, fretes, seguros, etc. etc. ver-se-ha que não ficam nos mercados nacionaes mais baratos do que os de outras procedencias.

Cumpre observar que os preços de que se faz menção, sendo os mais baixos que se encontram no periodo de vinte annos (1840 a 1860), correspondem ao anno de 1851, e desde então apresentam uma consideravel elevação.

Na presença d'estes factos de incontestavel veracidade é facil calcular os resultados da liberdade do commercio de cereaes estrangeiros em concorrencia com os de producção nacional.

Segundo os dados officiaes, publicados pela alfandega municipal, a capital, isto é, o concelho de Lisboa, consome em media annual 3.354:000 alqueires ou 463:250 hectolitros de todos os cereaes. Suppondo que esta massa alimentar de habitantes e animaes domesticos provém de colheitas nacionaes, é aos tres districtos do Alemtejo—Beja, Evora e Portalegre, o aos dois da Estremadura — Santarem e Lisboa, que ella se ha de pedir; porque em annos de regular producção sobeja-lhes um excedente do proprio consumo, bastante para satisfazer as necessidades alimentares da capital. São exactamente estes districtos os que estão gosando dos altos beneficios da viação aperfeiçoada, pois que, alem das vias aquaticas de que naturalmente são dotados, desfructam as vantagens de importantes estradas ordinarias, em grande parte já construidas; e, o que ainda é mais, das que lhes vão proporcionar as linhas ferreas que os percorrem na sua maior extensão, e que dentro em pouco tempo completarão o giro de suas rapidas e presagiosas carreiras.

É evidente que a este respeito os paizes competidores de Portugal, na producção de cereaes, não são mais bem servidos. É tambem manifesto que não serão as nações mais adiantadas nos processos de cultivação que hão de vir desanimar os nossos mercados, porque ellas, a Inglaterra, a França e a Belgica, longe de exportarem, são importadoras de cereaes.

São portanto os trigos do Mar Negro que mais receios incutem nos nossos proprietarios e cultivadores. Pois bem, vejamos qual é o fundamento de suas apprehensões discorrendo sobre dados seguros. Porém antes de entrar n'esse exame seja-nos permittido reproduzir textualmente a parte relativa a este assumpto, extrahida de um documento official, apresentado em França ao corpo legislativo e ao senado, em março de 1861, pela commissão do conselho d'estado, para esse effeito nomeada.

«É necessario entrar mais directamente n'esta questão da invasão, que se antolha, dos trigos vindos a vil preço da Russia meridional. Podem-se assim resumir os esclarecimentos mis importantes fornecidos por diversos documentos.

«Os dominios mais prosperos da região comprehendida entre o Pruth e o Donetz, ao norte do Mar Negro, do Mar de Azoff, e do Valle do Don, são explorados por particulares, ricos e intelligentes, que seguem em sua administração os principios adoptados pelos cultivadores abonados da Inglaterra e da maior parte da Europa. Não se apressam a vender no tempo de abundancia; conservam durante muitos annos seus trigos em paveas, ou em celleiros, até ao momento em que a escassez, manifestando-se no occidente, lhes assegura preços sufficientemente elevados.

«Abaixo d'estes dominios de primeira ordem, se encontram, sem duvida, muitas terras exploradas ou possuídas por proprietarios menos ricos, menos esclarecidos, que são obrigados a vender precipitadamente a todo o preço; mas os trigos d'estes proprietarios são comprados por negociantes ricos, estabelecidos no meio das terras de trigo, ou nos portos da expedição, os quaes, seguindo o exemplo dado pelos proprietarios de primeira ordem, se abstém de vender a baixo preço, emquanto não empregam todo o seu capital disponivel.

«De sorte que na bacia do Mar Negro não se vende para a exportação, em tempo de baixa, senão uma insignificante parte da producção, que excede o capital e meios de credito dos cultivadores e negociantes de cereaes; e os baixos preços que se vêem cotados nos mercados russos, em epochas de abundancia, referem-se a pequenas quantidades, que os possuidores, instigados por qualquer penuria accidental, são obrigados a vender.

«Exagera-se muito, alem d'isto, a importancia da producção de cereaes da Russia meridional, com referencia á alimentação estrangeira. A verdade é que, depois que se estuda e visita este paiz, se conhece que não está em posição de fornecer regularmente a alimentação a outras nações; a sua producção é muito irregular e immensa a sua extensão; no mesmo anno ha frequentes vezes escassez em alguns dos seis governos, e abundancia noutros. O que póde dizer-se, declara mr. Jagger-Schmitt, como conclusão do seu relatorio, é que, em caso urgente, o estrangeiro encontrará sempre na Russia, a preços elevados, com que prehencher o deficit da sua producção, para completar o que é necessario á sua subsistencia.

«Enquanto á influencia da emancipação dos servos na Russia, sobre a producção de cereaes, julga-se que, pondo de parte a crise, que trará a transformação do estado social dos paizanos do imperio, admittindo mesmo que esta crise possa augmentar a producção dos cereaes, não poderá d'ahi resultar uma maior quantidade de cereaes disponiveis para a exportação, porque o consumos de cereaes interior augmentará necessariamente em proporção pelo menos do incremento da producção; e em todo o caco augmentando a mão de obra, o aluguer das terras se elevará, e é preço dos cereaes não poderá diminuir; todos os documentos insistem sobre a circumstancia de que na Russia, no momento em que o commercio exporta, ha provincias que, privadas de communicações com aquellas em que as colheitas são abundantes, estão assoladas pela fome.

«Segue-se d'aqui que um dos effeitos mais certos do estabelecimento dos caminhos de ferro na Russia, com relação á questão que nos occupa, será de fornecer ás provincias russas, que actualmente são expostas á fome, os meios de se alimentarem com os productos que hoje se exportam, e por conseguinte em vez de augmentar, pelo contrario deve diminuir a massa dos cereaes destinada á exportação.

«Em resumo: a objecção mais grave, em apparencia, que se apresenta contra a liberdade do commercio de cereaes, e que se deduz da supposta concorrencia que os trigos russos fazem á nossa agricultura, não resiste a um exame attento e reflectido. Seja que se observem os effeitos d'esta concorrencia sobre os mercados inglezes, depois que ella se estabeleceu livremente, e os que uma experiencia de muitos, annos produziu no nosso paiz, seja que se estude a situação presente do commercio e da cultura de cereaes na Russia meridional, ou ainda o progresso, que o tempo possa trazer, é forçoso reconhecer, como verdade de facto incontestavel, que a nossa agricultura não póde ser de modo algum ameaçada pela concorrencia dos trigos russos, os quaes nunca podem aviltar os nossos preços.»

A media dos preços do trigo em vinte annos, como já disse, a contar de 1840 a 1860, foi em Odessa de 2$385 réis por hectolitro, ou 330 réis por alqueire. Póde, até onde chega a previsão humana, affirmar-se que este preço não baixará. Ora addicionando-lhe todas as despezas, até entrar no mercado de Lisboa, não deverá descer de 480 réis o alqueire, como se vê do seguinte calculo:

Custo do trigo.................... 330 réis

Frete e mais despezas............. 120»

Direito minimo da tabella......... 30»

480»

Ninguem ignora que no mercado de Lisboa ha sempre uma notavel differença de preços, regularmente 200 réis por alqueire. Essa differença, a favor dos trigos nacionaes, é um attestado authentico da sua excellencia sobre os estrangeiros do todas e quaesquer procedencias. Em vista do que, é rasoavel calcular em 100 réis pelo menos a differença do valor intrinseco do nosso trigo comparado com os que vem de fóra.

Agora se reconhecerá como são chimericos os receios das invasões dos trigos de Odessa e de outros paizes, quaesquer que sejam. Todavia se as rasões expostas ainda não bastarem para tranquillisar o animo dos nossos lavradores de cereaes, outras se apresentam ao espirito, logo que o encontrem desassombrado de preconceitos.

Os capitães entregues ás transacções mercantis não são menos preciosos, nem menos exigentes do que são os capitães collocados na agricultura; demandam segurança, procuram evitar os riscos, e locupletam ou arruinam os seus possuidores, segundo o prudente ou inconsiderado uso que d'elles fazem.

Supponhamos que o trigo se vendia em Lisboa a 480 réis, e que um ou mais commerciantes importavam para este mercado grandes carregações, a fim de as negociar por aquelle preço. Aconteceu porém o que era inevitavel; a abundancia trouxe o barateio, e o importador fez uma operação imprudente, que de certo não tornará a repetir.

Mas porque principio se não inundam os mercados de outros generos que tem livre movimento?

A praça de Lisboa e todas as praças commerciaes deveriam estar sempre obstruídas de todas as mercadorias, que a ellas podem livremente concorrer, se essas fossem as consequencias da liberdade de commercio. Mas é que não são nem podem ser, porque a livre troca, longe de causar a estagnação dos generos, as grandes oscillações dos preços e a perturbação dos mercados, pelo contrario imprime no commercio uma acção regular, nivela os preços, desaffronta os mercados e estabelece a ordem economica, alterada pela mal entendida ambição de enormes ganancias.

Os prohibicionistas laboram em um erro que os assusta, e não querem prestar homenagem á verdade que os deve tranquillisar. A liberdade traz os preços vis, dizem elles; mas isto é um engano que se ratifica com a historia aberta. Ha mais de quarenta annos que entre nós domina o regimen da prohibição.

Que preços mais vis do que esses por que se têem vendido cereaes protegidos pelo systema prohibitivo?

A liberdade do commercio o que faz não são preços vis, são preços medios, preços normaes, que significam o verdadeiro valor dos generos. Ahi têem estado os portos abertos muitas vezes, sem que ainda se verificasse essa terrífica invasão. Pôde dizer-se, que desde 1854 é livre, entre nós, o commercio dos cereaes: e que diz a historia dos preços? Pacificará a inquietação dos espiritos, que despreoccupados a consultarem.

Redarguirão, que são annos de escassez nacional, e que por isso não tem baixado os preços com a importação de cereaes estrangeiros. Mas o que fazia o commercio livre, em annos de abundante producção? Acharia então opportunidade para inundar os mercados? Quem primeiramente soffreria as consequencias do aviltamento dos preços? Seria o commercio ou a lavoura? Não se póde acreditar que o commercio, para arruinar a lavoura, se arruine a si proprio. Em annos de escassez sobem os preços, e o commercio especula fazendo-se importador; na presença de colheitas abundantes, opera em sentido inverso, converte-se em exportador.

É isto mesmo o que se tem observado n'estes ultimos annos, em que os portos se abriram; os cereaes entraram e saíram, procurando o equilibrio dos preços. Em 1856, que foi um dos annos de maior penuria, importaram se 5.233:665 alqueires de cereaes; mas nem por isso deixou de haver saída; exportaram-se 150:580 alqueires.

Sobre todas estas considerações vem outra, só de per si sufficiente, para garantir a nossa lavoura de preços intimos. Como já se referiu, a Inglaterra precisa annualmente de um supprimento de 25.000:000 de hectolitros de trigo, e mais de 9.000:000 de outros cereaes. É, pouco mais ou menos, este o excedente dos paizes exportadores. A nossa colheita regular anda por 11.000:000 de hectolitros de todas as especies de cereaes, quantidade em que se orça o consumo e sementes. Ora, ainda que abunde a nossa producção, ainda que ella tenha grande incremento, lá estão os mercados inglezes para lhe dar vasão, com vantagem para nós e para elles, pela differença dos fretes, e pela bondade do genero,

E sobre este ponto convem advertir que os mercados inglezes repelliram, por muito tempo, os trigos rijos, como são geralmente os nossos; hoje precisam d'elles para misturar com os moles, porque aperfeiçoaram os processos da sua panificação. Os nossos trigos ribeiros são excellentes, e os durasios de superior qualidade. Eis um testemunho insuspeito:

«De resto os trigos de Hespanha e Portugal, emquanto á qualidade, são magnificos, podem contar-se no numero dos mais bellos trigos; somente em grande parte são de essencia dura. Esta variedade de trigo proporciona menor extracção de farelo, rende mais em farinha, e esta mesma farinha dá uma maior quantidade de pão.» (Inquerito sobre a revisão da legislação de cereaes, na França, em março de 1859 — Gualdrée-Boileau, chefe da repartição de subsistencias militares no ministerio da guerra.)

A este respeito póde consultar-se, como esclarecimento, o excellente relatorio do estudo industrial e chimico dos trigos portuguezes, publicado pelo distincto lente do instituto agricola, João Ignacio Ferreira Lapa.

Venha embora a abundancia, praza a Deus felicitar com ella o paiz, entrem pelos portos grossas carregações do principal mantimento do povo, e não temam os nossos lavradores o aviltamento dos preços, que lá está o commercio da primeira nação mercantil do mundo com a mira alçada sobre as nossas excedencias, para as reduzir immediatamente ás mais justas proporções.

E tanto isto é assim, e tanto a liberdade do commercio não envilece os preços, que depois que a Inglaterra abriu os seus portos, os cereaes tiveram sempre ali melhor preço do que na França, que conservava os seus fechados, ou, o que ainda era peior, entorpecidos pelo embaraçoso systema da escala movel.

Mas, dirão os nossos agricultores, que beneficios temos nós a esperar da liberdade do commercio?

Muitos, e muito importantes, que poderiam compor longa enumeração, mas que se podem reduzir, com relação ao nosso paiz, a breves indicações.

Da impulsão da industria commercial estão dependentes os aperfeiçoamentos da industria agricola; tudo o que entorpecer o livre movimento do commercio, retarda e interrompe o progresso da agricultura. O florecimento de algum ramo de commercio exprime sempre a prosperidade da industria correlativa. Mau grado ao systema da prohibição, que inutilisou o magestoso porto de Lisboa, destinado pela sua situação geographica para ser o emporio dos cereaes da Europa, como foi Liorne, Malta, e o está sendo hoje Marselha. Estabelecido em Lisboa o commercio de cereaes, nunca os nossos deixarão de ter venda prompta e vantajosa. Se no porto não houvesse respeitaveis e opulentas casas do commercio especial de vinhos, que teria acontecido ás vinhas do Douro? Depois que em Lisboa se localisou o commercio do azeite, este abundante producto do nosso sólo nunca mais chegou a depreciar-se. É que os commerciantes têem tanta necessidade de comprar, como os productores de vender.

A liberdade do commercio traz o equilibrio e a permanencia dos preços; não os deixa oscilar até aos seus extremos. Nada ha que tanto perturbe os calculos do agricultor como a versatilidade dos preços. Tudo é confusão na economia agricola, quando o artificio, o monopolio e a incerteza dominam os mercados. Estas são as consequencias do systema da prohibição, e da continuada necessidade de altera-lo.

Não é só a agricultura que soffre com a extrema variação dos preços; todas as outras industrias a accusam de iguaes ou peiores damnos. O capital circulante perfaz sem

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pre uma das maiores verbas do despeza nas explorações industriaes, absorvida pelo salario. Ora, é obvio que a alta, a baixa ou a regularidade do preço das subsistencias traz comsigo a alta, a baixa ou a regularidade do preço do salario. E qual dos systemas poderá manter dentro de rasoaveis limites a variabilidade dos preços? É sem duvida o da livre troca, que por isso é o mais conveniente para todas as industrias e consequentemente para a agricultura, que tem n'ellas o seu mais poderoso auxiliar.

Portugal avantaja-se a muitos paizes em algumas condições industriaes. Se nos faltam Certas materias primas, e porventura o carvão de pedra, temos a compensação nos variados fructos da terra; mas é preciso que elles sejam baratos, para que baratas fiquem tambem as subsistencias. Está claro que, promovendo-se por este meio o bem estar das classes operarias, excita-se forçosamente o melhoramento da fortuna agricola.

Mas com que fim se ha de dar impulso ao progresso da agricultura? Será unicamente para ella se limitar a satisfazer as necessidades do paiz? Como é que se teme a concorrencia nos proprios mercados, quando é nos estrangeiros que a luta se ha de empenhar? Pondera-se que os nossos terrenos não são dos mais proprios para a cultivação dos cereaes, e que por isso será sempre desigual a luta. É por isso mesmo que nos convem a franquia dos portos. Limite-se a arca cerealífera ás terras de primeira ordem; as inferiores aproveitem se para outras culturas. Avinha, o montado, o olival encontram no sólo e clima lusitano todas as condições do mais vigoroso desenvolvimento. Constituamos n'estas e outras culturas, protegidas pela natureza, a nossa especialidade agricola. Assim, restricta a lavoura de cereaes, póde ella aperfeiçoar-se a ponto de competir com todos os productores estrangeiros, dentro ou fóra do paiz. Pois não convirá mais especialisar as culturas, segundo as disposições naturaes dos nossos terrenos, do que força-los a produzir cereaes, que os estrangeiros nos podem fornecer em troca de outros generos, de que elles carecem, e entre nós abundam?

Alguns economistas sustentam que os cereaes são o padrão de todos os valores; mas, sem entrar na controversia, a verdade é que o preço dos cereaes é um typo, que regula muitos outros preços; e para isto se reconhecer basta reflectir na perturbação economica, que se manifesta quando os preços tocam nos extremos, maximè no da carestia, porque então a sociedade soffre profundos abalos.

E quem não vê no systema da prohibição a occasião proxima d'essa perturbação na ordem economica, e d'esses abalos na ordem social? A carestia é sempre um grave mal. Por bem attentos que estejam os poderes publicos, o remedio vem sempre tarde. Ha nove annos que o commercio tem salvado o paiz da fome. Mas por que preço? Se fosse livre a sua acção os supprimentos que temos recebido, e que nos têem custado para mais de 5.000:000$000 réis, haver-se-íam realisado por muito menor somma.

Mas este ainda não é o maior mal. A excessiva carestia é o preço da fome para as familias necessitadas, e o da mingua para todas as classes operarias. Soffre tambem com ella o grande numero de pequenos proprietarios ruraes, de que está povoado o reino, mormente nas provincias do norte. Notou-se em França que no anno de 1837 faltavam os mancebos que deviam preencher os contingentes do recrutamento; accusou-se a inexactidão dos recenseamentos, mas ultimamente verificou-se que haviam diminuido os nascimentos em 1817, anno de triste recordação, porque foi o anno da fome!

Em summa a liberdade de commercio de cereaes é uma necessidade economica e social, comprovada pelo testemunho dos factos, evidenciados pelo criterio da experiencia, e confirmados pela auctoridade das nações mais illustradas.

A Inglaterra em 1846 decretou a liberdade do commercio de cereaes, para começar a vigorar em 1849. A esta seguiram-se outras medidas analogas, e apesar da tenaz resistencia que encontraram, hoje todos as abençoam, porque sob o seu influxo benefico a prosperidade d'aquella nação progride rapidamente; tanto que o governo acaba de propor uma consideravel reducção nos impostos.

Quando se organisou o Zollwerein, adoptou-se a isenção de direitos, como bases das tarifas do commercio de cereaes; e comquanto se reservasse a cada um dos estados a faculdade de tomar medidas extraordinarias nos casos excepcionaes, desde 1846 nenhum usou d'essa faculdade, apesar das crises alimentares de 1853 e 1857.

Na Austria rege o principio da liberdade do commercio de cereaes, mediante o modico direito de 33 réis na importação, desde o principio d'este seculo.

Na Hollanda decretou-se em 1847 a livre importação de cereaes, com o insignificante direito de 12 réis por alqueire.

Em 1848 a Belgica seguiu o exemplo da Hollanda, revogando o systema da escala movel que ali regia.

Na Suissa reina o systema da liberdade commercial ha muitos annos; outrotanto acontece na propria Turquia; a Russia adoptou-o em 1857.

Em todos os antigos estados que formam actualmente o novo reino da Italia, era livre o commercio de cereaes, a não ser em Napoles, onde hoje tambem se acha estabelecido.

A França offereceu grande resistencia ao estabelecimento do commercio livre de cereaes; mas a força das idéas justas é tão poderosa e insistente que, por fim, vence todos os obstaculos. O decreto de 15 de junho de 1861, abolindo a escala movel e todas as leis restrictivas do commercio de cereaes, é o triumpho completo dos bons principios, das mais sãs doutrinas da sciencia economica.

Se a liberdade do commercio de cereaes houvesse manifestado a sua beneficente influencia em um ou outro paiz, poder-se-ía attribuir este lisonjeiro acontecimento ás disposições especiaes da localidade; porém, sendo adoptado o mesmo principio em diversos tempos, em diversos paizes e debaixo do influxo de diversas circumstancias, produzindo sempre o mesmo resultado, ou havemos de negar o rigor do criterio da verdade, e fechar os olhos á luz da evidencia, ou reconhecer a efficacia do principio e a bondade das suas consequencias.

Julgo, senhores, que as considerações, que dou por terminadas, offerecem ampla base á medida que vou propor-vos e que consiste unicamente em dar permanencia ás disposições legislativas, provisorias e excepcionaes por que se tem regido, ha bastantes annos, o nosso commercio de cereaes.

Parecerá inconsequente a medida aos que, lendo esta exposição, onde se invocam os principios da liberdade commercial, e se proclama a excellencia dos seus resultados, virem carregado um direito na importação de cereaes estrangeiros.

Não são por certo os generos alimentares da primeira necessidade os mais proprios para soffrerem a acção do fisco, mormente estando elles já affectados do direito de consumo que pagam na alfandega municipal. Estas observações deveriam ser attendidas se não preponderassem outras, que se julgaram mais imperiosas. Uma lei de caracter permanente, que vae influir sobre a primeira das nossas industrias, devo ir revestida de todas as condições que lhe grangêem, senão o applauso de todos os interessados, pelo menos a aceitação do maior numero.

Com essa não duvida o governo contar, porque os mais estrenuos partidarios da ampla liberdade commercial são os proprios que, nas manifestações do progresso, preferem a morosidade firme e segura á celeridade imprudente e arrebatada; emquanto que os principaes defensores das ideas menos liberaes reconhecem de bom grado que, no meio d'esta geral transformação das sociedades modernas, a suspensão do movimento é a extincção das fontes da vida e o torpor da morte. Sendo assim, se uns retardarem o passo, e outros se principiarem a mover, marchando pelo mesmo caminho, hão de, quando menos o cuidarem, encontrar-se, e abraçar-se irmãmente no mesmo ponto, como se abraçaram Cobden e Peel.

Para realisar este prudente intuito toma-se o periodo de quatro annos, decrescendo o direito por biennios, até se tornar permanente. Foi o que na Gran-Bretanha se praticou em 1846.

Uma das disposições mais importantes da proposta é o estabelecimento de dois depositos de cereaes, um em Lisboa, outro no Porto. Não fatigarei a vossa attenção expondo as vantagens que d'ahi hão de provir, por ser obvia a comprehensão dellas. Oxalá que a este e a muitos outros respeitos se tivessem abraçado os esclarecidos conselhos do nosso douto escriptor Duarte Ribeiro de Macedo, porque assim ter-se-íam realisado os seus patrioticos votos. Faremos Lisboa o mais rico emporio do mundo, deposito e escala de todo o commercio d'elle.

Permitti-me, senhores, que conclua, citando as notaveis palavras de Turgot, cuja memoria será sempre venerada de todos os homens de bem; palavras, que lhe concitaram o desagrado publico; que se perderam abafadas pelo temeroso som de uma revolução espantosa; e que, passados quasi cem annos, proferidas solemnemente no alto de um throno, serviram de fundamento a uma lei, que rege uma das mais poderosas e illustradas nações do mundo.

«Quanto mais livre, animado e extenso for o commercio, tanto mais prompta, efficaz e abundantemente será o povo provido; tanto mais os preços serão uniformes, e tanto menos se afastarão do preço medio e habitual, que é necessariamente o regulador dos salarios... O rei deve, a bem de seus povos, honrar, proteger e animar de um modo especial o commercio de cereaes, que é o mais necessario a todos.»

Com estes fundamentos tenho a honra de submetter á vossa consideração a seguinte proposta de lei:

Artigo 1.° É livre a exportação de cereaes, trigo, milho, centeio, cevada e aveia, debaixo de qualquer fórma, por todos os portos seccos e molhados do reino, mediante um direito de 20 réis por 100 kilogrammas, ou 2 réis por alqueire.

Art. 2.° É permittida a importação de cereaes estrangeiros, trigo, milho, centeio, cevada e aveia, pelos portos seccos e molhados do reino.

§ unico. Os referidos cereaes, em grão, pagarão os direitos estabelecidos por biennios na tabella que faz parte d'esta lei; reduzidos a farinha, em rama, pagarão mais 10 por cento, e sendo espoada mais 25 por cento dos mencionados direitos.

Art. 3.° Os cereaes estrangeiros, admittidos na conformidade do artigo antecedente, ficam tambem sujeitos aos impostos que pagam os nacionaes despachados para consumo.

Art. 4.° No fim de quatro annos ficarão permanentes os direitos consignados na tabella com relação ao ultimo biennio.

Art. 5.° É permittido o deposito de cereaes estrangeiros em Lisboa e Porto, com previo pagamento dos direitos estabelecidos na tabella de que trata o artigo 2.° d'esta lei, os quaes direitos serão restituidos no caso de reexportação.

Art. 6.° O governo fará os regulamentos necessarios para a execução d'esta lei.

Art. 7.° Fica revogada toda a legislação em contrario.

Ministerio das obras publicas, commercio e industria, em 21 de fevereiro de 1865. = João Chrysostomo de Abreu e Sousa.

Tabella a que se refere o artigo 2.° da proposta de lei d'esta data

[Ver diário original]

Ministerio das obras publicas, commercio e industria, em 21 de fevereiro de 1865. = João Chrysostomo de Abreu e Sousa.

Foi enviada á commissão de agricultura, ouvida a de fazenda.

PROPOSTA DE LEI N.° 15-CCC

No anno de 1678 surgiram nos portos da Gran-Bretanha as primeiras 408 pipas de vinho, produzido nas margens do nosso rio Douro, e tão bem agourada foi esta tentativa mercantil, que já na era de 1728 a exportação d'aquelle valioso producto se elevou ao numero de 25:870 pipas.

Do que se deduz concludentemente que a industria vinicola do Douro, no espaço de meio seculo, superando os perigos da infancia, percorreu todas as phases da sua fundação para se constituir por fim independente e forte.

E não foi sem viva luta que ella alcançou os fóros de verdadeira industria; porque os vinhos de França lhe disputavam tenazmente os mercados britannicos que ha longos annos assenhoreavam. Só de Bordéus, para os abastecer, saíam annualmente mais de duzentos navios carregados d'aquelles vinhos.

Assignala-se este primeiro periodo da historia vinicola do Douro por uma circumstancia digna da maior attenção. Sem duvida é assas notavel que aquella industria, entregue ao seu proprio movimento, podesse surgir, crescer e prosperar sem um acto de soberania que a regulasse, sem uma medida protectora que lhe desse amparo e favor. Nasceu, creou-se e floreceu á sombra da liberdade!

A industria vinicola do Douro, depois de uma existencia de oitenta annos, tendo já exportado mais de 90:000 pipas de vinho, havendo conquistado o melhor mercado do mundo, é então declarada inhabil para ser submettida á tutela de uma suprema regencia economica!

Pelo alvará do 10 de setembro de 1756, referendado pelo insigne ministro do senhor D. José I, foi instituida a companhia geral da agricultura das vinhas do Alto Douro.

N'esta data começa o segundo periodo da historia vinicola do Douro, que se torna memoravel pelas medidas de extremo rigor que se empregaram para fazer respeitar as ordens do soberano. A cidade do Porto foi occupada militarmente, e só o terror do cadafalso pôde conter os animos irritados contra a nova instituição.

Mas o fundador da companhia não pôde auspiciar a inauguração d'ella com este cruento sacrificio, nem com o successive acrescentamento do seus privilegios e exclusivos. As devassas, as alçadas, os carceres, os degredos, o confisco não bastaram para que o alvará de 10 de setembro fosse cumpridamente observado. As suas principaes disposições nunca tiveram fiel execução. Os que eram chamados para esse fim, foram os primeiros a illudi-las e sophisma-las. O primeiro provedor da companhia ficou envolvido em processo judicial como introductor de vinhos de fóra da demarcação.

É muito para notar o insignificante augmento da exportação dos vinhos do Douro nos primeiros trinta annos da fundação da companhia, augmento que deveria ser avultado, porque os direitos sobre os vinhos francezes eram cada vez mais elevados, emquanto que os nossos eram muito favorecidos pelo tratado de Methuen; porque a população e riqueza da Gran-Bretanha se desenvolviam com ascendente progressão; e finalmente porque a companhia, dispondo a seu falante da fortuna do Douro, monopolisando os generos e os capitães, podia alargar amplamente os limites do consumo em todos os mercados conhecidos e explorar outros de novo.

O que não pôde conseguir-se pela acção das restricções e exclusivos, realisou-se pela simples eventualidade dos acontecimentos da Europa.

A revolução franceza e o bloqueio continental occasionaram uma incessante procura dos nossos vinhos. A companhia, que se instituiu para presidir aos destinos do Douro, mostrou-se impotente no momento em que podia realisar o sonho de seus fins — a prosperidade d'aquelle paiz! Foi preciso recorrer á intervenção do commercio, affrouxando-se o rigor dos regulamentos restrictos. A companhia fechou os olhos, e os agentes da fraude e do contrabando exportando, por anno, mais de quarenta mil pipas de vinho, durante a epocha decorrida de 1788 até 1810, fizeram nadar em riqueza os habitantes do Douro.

A paz geral foi um infortunio para aquelle paiz. Em 1820 ergueram-se vozes muito auctorisadas, para relatar as desfavoraveis circumstancias da lavoura do nosso paiz vinhateiro. A companhia estremeceu, e assim abalada prolongou a sua existencia, até que um decreto da illustrada dictadura do immortal Duque de Bragança lhe suspendeu o exercicio das suas funcções.

Ficou livre a producção e commercio dos vinhos do Douro desde 1834 até 1838, periodo assas curto para se manifestarem os resultados do regimen liberal. Todavia a exportação não diminuiu, e os preços do vinho, comquanto descessem, não foi tanto, como em epochas anteriores e posteriores, em que vigorava o regimen restrictivo.

A carta de lei de 7 de abril de 1838 restabeleceu algu-

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mas disposições do systema restrictivo, sem que as condições da lavoura do Douro tivessem algum melhoramento.

Procurou-se o remedio aos males, que se apregoavam em altas queixas, na rehabilitação da antiga companhia, subsidiada pelo governo com a quantia de 150:000$000 réis.

A carta de lei de 21 de abril de 1843, que operou aquella rehabilitação, não fez calar os clamores do Douro. De 1846 a 1848 o preço dos vinhos tocou os extremos da escala descendente.

Outra eventualidade veiu ainda salvar o Douro. A molestia das vinhas, principiando a manifestar-se em diversos paizes viticolas da Europa, só mais tarde invadiu Portugal, e por este motivo os vinhos do Douro foram procurados e negociados por altos preços.

O decreto de 11 de outubro de 1852 supprimiu o subsidio á companhia da agricultura e commercio dos vinhos do Douro, e substituiu as funcções d'esta por uma commissão reguladora, deixando em pleno vigor a legislação restrictiva, que actualmente subsiste.

D'estas rapidas considerações historicas vê-se claramente que a fundação, progresso e prosperidade da industria vinicola do Douro é essencialmente devida a causas estranhas á influencia da legislação restrictiva.

Está portanto demonstrado que o systema appellidado protector do Douro é completamente inutil para alcançar o fim a que se propõe, sem que este seja o seu maior defeito, porque, alem de inutil, é sem duvida prejudicial á propria industria que pretende favorecer.

Dir-se-ha que não tem sido fielmente executado, porém esta redarguição sómente poderia ter valor se alguem offerecesse demonstração que tal systema era exequivel.

Se nos tempos em que a sociedade tinha outra organisação politica, em que a acção da auctoridade publica era mais prompta e imperiosa, em que a execução do systema restrictivo era confiada a uma poderosa corporação, permunida de todos os meios coactivos; se pois n'esses tempos nunca se poderam evitar as repetidas infracções das leis restrictivas, como se ha de hoje acreditar na efficacia da sua exacta observancia?

Quando um bom principio fundamenta qualquer systema, se esse principio é illudido e sophismado, o systema perece forçosamente. No Douro ou a fraude annullou o systema, ou o systema proscreveu a fraude. Provada a existencia da fraude, está provada, pelo menos, a inutilidade do systema.

Não é portanto rasoavel nem licita a conservação de uma legislação, cujas disposições são mais favoraveis aos que as infringem, do que aos que as observam.

Os vinhos do exterior são furtivamente introduzidos no districto da demarcação, e por isso os arrolamentos não representam a verdadeira producção dos terrenos privilegiados; e menos a representam ainda, porque são dadas a rol quantidades que não existem. A qualificação dos vinhos pelo processo das provas é uma ficção; para o commerciante, que é o verdadeiro qualificador, não portam fé os provadores officiaes, alem de que os vinhos introduzidos de fóra da demarcação, a coberto das guias que se vendeta, não são submettidos ás provas, sem que por isso deixem de ser habilitados para a exportação. A venda das guias não é sómente um acto fraudulento, mas tambem uma contradicção fundamental do systema restrictivo. Finalmente a inevitavel introducção clandestina nos depositos do vinho da demarcação, annulla de uma só vez todo o processo da separação, todas as garantias da pureza e genuinidade dos vinhos privilegiados.

E póde um systema, que se identifica com tantos abusos, considerar-se como a egide protectora dos preciosos vinhos do Douro?

Mas ainda é mais inconsequente que esses abusos se convertam em um intoleravel privilegio.

Em nome do principio salvador da lavoura do paiz vinhateiro excluem-se dos mercados estrangeiros os vinhos que se não produzem na area da demarcação, emquanto que os abusos d'aquelle principio auctorisam os lavradores privilegiados a comprar os vinhos excluidos e a negocia-los como seus proprios.

D'este modo o Douro tem dois exclusivos, um de facto e outro de direito. A lei só permitte a exportação dos vinhos produzidos no districto da demarcação; este é o exclusivo de direito.

Porém o abuso dos arrolamentos e da venda das guias habilita os lavradores do Douro a simular quantidades que não existem, e que elles preenchem com vinhos de fóra da demarcação para todos os effeitos legaes: este é o exclusivo de facto!

Por mais santos e justos que sejam os seus principios intencionaes, um systema que na sua execução produz estes resultados; não se póde sustentar á luz da rasão, da justiça e da moralidade publica.

A par d'estas considerações vem outra muito ponderosa. Na lei fundamental do estado está sanccionada a liberdade de todas as industrias, que não forem prejudiciaes á salubridade e á moralidade publica.

Ha muitos annos que se debate a questão do Douro, e que se ouve o brado de productores e commerciantes, requerendo o livre exercicio da sua industria, garantido pela carta constitucional. Os homens illustrados de todos os partidos consideram o exclusivo da barra do Porto como vestigio commemorativo de uma instituição feudal. Os economistas mais distinctos condemnam aquella excepção ao direito commum, em nome dos principios da liberdade, do progresso e da civilisação.

E não é só no paiz que se protesta contra a permanencia de tão inutil como obnoxio systema. Aconselham ar sua abolição diplomatas esclarecidos e amigos; solicitam-a os principaes consumidores dos vinhos do Douro; e fazem incessantes votos pela liberdade da barra do Porto os nossos irmãos residentes no imperio do Brazil.

O governo desconheceria a sua missão constitucional se por mais tempo se demorasse em submetter ao vosso illustrado exame esta momentosa questão, formulando em uma proposta de lei o modo como elle entende que se póde e deve resolver, em harmonia com os bons principios.

Não se fará violencia a ninguem, porque no imperio dos bons principios não ha oppressões nem tyrannias.

Reconhece o governo que a industria vinicola do Douro é uma copiosa fonte de riqueza publica, e que, pela singularidade das suas condições naturaes, occupa, entre todas as industrias congéneres, um logar distincto e excepcional.

Os terrenos das íngremes ladeiras do Douro produzem excellentes uvas, mas são improprios para outras cultivações. A Providencia, esterilisando-os para outros fructos, compensou-os com a dotação da productividade dos mais variados e generosos vinhos do mundo.

Este privilegio natural é que constitue a verdadeira riqueza do Douro; as leis especiaes, que têem vigorado para o manter e aperfeiçoar, são as que o tem posto em arriscadas convulsões.

Em geral, tudo o que se não fizer pela invervenção da liberdade e da responsabilidade individual, será sempre mal feito. E preciso que o lavrador do Douro se convença que é elle proprio o mais interessado,na conservação da pureza e genuinidade dos seus vinhos. É só elle que deve receber o premio ou castigo da boa ou má gerencia da sua industria. Nenhuma lei póde dar ao productor a intelligencia, o zêlo e a probidade que elle não tem. Compete sómente aos poderes do estado promover, por meio dos estabelecimentos da instrucção publica, a educação intellectual, profissional e moral dos cidadãos. Devem elles persuadir-se que a intelligencia, o trabalho e a moralidade são os principaes agentes da sua riqueza individual.

Deverá portanto o governo, abolido o exclusivo da barra do Porto, abandonar a causa do Douro, e tornar-se indifferente á sua boa ou má sorte?

Não, que o governo é o supremo tutor dos interesses de todo o paiz, e cumpre-lhe, no limite das suas attribuições, vigiar por elles, guia-los por bom caminho, soccorre-los nas suas precisões extraordinarias e promover o seu acrescentamento; mas sempre sem perturbar a liberdade e actividade de cada um, nas suas inoffensivas e licitas manifestações.

Em harmonia com estes luminosos principios tem o Douro incontestavel direito a que se respeitem e confirmem os privilegios que a natureza concedeu á sua valiosa producção.

O melhoramento das vias de communicação é uma verdadeira garantia dos privilegios que a natureza concedeu ao Douro, na bondade dos seus vinhos; garantia, por certo, superior aos resultados do arrolamento.

Os concursos, que excitem a rivalidade dos productores, as exposições permanentes nos mercados estrangeiros que patentêem a riqueza e variedade de nossos vinhos, são garantias mais seguras d'aquelles privilegios, do que a qualificação dos mesmos vinhos pelo inqualificavel processo das provas. E sobretudo a fundação de um estabelecimento de credito, que forneça capitães aos productores, e que facilite as transacções da compra e venda, é certamente uma garantia mais solida e efficaz da prosperidade do Douro, do que o exclusivo da barra do Porto.

Com estas e outras medidas complementares é que o governo entende que se respeitam, confirmam e amplificam os privilegios naturaes do Douro, compromettidos e postergados por uma legislação anti-economica, contradictoria e conhecidamente adversa aos proprios interesses dos que a sustentam.

A creação de depositos especiaes, onde sómente os vinhos produzidos no districto da demarcação possam ser armazenados, e d'onde possam ser expedidos com marca official, ha de dar em resultado o unico meio, simples e seguro, de operar a distincção e separação dos vinhos do Douro. A liberdade da exportação de todos os outros vinhos ha de facilitar o processo d'aquella separação, assim como a prohibição da saída pela barra a complicava no actual systema restrictivo.

Os vinhos do exterior da demarcação, que eram excluidos da exportação, procuravam esta vantagem illudindo a mais severa fiscalisação, e batisando-se com a denominação de vinhos do Douro. Nos mercados estrangeiros esta denominação é valiosa, porque se póde argumentar com o exclusivo da barra, para encobrir a verdadeira procedencia dos vinhos exportados.

Creados pois os depositos especiaes, a liberdade da barra converter-se-ha em verdadeira garantia da pureza e genuinidade dos vinhos do Douro.

Entendeu o governo que conviria conservar a demarcação actual e todas as mais disposições da legislação em vigor, que não contrariam a liberdade industrial, garantida na lei fundamental do estado, porque assim se facultam á lavoura os meios de se organisar, em harmonia com os principios constitucionaes, para todos os fins do seu progressivo aperfeiçoamento.

Em summa o governo, convencido de que algumas disposições da legislação restrictiva são um anachronismo economico, que não realisam os intuitos da sua promulgação, que prejudicam o bem commum do Douro, que impedem o progresso de uma das nossas mais importantes industrias, que originam fraudulentos e detestaveis abusos, que suscitam justissimas reclamações dos interesses por ellas offendidos, e que finalmente são uma excepção odiosa aos principios constitucionaes, entendeu que era chegada a opportunidade de vos apresentar uma proposta de lei, estabelecendo desde já a liberdade da exportação de todos os vinhos pela barra do Porto, e deixando para mais tarde a completa revisão e modificação de todo o systema restrictivo do Douro, depois de um exame e estudo circumspecto feito na propria localidade por pessoas competentes.

Por todas estas considerações tenho a honra de submetter ao vosso esclarecido exame e approvação a seguinte proposta de lei:

Artigo 1.° É livre a exportação, pela barra do Porto, de todos os vinhos produzidos em territorio portuguez.

Art. 2.° Os vinhos que se exportarem pela barra do Porto, e por todos os portos molhados do continente do reino, pagarão o direito de 250 réis por hectolitro.

Art. 3.° Os dois artigos antecedentes terão sómente execução depois de passados tres mezes da publicação d'esta lei.

Art. 4.° É creado um ou mais depositos especiaes, onde unicamente poderão ser armazenados os vinhos produzidos no districto da actual demarcação do Douro.

Art. 5.° Os exportadores dos vinhos admittidos e armazenados nos depositos especiaes poderão requerer guias e marcas officiaes, que attestem a procedencia dos mesmos vinhos.

Art. 6.° Fica o governo auctorisado a decretar, em beneficio da producção e commercio dos vinhos do alto Douro:

1.° A construcção de uma rede de estradas, que satisfaça ás necessidades da viação d'aquelle paiz, sendo consignada, para esta especial applicação, a somma annual de réis 60:000$000, deduzida da verba votada no orçamento para estradas municipaes e districtaes do reino;

2.° A fundação de um estabelecimento de credito, a fim de auxiliar a industria vinicola do Douro; podendo applicar até á quantia unica de 30:000$000 réis, pelo modo que julgar mais conveniente, para promover a referida fundação;

3.° O estabelecimento de uma quinta especial de viticultura e venologia, na conformidade do decreto de 29 de dezembro de 1864.

Art. 7.° Fica o governo tambem auctorisado a decretar, em beneficio da producção e commercio de todos os vinhos portuguezes:

1.° O estabelecimento de exposições permanentes de vinhos nos principaes mercados estrangeiros;

2.º A conferir, em concursos publicos, premios de honra aos viticultores mais distinctos.

§ unico. Para os fins indicados n'este artigo será inscripta annualmente no orçamento a verba de 10:000$000 réis.

Art. 8.° Continua a subsistir a actual demarcação do Douro e mais disposições da legislação anterior, que se não oppozerem á execução da presente lei.

Art. 9.° Será nomeada uma commissão, composta de pessoas competentes, a qual, depois dos estudos necessarios, na propria localidade, proporá ao governo as providencias que julgar convenientes a melhorar as condições da producção e commercio dos vinhos do Douro.

Art. 10.° Fica o governo finalmente auctorisado á decretar as medidas fiscaes e regulamentos que julgar necessarios para a execução das diversas disposições d'esta lei, dando conta ás côrtes do uso que fizer das preditas auctorisações.

Art. 11.° Fica revogada toda a legislação contraria.

Ministerio das obras publicas, commercio e industria, 21 de fevereiro de 1865. = João Chrysostomo de Abreu e Sousa.

Foi enviada á commissão de vinhos, ouvidas as de fazenda, obras publicas, commercio e artes e agricultura.

Teve tambem segunda leitura uma proposta de lei do sr. ministro das obras publicas para se conceder um subsidio á associação do palacio de crystal, do Porto, a qual será publicada no Diario de ámanhã.

PROPOSTA

Renovo a iniciativa do projecto de lei n.° 120, de 1860, que substituiu na discussão o projecto n.° 137, de 1862, que manda contar aos officiaes militares, presos por ordem do usurpador, o tempo que estiveram presos, como de effectivo, para os effeitos da reforma.

Sala da camara, 21 de fevereiro de 1865. = Francisco Maria da Cunha.

Foi admittida e enviada á commissão de guerra, ouvida a de fazenda.

REQUERIMENTO

Requeiro que os codigos penal e de processo criminal da armada sejam remettidos á mesma commissão especial que tem de dar o seu parecer sobre o codigo penal do exercito. = Levy Maria Jordão.

Foi admittido.

O sr. Placido de Abreu: — Desejava que a mesa me informasse qual é a commissão que tem de dar parecer sobre esta proposta.

O sr. Presidente: — Reservava dar conta á camara dos membros que devem compor esta commissão, para depois da approvação da proposta do sr. Levy.

A commissão especial, a que ha de ser remettida a proposta apresentada pelo sr. ministro da guerra sobre a approvação do codigo penal militar, será composta dos seguintes srs.:

João Baptista da Silva Ferrão de Carvalho Mártens.

Barão do Rio Zezere.

Antonio José de Barros e Sá.

João José de Alcantara.

Francisco Maria da Cunha.

Levy Maria Jordão.

Joaquim José Gonçalves de Matos Correia.

Não havendo quem mais pedisse a palavra, foi posto á votação e approvado o requerimento do sr. Levy.

O sr. Presidente: — Hontem o sr. Ayres de Gouveia mandou para a mesa uma proposta, que foi admittida, para se eleger uma commissão encarregada de apresentar a reforma da legislação sobre baldios, logradouros communs, praias

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do mar, a qual se vae ler novamente para entrar em discussão.

Foi lida na mesa.

O sr. Quaresma: — Parece-me que esta proposta não póde ser approvada ou rejeitada sem ser ouvido o sr. ministro do reino, porque é uma cousa seria e gravissima, e é necessario saber se o sr. ministro está ou não de accordo com ella.

O sr. Presidente: — Então o sr. deputado propõe o adiamento da proposta?

O Orador: — Sim, senhor, proponho o adiamento até estar presente o sr. ministro do reino.

Foi logo approvado o adiamento nos termos propostos.

O sr. Carlos Bento: — Mando para a mesa a seguinte proposta (leu).

Eu entendo que devo fundamentar longamente esta proposta, mas não o faço na occasião presente, e mesmo não o farei, até saber com antecipação se tenho necessidade de expender as rasões por que a fiz.

Mando-a para a mesa, e v. ex.ª lhe dará o destino conveniente.

O sr. Julião Mascarenhas: — Pedi a palavra para participar a v. ex.ª e á camara, que o sr. deputado Eduardo Cabral não tem comparecido ás sessões passadas, e não, comparecerá a algumas sessões futuras, em consequencia do seu estado de saude.

Mando para a mesa a participação por escripto.

O sr. D. José de Alarcão: — Mando para a mesa os seguintes requerimentos (leu).

O projecto que está em discussão n'esta camara sobre a desamortisação é muito serio, mas este de que vamos tratar é ainda mais serio (apoiados).

N'essa occasião poderei dizer alguma cousa; por agora abstenho-me d'isso e peço a v. ex.ª que mande estes requerimentos ao seu destino.

O sr. Paula Medeiros: — Mando para a mesa o seguinte requerimento (leu).

O sr. Lavado de Brito: — Mando para a mesa as seguintes notas de interpellação ao sr. ministro das obras publicas (leu).

O sr. D. Luiz de Azevedo: — Tenho a honra de mandar para a mesa o requerimento do capitão sem accesso servindo de ajudante da praça do Porto, Manuel José Ribeiro, que, pelos motivos expostos no mesmo requerimento, pede se lhe conte como tempo de serviço activo, para o effeito da reforma, todo aquelle em que tem estado empregado na referida commissão. Por esta occasião cumpre-me dizer a v. ex.ª e á camara que desde 1847 conheço este official, e sempre vi n'elle

O militar honradissimo, e extremamente dedicado ao serviço publico; e o que eu digo em seu abono, dizem no de certo todos os que de perto, como eu, o conhecem, e muito mais do que nós dizemos, di-lo o mui digno general commandante da 3.ª divisão militar, s. ex.ª o sr. visconde de Leiria, n'um attestado que vae junto ao requerimento, o qual é não só um documento honrosissimo para o mesmo official, mas tambem a prova mais cabal de que se elle não tem até hoje obtido deferimento da sua pretensão, não é isso filho da falta de justiça da sua parte, mas sim de infelicidade propria. Rogo a v. ex.ª queira mandar este requerimento ás commissões competentes.

Igualmente mando para a mesa, por parte da commissão de guerra, dois requerimentos para serem enviados ao ministerio da guerra, a fim de emittir a sua opinião sobre elles.

Por esta occasião tambem peço a v. ex.ª que torne a chamar a attenção do sr. ministro das obras publicas, sobre uma nota de interpellação que lhe annunciei na sessão de 1 do corrente, interpellação que julgo bastante importante, por isso que ella versa sobre uma infracção de lei.

O sr. Julio do Carvalhal: — Mando para a mesa, por parte da commissão de guerra o seguinte requerimento (leu).

O sr. Sant'Anna e Vasconcellos: — A camara de Arruda incumbiu-me, por interposta pessoa, de pedir a esta camara a concessão de um pardieiro que serviu de celeiro da extincta commenda da ordem de S. Thiago da Espada, para n'elle estabelecer uma hospedaria militar e edificar as aulas do ensino publico.

Este pedido foi feito na legislatura passada; creio que não houve tempo para se fazer esta concessão, e peço a v. ex.ª que, pelos meios ordinarios de que a mesa se serve, faça enviar estes papeis á commissão competente, para sobre elles dar o seu parecer; quero dizer, renovo a iniciativa d'este pedido em nome da camara de Arruda, e mando para a mesa a competente indicação para esse fim.

O sr. Eduardo Cunha: — Peço a v. ex.ª que, logo que esteja presente o sr. ministro das obras publicas, me conceda a palavra para me dirigir a s. ex.ª sobre um objecto grave e urgente.

O sr. Affonso Botelho: — Tambem peço a palavra para quando estiver presente o sr. ministro das obras publicas, para o convidar a explicar-se sobre um negocio urgente.

ORDEM DO DIA

CONTINUAÇÃO DA DISCUSSÃO, NA ESPECIALIDADE, DO PROJECTO DE LEI N.° 8

O sr. Presidente: — Continua com a palavra o sr. Faria Barbosa, a quem ficou reservada de hontem.

O sr. Faria Barbosa: — Sr. presidente, como que. divisei hontem terem as minhas palavras sensibilisado algum tanto alguns dos nobres deputados, eu o sinto, porque lhe tributo a maior consideração.

A verdade é amarga e até desagradavel, porque não se apresenta garrida e adornada; como eu entendo que ella se deve dizer sempre aos ministros e aos réis, e que n'esta casa se não deve usar de outra linguagem — a verdade e só a verdade, nem de outra sorte se póde cumprir o mandato.

Se os nobres deputados desejam a prosperidade da nação, tambem eu a desejo; se desejam que ella se eleve á posição das nações mais cultas, tambem é esse o meu sentimento.

Todos nos dirigimos pela mesma estrada e ao mesmo fim, mas dá-se a differença que uns querem marcha accelerada, e outros o passo ordinario; uns querem que se caminhe nos melhoramentos, contrahindo emprestimos sobre emprestimos, sobrecarregando o thesouro com uma divida enormissima e assustadora, e fazendo pesar sobre as contribuições, com que não podem; e outros querem que se prosiga nos melhoramentos segundo o comportarem as rendas do estado e sem vexame dos povos; uns querem que se trate só do presente, e outros querem que se attenda tambem ao futuro.

Não servirá de exemplo ao governo essa grande crise financeira da Hespanha que, a não ser esse rasgo prodigioso de patriotismo da rainha, dotando o thesouro com 25.000:000$000 réis, qual seria a sorte da Hespanha?

Sr. presidente, eu já disse hontem que concordava com o principio, mas não concordava com o methodo e fórma da desamortisação estabelecida no projecto.

O artigo 2.° determina que = os laudemios sejam reduzidos á quarentena =; desejo saber se esta disposição comprehende as subemphyteuses; preciso tambem saber qual a base que se toma para o valor do laudemio. É o preço da remissão ou o valor do predio, abatido o fôro? E preciso saber ainda mais — havendo laudemios de cinco, de dez, de vinte, de quarenta, dá-se um valor igual para todos ou para cada um d'elles?

O projecto nada diz a este respeito; peço pois ao nobre relator da commissão me esclareça.

Não bastará obrigar as corporações a vender os seus bens por papel? Querer-se-ha porventura tambem obriga-las a vender barato?

Se os subemprasamentos forem comprehendidos, se o laudemio for deduzido do valor do predio, abatido o fôro, se a cada laudemio se não der o devido valor, voto contra o artigo.

Já hontem mandei para a mesa uma proposta, para serem excluidas as subemphyteuses.

Tambem me não posso conformar com o disposto do artigo 3.°, quando se diz: «Findo o praso estabelecido (o de seis mezes), o governo mandará proceder em hasta publica».

Este espaço é mui limitado. Os foreiros, durante elle, não se podem habilitar para remirem. Hontem, disse o sr. ministro da fazenda que = que era de grande vantagem para a liberdade da terra o consolidarem-se os dois dominios =, e apresenta-se um espaço d'este para não poderem haver remissões, irem os bens á praça, ficarem os dominios divididos e adeus as vantagens de s. ex.ª!

Porque se não falla a verdade? O projecto não quer liberdade da terra, o que quer é dinheiro, e com pressa.

Sou de opinião que, depois de findos os seis mezes, se concedam mais doze, e n'este sentido mando outra proposta para a mesa.

Desejava tambem que o nobre relator me esclarecesse que fundamentos ou motivos teve a commissão para, nos seus declarados no artigo 4.°, não determinar o rateio, quando a arrematação se faça antes de vendido o fôro, como determina nos declarados do artigo 5.°

Que differença se descobriu entre uns e outros? Porventura serão uns mais privilegiados e os outros menos? Porque se reconhece o senhorio com direito ao rateio nos do 5.° artigo e não se reconhece nos do 4.°? Isto é injusto e é contradictorio; entendo que o preceito do artigo 5.° deve comprehender tambem o do artigo 4.°; e n'este sentido mando mais outra proposta para a mesa.

Desejava igualmente saber porque no artigo 6.º se não declaram os fóros das igrejas, e foram declará-los no n.° 2.° do § 1.°; e porque declarando-se os fóros, senão declaram os passaes? Que differença se achou entre uns e outros?

Isto mostra que se reconhece a gravidade do projecto, que se teme e que não ha coragem para descarregar de uma vez o golpe sobre todos. Os fóros das igrejas collocaram-se mais retirados para se não fazer tanta bulha, e julgou-se mais cauteloso o ir-se por partes tomando conta d'elles todos. Pois que elles todos hão de ser absorvidos, isso para mim é que é de fé.

Sr. presidente, as antigas leis da desamortisação, as d'esses tempos retrogrados, como se lhe chama, eram mais justas. Ellas não taxavam os preços, não obrigavam a vender por papel, e respeitavam duas casas — a de Deus e a dos pobres, as irmandades do Santissimo Sacramento, as misericordias e os hospitaes. Por essas leis as irmandades foram as que receberam o dinheiro e não o governo. Se assim se procedesse, apesar de que o predio é mais seguro que o mutuo, este projecto teria menos opposição.

Sr. presidente, as irmandades do Santissimo são as que mais concorrem para o esplendor do culto, são as que conservam e veneram a casa de Deus; concedeu-se um privilegio á casa do Rei da terra na questão dos vinculos, e não se ha de conceder outro igual á casa do Rei dos Reis, á casa de Deus? A religião que professâmos, a religião do estado, reclama-o.

Sr. presidente, as casas das misericordias e hospitaes já perderam muito com os padrões e papel moeda, os bemfeitores estão-lhe a fugir, porque ha muito se diz que o governo vae lançar mão de tudo; os pagamentos do governo podem-se retardar, e muito, não é a primeira vez que acontece, e que hão fazer aos doentes, aos desgraçados, quando faltem os meios? Os governos que denominam retrogrados sempre tiveram a maior consideração para com estes estabelecimentos de caridade, sempre os protegeram, sempre os auxiliaram. Quer a familia liberal seguir outro caminho, ir de encontro ao sagrado preceito da caridade, e em logar de auxilio e protecção cercear-lhe os meios?

Sr. presidente, sou franco, não creio, não tenho a confiança que nos querem incutir, as inscripções hão de ter a sorte dos padrões; a questão é de tempo; a administração do governo, a sua marcha, o seu systema não o mostra bem claramente?

Sr. presidente, ainda desejara mais ser esclarecido. Este projecto prohibe ás camaras o continuar nos aforamentos? Se os fizerem e lhes for permittido, que destino têem esses novos fóros? Espero que o nobre relator nos diga qual é o pensamento do projecto n'esta parte, porque o projecto não falla.

Querem-se melhoramentos, grita-se «progresso e mais progresso», apparecem leis para estradas municipaes e cortam ás camaras com este projecto os meios precisos para se poderem fazer.

Os laudemios e consentimentos não é uma das verbas de sua receita? Com este projecto finou-se. As camaras de Guimarães e de Braga têem vendido fóros a 40 pensões, e o governo quer obrigar as camaras a uma taxa, á de 20 pensões. Que interesse tem o governo na baixa do preço, prejudicando assim os municipios, os povos, as corporações e mesmo o governo, que menos deve receber?

Quem poderá negar que tudo isto procede dos apuros em que se vê o governo, e que o que se quer é dinheiro?

Sr. presidente, este projecto cerceia, e muito, estes estabelecimentos, obsta aos melhoramentos dos concelhos, espanta a caridade publica e mostra pouco acatamento para com a casa de Deus.

Não posso, pelas rasões expendidas, approvar o artigo 6.°, e só votarei pela desamortisação facultativa d'estas tres corporações — irmandades do Santissimo, camaras municipaes e hospitaes; e tambem votarei com escrupulo o determinar-se que no praso de dois annos façam estas corporações a alienação dos referidos bens, e, não o fazendo, o governo poderá apresenta-los em hasta publica.

N'este sentido mando duas propostas para a mesa.

Os fóros das igrejas foram dados pelos povos para a sustentação do culto e dos parochos, e como taes devem ser reputados, e não podem nem devem ser comprehendidos n'este projecto. Quer-se tomar conta d'elles e obrigar os povos a pagarem uma outra sustentação? Não estarão elles já tributados de mais? Porque lei o governo arroga assim o direito de propriedade sobre todos estes bens, dispondo d'elles com plena liberdade? Estes bens só podem ser applicados para a dotação do clero e para nenhum outro fim.

Voto contra esta desamortisação, e com especialidade por gravosa, e muito, aos povos; e mando para a mesa uma proposta, a fim de serem excluidos do projecto.

Sr. presidente, não creio, não confio; o projecto é para o governo obter meios; com elle não se deseja outra cousa.

Mando para a mesa as minhas propostas.

Leram-se na mesa e são as seguintes:

PROPOSTA AO ARTIGO 3.°

Que findo o praso de seis mezes se conceda outro de doze, e depois o governo os ponha em hasta publica. = Antonio do Rego Faria Barbosa.

PROPOSTA AOS ARTIGOS 4.° E 5.º

Que a disposição do artigo 5.°, quanto ao rateio, se applique ao artigo 4.° = Antonio do Rego Faria Barbosa.

PROPOSTA AO ARTIGO 6.º

Que os fóros das igrejas não sejam comprehendidos n'esta lei. = Antonio do Rego de Faria Barbosa.

PROPOSTA AO ARTIGO 6.°

Que as misericordias, irmandades do Santissimo e camaras fiquem obrigadas, dentro de dois annos, a alienarem os bens de raiz ou fóros que possuirem, e quando o não façam o governo os mandará pôr em hasta publica. = Antonio do Rego de Faria Barbosa.

PROPOSTA AO ARTIGO 6.°

Que a desamortisação dos bens das misericordias, das confrarias do Santissimo e das camaras seja facultativa. = Antonio do Rego de Faria Barbosa.

Foram lidas na mesa, e successivamente admittidas e enviadas á commissão de fazenda.

O sr. Luciano de Castro: — Pedi a palavra por parte da commissão, visto que o nobre deputado que acabou de fallar me provocou a dar algumas explicações. O que tenho principalmente a dizer a s. ex.ª é que as commissões hão de dar o seu parecer sobre as propostas que se têem mandado para a mesa, e esse parecer é a melhor resposta que se póde dar aos nobres deputados. Além disso seria demaziada ousadia da minha parte antecipar-me agora á opinião das commissões.

Permitta-me s. ex.ª que por esta occasião eu diga — que as commissões têem sido tratadas com pouca benevolencia pelos nobres deputados. Um pede uma excepção para as misericordias, outro para os hospitaes, outro para as confrarias, e não ha ninguem que se não lembre de propor excepções a todos os artigos da proposta de lei.

O illustre deputado que acabou de fallar, esforçou se por fazer vibrar no coração dos que o ouviram as cordas mais delicadas do sentimento e da poesia. Fallou nas lagrimas dos pobres, nas enxergas dos hospitaes, e no infortunio dos desvalidos.

Realmente horroriso-me, quando vejo que se nos quer fazer passar a nós, membros da commissão, como homens que só têem em vista cercear a propriedade dos estabelecimentos de caridade.

Não é assim. Nós vimos propor esta lei, porque a suppomos de grande vantagem para o paiz em geral, e para aquelles estabelecimentos em particular.

Pintam-nos diante do nosso paiz como homens que querem espoliar aquelles estabelecimentos, e reduzir á miseria e ao desvalimento os infelizes que se abrigam á sombra da caridade que n'elles se exerce; e desenham-nos diante do paiz como pouco presadores dos nobres sentimentos que estão gravados no coração de todos pela mão de Deus.

(Interrupção de um sr. deputado que não se ouviu.)

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A falta de pagamento do papel moeda e dos padrões, só mostra que já atravessámos epochas calamitosas diante das quaes foi preciso deixar de pagar aquillo que era religiosamente devido.

(Interrupção do sr. Faria Barbosa que se não percebeu.)

Paga-se, e paga-se conforme está estabelecido nas leis. É verdade que já houve epochas em que a nação não pôde fazer honra á sua firma como devia; mas isto succedeu em tempos calamitosos, em circumstancias extraordinarias que podem dar-se em qualquer occasião para o futuro, e uma vez dadas, hão de affectar tanto os titulos de divida publica, como outro qualquer genero de propriedade (apoiados).

Já o nosso distincto jurisconsulto, o sr. Vicente José Cardoso, n'uma memoria sobre avaliação de prasos, dizia no principio d'este seculo, fallando a respeito da collocação de fundos em differentes especies de propriedades que = a collocação em apolices era a melhor =; e respondendo á objecção que se podia offerecer sobre a incerteza d'esta propriedade, acrescentava = qual é a propriedade que, havendo calamidades publicas, guerras que devastem os campos, que assolem as cidades, fique incolume, e não soffra as consequencias do geral infortunio =?

Digamos a verdade: não ha propriedade que n'este caso não soffra. E depois se a collocação que nós offerecemos a estes estabelecimentos é incerta, como o é toda a propriedade, é comtudo muito mais rendosa; e a este respeito peço licença para dizer ao illustre deputado que, hoje voluntariamente muitas corporações não comprehendidas na lei de 4 de abril de 1861, têem vindo solicitar do governo a subrogação das suas propriedades por inscripções.

Pela direcção dos proprios nacionaes, que está a meu cargo, tenho recebido solicitações e representações de confrarias e irmandades, sobretudo de irmandades, para se lhes permittir esta subrogação. Os seus requerimentos têem sido remettidos ao ministerio do reino, porque ao ministerio da fazenda não cabe deferir sobre elles, porque não corre por ali este negocio.

Então para que havemos de parar n'este caminho da desamortisação, se temos provas de que este pensamento é plausivel, bom e efficacissimo; e só agora, depois de se terem sacrificado essas corporações, deixe-se-me assim dizer, só agora, depois de termos ligada a fortuna individual ao credito publico, a sorte de muitas familias á sorte do estado, é que havemos de recuar, quando tratamos de desenvolver aquelle grandioso pensamento?

Se a medida era má; se a collocação em inscripções era pessima; se nós não deviamos de modo algum converter a propriedade d'esses estabelecimentos em titulos de divida publica, parece-me que não era esta a occasião mais propria para retrogradarmos, porque desde muito que as inscripções se tem propagado no paiz de uma fórma tal, que qualquer suspensão no pagamento dos juros, ha de offender não só a propriedade das corporações que esta lei abrange, mas muitas outras que já estão incluídas na lei da desamortisação.

Dizem alguns srs. deputados = vós, ministros e deputados, tendes fé no futuro; nós desconfiamos; não acreditâmos; temos graves apprehensões sobre o futuro...

O sr. Faria Barbosa: — É verdade.

O Orador: — Pois então peço para nós o mesmo direito que os illustres deputados querem para sr. Se vós, em nome das vossas desconfianças, apprehensões e receios, sempre voltados para o passado, não ousaes levantar os olhos para a luz que irradia dos horisontes do futuro, e quereis que paremos, guardae para vós o vosso direito, mas deixae-nos o direito sacratissimo de termos fé e confiança, de acreditarmos fervorosamente no futuro (muitos apoiados).

A fé é esse nobilissimo sentimento que agita os individuos e as nações, que os impelle no caminho infinito do futuro, que os incita aos grandissimos melhoramentos realisados tanto nas antigas como nas sociedades modernas. Nós podemos, nós devemos, e havemos de effeituar grandes transformações de que ainda hoje precisámos; e se tivermos os olhos voltados constantemente para o passado, e presos a estas apprehensões, não podemos arriscar nem um passo (muitos apoiados).

É necessario que tenhamos fé, e que acreditemos alguma cousa na providencia das nações que vela sempre por ellas, e mais tarde ou mais cedo as guia ao porto do salvamento.

Desconfiem os illustres deputados como quizerem; tenham apprehensões e receios a seu sabor, mas deixem-nos a nossa fé, e permittam-nos o direito de reconstruir o edificio social segundo as nossas sinceras crenças, assim como os nobres deputados querem obstar a isso em nome dos seus receios e desconfianças (apoiados).

Mas hei de protestar sempre contra as accusações que os illustres deputados nos fazem — de querermos arrancar aos desvallidos o ultimo abrigo; de querermos rasgar as enxergas do pobre; entrar nos hospitaes, e tirar aos enfermos o que a caridade e a religião lhes concedêra (apoiados).

(Interrupção que se não percebeu).

O Orador: — Nós não tirâmos os meios ás corporações; mas offerecemos á sua propriedade uma collocação segura e mais rendosa; e o illustre deputado não póde asseverar á camara que a collocação em bens de raiz, mal, deploravelmente administrados, seja melhor do que a collocação em inscripções. É necessario que vejamos os interesses particulares que á sombra d'estes interesses se debatem, e pretendem embaraçar a approvação d'esta lei (apoiados).

É necessario que o parlamento se levante acima d'estes interesses, d'estas pequenas paixões que se conspiram para obstar á realisação d'esta medida, e que se vote reflectida, madura e conscienciosamente a lei que lhe propomos, embora acrescentada e melhorada como os illustres deputados quizerem, porque o que nós queremos é uma lei boa.

Julguei dever dizer estas poucas palavras em nome da commissão, porque realmente fizeram-me desagradavel impressão as palavras que o illustre deputado acabou de proferir, quando disse que = nós procuravamos cercear os fundos da caridade =; e quando nos apontava ao paiz como perseguidores d'estes estabelecimentos, que todos os que somos portuguezes e christãos, devemos procurar acrescentar e melhorar.

São estas as poucas palavras que tinha a dizer.

O sr. Eduardo Cunha: — Sr. presidente, mau grado meu cabe-me a palavra depois do orador que acaba de responder tão triumphantemente aos illustres deputados que combatem este projecto.

Tenho a mandar para a mesa um artigo addicional ao projecto que se discute; mas permitta-me v. ex.ª que eu, apesar de ter pedido a palavra sobre a ordem, saia da ordem subordinada á especialidade, e que entre um pouco na generalidade do projecto.

Principiarei por declarar a v. ex.ª que, se estivesse n'esta casa na occasião em que a generalidade d'este projecto foi votada, ter-lhe-ía dado o meu voto, e ter-lh'o-ía dado com toda a força da minha convicção, porque entendo que por este projecto se vão melhorar as condições dos estabelecimentos de piedade e caridade, a favor dos quaes mais particularmente se têem levantado n'esta casa vozes muito auctorisadas.

Esta minha opinião é tanto mais sincera e desapaixonada, quanto é certo que o circulo que represento n'esta casa conta dois estabelecimentos, um de caridade e outro de piedade, que dispõem de fundos consideraveis para aquella localidade.

Não obstante isto eu voto este projecto, convencido de que as pessoas que estão á testa d'estes estabelecimentos hão de fazer justiça ao sentimento que dieta este meu voto.

Se ellas me não fizerem justiça desde já, hão de fazer-m'a dentro de pouco tempo, pois confio bastante na illustração d'essas pessoas, para crer que ellas hão de ver que eu quero o melhoramento d'estes estabelecimentos, e de modo algum cercear-lhes os meios de satisfazerem aos seus encargos.

Essas pessoas são muito illustradas, como disse, e não têem interesse nenhum em administrar esses estabelecimentos mais do que um interesse geral e social, e por isso espero que receberão a lei, cujo projecto se discute, como um allivio para ellas, que assim ficam com menos trabalho e responsabilidade da administração.

O projecto que se discute foi impugnado pelo sr. Pinto Coelho de um modo tão brilhante, que depois d'este debate a reputação parlamentar de s. ex.ª ficaria feita se ella não estivesse já solidamente edificada sobre os grandes recursos oratorios de s. ex.ª; em duas partes porém do seu discurso foi o sr. Pinto Coelho completamente combatido, não só pelo nobre ministro da fazenda, mas pelo illustre relator das commissões reunidas, e tambem pelo sr. Mendes Leal, os quaes levaram ao meu espirito a convicção de que devia approvar as idéas geraes do projecto.

Foram tres os argumentos do sr. Pinto Coelho. O primeiro foi sobre o direito de desamortisar por esta fórma; o segundo sobre os receios de uma crise financeira; e o terceiro sobre os inconvenientes da immutabilidade dos rendimentos dos titulos que se dão a estes estabelecimentos em troca das propriedades, cujo rendimento acompanharia sempre qualquer elevação que se desse nos preços dos objectos de primeira necessidade.

As duas primeiras partes, como disse, estão completamente respondidas pelo nobre ministro da fazenda e pelo illustre relator das commissões reunidas; emquanto porém á terceira parte os inconvenientes da immutabilidade dos juros das inscripções, permitta-me o illustre relator que lhe diga, que ainda não se respondeu cabalmente.

Sr. presidente, não obstante a despretensão com que entro n'esta discussão, ser-me intimada pelo fraco conceito que faço dos meus recursos intellectuaes, entendi na minha consciencia, que não tendo o ponto, que me proponho tratar, sido ainda lembrado por nenhum dos meus illustres collegas, eu não devia deixar de elucidar a discussão com os meus apoucados conhecimentos. É portanto ao terceiro ponto da argumentação do sr. Pinto Coelho que eu me quero referir: não pretendo combate-lo, bem pelo contrario reconheço a força d'este seu argumento, e em vez de sophisma-lo, quero votar o remedio ao mal que reconheço, e approvar o projecto.

É um facto da experiencia de todos nós, ainda mesmo dos mais novos como eu, que a propriedade tem successiva e constantemente augmentado de valor, e que este augmento de valor tem sido acompanhado pela elevação do preço das subsistencias. É tambem um facto que não se póde fazer hoje com uma certa quantia o mesmo que ha alguns annos se fazia; e d'aqui vem que os ordenados dos empregados, por exemplo, que ha vinte ou trinta annos bastava á satisfação das necessidades da vida, segundo a hierarchia d'esses empregados, hoje mal chegam para as suas primeiras necessidades, e em muitos casos nem para isto. Ora as corporações, de que se trata n'este projecto, vão ficar no caso dos empregados, cujos ordenados foram ha muitos annos estabelecidos. Eu convenho que estas corporações vão agora ser melhoradas nos seus rendimentos, mas não deixo de receiar que de futuro, mais ou menos remoto, quando mesmo os juros das suas inscripções lhes sejam integralmente pagos, que estes correspondam aos rendimentos das suas propriedades subrogadas, se estas ainda lhes pertencessem. É certo que o valor das inscripções ha de augmentar quando augmente o preço de todos os objectos de primeira necessidade, porque isto equivale a um depreciamento da moeda, mas que importa que o preço das inscripções augmente, se as corporações não podem vender as que possuirem, e se o juro d'estas inscripções é inalteravel.

Supponhamos que uma corporação tem hoje de rendimento das suas propriedades 300$000 réis, e que depois da desamortisação e da subrogação fica com um rendimento de 400$000 réis em inscripções: d'aqui a dez, vinte, trinta ou mais annos, a propriedade duplica de valor e de rendimento, 6 preço das subsistencias duplicou, e as inscripções podem tambem ter duplicado de valor, mas o facto é que essa corporação terá ainda 400$000 réis de rendimento quando precise de 800$000 réis para custear as suas despezas e fazer face aos seus encargos.

Não quero portanto que para o futuro as corporações, especialmente as de piedade e de beneficencia, lastimem a nossa imprevidencia em não as collocarmos ao abrigo do movimento economico que acabo de esboçar, e cujas causas não vem agora a proposito indagar.

Entendo que a desamortisação e subrogação que se projecta, vae desde já beneficiar os estabelecimentos de que se trata, e é por isso que apoio o projecto; mas entendo tambem que se deve applicar parte do beneficio de hoje para occorrer á falta que, mais cedo ou mais tarde, elles possam vir a ter nos seus rendimentos.

Não quero prevenir uma crise financeira geral, que leve o governo a cessar com o pagamento do juro das inscripções, este argumento está já respondido; mas o que quero é que, quando de futuro o rendimento d'esses estabelecimentos não possa satisfazer ás suas necessidades, elles tenham um; fundo de reserva de que possam lançar mão.

É este o objecto do artigo addicional, que mando para a mesa.

Vozes: — Muito bem.

Leu-se na mesa a seguinte proposta:

ARTIGO ADDICIONAL

Os estabelecimentos pios ou de beneficencia, de que trata o artigo 6.° d'esta lei e cujo rendimento em inscripções venha a ser superior a 200$000 réis, formarão fundos de reserva, destinados a garantir de futuro os rendimentos dos capitães subrogados.

§ 1.° Comparando as novas receitas d'estes estabelecimentos com as anteriores á desamortisação, determinará o governo a quota annual com que cada um d'elles deverá entrar no respectivo fundo de reserva.

§ 2.° O producto das quotas de cada estabelecimento será, logo que possivel seja e conforme se for realisando, empregado em inscripções.

§ 3.° Os juros d'estes fundos ir-se-hão accumulando successivamente aos mesmos fundos até que estes attinjam á metade dos capitães sobrogados por virtude da presente lei.

§ 4.° O governo poderá permittir a cessação temporaria do pagamento de toda ou de parte da quota, e bem assim a encorporação de todo ou de parte do fundo de reserva no capital do respectivo estabelecimento, uma vez que haja necessidade imperiosa de occorrer por qualquer destes meios á sustentação do mesmo estabelecimento. = Eduardo Cunha.

O sr. Thomás Ribeiro: — Depois da apresentação da proposta do nobre relator da commissão, o sr. Luciano de Castro, para que todos os deputados, que tivessem a propor algumas addições ou emendas aos differentes artigos do projecto, o fizessem, a fim de darem sobre ellas parecer as commissões reunidas, eu entendi logo, e entendo ainda, que a discussão d'este projecto voltava necessariamente, e em virtude mesmo d'esta proposta, á generalidade. Effectivamente voltou.

Não pense v. ex.ª nem a camara que me quero prevalecer d'este meu juizo e do facto para lhe tomar muito tempo, occupando sem necessidade as suas attenções. É muito pouco o que tenho a dizer, e menos seria se não visse n'este momento levantar-se o illustre relator da commissão, e com toda a facundia, que ha muito tempo lhe reconheço, combater não digo bem, fulminar sem piedade todos aquelles que se levantaram appellando para as lagrimas da pobreza e pedindo aos poderes do estado que não tentassem tornar miserrimas, sortes que já eram miseraveis. Não vim, não viemos aqui os que combatemos este projecto, fazer poesia ou embellesar phrases, para advogar a causa dos desgraçados.

O illustre deputado sabe de certo comprehender, que a miseria é por si mesma uma grande e sentida poesia (apoiados), que na linguagem das lagrimas falla mais alto do que eu e todos aquelles que em favor da humanidade que padece, viemos levantar a nossa voz no seio da representação nacional (apoiados).

Estou quasi certo de que o nobre deputado, e a illustre commissão ou commissões, de que é relator, e com ella a maioria da camara, não tomarão outra resolução que não seja adoptar o projecto tal qual está redigido. A commissão e a maioria acreditam e proclamam bem alto, que não vem com o seu projecto e doutrinas fazer maior a desgraça d'aquelles que já estão bem desgraçados. O nobre relator da commissão queixa-se de nós; é verdade; tentámos dizer ao paiz que o governo intenta defraudar os estabelecimentos de beneficencia. É porém verdade que nem eu nem os outros srs. deputados que têem impugnado o projecto, acreditâmos nem dissemos que fosse intento de alguem que tenha assento n'esta casa reduzir á miseria e desgraçar mais os que já são infelizes (apoiados).

Nós dissemos a s. ex.ª e á camara, e eu o repito agora em nome da humanidade e em nome do meu dever official, que tenham cuidado com o passo que vão dar, porque escudados nas melhores intenções, que todos lhes reconhecem e eu não contesto, podem ir arriscar o futuro, e muito proximamente, d'aquelles cuja sorte miseranda dizem querer melhorar.

Eis-aqui o nosso pensamento e o nosso reparo. Por consequencia não deve lastimar-se o illustre deputado de que haja alguem n'esta casa que aponte para as lagrimas da miseria e para a enxerga dos hospitaes. S. ex.ª entende, em sua fé purissima pelo futuro, que nunca ha de faltar a

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cama aos doentes e a esmola aos esfomeados. Sr. presidente, tambem eu olho futuro a dentro, e no pouco que lá vejo, alguma cousa creio e alguma cousa espero; o que não posso é acompanhar o illustre deputado na altura e no arrojado da sua imaginação, assim como o não sei igualar na espontanea eloquencia da sua phrase.

Muita fé e muita esperança, sr. presidente, são duas grandes virtudes, falta completa-las. Praza a Deus que ao pé da esperança e da fé não falte jamais & caridade! (Apoiados.) Deus a inspire ao governo, á commissão, a todos os poderes publicos, e a todos aquelles que a podem e devem prestar (apoiados).

O meu illustre collega, o sr. Faria Rego, que acaba de combater este projecto, e a quem o nobre relator n'este momento respondeu, disse que desconfiava do futuro; o illustre relator n'um assomo de verdadeira inspiração disse-nos: «Pois bem, vós que estaes algemado ao passado e devotados a elle, estacionae no presente, mas não queiraes que retrogrademos, deixae que progridamos com os olhos no futuro, porque a nossa fé vale pelo menos tanto como a vossa falta de fé; ficae no vosso logar e nós iremos proseguindo em nossa marcha triumphal».

Sr. presidente, eu applaudo a fórma por que isto se disse, mas o fundamento com que se disse deploro-o.

Não basta dizer á camara e ao paiz, eu creio. É preciso dizer á camara e ao paiz a rasão por que se crê, da mesma fórma que eu e os que combatem o projecto temos mais de uma vez n'esta casa dado a rasão, não porque não cremos, mas porque duvidamos (apoiados). Não basta dizer = eu acredito no futuro =, como disse o illustre deputado; em resposta a esta sua affirmativa basta-me lembrar-lhe a sorte dos padrões de juro real e do papel moeda. E s. ex.ª tem de se calar diante d'este argumento, uma vez que já reconheceu que a nação ainda não restabeleceu o credito da sua firma a respeito dos padrões e do papel moeda.

«As inscripções»; vejo que são as inscripções a moeda em que o governo quer resolver estes valores.

Não sabe s. ex.ª que não vae muito longe, e digo-o tanto mais desassombradamente quando confesso e todo o paiz sabe que estou combatendo ao lado d'aquelles que deram esse golpe d'estado, que toda a camara conhece; não tenho duvida em dizer toda a verdade, porque é essa a minha missão e o meu dever. Não sabe o illustre deputado, que não vae longe o tempo em que s. ex.ª votou o accordo de Londres? Que aconteceu? As urgencias do estado, que salvam e absolvem tudo n'este e n'outros paizes; as urgencias do estado levaram o governo a fazer uma reducção no juro que os credores tinham direito a receber, e s. ex.ª approvou essa reducção. Se ámanhã vier uma outra urgencia, que responderá o illustre deputado, que tem tanta esperança no futuro, quando tem bem presente o passado de que s. ex.ª se não deve esquecer, visto que tem a elle vinculado o seu nome? A reducção de juro que veiu hontem, póde vir ámanhã, e os estabelecimentos de beneficencia e caridade, cujos interesses nós advogâmos, soffrerão n'esses descontos, e ficarão inhabilitados de dar amparo aos desgraçados que a elles se achegarem (apoiados).

O illustre deputado disse que = os titulos de divida publica eram os melhores valores e o melhor representativo da propriedade, porque quando houver uma guerra toda a propriedade soffre =. De accordo. Isso póde dar-se quanto aos productos da terra. Os fructos podem perder-se, mas a propriedade fica; e no anno seguinte, quando a guerra tem desapparecido, o cultivador semeia de novo e colhe de novo (apoiados). É isto o que não acontece com os papeis de credito (apoiados).

Eu acredito no credito, sei quanto elle tem feito, e calculo quanto póde fazer; tenho pensado muitas vezes que a moderna civilisação, inventando e alargando a esphera do credito, achou o que Archimedes não pôde descobrir, o ponto fixo no espaço d'onde a seu prazer podesse dirigir os movimentos do mundo. O credito é o milagre da nossa idade! Todas as nações modernas e a sua civilisação n'elle se fundam e n'elle se amparam. O credito é a maravilha da economia e dos capitaes, é a vara de condão a cujo contacto se alevantam de dia a dia, aos nossos olhos deslumbrados, novos e melhores prodigios; tudo isto eu comprehendo com a minha apoucada intelligencia, tudo isto me ensinam os meus mais apoucados conhecimentos.

Vejo a influencia do credito, e até que ponto póde chegar, mas devo lembrar ao illustre deputado, que o credito é tambem um phantasma que representa aquillo que não é, e que só por um milagre da economia tem representado um tão importante papel.

Às civilisações antigas fundavam-se, não no credito, mas na verdade, morreram todas; é a lei de tudo o que vive, mas morreram santamente, corroidas pelos vicios o pela idade. Hoje a base da civilisação é o credito, no nosso e nos outros paizes que se dizem mais adiantados; o credito que se me afigura uma cadeia enorme prendendo fatalmente em seus anneis todos os capitalistas e todas as nações do mundo, sem haver n'ella solução de continuidade, a prova está em que no momento de baquear algum dos individuos encadeados, o choque da sua queda faz abalar o mundo todo. Bem vae ao mundo emquanto a força dos que ficam for superior á dos que se despenham e resistirem de pé ao impulso que os arrasta, mas um dia virá em que o choque será tal e tão violento que arraste comsigo todos os amarrados pela cadeia do credito; então a moderna civilisação morrerá, não lenta e progressivamente, como as antigas, mas repentina, violenta, estrondosamente. Não será só este ou aquelle paiz, serão todos; consolemo-nos ao menos com isso, e veremos renovada a historia de Sansão em mais grandioso espectaculo.

Vozes: — Muito bem.

Esta é a prophecia de um utopista, de um visionario, que ninguem acredita e que nada vale. Eu ahi a deixo consignada, porque julgo do meu dever dizer ao meu paiz tudo o que a respeito d'elle sinto e penso. Fica satisfeita a minha consciencia (apoiados).

Os valores convencionaes são excellentes, mas os reaes são melhores. Entendo pois que tem mais solida fortuna aquelle que tiver em terras os seus bens, do que aquelle que a tiver em papeis. Mas isto não quer dizer que eu voto em absoluto contra o credito, e que entenda que o nosso governo e o nosso paiz póde prescindir dos seus beneficios. Não de certo; o que digo, o que recommendo aos poderes do estado, é que não se deixem ir tão descuidadamente ao sabor do credito; que se não descuidem dos seus amparos naturaes, e se não desarmem dos meios de defeza que nos devem garantir de qualquer neutralidade futura. O illustre relator da commissão diz: «Creio no futuro»; e a camara applaude-o. «Não nos prendam os braços nem os passos».

Eu não prendo os braços nem a marcha de ninguem, mas desejo prevenir e acautelar o paiz e o estado; é a minha missão aqui (apoiados). Desejo dizer ao sr. ministro da fazenda, que entra n'este momento na camara, que não se esqueça de que prometteu ao paiz trazer a questão financeira em toda a sua verdade á camara.

E já que gastâmos todos os dias muito dinheiro em mandar estudar lá fóra a questão de beneficencia e quantas outras que nós felizmente sabemos melhor do que lá, será bom que se annuncie um premio valioso a quem, estudando profundamente o estado da nossa fazenda, venha propor o melhor remedio ás nossas finanças, para com o seu alvitre nos livrarmos do systema financeiro que temos; systema tão mau, que o proprio sr. ministro da fazenda foi o primeiro que n'uma proxima sessão o condemnou, dizendo que = era necessario pôr um termo ao ruinoso expediente das emissões e dos emprestimos = (apoiados). Por consequencia, eu peço ao sr. ministro da fazenda, que olhe attentamente para este negocio, e que veja se alguem póde apparecer que nos tire das difficuldades em que nos achámos. É preciso confessa-lo, n'este paiz não tem havido outro systema que não seja o de combater tudo quando se está fóra do poder, e adoptar o que rejeitámos hoje quando lá vamos (apoiados). Nada mais e nada menos.

O sr. ministro da fazenda já nos disse que = algumas confrarias ou corporações têem procurado as inscripções para subrogarem os seus fundos; o que provava que esta medida é de vantagem para as corporações =. Qual o motivo então por que se não deixa esta subrogação por inscripções facultativa? Porque é que o exemplo d'essas corporações e de muitos particulares não ha de influir nas outras corporações de mão morta? Se é tão boa a subrogação, porque não esperam que todos venham voluntariamente? E n'esta parte dizia muito bem o sr. Pinto Coelho que = quem desconfiava mais do seu credito era o proprio governo =.

Votei pela desamortisação, voto por consequencia contra a administração dos estabelecimentos de mão morta; mas devo lembrar ao governo, que diz tão mal d'estas administrações, que faz bem em louvar a sua, porque lá fóra, por todo esse reino, todos acham uma administração peior que a d'estas corporações; sabe v. ex.ª qual é? a do governo (apoiados). Eu mesmo não tenho fortuna, se a tivesse acredite o nobre ministro e o illustre relator da commissão que a administraria mal por minha conta e risco, mas não a entregava á administração do governo (apoiados), para m'a administrar melhor.

Isto não é só com o nobre ministro que hoje occupa aquella cadeira, é com todos que ali têem estado, porque todos tendem a ser esbanjadores; economico, ainda não conheci nenhum.

Um dos exemplares, e o mais bem conhecido do paiz, é a gerencia das obras publicas nos differentes districtos do reino (apoiados); mas como isto, e pouco mais ou menos, é tudo o mais.

O nobre ministro disse mais que = entre os fundos mutuados d'estes estabelecimentos havia grandes perdas, e isto denunciava a sua má administração, motivo por que o governo fazia um bom serviço em os querer tutelar =.

Mas se as administrações são tão más como se diz, seja-me licito perguntar qual a rasão por que se deixa aos mesmos estabelecimentos a administração dos capitães que já estão mutuados? Se se lhes deixa essa administração, alguma confiança tem n'ella o estado; e n'esse caso, porque não hão de receber a minha lembrança de acrescentar aquelles pequenos bancos ruraes, para maior adjutoria da agricultura? (Apoiados.) Se s. ex.ª diz que as corporações de mão morta administram mal, pergunto qual a rasão por que isto assim succede? Ou é porque a lei se não cumpre, ou porque é insufficiente, ou porque não ha lei. Se se não cumpre, a culpa é de s. ex.ª e só de s. ex.ª (apoiados), que a não faz cumprir; e se não ha lei, ou a que ha é insufficiente, a culpa é tambem de s. ex.ª porque não traz aqui um projecto de lei tendente a melhorar a fiscalisação (apoiados).

O sr. Sant'Anna: — Este é o principio da reforma.

O Orador: — Isto não é reforma, é acabamento. S. ex.ª confunde duas idéas distinctissimas (apoiados). O seu espirito está preoccupado a favor do projecto e eu não quero tentar sequer preoccupa-lo em sentido contrario.

Disse mais o nobre ministro da fazenda que = as corporações de mão morta, administrando estes fundos, faziam com elles favores a amigos seus, sem bastantes garantias =. Sr. presidente, era melhor que s. ex.ª não dissesse isto; porque eu, se quizesse retaliar, podia provar ao nobre ministro que tambem o governo de Portugal gasta muito dinheiro presenteando os seus amigos e fazendo-lhes adiantamentos que não póde fazer; mas isto é questão em que não quero fallar por decoro d'este paiz, por decoro do governo, e por decoro meu, porque talvez eu tivesse obrigação de levantar esta questão, e não o tenho feito...

O sr. Ministro da Fazenda: — Eu provoco o illustre deputado a que declare quaes são os amigos do governo a quem se têem feito adiantamentos.

O Orador: — É uma questão tão conhecida do paiz, são factos tão do dominio de todos, que nem sei como s. ex.ª faz esta provocação; mas fê-la sem perigo, porque eu não estou disposto a aceitar o repto (apoiados), não desço por fórma alguma á questão de personalidades; podia tornar-se isto uma questão odiosa, e eu não gosto nem preciso de invocar nomes proprios para assumptos d'esta natureza. Fico pois aqui, e trouxe esta referencia apenas para mostrar ao nobre ministro o perigo de seu argumento.

Tambem como argumento, e talvez no intuito de ferir alguns dos deputados que têem tomado parte n'esta discussão, se quiz achar uma certa divergencia de opiniões e por consequencia uma certa instabilidade de principios n'aquelles que, tendo votado a lei de 4 de abril de 1861, recusam o seu voto hoje ao projecto que se discute.

Perguntou-se aquelles, que em 1861 votaram a desamortisação dos bens das corporações religiosas, a rasão por que não votam agora a desamortisação dos bens das misericordias e hospitaes?

Como eu voto por esta desamortisação e votei a outra, não parece que esta pergunta se dirige directamente a mim. Mas votei n'essa occasião a subrogação forçada e não a voto hoje; e n'este ponto cabe-me responder.

Sei que foi directamente ao meu amigo, o sr. Aragão Mascarenhas, que o sr. ministro da fazenda se dirigiu querendo notar-lhe a incoherencia das suas opiniões; s. ex.ª tem a palavra e do certo não precisa que eu o defenda, nem eu o poderia fazer tão bem como elle mesmo o fará. Tratarei portanto só de mim.

Eu votei a desamortisação dos bens das corporações religiosas como voto esta. Votei a subrogação d'esses bens, e não voto esta. Sabem porque? Porque entendo que, embora os mais latitudinarios principios liberaes me digam que todas as associações, de qualquer natureza que sejam, comtanto que não tenham fins illicitos, devem ser admittidas nos paizes onde existe o regimen liberal, e que por consequencia o devam ser tambem as corporações religiosas, eu entendo que não estamos no caso por ora, nem o estaremos d'aqui ainda a muito tempo, de poder achar opportuno que existam entre nós essas corporações religiosas regulares. Por consequencia vendo o pequeno numero de religiosas que existiam nos conventos e a sua idade provecta, o que denunciava o proximo total acabamento d'essas ordens, e não desejando eu o seu restabelecimento, parecendo que ajudava o meu desejo, fazendo um bem ao thesouro, a subrogação, votei pela subrogação.

Cabia bem agora perguntar ao governo se está tambem n'estas idéas? Não ha muito se espalhou pelo paiz a nova de que fôra encarregado um illustre prelado da igreja de contratar com a corte de Roma o restabelecimento de algumas ordens religiosas (apoiados); pelo menos espalhou-se esta noticia, que fez impressão muito desagradavel no espirito publico, que não parece por ora disposto a aceitar este restabelecimento (apoiados). Indicava-se até o nome do prelado que tinha sido encarregado d'esta negociação...

O sr. Ministro da Fazenda: — Está enganado o illustre deputado.

O Orador: — Então não ha nada resolvido a este respeito?

O sr. Ministro da Fazenda: — Nada; mas se isso lhe serve para o seu argumento, póde continuar.

O Orador: — Eu só desejava não ser n'este momento deputado, que s. ex.ª não fosse ministro, e que não estivessemos aqui n'uma discussão parlamentar, talvez podesse provar ao sr. ministro que não era eu que estava enganado, e que é s. ex.ª que deseja desviar de si uma tal ou qual responsabilidade que n'este ponto lhe cabe (apoiados).

Eu faço justiça aos principios liberaes de todo o ministerio; não digo mesmo que seja muito anti-liberal a idéa das ordens religiosas em principio...

O sr. Sant'Anna e Vasconcellos: — É anti-liberalissimo.

O Orador: — Pois bem, será por eu não ser tão liberal como o illustre deputado; serei eu o retrogrado; já me disseram que estava ao lado do sr. Pinto Coelho (riso).

Mas eu votei em 1861 em favor da subrogação pelos motivos que expuz, e hoje voto contra a subrogação forçada na questão que se discute, porque tremo pela sorte futura d'estes estabelecimentos, que não desejo ver mortos, quando o governo se vir em crise e for forçado pelas circumstancias a fazer uma reducção nos juros dos fundos publicos. Eis-aqui por que eu voto contra a subrogação forçada.

Responderei de passagem ao pequeno argumento que foi apresentado pelo sr. ministro a respeito da fiscalisação exercida pelos governadores civis.

Disse s. ex.ª que = todas as vezes que estes funccionarios se queriam intrometter na gerencia d'estes estabelecimentos, havia contra elles uma violenta reacção =. Isto não é de todo o ponto exacto. O que ordinariamente é causa d'essas reacções é não quererem os governadores civis concorrer para a melhor administração d'estes estabelecimentos, que n'isto achariam elles o apoio geral, mas tentarem fazer dellas armas eleitoraes (apoiados); não digo que o façam por indicação do governo, não será, mas fazem-no por devoção propria. Eis-aqui a verdade, e o sr. ministro, se o não sabe, póde verificar.

E que provas tem o governo de que as corporações de mão morta, as misericordias, por exemplo, administram mal? Nas do districto do Porto as provas são em contrario. N'aquelle districto o governo só mandou syndicar da misericordia de Villa do Conde, prova de que era aquella a que causava mais desconfiança, de estar mal administrada. A syndicancia verificou-se, e creio que não appareceu n'ella senão motivo para louvar o digno provedor d'esse estabele-

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cimento pela boa ordem em que tudo se encontrou, tendo elle mesmo despendido da sua algibeira 200$000 ou 300$000 réis em beneficio dos pobres que a misericordia sustenta (apoiados).

Eu creio que o sr. Torres e Almeida, a quem as contas d'este estabelecimento foram mandadas examinar, não terá duvida em dar testemunho de que n'aquellas contas não havia nada a notar-se, a não ser que podiam servir de modelo (apoiados).

S. ex.ª está-me affirmando d'ali a verdade do que digo; eu registo o seu testemunho, e pergunto ao governo se, á vista d'isto, se póde asseverar que ha má administração nas corporações de mão morta, visto que só d'esta se mandou syndicar, e se achou tão bem e tão louvavelmente administrada?

S. ex.ª bem vê que a falta de outras syndicancias póde ser argumento e prova de boa administração; comtudo eu com isto não quero dizer que voto pela administração d'estas corporações taes como estão. Trouxe este exemplo sómente para impugnar as rasões apresentadas pelo nobre ministro da fazenda (apoiados).

Esta discussão tem trazido amarguras a muita gente. Alguém disse já que m'as tinha trazido tambem a mim. Enganaram-se; eu estou sempre no meu campo e na mesma posição. Tanto me importa que me queiram encorporar com os illustres deputados que representam, aqui uma politica morta, como quererem encorporar-me com os que são progressistas ou regeneradores. A primeira vez que tive a honra de entrar n'esta casa disse qual era a minha politica; tenho continuado assim, e continuarei. Pouco me importa que alguem supponha, ou finja suppor, modificação nos meus principios. O meu passado politico é pequeno, mas póde já responder por mim alguma cousa; e espero que o futuro, embora não seja grande, tambem responderá (apoiados).

Tive pena que n'outro dia, quando estava para me, chegar a palavra pela segunda vez na discussão da generalidade, a camara m'a retirasse por uma votação, porque não costumo nunca tomar muito tempo á camara com os meus discursos; e tinha necessidade, depois de algumas referencias muito directas que se me tinham feito, de dar algumas explicações pessoaes. Por esta occasião, alem d'isso, cabia bem rebater alguns principios que foram proclamados em defeza d'este projecto; hoje não me parece que seja conveniente, por isso eu passarei por cima de todos esses argumentos que se apresentaram, que a camara já apreciou e julgou. Não posso voltar á generalidade, apesar de se estar outra vez na sua discussão.

Permitta-me agora a camara que eu occupe alguns poucos momentos a sua attenção com algumas explicações pessoaes.

Disse o nobre deputado e meu amigo que fallou na sessão passada, que = sentia que eu, homem liberal, me tivesse ligado com o sr. Pinto Coelho, e que tivesse estabelecido um scisma na igreja liberal =.

Lamento que o nobre deputado, o sr. Francisco Coelho do Amaral, que me dirigiu estas amabilidades, não esteja presente, porque é sempre muito desagradavel ter de fazer referencias aos ausentes, muito embora eu não tenha, como não tenho, intenção de ferir, nem de leve, a susceptibilidade do meu nobre amigo. Sei tambem que os reparos que o nobre deputado me dirigiu, foram todos feitos na phrase mais amena, mais amiga e mais circumspecta, e não tiveram em vista desacreditar-me com os liberaes a cujo gremio eu me honro muito de pertencer (apoiados). Creio mesmo que a camara e o paiz me farão n'essa parte inteira justiça (apoiados), porque todos conhecem as minhas idéas o as minhas aspirações em todos os pontos que são da doutrina liberal (apoiados). Mas visto que s. ex.ª disse que eu tinha levantado um scisma na igreja liberal, quero dizer a s. ex.ª, que se é por estar ao pé do sr. Pinto Coelho, não é n'esta questão que deve procura-lo; data o scisma desde que entrei n'esta casa. Ha um ponto em que o sr. Pinto Coelho e eu estamos desde então de accordo, que é em fazer opposição ao actual ministerio (apoiados).

Sr. presidente, eu estou de accordo com o sr. Coelho do Amaral; ha scisma na igreja da liberdade, mas não é este, nem sou eu que o promovo. E não ha só um, ha muitos scismas. Scisma, por exemplo, é proclamar e votar que o governo é o proprietario, o senhorio dos bens das corporações de mão morta. Isto nunca foi principio liberal, o comtudo proclamou-se como tal e como tal se applaudiu! (Apoiados.)

Disse-se que = as corporações de mão morta tinham apenas a administração, o deposito, o usufructo e nada mais = (não é assim, mas demos que seja); o que nunca póde ser é o estado proprietario; o estado não é senão o representante, o administrador, o fidei-commissario dos direitos que toda a sociedade deposita nas suas mãos, e de que elle tem de dar conta como gerente. Este principio é o da escola liberal (apoiados).

É principio scismatico na igreja liberal o dizer-se que nós podemos, não respeitando a santidade e solemnidade dos contratos, tirar aos que têem direitos perfeitamente adquiridos uma parte d'esses direitos por nossa vontade e auctoridade, sem dar uma conveniente indemnisação. Tal se consigna no presente projecto de lei que estamos discutindo. Nós não podemos fazer aggressão á propriedade de ninguem, quer seja pessoa particular ou collectiva (apoiados). É pois esta doutrina scismatica, e vem dos partidarios do nobre deputado que me aggrediu (apoiados).

Scisma é tambem chamar para defeza d'este projecto a abnoxia e reprovada doutrina de tempos que, por tyrannicos, nem o proprio sr. Pinto Coelho admitte para norma sua. A auctoridade do marquez de Pombal, cuja memoria todos nós respeitâmos, sem comtudo lhe reconhecermos qualidades de liberal, nunca póde servir para defender um projecto de lei, que se quer apresentar ao parlamento como baseado em principios liberaes (apoiados). O grande marquez de Pombal despedia por uma das portas do seu governo os jesuitas, inculcando-se liberal e desprendido de preoccupações ou de temores que lhe podessem vir de Roma; e pela outra porta, para se inculcar religioso e adverso a idéas liberaes, mandava dizer aos povos da Extremadura e do Alemtejo que = ficavam excommungados todos aquelles que plantassem vinhas nos seus montados = (apoiados). Tinha n'essa occasião o intuito de defender as vinhas do Douro, e defendia-as com as excommunhões que vinham de Roma! Eis-aqui o grande liberal que elle era; mas já se chama para modelo.

Sr. presidente, se ha scismas na igreja liberal são d'estes (apoiados), e não sou eu que os promovo (apoiados). As minhas doutrinas tenho-as por correntes e immaculadas (apoiados).

Mas o que eu vou mostrar á camara, e o que de certo a vae maravilhar, é que eu, arguido de scismatico pelo meu bom amigo, votei n'esta questão mais liberalmente do que o nobre deputado que me interpellou (apoiados); eu pela minha parte votei amplissimamente a desamortisação; cotejemos. Peço licença para ler á camara pequenos trechos do meu discurso, e alguns tambem do discurso do sr. Francisco Coelho do Amaral. Comecemos por este ultimo.

Diz assim uma das suas partes; ouça a camara e julgue: «Tenho-me insurgido contra todas as violencias de qualquer ordem que sejam; tenho-as combatido sempre pelo modo que posso, e não queria que aqui se apresentasse a obrigação de vender por tal ou qual moeda, e de fazer tal ou qual emprego do producto da venda». (Apoiados.) Chama-se a isto votar contra a subrogação forçada e em favor da desamortisação. Que outra cousa fiz eu? (Apoiados.) Ouça mais a camara: «Quero a desamortisação, e que o producto d'ella seja entregue ás corporações e aos estabelecimentos de beneficencia para o empregar como julgar mais conveniente aos seus interesses, etc.» Mas o nobre deputado vae mais longe ainda, porque pede que as matas da misericordia e hospital de Vizeu fiquem amortisadas, exceptuando-as na lei. «A misericordia de Vizeu, continua o nobre deputado, se lhe não forem dispensadas da desamortisação as suas matas para o fornecimento das lenhas do hospital, ha de ver-se muitas vezes em embaraços para dar a comida aos seus doentes».

Sr. presidente, tão longe não fui eu n'estas horrendas idéas de retrocesso; eu pedi tudo o que quizeram, menos excepções á desamortisação (apoiados).

Eu votei amplissimamente a desamortisação, e o illustre deputado dizendo que a votava, pediu ainda a amortisação de uma parte dos bens do hospital de Vizeu. Já se vê que na questão da desamortisação s. ex.ª ficou um pouco atrás de mim, e que se eu tenho de me encorporar com o sr. Pinto Coelho, s. ex.ª não póde de maneira nenhuma deixar de me acompanhar, ficando mais perto ainda d'aquelle illustre deputado (muitos apoiados).

Aqui tem v. ex.ª o a camara o voto do meu illustre amigo; agora resta confronta-lo com o meu voto.

Disse eu da primeira vez que tive a honra de fallar n'esta questão:

«Eu voto a desamortisação em principio; voto a desamortisação amplissimamente; votei a desvinculação da terra, que era uma grande medida desamortisadora... Teria votado todas as medidas tendentes a libertar a terra das peias da amortisação, etc. Porque será que o governo marcha tão timoratamente n'esta vereda do progresso?»

Que linguagem é esta, sr. presidente, que possa amedrontar o mais escrupuloso liberal? Era o voto do sr. Coelho do Amaral! Mas não pára aqui.

Mais adiante disse:

«Voto a desamortisação, mas não voto a subrogação forçada, porque este principio é anti-liberal, etc.» E dizia emfim:

«Devo declarar á camara que voto contra a generalidade do projecto, apesar de approvar o principio da desamortisação; e voto assim, principalmente, porque vejo que o principio do emprestimo forçado entra no projecto como parte essencial e principal. Se eu entendesse que o principio economico da desamortisação tomava n'elle a parte principal, votava a generalidade, e depois na especialidade rejeitaria os artigos que, segundo as minhas idéas, devia rejeitar.»

Aqui tem v. ex.ª como eu fui menos liberal na apresentação do meu voto e da minha opinião, do que o illustre deputado que sentiu tanto ver-me transviado do meu gremio politico. Ahi estão os autos, a camara julgará (apoiados).

Se o meu nobre amigo estivesse presente, eu tinha a fazer-lhe duas propostas: a primeira ora que, se elle entendia que o principio fundamental d'este projecto era a desamortisação e não a subrogação forçada, eu provocava o nobre ministro a que me desse d'isso uma prova real, que era aceitar a emenda do mesmo sr. Coelho do Amaral o de quasi todos aquelles que votaram acaloradamente o projecto na generalidade, mas que na especialidade se têem pronunciado contra a subrogação forçada, e n'este sentido têem mandado para a mesa propostas. Se o governo permittisse que os capitaes, producto da desamortisação, ficassem na administração dos estabelecimentos de beneficencia, na fórma que propõe o sr. Coelho do Amaral, eu viria aqui pedir perdão de ter com tão pouca fé votado contra a generalidade do projecto; viria fazer amende honorable, se s. ex.ª o nobre ministro declarasse que prescindia da subrogação forçada, e se contenta com a desamortisação (apoiados).

A segunda proposta que eu ouso fazer na ausencia do meu patricio e amigo, na esperança de que s. ex.ª ha de ler o que eu digo, é mais simples ainda. Em 1861 entrei n'esta casa, e tenho tido sempre grande cuidado em me não desviar dos principios que trazia traçados lá de fóra e que me haviam de guiar na senda, ás vezes pouco lisa e pouco allumiada, da politica.

Desafio o illustre deputado a que me mostre, por um facto só da minha vida publica, um desvio da senda liberal que me tracei. Como é possivel que n'este desafio eu tenha de ficar vencido, porque não ha perfeições no mundo, appello, no caso de derrota, e appello pela seguinte fórma: desafio o illustre deputado que tão amigavelmente me interpellou, ou qualquer outro que o deseje, a que, provando-me que eu tive um desvio da senda liberal, ouse atirar-me a primeira ou a ultima pedra (muitos apoiados).

Nada mais posso dizer na ausencia do meu amigo.

Resta-me simplesmente dizer a v. ex.ª e á camara, que se o illustre deputado, o sr. Coelho do Amaral, apresentando-me ao lado do sr. Pinto Coelho, julgou fazer-me aggravo, errou o golpe; em tudo o que não seja politica, honra-me muito a camaradagem. Eu estive ao pé do sr. Pinto Coelho em parte d'esta questão, como estou ao pé de todos os deputados que entendem dever defender os verdadeiros principios liberaes (apoiados). A bandeira do sr. Pinto Coelho tem tradicções honrosissimas, mas está enrolada á sua haste e coberta com os crepes da viuvez; a minha ao contrario está desfraldada e ondeando a todos os ventos liberaes, e tem por cima, a engrinalda-la, as flamulas da liberdade em todo o seu esplendor e brilhantismo. Eu marcho á sombra da minha bandeira, elle empunhando a sua. Quando passâmos um pelo outro, fazemos a continencia reciproca.

Sr. presidente, não me envergonho do dizer que respeito aquella bandeira, que me representa dois grandes sentimentos — a saudade e o desinteresse, tão raro n'esta epocha.

Vozes: — Muito bem.

O sr. Luciano de Castro: — Pedi a palavra simplesmente para dar uma explicação ao illustre deputado que acaba de fallar, por me parecer que s. ex.ª de passagem se referiu a mim de um modo que póde involver uma allusão pessoal. Disse s. ex.ª que = não parecia bem que eu procurasse esquivar-me tanto ao passado, e não me lembrasse do que se tinha dado com relação ao accordo de Londres =. Creio que foram estas, pouco mais ou menos, as palavras de s. ex.ª. Fui eu o primeiro que disse que tinha votado o accordo de Londres. Não me envergonhei de o dizer, nem me envergonho ainda. Fui regenerador votando o accordo de Londres, e sou regenerador combatendo á sombra da bandeira, do partido historico, em cuja defensa voluntariamente estou alistado. Isto de ser regenerador ou historico é um caso de consciencia. Ha homens que entendem que é melhor occupar-se de grandes questões de administração e de economia publica, como, por exemplo, saber se uma portaria revoga um decreto, se um decreto póde revogar uma lei, e occupam-se laboriosamente d'estes grandes assumptos; ha outros que julgam preferivel que a camara se entregue ao estudo e solução da questão dos vinculos, da reforma hypothecaria, da desamortisação, do credito predial. E esses certamente hão de julgar que eu procurei esquecer-me do passado...

O sr. Thomás Ribeiro: — Posso asseverar ao illustre deputado, debaixo de palavra de honra, que não tive a menor idéa de o censurar.

O Orador: — Podia ser uma allusão ao meu passado politico; porém não tinha rasão de ser para comigo, porque eu fui o primeiro que em uma das sessões passadas disse á camara que tinha votado o accordo de Londres.

Mas parece-me que é exactamente porque se votou o accordo de Londres, porque a nossa historia financeira commemora esse grande acontecimento, que nos vimos obrigados a sanccionar, parece-me que é exactamente por isso que taes casos se não hão de repetir, que não havemos de presencear mais succedimentos d'essa ordem.

O accordo de Londres impoz a todos os governos a imperiosa necessidade de não deixarem mais de satisfazer pontualmente as obrigações contrahidas com os seus credores, como acontece a qualquer individuo nas suas relações particulares.

No accordo de Londres foi obrigado um ministro arrojar-se aos pés dos credores estrangeiros, e a supplicar-lhes as pazes que lhe negava o stock exchange.

E desde que um ministro se viu obrigado a isto, eu creio que nenhum governo se lembrará mais de attentar contra o credito publico. Lá está a historia d'aquelle acontecimento a recordar-lhe que os attentados contra o credito são seguidos do amarga expiação, de lamentavel castigo, como os que padeceu aquelle ministro, que teve que pedir, que solicitar, que supplicar que lhe perdoassem os seus passados erros financeiros, e lho dessem por expiadas as culpas do attentado que tinha commettido contra o credito em consequencia d'esses erros. Lá está a historia a ensinar-lhe esta indeleve lição, e a fallar-lhe na voz mais eloquente em que o passado póde fallar aos governos e aos povos, que é a dos factos, e da experiencia.

Creio, e fio da experiencia e do saber do todos os governos d'esta terra, que nenhum mais ousará arriscar similhante golpe. E por isso digo que é exactamente porque houve accordo de Londres, que o ultimo capitulo dos attentado s contra o credito está fechado na nossa historia financeira, e cancellado para sempre.

Ao menos felicitemo-nos, porque o accordo de Londres trouxe este resultado, e firmou uma data memoravel.

Todos os governos têem aquelle exemplo a lembrar-lhes o caminho que devem seguir, e os precipicios de que se hão de arredar.

É por isso que eu não desconfio das inscripções, e creio no futuro. Despegando os olhos do passado, posso ainda olhar com confiança para o futuro. E é por isso que eu, considerando que o patrimonio particular, por bem administrado e rendoso que seja nunca póde ser tão seguro como

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o patrimonio da nação, e vendo atraz das inscripções o credito do estado, e atraz d'este a nação inteira, digo, que confio e creio.

Aqui dou a rasão da minha crença, do fervor quasi religioso com que olho para o futuro.

Acredito que o paiz ha de caminhar constante e progressivamente para um estado, successivamente melhor de engrandecimento economico e financeiro; e o estado de desenvolvimento em que o vejo actualmente faz-me suppor que está aberto para nós o caminho largo, immenso da nossa regeneração economica.

E quando vejo o paiz com esta activa vontade de transformação e engrandecimento, quando vejo a historia dos nossos ultimos dez ou doze annos de administração, e a tendencia commum (faço justiça a todos os governos d'esta terra) de melhorar e acrescentar o cabedal da prosperidade publica, não posso deixar de caminhar sem temor para o futuro attrahido pelo clarão que de lá se reflecte explendidamente sobre nós.

Eu creio, tenho fé e esperança. E no meio da fé e esperança, julgo que ha de florescer a caridade.

«A miseria, disse o sr. Thomás Ribeiro, tem a sua poesia. Nós, não pretendemos armar contra vós a caridade, nem explora-la por meio da poesia, e se ha poesia nas nossas palavras é porque a miseria tem a sua poesia». E tem. A miseria tem a poesia das lagrimas, do soffrimento, dos prantos, dos gemidos, e das pungentíssimas dores; e o coração humano é naturalmente inclinado a condoer-se dos que soffrem, quando se debatem nas agonias da fome, e se obrigam á sombra da caridade nas enxergas do hospital.

Mas que fizemos nós contra a miseria, que attentado commettemos contra as lagrimas do pobre, contra as enxergas do hospital, contra o desvalido que ali se abriga á sombra da caridade? Pois nós vamos expulsar os desvalidos que se acolhem nos hospitaes? Pois no projecto ha algum attentado contra os pobres e enfermos que se debatem dolorosamente nas enxergas dos hospitaes?

De bom grado vos concedemos todo o sentimento de protecção amoravel por esses desvalidos no empenho com que quereis manter e favorecer os hospitaes, que aquellas santas instituições das misericordias crearam, e que protegem e sustentam; mas concedei-nos tambem que tenhamos o mesmo amor, igual affeição e tão desinteressada solicitude, como vós por essas instituições gloriosas; concedam-nos que soldados das mesmas fileiras, combatendo do mesmo lado, tendo os mesmos sentimentos, irmanados na mesma religião de caridade, os acompanhemos na mesma cruzada a favor d'esses estabelecimentos, procurando comtudo dar uma fórma inteiramente differente e mais conveniente á propriedade que possuem e que entendemos estar mal administrada.

«O estado é proprietario.» E attribuiram-se estas palavras não sei se ao sr. ministro da fazenda, se ao sr. Mendes Leal. Quem se atreveu a dizer, aqui, que o estado tem sobre os bens possuidos pelas corporações de mão morta o direito de propriedade? (Apoiados.)

O que é verdade, o que ninguem póde contestar, é que as corporações de mão morta são instituições que vivem á sombra da lei e em virtude da lei, e que se a lei as creou, a lei as póde modificar (apoiados).

Estes é que são os principios em virtude dos quaes não se podem egualar nunca as instituições que vivem só em virtude da lei e á sombra d'ella, aquellas que têem a sua origem na natureza e nos inviolaveis direitos do homem.

Mas d'aqui a dizer-se que o estado é proprietario, d'aqui a affirmar-se que a propriedade d'estas corporações passa para a mão do estado, vae uma grande, uma infinita distancia.

E para que se falla em ser o estado proprietario? Por ventura queremos nós entregar ao estado a administração dos bens d'estas corporações?

O meu amigo o sr. Thomás Ribeiro laborou n'um equivoco constantemente, quando se referiu a este ponto. Nós não quizemos nunca dizer, que as administrações d'estas corporações deixem de existir logo que este projecto seja convertido em lei, e que o estado passe a ser administrador dos bens das mesmas corporações (apoiados). Não foi nunca essa a nossa intenção; não é isso que está no projecto. E todas as consequencias que o meu amigo o sr. Thomás Ribeiro tirou, argumentando que se a administração das corporações de mão morta é má, a administração do estado é peior, é pessima, podem aceitar-se, porque o estado não passa a ser administrador dos bens d'estas corporações (apoiados).

Eu tinha vontade de ir correndo um por um todos os argumentos de que se serviu o illustre deputado. Tão abundante foi elle em considerações sobre differentes partes do projecto, tão variegado tão cheio de flores numas partes e tão derramado em divagações oratorias n'outras, que bem difficil fôra acompanha-lo e responder a todos os seus argumentos, não devendo esquecer-nos de que o illustre deputado levado das suas inspirações ás vezes se deixa perder do verdadeiro caminho da discussão. Não posso porém, faze-lo, visto que a discussão na generalidade está fechada e eu estou fóra da ordem, como esteve o illustre deputado, e, não devo abusar por muito tempo da paciencia da camara.

Se hoje qualquer governo se lembrasse de attentar contra o credito publico, de suspender o pagamento do juro das inscripções, o illustre deputado ha de concordar commigo, que fôra o mesmo que lançar um grande alarme no paiz, e no mesmo instante se insurgiriam contra esse governo todos os interesses offendidos, todos os sentimentos de perigosa reacção no que houvesse no seio da nação (apoiados).

Não quero cansar por mais tempo a attenção da camara.

Não posso porém sentar-me sem louvar a nobre isenção com que o illustre deputado, se enfileirou ao lado do sr. Pinto Coelho, lembrando á camara quanto era respeitavel a bandeira hasteada por este illustre deputado, onde estavam escriptas as venerandas palavras — saudade e desinteresse.

Respeito e veneração para aquella bandeira porque é nobre, porque é gloriosa, porque symbolisa um passado que, se não podemos abençoar sempre, devemos respeitar quando é tão nobremente defendida como o é pelo illustre deputado (apoiados). Respeito e veneração para ella; sympathia não (muitos apoiados). Collaboração e confraternidade nunca (muitos apoiados).

As instituições velhas tiveram a sua epocha e desceram á sepultura do passado. Se é necessario, escreva-se sobre a campa um epitaphio respeitoso que signifique bem a saudade que têem por ellas os que as defendem. Respeito todos os cultos sinceros. Mais do que isto, não. N'este ponto represento as idéas da maioria d'esta camara (muitos apoiados).

Limitar-me-hei, pois, a fazer só uma consideração em referencia aos padrões reaes a que se referiu o illustre deputado e a que já tinha alludido o sr. Pinto Coelho.

Os principios de credito em que assentam os estados modernos, são muito differentes do que eram ainda no principio d'este seculo.

Antigamente os governos recorriam pouco ao credito, e d'aqui resultava o estar interessado um menor numero de familias e de fortunas na conservação do credito publico.

É o que aconteceu com os padrões de juro real, que ao cabo de tudo abrangiam um pequeno numero de familias em relação á grande massa de fortunas que hoje está compromettida nas inscripções.

Treme-se aqui que as inscripções possam ser depreciadas, que se possa interromper o pagamento dos seus juros, por isso que estes estabelecimentos não poderão então satisfazer aos fins da sua instituição; e não se olha, e não se amiseram da triste situação a que ficariam reduzidos centenares de familias que têem já a sua sorte ligada e presa á do estado, porque têem as suas fortunas collocadas em inscripções! (Apoiados.)

O sr. Thomás Ribeiro: — Foi por sua vontade.

O Orador: — Se foi por sua vontade, que centenares de familias converteram as suas fortunas em inscripções, é claro que não faremos um triste presente ás corporações quando queremos que elles procedam do mesmo modo (apoiados).

Mas dizia eu, voltando ao meu argumento, que os padrões de juro real abrangiam um menor numero de familias e fortunas, e podiam então os governos commetter o attentado de não pagar os juros da divida publicarem que esse facto tivesse as consequencias que hoje teria, porque hoje quasi que o paiz inteiro está interessado no pagamento pontual do juro das inscripções e na conservação do credito publico.

Em nome de todos, protesto contra essas idéas; o illustre deputado não pôde nem deve esperar mais de nós (apoiados). O passado não volta, porque morreu em virtude de uma sentença providencial. O passado pertence á historia.

Se nos pedem mais do que isto, não lh'o podemos conceder (apoiados).

Continuaremos no caminho das grandes reformas que temos encetado; estaremos em luta tenaz e porfiosa, em que não podemos aceitar tregoas, nem armisticio, porque (isso fóra a nossa deshonra (muitos apoiados).

O passado percorreu o seu caminho; nós não podemos nem devemos parar no que encetámos (apoiados).

É o que tinha a dizer, e não queria sentar-me sem pronunciar estas poucas palavras como protesto á interpretação que podia dar-se ás palavras do sr. Thomás Ribeiro, para que se não dissesse, que n'esta camara não havia alguem que se levantasse para condemnar taes idéas (apoiados).

Peço desculpa á camara de ter-lho tomado algum tempo; e peço a v. ex.ª que mantenha a discussão na especialidade, dando-se comtudo a largueza que se lhe poder dar; e que tenha a bondade de convidar novamente os srs. deputados que têem de mandar propostas, para que as enviem na sessão de hoje, por isso que as commissões têem de reunir-se ámanhã. (Muitos apoiados, — Vozes: — Muito bem, muito bem.)

O sr. Aragão Mascarenhas: — O meu estado de saude e o adiantado da hora fazem com que eu me limite a dar uma explicação; e era mesmo pessima a occasião, se podesse fallar, porque a camara acaba de ouvir dos srs. Thomás Ribeiro e José Luciano dois brilhantes improvisos.

Eu fui hontem aqui arguido; e pedi unicamente a palavra por esse motivo.

O sr. ministro da fazenda arguiu-me hontem de eu ter tomado a palavra na ausencia do sr. presidente do conselho, e de ter impugnado agora a desamortisação, quando tinha votado por ella n'outra occasião, sendo apresentada pelo sr. conde d'Avila. É pois unicamente para responder a estas duas arguições, que me chocaram, que pedi a palavra.

Não fallei na ausencia de s. ex.ª; fallei do governo na presença do governo, e não julgo que n'esta terra haja dois governos.

Quando está presente o sr. Lobo d'Avila, póde estar ausente o sr. duque de Loulé. Não me referi pois a s. ex.ª Como pessoa particular tenho-o respeitado sempre, respeito e hei de respeitar. Faço a todos os seus dotes a mesma justiça que fez o sr. ministro da fazenda; mas como ministro tenho direito de me referir a s. ex.ª, quando veja presente um membro do gabinete.

Portanto, não tendo eu dito cousa alguma que fosse deshonrosa á pessoa particular do sr. duque de Loulé; tendo-me referido simplesmente aos seus actos como ministro, estando presente um ministro que podia responder, parece-me que se não póde estranhar que me referisse a s. ex.ª como conselheiro da corôa.

Disse o sr. ministro da fazenda que = s. ex.ª estava já costumado ás minhas amabilidades =. Disse uma verdade querendo fallar em sentido ironico.

O sr. duque de Loulé está costumado ás minhas amabilidades. Servi como governador civil uns poucos de annos quando s. ex.ª era ministro do reino, e servi zelosamente. Appello para o seu testemunho leal.

Depois prestei-lhe o meu apoio durante algum tempo, e prestei-lh'o leal e zelosamente.

Chegou uma epocha em que houve uma modificação ministerial, e vim aqui francamente dizer que — não me considerava ligado á situação como o estava até ali, porque a saída d'este e d'aquelle ministro, a modificação que soffreu a situação, obrigava-me a separar-me da situação. Não fui mais a reunião alguma ministerial.

Portanto a arguição que n'esta parte me dirigiu o sr. ministro da fazenda foi injusta, e estou convencido que o sr. duque de Loulé não julga que eu fui alem d'aquillo, que devia ir, no que disse aqui não estando s. ex.ª presente, mas estando o governo representado na pessoa do sr. Lobo d'Avila.

Digo isto, não para dar satisfações, porque não as pretendo dar, mas porque a verdade é esta.

Quanto a ter approvado a outra desamortisação, quando ministro o sr. conde d'Avila, e não approvar a que se discute agora em toda a sua amplitude, tenho tambem a dar uma explicação.

Era membro da commissão de fazenda; votei na commissão de fazenda a desamortisação pertencente aos conventos das religiosas, e votei-a tambem n'esta camara.

Depois o sr. conde d'Avila, de quem tenho a honra de ser amigo, e amigo intimo, apresentou a proposta de lei que hoje se discute. Reuniu-se a commissão de fazenda (não sei se n'essa occasião estava presente o sr. Lobo d'Avila, que era tambem membro da commissão de fazenda), lembraram-se de mim para relator d'esse projecto, e eu disse immediatamente — peço á commissão e ao sr. ministro me dispensem de relatar este projecto, porque não posso acompanhar o governo n'esta medida, visto que contém uma parte que não posso approvar. Não approvo, nem nunca approvarei, disse ao sr. conde d'Avila e aos meus collegas na commissão, que a desamortisação seja levada aos hospitaes e misericordias; portanto não posso ser o relator d'este projecto.

Aqui tem o sr. ministro da fazenda actual como eu sou contradictorio. Aqui tem como eu approvo umas medidas e não approvo outras.

Tenho approvado muitas medidas d'este governo; hei de continuar a approvar todas aquellas que se conformarem com a minha consciencia e com o meu modo de ver, e rejeitar aquellas que forem contrarias a isto.

É este o meu modo de proceder a respeito d'este governo, e é o mesmo que tenho feito para com todos quando se apresentam medidas que me não agradam, e que não vão de accordo com a minha consciencia.

Dada esta explicação, tenho concluido.

O sr. Presidente: — A hora está muito adiantada.

Em virtude da auctorisação da camara, a mesa nomeou para a commissão de pescarias aos srs.:

Annibal Alvares da Silva

Francisco Coelho de Almeida Bivar

Manuel José de Sousa Junior

Manuel José Mendes Leite

João Antonio de Sousa

Francisco Ignacio Lopes

João Teixeira Soares de Sousa.

A ordem do dia para ámanhã é trabalhos em commissões, e para sexta feira a continuação da que vinha para hoje.

Está levantada a sessão.

Eram quatro horas da tarde.

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