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SESSÃO DE 24 DE AG0STO DE 1869

Presidencia do ex.º sr. Diogo Antonio Palmeiro Pinto.

Secretários os srs.

José Gabriel Holbeche
Henrique Barros Gomes

Chamada - 49 srs. deputados.
Presentes a abertura da sessão - os srs. Agostinho de Ornellas, Ferreira de Mello, Pereira de Miranda, Sá Nogueira, Guerreiro Junior, A. J. P. de Magalhães, Magalhães Aguiar, Falcão da Fonseca, Montenegro, Barão da Ribeira de Pena, Belchior Garcez, B. F. da Costa, Carlos Bento, Conde de Thomar (Antonio), Palmeiro Pinto, Diogo de Macedo, F. J. Vieira, F. F. de Mello, Veiga Beirão, Francisco Costa, Quintino de Macedo, H. de Barros Gomes, H. de Macedo, Gil, Corvo, Santos e Silva, Assis Pereira de Mello, Aragão Mascarenhas; Gusmão, Teixeira Cardoso, J. A. Maia, Corrreia de Barros, Mello e Faro, Firmo Monteiro, Holbeche, J. M. Lobo d'Avila, Josó de Moraes, Nogueira, L. de Campos, L. A. Pimentel, Camara Leme, Affonseca, M. F. Coelho. Paes Villas Boas, Mathias de Carvalho, R. V. Rodrigues, Visconde de Carregoso, Visconde de Guedes, Visconde dos Olivaes.
Não compareceram - os srs. Adriano Pequito, Alves Carneiro, Costa Simões, Villaça, Falcão de Mendonca, Sá Brandão, Silva e Cunha, Veiga Barreira, A. J. de Seixas, Fontes, Antonio Pequito, Sousa de Menezes, Costa e Almeida, Eça e Costa, Barão da Trovisqueira, Abranches, C. de Seixas, Ribeiro da Silva, C. J. Freire, F. de Mello, Coelho do Amaral, Diogo de Sá, F. L. Gomes, F. Pinto Bessa, Noronha e Menezes, Vidigal, Baima de Bastos, Mártens Ferrão, Alves Matheus, Matos Correia, Nogueira Soares, J. Pinto de Magalhães, Ferreira Galvão, Bandeira Coelho, Infante Passanha, Sette, Dias Ferreira, Lemos e Napoles, Vieira de Sá Junior, Queiroz, Latino Coelho, Rodrigues de Carvalho, J. M. dos Santos, Mello Gouveia, Oliveira Baptista, Silveira e Sousa, Levy, Daun e Lorena, Espergueira, M. A. de Seixas, Penha Fortuna, H. R. Valladas, Calheiros, Thomás Lobo, Visconde de Bruges.
Abertura - Ás duas horas da tarde.
Sobre a acta
O sr. Sá Nogueira: - Na acta não se fez menção dos requerimentos que eu fiz a v. ex.ª para que fosse dispensada a segunda leitura do projecto que tive a honra de mandar para a mesa, a fim do ser remettido com urgencia á commissão de fazenda para dar immediatamente o seu parecer. Na acta não se faz menção, porque naturalmente v. ex. ª não o attendeu; portanto peço a v. ex. ª que faça inserir na acta esta minha declaração, e que me dê a palavra para eu fazer novamente o meu requerimento.
O sr. Secretario (Barros Gomes): - Na acta não se acha mencionado o pedido de urgencia que o sr. deputado fez, para que o projecto de lei fosse immediatamente remettido á respectiva commissão. O meu collega, o sr. Henrique de Macedo, que serviu de secretario, e que portanto tomou as competentes notas para a acta, dará as devidas explicações a este respeito.
O sr. Presidente: - O sr. Sá Nogueira acaba de dizer que, tendo feito hontem um requerimento, não foi attendido pela mesa. S. ex.ª não foi justo n'essa arguição que dirigiu á mesa por não ter attendido esse requerimento. Tanto o attendi que tinha tenção de consultar a camara se não se tivesse mettido de permeio negocios mais urgentes que dependiam da resolução da camara, e foi por esse motivo que o requerimento do sr. deputado ficou adiado para o final da sessão. Como não houve numero, foi por esse motivo que não pode ter seguimento o seu requerimento, e declare que não era possivel deixar de o attender.
O sr. Sá Nogueira: - Aceito a explicação, apesar de que os factos não foram bem comprehendidos por v. ex.ª,
porque naturalmente não ouviu o meu pedido; por isso declaro que aceito a explicação que me acaba de dar.
0 sr. Presidente: - O sr. deputado quando apresentou o seu requerimento juntamente com o projecto de lei, assignado por varios srs. deputados, não pediu a urgencia do requerimento. (O sr. Sá Nogueira: - É verdade.)
Esse negocio veiu para a mesa e foi mais tarde que v. ex.ª pediu a urgencia. Não era possivel ser logo attendido o seu pedido, porque outros negocios importantes occupavam n'essa occasião a attenção da camara; ficou para o fim da sessão, e como não houve numero ficou pendente para hoje.
Foi approvada a acta com a alteração proposta pelo sr. Sá Nogueira.

EXPEDIENTE

A QUE SE DEU DESTINO PELA MESA

OFFICIO

Do ministerio da fazenda remettendo 100 exemplares da estatistica e rendimento da alfandega municipal de Lisboa,

REQUERIMENTOS

De sargentos de cavallaria contra o requerimento apresentado por alguns sargentos quarteis-mestres.

DECLARAÇÕES

1.º Declare que votei contra o projecto de lei, pelo qual e o governo auctorisado a resolver, se o julgar necessario, quaisqer reclamações justificadas dos caminhos de ferro de norte e leste. José de Morais pinto de Almeida.
2.º Declaro que se estivesse presente votava contra a emenda feita pela camara dos dignos pares sobre o accordo com os agentes da companhia do caminho de ferro de sueste, e bem assim contra a suspensão de instruccção publica, e approvaria a proposta para ser discutido o orçamento, apresentada pelo sr. deputado Beirão.
O deputado, Luiz de Campos.

SEGUNDAS LEITURAS

Projecto de lei

Artigo 1.º Nas despezas do exercicio do 1869 a 1870 não poderá o governo exceder as verbas designadas no parecer da commissão de fazenda sobre o orçamento para o mesmo exercicio.
Art. 2.º Fica revogada a legislação em contrario.
Sala das sessões da camara dos senhores deputados, 13 de agosto de 1869 = Antonio Cabral de Sá Nogueira = José Dionysio de Mello e Faro = Sebastião Lopes de Calheiros e Menezes = Francisco Antonio da Veiga Beirão = Joaquim de Vasconcellos Gusmão = José Bandeira Coelho de Mello.

Senhores. - Tenho a honra de submetter d vossa illustrada apreciação um projecto da reforma da camara dos dignos pares do reino, precedido de algumas considerações que mostram a necessidade de reorganisar este ramo do poder legislativo.
A existencia de uma camara legislativa composta de membros hereditarios não está em harmonia com os principios fundamentaes do systema representativo.
A do throno hereditario e justitificada pelas vantagens sociaes que d'ella derivam e pelos perigos manifestos de uma monarchia electiva.
A pessoa real perpetua e irresponsavel só póde governar por meio de ministros temporarios e responsaveis. A responsabilidade d'este agente da corôa serve de salvaguarda

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e garantia d nação. A camara hereditaria, não dependendo do povo para a sua eleição nem do throno para a sua conservação, se chega a pôr-se em conflicto com os interesses publicos, só póde ser cohibida pelo recurso fallivel e inconveniente da nomeação de novos pares. A dissolução da camara dos deputados é um expediente por vezes empregado para advertir a dos pares de um modo constitucional de que ella está em hostilidade com a opinião do paiz. Mas ainda que o corpo eleitoral confirme o proceder politico da camara dissolvida e a novamente eleita seja o manifesto solemne de que a camara dos pares está em desaccordo com o voto da nação, uma maioria pertinaz ou facciosa n'esta camara póde inutilisar ente reinedio extrerno. Tambem a camara electiva póde ser dissolvida quando rasões de estado obriguem a appellar d'ella para a consciencia do paiz. Posto que a nova camara corresponda as necessidades publicas que dictaram a dissolução da precedente, o mesmo embarago politico que se quiz remover póde reapparccer mediante a opposição da camara hereditaria. A nomeação de novos pares, unico recurso que n'estas circumstancias BC offerece, alem de não ser sempre efficaz, repetir-se-ia porventura tantas vezes que chegaria a formar-se uma assemblea monstruosa pelo numero e incapaz de toda a deliberação séria e sensata pelos elementos discordes sua composição. Estes inconvenientes só chegarão a ser removidos dando-se á camara dos pares, com o caracter de mais permanencia que a deve distinguir da electiva, elementos de renovação periodica.
Só por este meio poderá conseguir se conserva-la na sua esphera constitucional. A camara dos pares, alem do mandato geral de que está envestido cada ramo do poder legislativo, terá um mandato especial. Deve olhar de um ponto de vista mais elevado as questões que se apresentam á sua deliberação, obstar a resoluções apaixonadas ou precipitadas, evitar conflictos entre a corôa e o povo, conciliar os interesses locaes com os geraes fazendo prevalecer os ultimos. Os funccionarios que se illustraram pelo longo trato dos negocios nas regiões superiores da administração, os cidadãos notaveis por serviços relevantes e os talentos eminentes têem o seu assento n'esta camara.
A lei deve pois estabelecer certas categorias para dentro d'ellas serem escolhidos os seus membros. O numero de pares deve ser lixo. A só faculdade de os nomear sem limites diminue o prestigio moral d'este corpo, e ao passo que afrouxa nas verdadeiras capacidades, o desejo de lhe pertencer estimula a introduzir-se n'elle a intriga desacompanhada de habilitações legitimas.
No projecto de lei que tenho a honra de vos apresentar para a reforma da camara dos pares é esta composta de membros temporarios e de um pequeno numero de membros vitalicios, conservam-se intactas todas as attribuições d'esta camara. O direito que a lei tem de nomear pares fica igualmente mantido. É este o direito constitucional da corôa. O de nomear pares sem numero fixo seria e era um principio de equilibrio indispensavel a respeito de uma assembléa hereditaria, onde poderia organisar-se um partido formidavel que arrostasse com o rei e com o povo, que seria impossivel annullar sera transtorro da lei fundamental do estado, uma vez que a corôa não estivesse armada da faculdade illimitada de nomear pares, mas n'uma assembléa não hereditaria, composta na sua maioria de membros temporarios, segundo se propõe, desapparece este perigo e não tem rasão de ser esta faculdade illimitada attribuida á corôa.
O projecto não altera artigo algum constitucional, porque não entende essencialmente nem com os limites nem com as attribuições de nenhum dos poderes politicos do estado.
Por todas estas considerações e outras que escuso mencionar por não cansar a vossa attenção, tenho de o formular do modo seguinte. = O deputado por Santarem, Antonio Cabral de Sá Nogueira.

Projecto de Lei

Artigo 1.º A camara dos pares será composta de setenta membros temporarios e de vinte vitalicios, uns e outros nomeados pelo Rei.
Art. 2.º Todas as vezes que se houver de proceder a eleições geraes para deputados, a camara dos pares será renovada em metade dos seus membros temporarios, que serão nomeados depois de constituida a nova camara electiva.
Art. 3.º Depois de uma eleição geral de deputados não poderá a camara dos pares funccionar antes de ter prestado juramento a maioria dos novos pares temporarios.
Art. 4.º Só poderão der nomeados pares temporarios os cidadãos portuguezes maiores de quarenta annos que estiverem no goso de seus direitos civis e politicos, e se acharem comprehendidos em alguma das seguintes categorias:
1.ª Os contribuintes que tiverem pago em cada um dos dois annos economicos immediatamente anteriores de contribuição predial e addicionaes respectivas de predios proprios rusticos e urbanos, uma somma correspondente e um rendimento annual liquido de 2:000$000 réis.
2.ª Os contribuintes que tiverem pago em cada um dos dois mencionados annos de contribuição industrial e addicionaes respectivos e de contribuição de juros uma somma correspondente a um lucro liquido annual de 4:000$000 réis.
3.ª Os arcebispos e bispos com diocese no reino.
4.ª Os conselheiros d'estado e os do supremo tribunal de justiça.
5.ª Os officiaes generaes do exercito e da armada.
6.º Os lentes de prima da universidade de Coimbra, o lente mais antigo da escola polytechnica, o mais antigo da academia polytechnica, e de cada uma das escolas medico-cirurgicas de Lisboa e Porto.
7.ª Os embaixadores e os enviados extraordinarios ministros plenipotenciarios com cinco annos de exercicio na carreira diplomatica e não menos de vinte de Serviço publico.
Art. 5.º Só poderão ser nomeados pares vitalicios os cidadãos comprehendidos nas categorias mencionadas no artigo antecedente, que tenham sido membros das camaras legislativas durante doze annos em que tenham sido eleitos deputados era quatro eleições geraes.
Art. 6.º Fica em pleno vigor o artigo 40.º da carta constitucional devendo os dignos pares a que elle se refere ser contados no numero dos pares vitalicios estabelecido no artigo 1.º d'esta lei.
Art. 7.º Ficam d'este modo alterados e ampliados os artigos 39.º e 43.º da carta constitucional, e revogado o decreto de 30 de abril de 1820, e toda a legislação em contrario.

Disposições transitorias

Art. 8.º Para a constituicção immediata da camara dos pares depois da implicação da presente lei serão nomeados setenta pares temporarios na epocha marcada no artigo 2.º d'esta mesma lei.
Art. 9.º Na primeira renovayção de pares temporarios decidirá a sorte os que devem sair e nas subsequentes a antiguidade de nomeação de cada um.
Sala das sessões da camara dos srs. deputados, em 24 de agosto de 1869. - O deputado por Santarem, Antonio Cabral de Sá Nogueira.
O sr. Sá Nogueira: - Peço a v. ex.ª que o projecto que ha pouco foi lido pelo sr. l.º secretario, seja remettido com urgencia á commissão, para dar com urgencia o seu parecer.
Como a commissão mostrou que podia trabalhar com velocidade em negocios de igual importancia a este, espero que sobre este negocio, que tambem é importante, não deixará de applicar igual zêlo.
Foi approvada a urgencia.
O sr. Camara Leme: - Peço a v. ex.ª que tenha a bon-

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dade de consultar a camara sobre se dispensa o regimento para entrar em discussão o projecto n.º 68, da commissão de guerra, que foi hoje distribuido.
Foi approvado o requerimento, e, entrando em discussão, o projecto foi approvado.

É o seguinte:

Projecto de lei n.º 68

Senhores. - A vossa commissão de guerra foi presente a proposta de lei n.º 20-D, renovando a iniciativa da proposta de lei, apresentada em sessão de 23 de fevereiro de 1866, auctorisando o governo a despender a quantia de 690$000 réis, para pagar a D. Georgina Hocking Sewell a importancia de soldos que ficaram em divida a sen fallecido marido, o coronel reformado, Guilherme Henry Sewell.
A mesma commissão, tendo ouvido a illustre com mi sen o de fazenda, que £ de parecer que se pague d supplicante a referida quantia, e de accordo com o governo, tem a honra de submetter á vossa deliberação o seguinte projecto de lei:
Artigo 1.º É auctorisado o governo a mandar pagar a D. Georgina Hocking Sewell a quantia de 690$000 réis, importancia dos soldos que o estado ficou devendo ao seu fallecido marido, o coronel reformado, Guilherme Henry Sewell.
Art. 2.º Fica revogada a legislagação em contrario.
Sala da commissão, era 23 de agosto de 1869. = Antonio Maria de Fontes Pereira de Mello = Luiz Augusto Pimentel = José Bandeira Coelho de Mello = Belchior José Garcez = D. Luiz da Camara Leme = Luiz de Almeida Coelho e Campos.

N.º 20-D

Tenho a honra de renovar a iniciativa da proposta de lei, apresentada era sessão de 28 de fevereiro do 1866, auctorisando o governo a despender a quantia de 690$000 réis para pagar a D. Georgina Hocking Sewell a importancia dos soldos que ficaram em divida a seu fallecido marido Guilherme Henry Sewell, que foi coronel reformado.
Secretaria d'estado dos negocios da guerra, em 22 da junho de 1869. = Marguez de Sá da Bandeira.
Senhores. - Pela illustre commissão de guerra foi remettida á de fazenda a proposta de lei n.º 20-D, renovando a iniciativa da de n.º 17-Q, da sessão de 1866, para que o governo seja auctorisado a despender a quantia de 690$000 réis com o pagamento a D. Georgina Hocking Sewell, da importancia dos soldos que ficaram em divida a seu marido Guilherme Henry Sewell, que foi coronel reformado.
A commissão de fazenda, tendo de interpor a sua opinião sobre a materia da referida proposta de lei, é de parecer, que havendo o governo attendido desde 1840 a creditos similhantes sobre o estado, pela importancia da verba annualmente votada ao ministerio da fazenda para encargos de exercicios findos, deve por essa verba ser satisfeito o credito de D. Georgina Hocking Sewell, de que trata a proposta do governo.
Sala das sessões da camara dos senhores deputados, em 8 de julho de 1869.= João Rodrigues da Cunha Aragão Mascarenhas = Antonio Ribeiro da Costa e Almelda = Francisco Pinto Bessa = Manuel Antonio de Seixas = Henrique de Macedo Pereira Coutinho - José Dionysio de Mello e Faro.

A commissão de guerra tem a honra de convidar a illustre commissão de fazenda a dar o seu parecer sobre a proposta de lei n.º 17-Q, em que o governo pede auctorisação para despender, no actual anno economico, a quantia de 690$000 réis, e com ella pagar a D. Georgina Hocking Sewell, a importancia dos soldos em divida a seu fallecido marido Guilherme Henry Sewell, visto importar augmento de despeza. = Antonio Maria de Fontes Pereira de Mello D. Luiz da Camara Leme = Augusta Pinto de Miranda Montenegro = José Bandeira Coelho de Mello = Luiz Augusta Pimentel = Joaquimm Nogueira Soares Vieira.

N.º 17-Q de 1866

Senhores. - D. Georgina Hocking Sewell, viuva de Guilherme Henry Sewell, que foi coronel reformado, é credora ao estado da quantia de 690$000 réis, proveniente de soldos que ficaram em divida a seu fallecido marido, e requer o pagamento integral d'esta quantia a que tem direito.
O pagamento dos creditos identicos a este tem sido regulado desde 1849 por meio de consignação annual de uma verba feita no orçamento do ministerio da fazenda com esta applicação; como porém a que foi votada para este fim no orçamento de 1864-1865, está reduzida á quantia de réis 11$525, não póde o dito ministerio da fazenda satisfazer á requisição de credito certo que pelo ministerio a meu cargo lhe foi feita para pagar a divida supramencionada.
É por esta rasão que tenho a honra de submetter á vossa approvação a seguinte proposta de lei.
Artigo 1.º E o governo auctorisado a despender no actual anno economico a quantia de 690$000 réis, para pagar a D. Georgina Hacking Sewell a importancia dos soldos que ficaram em divida, a seu fallecido marido Guilherme Henry Sewell, que foi coronel reformado.
Art. 2.º Fica revogada toda a legislação em contrario.
Secretaria d'estado dos negocios da guerra, em 23 de fevereiro de 1866. = Visconde da Praia Grande.
O sr. Mathias de Carvalho: - Peço a v. ex.ª que consulte a camara sobre se permute que seja nomeado um membro para a commissão diplomatica, sendo a mesa encarregada de fazer essa nomeação.
Approvado o requerimento.
O sr. Presidente: - A mesa nomeia para a commissão diplomatica o sr. D. Luiz da Camara Leme.
O sr. Conde de Thomar (Antonio): - Tinha pedido a palavra para o mesmo fim, e por conseguinte está prejudicado o meu requerimento.
Mando para a mesma o parecer da commissão diplomatica, relativo a uma convenção internacional destinada a melhorar a sorte dos militares feridos no campo de bata batalha.
Peço a v. ex.ª que consulte a camara sobre dispensa a impressão do parecer, a fim de entrar já em discussão.
O sr. Mathias de Carvalho: - Tenho a honra de mandar para a mesa o parecer da commissão diplomatica sobre o tratado de commercio o navegação celebrado entre Portugal e a Turquia.
Peço a v. ex.ª que consulte a camara sobre se dispensa o regimento, prescindindo-se da impressão, a fim de se discutir immediatamente.
Foram approvados os requerimentos dos srs. conde de Thomar, e Mathias de Carvalho.
O sr. Presidente: - A camara constituir-se em sessão secreta, por assim o exigir o bem do estado.
Eram duas horas e meia da tarde.
Ás duas horas e quarenta minutos tornou-se a sessão publica.
0 sr. Secretario (Holbeche): - O parecer da commissão diplomatica sobre a convenção internacional, destinada a melhorar a sorte dos militares feridos no campo da batalha, foi approvada por 35 votos; e o parecer da mesma commissão sobre o tratado de commercio e navegação, celebrado entre Portugal e a Turquia, assignado em Paris aos 23 de fevereiro de 1868, foi tambem approvado por igual numero de votos.
O sr. Presidente: - Póde ser que venha alguma emenda da camara dos dignos pares, e que seja necessario considera-la; entretanto, como nada temos agora de que nos occupar, interrompo a sessão por uma hora.
Eram tres horas. menos cinco minutos.
Sendo quatro horas, disse
0 sr. Presidente: - Está fechada a sessão.

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Discurso do sr. ministro da marinha, proferido na sessão de 3 de julho findo, e que devia ler-se a pág. 630, col. l. ª

O sr. Ministro da Marinha (Latino Coelho): - É sempre grande, apesar do meu amor a arte da palavra, á publicidade e á discussão, a repugnância com que tomo parte nos debates...
(Sussurro e ápartes entre alguns Srs. deputados.)
Não sei se poderei continuar. Vejo ainda alguns membros d'esta casa indecisos sobre se a palavra para requerimentos lhes deve ou não ser concedida, e não quero fraudar os Srs. deputados que desejem fazer a esta camara alguma petição.
(Restabeleceu-se o silencio.)
Começava eu dizendo que, apesar do grande afecto que professo pela arte da palavra, apesar do grande amor que tenho á máxima publicidade, e por consequência á discussão, que é a publicidade parlamentar, é sempre grande a repugnancia com que me aproximo da tribuna.
Esta reluctancia porém, devo dize-lo, é hoje compensada, e em certa maneira destruída pela confiança (parecerá paradoxal a affirmação) que me inspira neste momento a actual opposição dentro desta assembléa.
Parecerá, dizia eu, um paradoxo, que um ministro haja de suppor que da parte da opposição póde ser-lhe inspirada confiança, mas já direi a v. ex. ª e á camara qual é o significado e explicação das palavras que soltei: mais de uma vez tem sido o meu silencio notado e taxado n'esta casa; decorreram já dois mezes desde que está aberta a camara, e eu tenho assistido silencioso aos debates prolongados e nem sempre serenos e tranquillos, que se têem succedido n'esta assembléa.
Anima-me e incita-me hoje a tomar a palavra n'uma questão, mais ou menos apparentada com a questão política, a curiosidade inexplicavel com que alguns dos Srs. deputados, que se sentam nos bancos da opposição, têem lastimado o meu silencio, e me têem provocado, uns com aceradas ironias, outros com amaveis expressões, a tomar a palavra, esperando uns e outros porventura - e a uns e outros agradeço a confiança - que da minha palavra humilde, obscura e desenfeitada possa sair alguma luz para o labyrinto em que andam enredados os debates n'esta camara.
Tenho quasi invencivel repugnancia no fallar, domina-me o terror ao pisar o primeiro degrau da tribuna parlamentar, e este sentimento em vez de ser taxado de defeito, devera ser tornado a conta de modestia não mentida e affectada, senão sincera e verdadeira, porque não tenho, não posso ter a pretensão de projectar luz no debate com os meus predicados oratorios.
E porque as obrigações do officio me forçam a quebrar o meu silencio, algumas palavras direi, taxadas e avaras, quanto poder, em resposta as considerações e argumentos, e sobretudo as invectivas que têem sido lançadas contra o governo de que tenho a honra de fazer parte, e espero que me não será levado a mal se fallar com menos laconismo e mais largueza, e que não serei por isso acoimado de usurario, palavra que se emprega hoje e anda frequente no vocabulario d'esta camara.
Estamos de feito em epocha em que os usurarios estão, como se diz com um gallicismo politico, na ordem do dia, e por isso peço desculpa aos illustres deputados que se sentam no lado esquerdo da camara, se abusar da sua paciencia, e se no meu silencio de dois mezes fizer fundamento para tirar agora a minha usura, alargando um pouco as reflexões e commentarios que tenho de fazer.
Tão parco hei sido em roubar o tempo á camara que me parece ter chegado a occasião das minhas vaccas gordas, e de abusar um pouco da abundancia após tamanha esterilidade parlamentar. Desde já declaro porém que não é meu intento fatigar a benevolencia do auditorio, e que forcejarei por ser tão breve quanto a natureza do assumpto e o meu dever politico m'o possam permittir.
E apresso-me já a uma nova declaração. Disse-se que as provocações n'este debate partiam quasi sempre do governo, e ao passo que se tem accusado o banco dos ministros pela sua aggressiva loquacidade, e pela intemperança das suas recriminações á opposição, por outra parte tem-se accusado o banco dos ministros pela sua taciturnidade obstinada.
Devo dizer á camara e particularmente aos srs. deputados a quem intento responder, que nas palavras que me forçam a dizer não farei provocações porque lhes não é affeita a minha indole, nem a minha educação parlamentar; não me quadram objurgações, nem represalias, e o meu animo apesar de largo e desassombrado não pode abrigar em si paixões odientas. Devo porém advertir aos meus antagonistas que para defender os actos que por elles têem sido mais ou menos acerbamente vituperados, ver-me-hei forçado a instituir parallelos e confrontos, e se a historia com a sua inflexivel rigidez não for favoravel á gerencia dos srs. deputados que por parte da opposição têem tornado parte no debate na presente sessão legislativa, não será minha de certo a culpa nem a intenção, senão da historia que escripta e a cujos fastos e sempre licito alludir.
Eu sou naturalmente silencioso, e ainda mais me apraz esta virtude pythagorica nas cadeiras do poder.
Sou já velho parlamentar. A minha entrada n'esta casa data de 1855, e, se v. ex. ª e a camara folhearem os nossos archivos parlamentares, hão-de encontrar ahi raras vezes o meu nome. E isto por duas rasões: a primeira, porque poucas vezes tomo a mão nas questões do parlamento; a segunda, porque, n'essas raras occasiões em que me aventurei ás glorias ou aos desastres da tribuna, tal era o meu desgosto, direi mais, a minha profunda aversão pela forma litteraria d'aquillo que tinha proferido, que quasi sempre deixei intactos e furtados á publicidade os cadernos e os rolos de papel que a repartição tachygraphica me tinha enviado, e a que, por um euphemismo cortez e lisonjeiro, chamára discursos parlamentares. Tão alta e tão temerosa e a noção que sempre fiz da eloquencia parlamentar e das responsabilidades da tribuna.
Quando tenho sido d'esta maneira sobrio nos bancos da opposição, não admira que seja agora extremamente reservado no uso da palavra, quando tenho a honra de me as sentar nas cadeiras do governo, e quando a gravidade das cirumstancias nem recommendam certamente o abuso da oratoria, nem as larguezas e pompas do discurso.
Respeito tanto, como os que mais a veneram e acatam, a palavra livre no governo livre. Admiro mais do que ninguem a arte sublime da palavra. É ella um dos meus estudos predilectos nas horas de lazer, nos ocios que me deixam os negocios publicos ou o desempenho nas minhas funcções officiaes. E talvez por me haver dedicado ao estudo da oratoria, principalmente nas bellas manifestações da arte antiga, que naturalmente me arreceio, quando imperiosas obrigações me chamam á tribuna.
Tenho para mim que o officio do governo não é certamente o fallar immoderado; o primeiro, o principal officio d'aquelles que Silo chamados a occupar estas cadeiras, é a acção e não o verbo, é a obra, que executa, e não a palavra, que disserta.
A palavra, a discussão e para o governo, não um torneio de gentilezas oratorias, senão um instrumento de opportuna justificação, a palavra não é ultimo fim da administração, mas um instrumento de bom Governo. E infelizmente entre nós não são raros os exemplos de se haver abusado largamente, nos bancos do poder, das galas e exuberancias da palavra.
Ha ainda outra rasão pela qual me conserve quasi sempre silencioso. N'este encargo pesado de reger os negocios publicos, n'esta ardua magistratura, que, paraphraseando o dito de um rei sempre chorado, poderamos appellidar o duro officio de governar, porque tem mais durezas que do-

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çuras, mais espinhos e abrolhos que flores e espadanas, é preciso no seu caminho breve e cortado de amarguras, que estejamos sempre attentos aos conselhos e advertencias da historia, principalmente da historia contemporanea. Ora o governo que se senta presentemente n'estes bancos tem um privilegio singular, com que raras vezes os governos têem sido favorecidos pela Providencia; têem o privilegio de ver diante de si estampada, personificada e symbolisada, na sua mais viva e edificante figura, a historia financeira do paiz.
Nunca houve n'esta casa uma opposição parlamentar tão singularmente constituida e tão galhardamente capitancada. É uma Santa-Alliança de financeiros, attribuo lhe este titulo, sem recriminação e sem offensa, porque o amor das tradições, o fanatismo dos passados systemas do governo, e a sua principal predilecção. Nunca houve, n'uma camara, em frente de um governo uma liga, uma cohorte, uma phalange mais cerrada e mais luzida de financeiros jubila dos, que administraram durante largos annos a fazenda da nação.
Ao mesmo passo que na modesta obscuridade do meu banco, concentrado o meu espirito me estou revendo, deliciando e comprazendo nas paginas brilhantes que os illustres financeiros do lado esquerdo da camara estão todos os dias desenrolando diante de nossos olhos deslumbrados, leio nos seus discursos opulentos a historia contemporanea, releio ali principalmente a historia financeira, que é justamente aquella cujos preciosos ensinamentos e advertencias salutares nos são mais necessaries na presente occasião.
Por isso quando ólho para um dos mais vivos, luzeiros d'esta casa, que tem logar no extreme de um dos bancos superiores, e que geriu por longos annos os negocios publicos em largas e diuturnas administração, não posso deixar de estar attento á voz d'esse antigo deputado, que sinto não ver presente, e de aprender com elle nas suas graves orações, nas aturadas navegações a que tantas vezes se tem arriscado, e nos naufragios que tem padecido, e cuja recordação serve de aviso a mais inexpertos navegantes.
Quando eu, depois de versar a historia financeira d'este paiz tal como e narrada e commentada em alguns dos seus mais notaveis capitulos na vida ministerial do sr. deputado a quem me refiro, desço um pouco mais na ordem dos bancos da esquerda, encontro outro distincto financeiro, que foi durante largos annos ministro da fazenda, cujas operações foram numerosas, cujos actos do governo foram varios e multiformes, e cuja palavra, apologia ou auto biographia ministerial, contém explicitamente um curso de finanças, umas memorias preciosas da historia contemporanea da fazenda publica. E quem me póde culpar se estou mudo e attento a voz d'esse distincto deputado, aprendendo ali as concepções do estadista previdente e as praticas do zelozo administrador, e assim me esteja apercebendo com a experiencia dos alheios naufragios para os lances e acasos da propria navegação?
Quando desço um pouco mais na ordem dos bancos parlamentares dou de rosto com outro financeiro benemerito que se senta logo proximo d'aquelle a quem ha pouco me referi. Este senhor deputado, depois do ter combatido tenaz e heroicamcnte os gabinetes a que pertenciam os seus antecessores, depois de ter sido levantado sobre os escudos por uma revolução pacifica, mas não menos temerosa e finalmente triumphante, deixou cair o poder das mãos depois de ter sido arremessado as eminencias do poder pela onda da revolução, deixou fundir, novo ícaro infeliz as azas que os successos politicos, talvez em parte o acaso venturoso, em parte uma fugaz popularidade lhe tinham soldado nas espaldas, deixou se precipitar, sem que vozes lastimosas e plangentes lhe fizessem o officio das filhas compassivas do Eridano, sem que da sua passagem no governo deixasse senão vestigios quasi apagados e difficeis de reler nos annaes politicos e financeiros do paiz. (apoiados e vozes:- Muito bem).
1 0 sr. Fontes.
Não posso n'esta occasião deixar de contemplar na fugitiva galeria que estou apenas bosquejando o meu illustre amigo e confrade sympathico desde largos annos no magisterio, e a quem sou devedor de affectuosas e lisonjeiras expresses, e que mais particularmente me reptou a estas justas parlamentares. Quero fallar do meu honrado amigo, o sr. Mathias de Carvalho. S. ex. ª foi tambem ministro da fazenda em quadra pouco florescente e propicia ao seu tirocinio financeiro. Se os illustres deputados e eminentes fazendistas que se sentam do lado esquerdo merecem na historia menção mais larga e demorada, porque intervieram diuturnamente nos destines do paiz, o illustre deputado a quem estou agora respondendo tem, pelo officio que exerceu e pela deferencia que lhe devo, direito a um logar, embora mais modesto no meu mal exornado pantheon.
S. ex. ª abrilhanta agora muitas vezes a tribuna com os seus lampejos oratorios, e por elles sinceramente felicito a camara e o paiz. Á memoria me vem naturalmente a sua breve e angustiada existencia no ministerio. Estão-me presentes os trances dolorosos por que passou. E quizera que, experimentado nas proprias adversidades, fosse menos severo no juizo dos seus antagonistas. Non ignara mali, miseris succurrere disco. Foi curta a sua passagem no poder, meteorica a sua apparição na scena publica. D'elle poderamos dizer com magua e com verdade, e torcendo-o da medicina do organismo para a medicina da fasenda, o texto pelo qual o celebrado medico de Cós principia os seus famigerados aphorismos. Ars longa, vita brevis. E curta e trabalhada a vida dos ministerios, larga e assombrada de mil difficuldades a arte de governar e gerir a fazenda de um paiz arruinado por tentativas mais bem intencionadas que felizes.
Passou voando pelo poder o meu illustre antagonista, e na sua rapida carreira, no arido deserto da sua popularidade, foi elle um exemplo vivo da vaidade, da sombra, do nada das grandezas humanas, e principalmente das grandezas do poder. Não podia eu pois, como figura historica e como advertencia ás soberbas ministeriaes, deixar do inclui-lo na breve relação que estou fazendo dos estadistas eminentes que até hoje têem gerido os interesses do paiz. E não se diga que por breve devêra omittir-se a vida governativa do ilustre deputado n'este resumido Plutarcho financeiro. Que tão providente e opulenta é nas suas manifestações natureza, que não sómente o cetaceo collossal o giganteo mastodonte com a sua extrema longevidade, senão o ephemero, que nasce e perece no mesmo dia, silo necessarios á eterna harmonia do universo.
O meu silencio tem tido mais variamente commentado do que o podéra ser a minha palavra se fora eloquente. O meu silencio tem sido um longo discurso de dois mezes; apontado, notado, glossado e commentado por quasi todos os distinctos oradores que têem fallado n'este debate e têem assento no lado esquerdo d'esta casa.
O meu silencio, dizem, é nascido desgosto que mo eiva a existencia de ministro, e que me faz sopesar com quasi invencivel repugnancia os encargos d'este officio, Accusam-me de estar em desaccordo com os meus nobres collegas no gabinete, e fazem me a honra, que eu declino, do me supporem um Achilles desgostoso e apostado a encerrar-se na sua tenda, para não tomar parte nas discordias suscitadas entre os chefes perante os muros de llion. Não julgo leves e faceis de levar as fadigas, e principalmente as responsabilidades d'este officio em tempos da tamanha contrariedade, em tão grave conjunctura, quando são escassas as forças mais robustas, os mais entendimentos, e a mais provada sciencia de governo! Mas o meu silencio não quer dizer contradição, nem discordancia.
É esta a occasião do apresentar a v. ex. ª e d camara a unica e verdadeira interpretação do meu silencio. Tem elle sido a desnecessidade de eu fallar quando ,se debatem n'esta casa importantissimos assumptos, estranhos de todo o ponto d repartição que me cabe a honra de reger. De que servi-

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ria, de feito, a minha palavra nas theses que até agora se têem controvertido n'esta camara? Nos debates politicos? Aqui está o meu nobre amigo e collega o sr. ministro do reino para sustentar na discussão a honra do governo. Nas questões financeiras? Aqui tem sido prompto, assiduo, indefesso na replica aos adversarios o meu illustre collega o sr. ministro da fazenda. N'estas circumstancias fora pois imprudencia demasiada, porventura indisculpavel fora jactancia e temeridade, que eu tentasse lançar a espada da minha palavra na balança do debate, pretendendo inclina-la em meu favor.
Diz-se que estamos em discordancia, argue o meu silencio esta suspeita. Quero estar com os illustres deputados n'este ponto. Existe em verdade o desaccordo ministerial, se por desaccordo havemos de entender a discussão, a contradicta, o em bate natural e necessario dos pareceres antes que um corpo deliberante chegue a assentar no que convem em materias de grande ponderação.
Um dos oradores que mais insistem na supposta discrepancia, o sr. Mathias de Carvalho, sabe perfeitamente que dos attritos inevitaveis no governo representativo, das mil causas que retardam ou perturbam o andamento dos mais bem constituidos ministerios até ao desaccordo profundo e caracterisado, vac uma serie de infinitas graduações. Sempre foi licito a um conjuncto de homens, embora ligados e conformes n'um pensamento commum e dominante, differirem de parecer em pontos não dogmaticos. Ninguem ousará dizer que está rota a mystica unidade do catholicismo, porque dois fieis se não accordam improvisamente em as-aumptos de disciplina. Nem se dirá que o dissidio affecta a paz da igreja, como a heretica pravidade do sociniano ou mcthodista, em profunda e irreconciliavel divergencia com a igreja e a tradição.
Todos os gabinetes discutem e divergem, nos debates do seu conselho, antes de formularem completamente uma norma de governo sobre cada assumpto grave de publica administração. E o meu illustre amigo (o sr. Mathias de Carvalho) tem de certo, apesar do seu breve estadio ministerial, a experiencia das discussões familiares no gremio de cada gabinete, e sabe que só d'ali poda nascer o acordo das idéas.
Seria impossivel que um pensamento governativo saísse improvisa e simultaneamente formulado das cabeças de seis homens, como Minerva saíu armada do cerebro de Jupiter.
Não me causaria espanto que o meu honrado amigo não soubesse pela pratica do seu governo estas verdades triviaes. Quando se emprechendem e acabam estas navegações na barca pesada do governo quasi limitadas a pequena cabotagem, sem se engolfar ao largo, - e tal foi a navegação politica do meu illustre amigo o sr. Mathias do Carvalho, - não admira que a mais inquebraníavel fraternidade nem fosse um momento annuveada pela sombra sequer de uma discordancia accidental. Quando porém a empreza é desusada, quando todas as contradições se encastellam em volta do governo, e quando é para elle o primeiro dever o governar, o corrigir, o reformar, a despeito de todos os contratempos e de todas as insidias, e cumprir um programma consagrado solenemente pela opinião, somente da discussão entre os ministros pode saír victoriosa a verdade pratica na administração. É esse debate que chamam desaccordo, e esse é honra, não opprobrio para o gabinete a que tenho a honra de pertencer.
Dada a rasão do meu silencio até agora, devo justificar o fundamento de o ter rompido n' esta occasião.
Pedi a palavra sobre a questão que estava no debate, quando ouvi pronunciar algumas proposições, com as quaes, por insolitas e contrarias aos solidos principios do governo, me não podia conformar. Proferiu as n' esta casa em tom
Sentimental e em thremos lacrymosos sr. deputado (o sr. Corvo) que já teve parte no governo. Essas opiniões julgo dever meu, necessidade do governo, refutar; e falo-hei nos termos mais cortezes e menos eivados de acrimonia e de apaixonadas intenções.
Trata-se de saber se os empregados que ficaram excedentes, depois de reduzidos os quadros... (O sr. Corvo: - Peço a palavra.) da repartição de pesos e medidas, ou para fallar mais correctamente, trata-se de investigar se os empregados que tinham sido illegalmente nomeados para a repartição de pesos e medidas (apoiados), podem ou não, devem ou não ser attendidos, para que se lhes continue o abono de seus vencimentos illegaes, e se o principio das economias deve ou não ser respeitado no sentido mais severo e litteral.
Parece-me facil empenho, mas inglorio, o demonstrar á camara que os empregados de que se trata não possuem titulo algum pelo qual devam, segundo direito estricto, ser despachados nas suas reclamações.
Ha no governo representativo regras legaes e preceitos infalliveis, pelos quaes se ajusta a creação e provimento dos empregos. A primeira d'estas regras e que os empregos sejam instituidos por acto do poder legislativo, ou por decreto revestido da sua confirmação. A segunda é que o seu provimento se effectue segundo as condições estatuidas por lei. Vejamos se os logares de que se trata tinham sido creados pelo poder legislativo, em primeiro logar, e em segundo logar, se haviam sido providos na conformidade das leis. É claro - não o contestou, antes o confessou o illustre deputado que estes logares não, tinham sido decretados pelo poder competente. Foram instituidos por um acto do poder executivo, e providos depois por virtude de portarias.
Objecta o sr. deputado a quem respondo - não são os decretos que constituiam o direito dos funccionarios; são pelo contrario os seus serviços e a sua habilidade no exercicio do logar.
Permitta-me v. ex. ª e a camara que eu dissinta abertamente da doutrina manifestada n'este ponto por aquelle ornamento d'esta casa, a quem sou forçado a contradictar n'este momento.
Admittamos que no governo representativo seja possivel, mais que possivel, natural, investir o poder executivo nas amplas faculdades de crear a seu talante empregos e officios, e toda a ordem administrativa seria completamente perturbada, nunca podia assentar-se em bases firmes e seguras o orçamento da nação, porque seria unicamente subordinado aos caprichos do poder. Admitti e sanccionae a doutrina subversiva de que não é a lei que institue a função publica e auctorisa a investidura do funccionario, conferi ao governo o privilegio de multiplicar os empregos e distribui-los a seu arbitrio, e tereis em breve a anarchia do orçamento.
Passo ligeiramente por este ponto, porque não quero fazer á camara a offensa de suppor que ella admitte o principio proclamado pelo illustre deputado, de que as leis e os decretos são insignificantes e de nenhum momento, e que só o serviço constitue um direito indisputavel, firmado no qual o funccionario que o ministro uma vez agraciou não pode ser jamais despedido do serviço. Dae ao governo mais liberal, mais sábio de boas intenções, mais sabio, mais avaro zelador da fazenda publica, o direito de nomear quando lhe aprasa para os empregos que elle proprio instituiu, mesmo sem a importuna formalidade do decreto pela sua iniciativa ministerial, e podeis apparelhar as exequias do syatema representativo, para que resurja o absolutismo. Porque não é só absolutismo aquele que tolhe aos cidadãos os seus foros e immunidades naturaes, o que reprime a liberdade da imprensa, o que aniquila ou attenua a liberdade do suffragio, o que offende a inviolabilidade individual, o que viola a segurança das pessoas e das propriedades, tambem é, e muito principalmente absolutismo, aquelle que destroe a primeira das funções soberanas da nação, a intervenção do povo por meio de seus representantes no mais grave dos negocios publicos, qual e a votação dos impostos, e depois a sua interferencia e fiscalisação no despendio dos dinheiros da nação

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(apoiados). Affirmo pois que o parlamento não poderá attender á petição dos empregados de que se trata, unicamente pela rasão de terem servido muitos annos, porque não póde n'estes casos ser origem e fundamento de propriedade esta especie de usucapião, com que pretendem favorece-los. Não se trata de saber se serviram muitos annos, mas sim se era emprego legal o que serviram, e se quem os nomeou tinha o poder de lhes conferir essa tal nomeação. É indifferente a fórma do diploma, e impertinente a questão de chancellaria. Portaria ou decreto, alvará ou carta regia, poderiam conferir direitos iguaes. Mas era essencial que uma lei tivesse creado esses empregos. Instituiu-os uma lei? Os empregados entram na regra geral dos que sobram dos novos quadros. Citar essa lei é impossivel, porque não existe. Resta pois em favor dos pretendentes a equidade unicamente, não o direito e a conveniencia do serviço, que invocastes sem rasão.

A proposito d'esta questão, que é de si insignificante, insignificante, digo, como questão politica e financeira, não como questão de humanidade, varios srs. deputados apresentaram diffusas considerações, e dirigiram asperas censuras ao systema de economias adoptado pelo governo.

Pois que é esta a primeira vez que uso da palavra n'esta casa, na presente sessão legislativa, e está a occasião de aventurar algumas reflexões em resposta ás doutrinas que tenho ouvido proferir a alguns adversarios do gabinete e da actual situação, tendentes todas a definir o systema que o governo até agora tem seguido para responder aos votos do paiz e a urgencia da occasião.

Disse-se aqui, e disse-o um sr, deputado que conheço por experiencia as obrigações e responsabilidades do governo, disse-se para reforçar as invocações sentimentaes em obsequio aos antigos empregadas dos pesos e medidas, que nos temos tirado o pão aos infelizes, e feito desasisadas eco nomias para as lançar na arca dos usurarios. Tem esta accusação sido uma e muitas vezes repetida com grave accentuação, entonação grave e apaixonada. K cumpre que nos expliquemos a rasão por que fixemos economias, e por que fomos violentados a consagrar porventura parte d'ellas a area insaciavel dos onzeneiros.

É certo que a angustia das circumstancias, e as necessidades de uma situação, que não creamos, nos têem muitas vezes obrigado a recorrer ao credito, ou, para fallar correctamente, ao descrédito, a que anteriores administrações levaram a fazenda publica em Portugal...

(Interrupção do gr. Corvo, que não se ouviu.)

Eu não costumo interromper a nenhum orador no seu discurso. Espero pois que o sr. deputado me deixará continuar...

(Interrupção do sr. Corvo.)

Se porém lhe apraz interromper-me...

O sr. Andrade Corvo: - É costume parlamentar interromper os oradores. Os srs. ministros interrompem-me sempre, sem eu me importar com isso.

O Orador: - Tão pouco a mim me importuna a interrupção. Se o sr. deputado deseja interromper-me...

O sr. Andrade Corvo: - O que eu quiz foi restabelecer um bom principio. Na camara é costume fazerem-se interrupções. Os srs. ministros usam d'ellas e commigo, e eu fico-lhes sempre agradecido.

O Orador: - Eu já disse que aceito a interrupção. E não é com repugnancia disfarçada em cortezia, antes com grande aprazimento...

O sr. Andrade Corvo: - Ouvi o ha pouco apresentar um principio contrario.

O Orador: - Mas como desagradou ao sr. deputado, e eu não desejo magua-lo em cousa alguma, folgo de incorrer n'esta flagrante contradicção para dar logar ás suas interrupções.

E foi, sr. presidente, foi cabalmente o sr. deputado o mais inexoravel algoz das nossas economias. Segundo o seu dizer por mais de uma vez, havemos ido lançar na arca dos usurarios o producto de crueis economias. Votamos extremoso amor aos argentarios, e a elles vamos recorrer todos os dias em nossas tribulações e estremas. Parece pois que, no entender da opposição, fomos nós quem inventamos os usurarios, os onzeneiros, os insaciaveis argentarios, os sedentos parasitas, que devoram a seiva do paiz.

E declaro que nem eu nem os meus collegas podemos aceitar o privilegio da invenção.

Quando tomamos conta do poder era já de largos annos familiar e conhecida a ignominiosa designação de judeus de Paris, e referia-se, creio eu, na sarcastica phrase de antigas opposições, aos desnaturados publicanos que tinham feito emprestimos com juros excessivos ao governo portuguez. Estavam pois já inventados estes caridosos auxiliares da administração em Portugal. Não tivemos remedio senão continuar por algum tempo a tradição de tantos annos para não cair na bancarota. Não negamos a nossa culpa. Mais de uma vez nos forçou a necessidade a recorrer a esses homens em outro tempo tão mimocos e dilectos dos nossos antecessores, e agora tão acerbamente condemnados pelos financeiros e moralistas d'esta casa!

Os usurarios estavam ha muito enfeudados no officio pingue de nos acudir em nossas amarguras financeiras.

Não podemos nos pois, humildes estadistas, aceitar os proventos e a gloria da invenção.

Mas parece (ao ouvir a opposição) que os usurarios a que temos recorrido são mais desalmados, mais sem coração, e sem entranhas, do que aquelles a cujas portas bateu, durante tantos annos, supplicante e humilhado, o illustre financeiro que se senta no extremo do banco superior, e que regeu em tres diuturnas administrações a fazenda publica e os destinos do paiz? 1

Dirão que estes novos e mais consummados usurarios não eram os mesmos a que se soccorreu o sr. deputado Dias Ferreira, que não eram os meninos a quem implorou o illustre deputado e amigo financeiro o sr. Lobo d'Avila. Dirão talvez que entes argentarios de hoje são homens deshumanos e crueis, que não respeitam as pessoas dos ministros; que não lhes consagram affeiçãto, que não zelam antes de tudo o bom nome e popularidade do governo, que não vendem, como Zichêo, o publicano, a sua fazenda illicitamente adquirida para seguir á risca o Evangelho, que, vendo um gabinete fraco, oppresso por mil contradições e embaraços, oppesso da sympathia popular, não querem estender-lhe a bolsa senão com a perspectiva de usuras inauditas. Dirão talvez que os nossos onzeneiros são usurarios dispostos a usar e abusar da sua industria plebéa e reprovada, e não os usurarios a que recorreram os nossos felizes accusadores, antigos ministros da fazenda, eram argentarios que liam piedosamente os escriptos de Santo Agostinho contra a usura, e que, dando testemunhos de uncção edificante e de piedosa convenho, temendo ver para sempre cerrarem-lhe no rosto as portas do céu, emprestaram ao governo portuguez segundo os genuinos principios de Proudhon ou segundo as terminantes prescrições da lei Duillia Moenia de foenore unciario.

Estes nossos usurarios enthesouraram em seus cofres as economias que temos feito á custa do sacrificio doloroso de tantas familias necessitadas; os usurarios que valeram ao sr. Fontes respeitaram escrupulosamente os canones dos concilios de Nicéa, de Carthugo, de Laodicéa, em que a igreja fulmina contra a usura as suas armas mais terriveis.

Os usurarios que nos emprestaram com incrivel anatocismo recebem no seu taleigo sem piedade o pão dos empregados nos pesos e medidas; os onzeneiros a quem pediu auxilio o sr. Lobo d'Avila eram almas sinceras e piedosas, que estavam constantemente absortas diante dos textos dos casuistas, que condemnaram a usura.

Estes usurarios de hoje, peveros e implacaveis na reforma das letras, exigem grossos lucros e corretagens, e seguindo a risca o principio juridico de Ulpiano, quis tar-

1 O sr. Fontes.

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diùs solvit minus solvit, exigem juros exagerados pela mora no pagamento de seus debitos.

Os usurarios do sr. Dias Ferreira eram usurarios que professavam a these proverbial dos escholasticos na idade media, quando ao condemnar a usura assentavam como axioma a velha maxima nummus nummum non parit.

Os usurarios! São elles, infelizmente, a mola real que por annos dilatados têem movido os governos d'esta terra e disposto soberanamente dos seus destinos. Se fomos procurar os usurarios foi porque achamos as suas portas honradas com disticos e epigraphes de honrosa commemoração, sagradas por esses mesmos homens que outr'ora os traziam em grande veneração e que hoje, Aristarchos inexoraveis, estão clamando contra os supprimentos e emprestimos que em duras condições o governo efectuou, levado da mais cruel necessidade.

A estes usurarios nos levaram pela mão os nossos adversarios para que lhes implorassemos as mealhas. Foram elles os effectivos collaboradores do governo em todas as suas emprezas de salvação ou de ruina. Foram elles os que emprestaram dinheiro a Portugal quando anteriores administrações intentavam erigir todas essas obras de fomento que ahi se admiram como monumentos, imperfeitos e dispendiosos é verdade, de fecunda civilisação e de melhoramento economico do paiz.

A historia da usura esta impressa nos viaductos, nas pontes, nos aterros e nos carris com que temos iniciado nesta terra o principio de uma nova phase social, nos caminhos de ferro que em rede ainda apenas bosquejada sulcam hoje o nosso territorio. Foram elles os que emprestaram o dinheiro para o campo de manobras nas planicies de Tancos, porque estando o thesouro exhausto para as mais urgentes e impreteriveis necessidades, e assoberbando nós já então um deficit assombroso, os cavalheiros que n'aquelle tempo figuravam no governo e que hoje tomam assento nos bancos da opposição, sabem que sem o impulso generoso d'aquellas almas bemfazejas fóra impraticavel improvisar aquelle arraial luzido e numeroso, e associar as sabias combinações da tactica e da estrategia ás pompas theatraes e sumptuarias de uma festa deslumbrante.

Não fomos nós os primeiros infelizes que recorremos aos usurarios; tivemos de importunalos, contra a nossa vontade e convicção, porque os nossos predecessores nos haviam deixado por herança um deficit enorme que não podiamos annullar, por mais sabias e previdentes que fossem as medidas adoptadas na primeira occasião.

Quando subimos ao governo saiu nos ao encontro com a sua sinistra saudação o deficit que tinha já prostrado na luta os mais vigorosos athletas. Não fomos nós os inventores do deficit, e n'este ponto não é menos flagrante a injustiça que contra nós commette a opposição.

Quiz ella dar-nos a paternidade do deficit, e se não ousa attribuir-nos a paternidade natural, parece imputar-nos a adopção ou adrogação d'este filho prodigo o desnaturado, a quem os seus verdadeiros progenitores embargam o passo ás suas testadas e a entrada em seus portaes.

D'aqui estou eu vendo grande parte da copiosa galeria de illustres financeiros, cujos nomes decoram a arvore de costado do nosso deficit, e se inscrevem no livro de oiro de seus numerosos avoengos (riso).

O deficit é antiquissimo em Portugal. A sua historia perde-se ao longe nas mais nebulosas tradições. Tem elle uma genealogia e uma prosapia esclarecida e illustre. Nos seus tempos pre-historicos a sua existencia é quasi um lampejo incerto e fugitivo, e as mais profundas inquirições dos mais afamados archeologos não podem destrinçar todos os ramos e vergonteas da sua genealogia.

O deficit existia já viçoso e florescente quando conquistamos a liberdade. E cabe aqui notar que tambem os argentarios têem feito alguma vez assignalados beneficios a esta terra. Quando no Porto se jogavam as liberdades e as cabeças de seus briosos defensores contra a oppressão e o algoz, tiveram usurarios d'aquelle tempo a generosa inspiração de emprestar ao governo do Imperador as sommas necessarias para que se não desalentasse a empreza grandiosa e tomaram por unico penhor a incerteza da victoria. E se alguma piedade póde merecer aquelle genero de creaturas que avaliadas na phrase excruciante da opposição, só de humanas têem o nome, é justo que digamos, appellarido para o testemunho da historia, que se não foram aquelles aventurosos usurarios, dignos de que para elles nascera um Plutarcho, se não foram aquelles crentes fervorosos da liberdade e da justiça, que associaram a generosidade dos seus cofres a coragem estoica e a spartana devoção dos defensores do Porto, não estiveramos nós agora aqui sentados a descretear pausadamente, a reprehendermo-nos uns aos outros por peccados veniaes e a pugnarmos em querelas intestinas. Seria mais temerosa a penitencia de nossas faltas e peccados, porque para nós e para os nossos adversarios outra e menos facil de levar do que a perda do poder ou a mortificação de uma vaidade houvera sido a nossa pena.

O deficit, dizia eu, era já velho e antiquissima a sua extirpe. Começou porém a ser mais conhecido, mais avultado e familiar no nosso e nos paizes estrangeiros, principiou, por assim dizer, a inscrever-se com distincção no Almanach de Gotha entre as familias principescas ou patricias, desde a primeira administração do sr. Fontes. O deficit era ainda balbuciante e infantil; era Hercules no berço, tentando o esforço ainda mal robustecido, com o esmagar serpentes pequeninas. Causava já porém graves embaraços a administração da fazenda em Portugal. Obrára inesperadas transformações no kalendario e fazendo correcções no anno financeiro, elevara os mezes de trinta a quarenta e cinco dias, fizera pontos, suspensões de pagamentos, arremedos da bancarota; dera origem ás quinzenas; fizera acções e commettera emprezas quasi incriveis, similhantes ás que a historia no seu periodo poetico narra dos grandes homens nos tempos heroicos e legendarios.

Já quasi jubilado em numerosas malfeitorias andava o deficit, quando o sr. Fontes o encontrou. O deficit foi, por assim dizer, amamentado por este benemerito estadista. Representava então o nobre deputado as idéas de uma nova situação, que alargava o horizonte do governo e inaugurava com felizes auspicios uma escola que estou longe de condemnar, porque a ella me associei por convicção nos primeiros annos da minha vida publica, ajudando-a como soldado na imprensa e no parlamento. Nem me pejo de o dizer, porque não renego nunca as minhas tradições politicas, nem ou actos que pratiquei, ou as palavras que proferi na tribuna ou na imprensa.

O sr. Fontes representava uma situação necessaria para o paiz n'aquella epocha. Portugal tinha até então vivido em continuadas tentativas financeiras, e cada vez mais infelizes, desherdado de todos os commodos e beneficios da contemporanea civilização, segregado da Europa e do mundo culto pela ausencia de todos os poderosos instrumentos de progresso, distanciado quasi um seculo de todos os povos que avançavam, olhando-os justamente com desdém. Cumpria fazer um esforço para lançar a semente da civilisação n'uma terra, não ingrata, antes propicia, e que tinha sido muitos annos capitulada como infertil.

Fizeram se emprestimos; fizeram-se largas e talvez imprevidentes appeliações ao credito, na esperança de que o augmento da riqueza nacional em breve compensaria o sacrificio. Com o oiro que d'ahi proveiu se fizeram as obras publicas, que vemos hoje espalhadas pelo nosso territorio, e com elle se douraram e luziram tambem, não raras vezes, os erros financeiros d'aquella administração.

Depois do sr. Fontes seguiu-se intercalada uma outra administração, a gerencia prolongada do sr. Lobo d'Avila, já o deficit deixára a puericia e preparava-se a receber a toga pretexta. Deu-lhe pois o nobre deputado a primeira educação da juventude, e ensinou-lhe (permitta me o illus-

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trado financeiro esta licença) todos os exercicios proprios da sua idade. E se a camara me tolera uma palavra que não é demasiado parlamentar, direi que s. exa. industriou o deficit nas travessuras da adolescencia.

Assim foi o deficit crescendo e adquirindo successivamente novas forças. Vires acquirit eundo. Após a gerencia financeira do sr. Lobo d'Avila seguiu-se com breve intervallo a nova administração do sr. Fontes, que avultou ainda o deficit em algumas centenas de contos de réis.

Estamos agora na presença de um dos mais modernos progenitores do deficit actual. E o sr. Dias Ferreira. Sem torcer a verdadeira historia, podemos affirmar que a sua acção governativa se limitou a acrescentar os encargos do thesouro. A sua breve administração não foi mais do que uma incessante accumulação de deficit, tolhida ou contrariada a sua energia financeira em todas as reformas que intentou.

O nobre deputado, o sr. Dias Ferreira, tem sido até agora um dos mais implacaveis adversarios do presente ministério, e o mais rispido censor de todas as suas operações. Justo é pois que examinemos quaes foram os netos arrojados, quaes foram as emprezas grandiosas d'este illustre financeiro. E supplico a v. exa. e a camara que nas palavras que eu tenha pronunciado ou venha a proferir na fita apreciação historico politica e n'este resumido retrospectivo de ex-ministros da fazenda não me attribua a intenção de pôr em duvida as qualidades moraes e intellectuaes que abrilhantam e ennobrecem aquelles prestantes cidadãos.

De todos os ministros da fazenda que ha dez ou quinze annos se succederam no poder, foi o sr. Dias Ferreira o unico talvez que poderá ter resolvido, não digo peremptoria e completamente, o complexo problema da fazenda, mas que o poderia ter levado a uma phase promettedora de não remota solução. S. exa. foi chamado ao poder n'uma que era em que estava ainda tumida e fremente a onda popular de uma grande, posto que incruenta, revolução; n'uma epocha em que, depois da agitação pacifica, mas fecunda, que tinha conturbado os animos do povo de um a outro extremo do paiz, qualquer governo que surgisse baptisado solemnemente nas aguas da opinião e inspirado pelos votos fervorosos do paiz, seria acolhido benignamente pela nação, e em que a todos os sacrificios, ainda os mais custosos, se votara o povo portuguez para livrar a fazenda publica do estado de completa decadencia e ruina inevitavel.

Pediam-se então reformas e correcções aos abusos contra que se levantára o sentimento popular. Não descem vinha o povo era tributar-se, para que da economia e do imposto saisse o equilibrio do orçamento. Tinha o illustre deputado occasião de fazer reformas e economias, porque economias e reformas eram n'aquelle tempo clamorosamente reclamadas, por todos os partidos e por todos os cidadãos que após os despendios immoderados e o indiscreto abuso do credito, viam imminente a bancarota e o derradeiro trance do paiz. Com excepção d'aquelles que tinham acabado de gerir o poder, e que o abdicaram, havia pouco, aos brados victoriosos da multidão, eram as economias reclamadas pela opinião manifestada em seus aspectos multiformes nos meetings ou reuniões populares que se celebravam em todas as grandes ou modestas povoações; nas petições e mensagens que se dirigiam ás casas do parlamento; nas discussões da legislatura e nos artigos vehementes que denunciavam pela sua persistencia e quasi unanimidade o sentimento verdadeiro do paiz.

E o illustre deputado o que fez?...

De todos os governos que tem havido n'esta terra, nenhum veiu porventura precedido de auspicios mais felizes, bafejado por galernos mais fagueiros, e talvez nenhum com tamanho infortunio, desalento e inacção, desaproveitou as occasiões que a fortuna lhe surria.

Quiz o honrado representante, então ministro da fazenda, fazer reformas efficazes, e o que imagina v. exa. e a camara que foi o primeiro capitulo do livro das reformas que o seu ministerio, no calor da sua, popularidade, alcançou realisar? Foi a suppressão da musica dos marinheiros militares (riso).

E notaram espiritos dicazes que já n'esta parte do programma do gabinete de janeiro não estava elle de accordo com uma das fórmas accidentaes que haviam revestido as manifestações populares, porque a philarmonica tinha sido havia pouco um elemento de fraternidade e regosijo popular pela queda da antecedente administração, e ao som de seus accordes se despregára triumphante a bandeira das reformas.

A musica, parece-me, devêra ser inviolavel para o governo e na primeira reforma do gabinete, a que o illustre deputado imprestou com tão infeliz exito o seu talento, levantou-se mão sacrilega contra um dos orgãos por que a opinião se tinha manifestado (riso).

Compulsando a historia d'aquella administração e attentando nos contrastes da sua heterogenea contextura, alguem poderá arguir desta primeira reformação que o ministerio não era demasiado affecto a harmonia, e por isso se apressou, como por emblema da sua indole, a lavrar a sentença condemnatoria do saxhorn e do trombone. E eu fui forçado a confirmar esta reforma memoravel, apesar das supplicas ferventes que logo desde os primeiros dias da minha administração me dirigiram os musicos d'aquella banda marcial.

Era o programma do gabinete fazer economias e evitar novos despendios; entendi que devia manter aquella suppressão e conservar aquella reliquia preciosa, monumento da audacia e previsto dos nossos antecessores, como se recata em um museu archeologico a espada do condestavel, o chapéu de Napoleão, ou algum outro d'estes espolios tradicionaes que são tidos em grande apreço por haverem pertencido a personagens sagrados pela historia.

Emquanto o governo a que pertencia o illustre deputado supprimia a banda dos marinheiros militares, levantavam-se clamores contra a larga sumptuosidade de muitas repartições. Vozeava-se principalmente contra um tribunal que se fôra resuscitar dentre as ruinas da velha monarchia: o conselho ultramarino, revestido de amplissimas funcções de consulta e administração, e em muitas partes superflua duplicação do ministerio da marinha, instituição despendiora e que bem poderá ser supprida facilmente por uma mais modesta corporação. Accedendo aos votos da opinião, intentou o ministerio de janeiro a abolição do conselho ultramarino. E como imaginaes vos que se propoz esta reforma? Entendeu-se que se reformava o conselho ultramarino destacando os seus membros vogaes para os ir infileirar no tribunal de contas, conservando-lhes intactos os seus proventos, immunidades e grandezas.

Eis-ahi estão compendiados os actos reformadores d'aquelle gabinete, a quem honrou com as suas luzes o mais austero e inclemente dos nossos actuaes impugnadores. A abolição de uma banda marcial, deixando sem trabalho alguns humildes; a annexação dos conselheiros ultramarinos ao já populoso tribunal de contas para não lesar n'um seitil os felizes e poderosos. Juntaremos agora a estes rasgos de energia a celebrada proposta de desamortisação, e as medidas financeiras do illustre deputado, as quaes encalharam nos cachopos e restingas d'esta casa, desde as primeiras semanas em que funccionou a passada legislatura, e poderemos avaliar a que chegara em breves dias a popularidade d'aquelle ministerio, e a sympathia que inspiraram as suas reformas. O gabinete caiu prostrado sem combate no seio da sua propria maioria, sem que mão amiga lhe insculpisse o desambicioso epitaphio na lousa sepulchral, que eu peço perdão de ter n'este momento violado, perturbando os que repousam.

Tenho esboçado a largos traços a genealogia do deficit, e dado a cada um dos seus nobres progenitores a parte que lhe cabe n'esta grande responsabilidade. De todos os ex-ministros da fazenda que tem agora assento nos bancos

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da opposição, esqueceu-me delinear neste bosquejo o meu sympathico amigo e collega no magisterio, que sinto não ver aqui presente...

O sr. Mathias de Carvalho: - Estou aqui.

O Orador: - Bem, estimo muito. O meu illustre amigo que tão conspicuo logar tem já tomado nos debates e na critica dos nossos actos de governo, poderia offender-se porventura de que o seu nome não luzisse n'esta pleiade de estadistas celebrados, cujos bustos moldei rapidamente.

Estou quasi tentado a contemplar na ascendencia do déficit o nome de mais um thaumaturgo e mais um martyr, o nome do sr. Mathias de Carvalho; mas em verdade a curteza da sua romagem no poder reduz a diminutas proporções a sua responsabilidade. Foi precoce a sua quéda e durante a sua gerencia o deficit mal teve occasião de celebrar as faculdades inventivas do então malogrado financeiro.

Tem se tratado com severo desfavor, tem-se julgado com injusta dureza e parcialidade os actos do governo a que tenho a honra de pertencer. E nós temos o direito de perguntar a camara, de interrogar tão distinctos e intelligentes, quanto injustos oradores, que têem dirigido as censuras mais vehementes ao procedimento politico e financeiro do gabinete, se elles, com a mão na consciencia, podem negar, que na sua gerencia financeira se não viram muitas vezes violentados a sacrificar ás necessidades da occasião os seus mais solemnes juramentos de não recorrer ao credito e de se não humilharem aos pés dos argentarios estrangeiros.

Que haviamos nos de fazer, succedendo no poder, e achando accumulados os erros de tantas e tão dilatadas administrações? O que nos restava executar, encontrando um deficit aterrador, exhaustas as arcas do tbesouro, disseminadas pelos mercados monetarios as letras do governo portuguez, intrataveis e suspeito" os prestamistas, imminente, senão infallivel, a bancarota?

Era necessario attender ás despezas correntes do thesouro, solver os supprimentos dos capitalistas estrangeiros, acudir ás precises domesticas, e saldar de alguma maneira os 500:000$000 réis em que mensalmente se balanceavam contra nós a receita e a despesa do estado.

Que fazer n'esta conjunctura? Só se deparavam dois modos de resolver esta crise tremenda e pavorosa. Ou declarar a bancarota, ou aceitando os encargos que pesavam sobre o erario nacional, remediar o credito desequilibrio dos rendimentos e dos gastos. Ora, não será senão tres processos para realisar a suspirada equação do pagamento: a economia, o imposto e, como supplemento isorio a insufficiencia dos primeiros, o credito simplesmente applicado. Da discreta combinação d'estes systemas, resultaria o unico processo pratico de melhorar a fazenda do paiz.

Começou o governo a sua ingrata empreza, economisando e reformando, e as largas reducções effectuadas no orçamento rectificado, attestam o nosso empenho em cortar sem piedade as excrescencias do thesouro. Não fundiam porém logo as economias o bastante para attenuar em alto grau o enorme deficit. Forçoso em ir pedindo emprestado o com que se havia de occorre os custos de cada mez. Aconselhava a previdencia que se delincando, para serem submettidas ao novo parlamento medidas que deviam augmentar a receita publica. Tudo o que se foi executando em meio de contratempos e embargos que sujeitavam a duras provações o ministerio.

Que teriam feito os nossos antagonistas, chamados ao poder e forçados a aceitar as circumstancias em que principiamos a gerir os negocios publicos?

Pensaes que se os financeiros e reformadores da opposição estivessem então n'este logar (o banco dos ministros), melhor e mais propicia houvera sido do que a nossa a sua fortuna? Que fôra mais moderada a taxa dos juros, e mais equitativa a fórma dos supprimentos? Que houveram os argentarios sido menos exigentes e mais humanos?

Resta saber, sr. presidente, se, quem tem graves peccados, talvez maiores peccados do que os nossos, póde lançar em rosto aos que lhes succederam, chamados a remediar alheios erros, a inefficacia dos seus procedimentos, sem esperar que no interesse e no direito da legitima defeza levantemos o véu subtil e transparente se mal encobre a historia financeira d'esses illustres caracteres, para que o paiz fazendo o parallelo, comtemple o que fizeram no governo, e o que estão agora doutrinando na opposição.

Occorre-me a proposito, e desculpe a camara se de vez em quando trago para o debate, contra os usos consagrados d'esta casa, algumas reminiscencias de classica erudição. Lembra-me, digo, de ter lido n'aquella grande e memoravel oração de Demosthenes contra Eschines, n'um celebre debate politico e judiciario, como aquelle grande luminar da antiguidade, aquelle maior de todos os oradores antigos e modernos, refutando as iniquas e damnadas accusações com que o seu antagonista pretendia deslustrar a administração patriotica, severa, previdente e esclarecida do eximio republico atheniense, redarguia ao adversario, comparando-o a um medico, que pranteava em vez de medicar. "Tu vens, os Eschines fallar-nos hoje do passado", dizia o diserto orador no seu discurso da corôa. Parece-me ver em ti um medico, que em suas visitas aos enfermos, lhes não aconselha remedio a seus achaques, e que quando algum d'elles perece vae acompanhando a pompa funebre e seguindo-o a sepultura, dissertando largamente e repetindo: "Se houvera tomado tal ou tal poção ou preparado, ainda agora fóra vivo". (Riso.)

Ha, sr. presidente, muitos Eschines n'esta casa (riso). A historia antiga é em todos os pontos comparavel a historia contemporanea.

Salvas as differenças de tempo e de logar, e as paixões menos inspiradas de sentimentos nobres e generosos, as sociedades antigas parecem-se em quasi tudo com as modernas sociedades, principalmente com aquellas onde a vida publica tem por principal agente a palavra e o debate.

O Eschines antigo é a prefiguração destes criticos injustos e severos, que durante o seu governo commetteram toda a especie de pecados, e não somente veniaes e faceis de indultar, senão graves e sujeitos a dura penitencia e expiação; que desculparam com a rasão de estado todas as violações da logica politica e todos os desvios do bom senso; que sacrificaram a todas as paixões da occasião, que na redacção das suas medidas administrativas, financeiras e politicas, attetideram principalmente a ephemera gloria de seus nomes e a maxima duração do seu poder, e que depois, quando os seus successores, instados pela necessidade, tomando o pesado encargo dos negocios, estão a braços com as mais graves difficuldades, na perspectiva de calamidades eminentes, e quando se approxima uma erige tormentosa, uma occasião de grande perigo para a futura prosperidade do paiz, vem reprehender e condemnar todos os actos praticados pelos seus antagonistas, violentados pela extrema necessidade em que os proprios accusadores nos collocaram; vem ensinar remedios posthumos, medicinas domesticas que elles mesmos não quizeram aproveitar, porque ha pessoas caridosas e crendeiras que, sem terem cursado as sciencias de Hippocrates e de Galeno, sem terem as minimas noções da anatomia, da physiologia, da pathologia, da therapeutica e da materia medica, vem guiados unicamente por um empirismo mais ou menos innocente, quando o achaque engraveceu, ensinar remedios caseiros em que não confiam para essas proprias enfermidades. Assim vem hoje o sr. deputado reprehender e aconselhar, assim vem hoje censurar-nos aquelles a quem inspira a maledicencia politica a maledicencia politica, a inveja partidaria e a critica inexoravel, injusta e aggressiv, e nem sempre alumiada pela mais severa consciencia de fazer justiça aos adversarios. (Vozes: - Muito bem.)

Pergunto eu: não ha hoje Eschines n'esta casa, tantos medicos politicos, d'estes que ensinam o remedio quando o

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prestito funebre se já vae encaminhando para prestar a victima as ultimas honras funerarias? (Apoiados.)

Ha muitos medicos d'estes n'esta casa; e ha, entre elles, um que tem sido mais implacavel contra a actual administração - é o sr. Dias Ferreira.

O sr. Dias Ferreira que teve e deixou morrer nas suas mãos uma situação a mais provavel e propicia (apoiados), para ter salvado a fazenda do paiz, e para ter conduzido a fazenda publica a um estado em que depois a sua completa restauração não dependesse senão de prudencia, de energia, de tempo e de moralidade (muitos apoiados), desaproveitando inteiramente a occasião, deixou durante seis mezes successivos aggravar a situação do paiz, não fez uma só reforma que diminuisse as despezas publicas, e póde-se dizer, sem erro historico, que o ministerio a que o illustre deputado pertenceu e a quem honrou com o seu talento, foi uma manufactura constante do déficit (riso), não fez outra cousa senão deficit (riso - apoiados).

O sr. deputado tem aqui repetido muitas vezes: "Os meus supprimentos, as minhas operações foram feitas por um preço quasi fabuloso de barateza e modicidade". Mas tambem s. exa. não teve mais que fazer durante o tempo da sua administração; s. exa. não teve a resolução nem a coragem de fazer passar as suas medidas em uma camara que é tinha sido eleita debaixo dos seus proprios auspicios, com exclusão quasi completa dos seus adversarios; s. exa. limitou-se a apresentar uma proposta, a da suppressão dos terços aos professores, que parecendo denotar que o illustre ex-ministro, pertencendo a profissão do magistério, era superior a todas as paixões e a todos os interesses de corporação, foi interpretada, como devia ser, como uma verdadeira iniquidade (apoiados. - Vozes: - Muito bem); porque não é justo nem plausivel que um homem, que de si quer dar uma idéa vantajosa de heroica abnegação e de espontaneo desinteresse, vá sacrificar o principio de igualdade, impondo a uma classe tão respeitavel e tão mal remunerada como é o professorado, um sacrificio que não seja repartido por todas as outras profissões (muitos apoiados). O illustre deputado foi desabrido, severo, severissimo, cruel, com a actual situação, e eu peço perdão por fazer estas referencias a sua illustre vida financeira, porque a defeza é uma faculdade e um direito de todos os governos, e não póde ser attribuido a espirito de intolerancia da minha parte, n'um do governo a que tenho a honra de pertencer, e desafogar n'esta assembléa e usar de justas represalias dentro dos limites do decoro e da dignidade parlamentar contra os ataques violentos que nos têem sido dirigidos pelo illustre deputado (apoiados).

O illustre deputado que tinha talento e experiencia parlamentar, mas a quem faltou a vontade e a energia, que triumpha na execução das grandes e urgentes providencias, podia ter prestado eminentes serviços ao paiz; e despendeu a força viva da sua administração em attritos de familia em resistencias de partido e em estereis tentativas financeiras. A medida em que poz toda a esperança da sua gloria, foi a da desamortização. Esta proposta, mal recebida desde a sua apresentação, continha não dissimulada e em gérmen, mas já planta adulta e vigorosa, uma verdadeira espoliação, tanto mais inaceitavel e digna de censura, quanto ia offender as mais venerandas e santas instituições. Como se a fazenda do paiz se podesse salvar, espoliando e pondo em risco, para acudir a estreiteza do thesouro, os estabelecimentos de caridade, o pão dos pobres, o conforto dos desvalidos, o remedio dos enfermos.

Tenho procurado responder ás invectivas e censuras dos illustres deputados que n'este debate têem empregado todos os seus esforços oratorios para reprehender o systema politico, administrativo e financeiro que caracterisa a actual situação. Não tenho de certo a pretensão de levar a palma nesta prolongada contenda parlamentar. E se não posso responder devidamente a tão experimentados antagonistas, satisfaço a vehemente necessidade e a fervorosa expectação com que os illustres deputados estranhavam o meu silencio.

O sr. Dias Ferreira não estava presente quando comecei a referir-me a sua administração. Mas tenho agora occasião de o ver presente, e de me congratular com s. exa. O illustre deputado emprazou-me para lhe responder dentro de um praso forense e peremptorio. Obedecendo a intimação, a s. exa. tive de me referir no meu discurso, e quem sabe se faltei a uma das cortezias parlamentares? Obrigou-me porém a isso a necessidade da apologia. A principal defeza do gabinete deveria ser dirigida a terrivel bateria de morteiros que n'este sitio apertado contra o governo tinha dirigido com tanta persistencia o ex-ministro da fazenda da administração de 4 de janeiro.

Não digo que conseguirei desmontar a artilheria com que o illustre deputado, auxiliado pelos engenheiros d'este cerco tem ameaçado a praça com uma prompta reddição. Tenho feito toda a possivel diligencia para tornar menos certeiras as pontarias do illustre deputado; procurei convencer a guarnição, de que elle é mais facil na multiplicação e estrondo dos seus tiros do que feliz em abrir brecha nas escarpas.

O sr. deputado é mais conhecido pela impetuosidade do seu ataque nos bancos da opposição do que pelo brilhantismo da sua defeza, quando occupava esta metima cidadella em que estamos hoje, obrigados pelo juramento das bandeiras, a resistir até ao lance derradeiro. É dever nosso prolongar a defeza emquanto nos não faltarem as armas constitucionaes. Estamos aqui porque a guarnição de certo nos haveria de accusar e nos levaria a conta de opprobriosa pusilanimidade desamparar a posição que se acha tão galhardamente presidiada. Estamos aqui ajudados por uma briosa guarnição; e apesar de todos os esforços dos illustres deputados; apesar dos poucos que sairam do recinto para engrossar as fileiras dos cercadores, havemos de sair quando a intimação constitucional da camara, pronunciada pela maioria, nos annunciar que é chegada a hora de sermos rendidos no nosso posto de honra, e de virem chefes e soldados mais briosos, mais possantes e mais merecedores da confiança do paiz destruir ou continuar a nossa obra, que nos temos conscienciosamento empenhado em não macular com um acto de offensa ou de violação a moralidade, ás liberdades publicas e aos principios fundamentaes do governo representativo.

Temos sido porventura menos bem afortunados nas nossas operações financeiras? Quem não é infeliz neste mundo? He temos sido infelizes uma ou outra vez nas transacções de credito (e supponbo agora, não dou por demonstrada esta asserção) sustento que os supprimentos têem sido feitos segundo a medida e a lei economica dos mercados actuaes, segundo a grave desconfiança que inspira presentemente o governo portuguez. E quando digo o governo portuguez, não quero significar o gabinete que ora rege os destinos do paiz, senão qualquer ministerio e qualquer situação que se veja assoberbada pelas mesmas difficuldades e vexames que nos mercados estrangeiros levanta contra nos a desconfiança, a intriga e a usura.

Muitas são as causas que rebaixam o nosso credito nas praças monetarias. A primeira é termos um deficit vivaz, crescente, insaciavel. A segunda o levantarem-se constantemente quasi invenciveis resistencias para que se votem os tributos, sem os quaes é já hoje reconhecido pelo paiz, e pelos mais ciosos contribuintes, não poder destruir-se ou attenuar se o deficit com a esperança de salvação para a fazenda publica. Digo pois e sustento que as nossas operações financeiras têem sido feitas segundo a necessidade de occasião, a urgencia do tempo, a estreiteza dos recursos publicos e a funesta decadencia do credito nacional. O talento, a energia, as qualidades pessoaes de quem rege a fazenda publica não podem modificar profundamente as condições economicas dos mercados monetarios.

Pois ha alguem que acredite n'esta fabula pueril de que

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a physionoinia physica ou politica do ministro da fazenda, os seus ares garbosos e gentis, a sua palavra ora moliflua ora severa, o seu donaire senhoril, a sua attitude heroica, a sua força soberana de vontade, a sua energia de caracter, o seu gesto imperativo, podem aterrar, persuadir ou resolver os usurarios, a que tantas vezes se tem alludido n'esta casa? Os usurarios seguem á risca a lei da procura e da offerta, e regulam-se segundo a confiança que lhes inspira o credito ou o descredito do paiz. Mas ainda que na nossa gerencia financeira houvéramos sido mais infelizes do que muitos dos nossos antecessores, teria essa forçada inferioridade sido largamente compensada por muitas preeminencias singulares.

Em primeiro logar fomos nós os unicos que desde 1834 fizemos reformas em que provassemos uma diminuição real e effectiva na despeza publica, despeza em parte realisada desde já e muito mais consideravel no futuro (apoiados). Somos os unicos que durante o periodo de uma vida agitada por todas as angustias, amarguras e agonias politicas e financeiras, provendo a cada passo para que a ordem não fosse perturbada, deitando-nos cada noite com a bancarota annunciada para o dia immediato, temos mantido inalteravel a paz e a liberdade sem recorrer a nenhum meio violento e extralegal, porque no dia em que houvéssemos de appellar para a força, oppondo-a ás insidias pertinazes dos nossos adversarios, teriamos certamente preferido a nossa saida do poder (apoiados).

Temos mantido com escrupulosa lealdade todos os fóros e immunidades populares, e primeiro que todas este grande e inexpugnavel baluarte do systema representativo, a liberdade de imprensa. E se nunca houve um gabinete, contra quem se desencadeasse mais solta, mais dicaz e calumniosa uma imprensa que deshonra e incendeia, em vez de illuminar, não se cita contra nós um exemplo unico de intolerancia ou perseguido contra os proprios jornaes que offendiam a verdade, o decoro e o pudor. A imprensa não tem sido menos livre no decurso da nossa gerencia do que durante o tempo da mais liberal e mais desassombrada administração (apoiados).

E pois que fallei em imprensa, e este assumpto aqui tem sido variamente debatido, direi a este respeito alguma cousa em propria apologia.

Tem sido aqui assumpto de vehemente controversa o influxo da impressa no governo das nações. Percebo a intenção dos nossos adversarios. São elles habeis tacticos, e sem terem lido talvez, nem Frontino, nem Polybio, não esquecem nenhum dos estratagemas já provados na guerra parlamentar. Não estranho pois, que interpretando erradamente algumas sinceras declarações dos meus collegas, intentem colloca-los em manifesta contradição com o ministro, que no banco do poder não desdenha as suas tradições de jornalista.

Classificam o meu amigo e collega, o sr. bispo de Vizeu, de inimigo jurado da imprensa. Descrevem o illustre prelado visiense, officiando em vestes pontificaes no sacrificio expiatorio da imprensa politica, e dão-lhe por acolytho e diacono n'este officio anti-civilisador, ao sr. ministro da fazenda, o sr. conde de Samodães (riso). De algumas palavras em que os meus collegas confessaram não lhes ficarem ocios para ler detidamente os artigos dos jornaes, quizeram inferir os nossos antagonistas o menos preço em que tinham aquelles cavalheiros esta arma poderosissima da liberdade e civilisação. E pretendeu a opposição, não sei se arguta ou parcial, lançar sobre mim a imputação de ouvir este descredito da imprensa, sem protestar contra esta violação de um principio tão fundamental nos governos liberaes, qual é o da intervenção quotidiana da imprensa livre nos assumptos de governo, e o respeito dos governos a mais larga manifestação dos sentimentos de um paiz.

Apesar de que na imprensa vive e politicamente me creei; apesar de que ali pugnei devotadamente pelas grandes e generosas idéas liberaes; apesar de ser um logar commum o que vou dizer, pemiitta-me a camara o pleonasmo, respeito e venero a imprensa como o orgão mais efficaz do pensamento (apoiados).

O que era eu quando vim sentar-me n'este banco? Jornalista.

Tendo sido eleito muitas vezes deputado, mais vezes tenho usado da imprensa do que da tribuna. O que tenho sido pois durante toda a minha vida politica? Jornalista.

Como pois haveria agora de desacatar a imprensa que me foi mãe? Como é que o athleta, chegado por um lance politico ao consulado, ha de envergonhar se do circo onde lutou?

Venero pois e acato a imprensa, mas hei de cair generosamente da sensata religião na idolatria, e do culto reverente no intolerante fanatismo? Hei de porventura impor aos meus collegas ou a qualquer outro cidadão o encargo pesado de ler e meditar todos os solecismos politicos e todas as syllabadas litterarias que se estampam em quantas folhas se publicam n'esta terra, muitas vezes com offensa e escandalo da graramatica, do bom senso, da justiça, do decoro e do pudor? (Apoiados.} Seria exagerar as minhas, reverencias de jornalista pela imprensa em que tenho sempre militado, soldado obscuro mas fiel.

Foi o sr. ministro do reino durante largos annos jornalista como eu, como quasi todos os homens publicos, a quem a natureza concedeu em grau diverso a faculdade de pensar e de escrever, porque tambem tem havido n'este paiz alguns homens de governo avessos a tudo o genero de escripta e litteratura. Versou o nobre prelado com mão diurna e nocturna os negocios politicos na imprensa liberal, e em mais de um d'estes recontros da palavra o vimos lidando na linha de atiradores.

Como pois havia o meu illustre collega de dizer em pleno parlamento que era inimigo da imprensa ou que ensurdecia pertinazmente a sua voz?

O sr. ministro da fazenda ouço que também, senão por officio, sequer por desenfado, honrou a imprensa com seus escriptos. E havemos de condemna-lo por adverso d'imprensa, somente por que n'esta casa declarou que só ha os jornaes que gratuitamente lhe mandavam? Inimigo da imprensa? Digamos antes, inimigo de a pagar. As sinceras declarações do meu honrado collega significam antes um proposito economico do que um systema politico.

E de mim mesmo que direi, sr. presidente? Confesso é não engeito as tradições do meu passado de escriptor. Aqui d'este logar tão cubiçado e em redor do qual e por causa da sua conquista, tumultuam e se agitam as paixões e os debates, me está sorrindo e amimando a grata recordação na minha vida ante ministerial. Lastimam mo as saudades do modesto e quieto tribunal, onde eu por tantos annos julguei o poder, em vez de assistir ao processo e a sentença contra mim proprio comminada.

Anceiam-tne os desejos de volver ao ninho meu paterno, d'onde me fizeram expatriar acontecimentos superiores a minha vontade. Fui jornalista antes de ministro. Depois de ministro é quasi certo que hei de tornar a officina d'onde sai. Sou ledor incansavel desde a minha puericia. Mas francamente o digo á camara, não leio, não posso, nem quero ler quantos jornaes se publicam em Portugal.

Respeito muito os direitos da imprensa, porque ella é um instrumento providencial da civilisação e um indestructivel antemural contra todas as oppressões e tyrannias. Mas sou porventura obrigado a venerar todas as maculas que a deslustram e todas as miserias que a deshonram? Força-me algum dever de ministro ou de cidadão a equiparar no mesmo acatamento o artigo que discute e invectiva com nobreza e dignidade, e a anedocta e o boato dictados e escriptos para servirem de armas a inimiga e a calumnia? É veneranda a imprensa que combate pelos principios de governo. Mas é igualmente respeitavel a imprensa que foge do forum onde tratam e discutem os cidadãos de um estado livre para o soalheiro da aldeia, on-

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de murmuram as comadres, ou para o trivio, infestado de emboscadas, onde se comprazem os sicarios e bandoleiros? (Apoiados.)

Antes de respeitarmos a imprensa, que é um signal externo, veneremos a opinião, que é a minha das modernas sociedades. Rendamos preito a essencia d'esta indispensavel realeza, e não exclusivamente aos attributos materiaes da sua soberania. E direi que não posso conformar-me com a idéa de que a imprensa seja realmente uma instituição. É este um dos aphorismos que, nascendo de uma metaphora, são depois recebidos geralmente como axiomas. É uma d'estas phrases pomposas e sonoras que se pronunciaram uma vez, que se aceitaram sem exame e correctivo, e que se vão repetindo diariamente de geração em geração até se converterem n'um dogma indiscutivel acompanhado do sinistro cortejo de todos os dogmas nos tempos de cego fanatismo, - a intolerancia e a fogueira.

Instituição! Com o mesmo jus e igual rasão sagremos tambem como instituições da sociedade civilisada a machina de vapor, o braço e os membros locomotores do moderno Titan, - o telegrapho de Morse e Wheatstone - o ouvido e a voz com que se entendem em seus colloquios as civilisações distanciadas pelo espaço, - se instituições havemos de appellidar todos os maravilhosos instrumentos, sem cuja intervenção não é já possivel conceber a cultura moral e physica da humanidade.

Como ministro e como cidadão respeito a imprensa, quando os seus escriptos honestos e sensatos analysam, reprebendem, aconselham e distribuem aos partidos, ás situações, aos governos e aos cidadãos a parte de louvor ou de censura que a cada um pertence por seus principios e actos na vida collectiva das nações; porém não posso respeitar a imprensa que menoscaba, injuria e vitupera (apoiados).

Respeito a imprensa séria, porque é o orgão mais geral do pensamento, porque é o thermometro da opinião, porque é o advogado dos humildes contra os fortes, o patrono aos oppressos contra todas as ambiciosas dominações; porque é o sceptro d'esta dynastia universal que se chama democracia. Por estes titulos os govermos hão de estar attentos a sua voz, porque é a voz do povo que administram. Nas graves crises de um paiz, aos governos impende a obrigação de aferirem pela imprensa os votos e os sentimentos populares.

Á imprensa, como echo da opinião, hão de attender e considerar, para que saibam a ponto entregar a mãos mais peritas ou mais felizes o leme da barca ministerial onde vae tantas vezes a prosperidade ou a ruina das nações - o moderno Cesar e a sua fortuna.

Para apontar os baixios e os recifes, para annunciar as borrascas que já anuviam ao longe o horisonte, para bradar a um governo = continuae ou abdicae =, é que serve a imprensa digna, a imprensa justa, a imprensa honesta, embora vehemente, arrebatada, tribunicia, e não a imprensa que desdoura, que desauctora e que diffama.

Honremos a imprensa, mas distingamos primeiro se, querendo reverenciar a magestade do pensamento, curvamos o joelho perante os cunuchos vis da opinião; se cortejamos a purpura nos hombros do mercenario; se adoramos a idéa ou a calumnia, a eloquencia do patriota ou o apodo interesseiro do pretendente indeferido. Honremos a imprensa, mas advirtamos primeiro se é a imprensa que estampa o Zendavesta e o Alcorão, ou a imprensa que divulga as santas doutrinas e as ineffaveis consolações do Evangelho; se é a imprensa que divinisa a guerra e o verdugo com José de Maistre, ou a que beatifica a humanidade nas generosas utopias de Fourier e de Proudhon. Honremos a imprensa, mas attentemos primeiro em que ella póde ser o cosmos ou o cahos; a luz ou as trevas; a harmonia ou a confusão; Ormuzd ou Arihman.

Respeitemos a imprensa, mas acatemos antes de tudo a opinião publica, porque é a ella e não a opposição apaixonada que pertence tratar das cousas da nação, porque é ella que dicta aos governos a norma e teor do seu procedimento, que inspirada pelas circumstancias do paiz, pergunta aos ministros e aos parlamentos pelo que fizeram em beneficio commum da patria, é ella que os ha de accusar se delinquirem, infligindo-lhes as penas mais severas ou que os ha de galardoar com os louros civicos, se responderem lealmente aos votos e ás esperanças da nação.

Impute-se aos ministros a sua indifferença perante a opinião, quando as suas advertencias e conselhos se mostrem surdos e impenitentes; mas não se entre no lar domestico de cada homem publico para espiar se lê ou não os jornaes das diversas parcialidades, e se no seu bufete do trabalho lhe assistem como censores ou conselheiros o Jornal do commercio, a Revolução de setembro ou o Diario popular.

E a proposito do respeito que devemos todos aos direitos imprescriptiveis da palavra escripta e estampada, cabe aqui fazer alguns reparos ácerca do que ouvi dizer n'uma das sessões antecedentes a um sr. deputado, que sinto não ver presente agora, e que geriu por largos annos a pasta da fazenda do sr. Lobo d'Avila).

O illustre deputado, n'uma invectiva ardente e apaixonada, como se estivesse orando n'uma assembléa revolucionaria, ou debaixo da oppressão e tyrannia de uma facção dominante pela força, queixou-se amargamente de que lhe tiravam a palavra; e, logo em seguida, não se lembrando da contradicção em que ia incorrer nas suas deciamações, disse nos que o governo não podia manter-se a frente dos negocios, porque era fraco, e acrescentou que para salvar a causa publica era indispensavel um governo forte, energico, audaz, que tivesse principios definidos, e se fizesse respeitar por esta camara, e impozesse a sua vontade á maioria.

Declaro que não sei o que são governos fortes no parecer do sr. deputado a quem alludo.

A força precisa determinar-se indirectamente. Não se revelando senão pelos seus effeitos, é necessario medi-la por algum phenomeno sensivel, a cuja intensidade seja proporcional.

O sr. deputado, que está anciando por um governo forte, deverá ter-nos dito qual é o dynamometro de que usa para aferir a força dos governos (riso).

Governos fortes, tenho para mim, que não são os que duram muito, os que vivem de feros e sobrecenhos, arrastando a espada nas salas do parlamento. Aos governos de força prefiro este a que pertenço, que não floreia o sabre no meio das discussões, que por conter um prelado da igreja lusitana póde dizer-se governo de baculo, de paz, de tolerancia, de mansidão evangelica (hilaridade).

Tenho grande respeito e grande affeição a uma classe honrada e nobilissima a que me honro de pertencer, a quem a liberdade d'esta terra deve as suas conquistas gloriosas e os seus trophéus em perecedouros. Amo o exercito, mas n'esta casa, e á testa dos negocios publicos gosto de ver o governo civil, o governo paizano, perfeitamente emancipado de todas as arrogancias, que ficará bem nos campos o vão mal nas assembléas populares (apoiados), onde a arma é a palavra, a tactica a logica, e as palmas ceifadas pelos chefes devem ser incruentas e imbelles.

Quer a camara saber em que está em meu conceito a força dos governos? Sabe-o de certo melhor do que eu, mas eu quero ter o prazer de lh'o repetir.

A força dos governos está antes de tudo em serem respeitadores da liberdade (apoiados). E eu emprazo a opposição para que diga qual foi o ponto em que nos violamos até hoje, um dos santos principios da liberdade nacional (muitos apoiados).

A força dos governos consiste numa honestidade inquebrantavel (apoiados). E queira dizer-me algum dos membros da opposição onde está um só acto, que possa arguir, falta de probidade no governo (muitos apoiados), que não attendeu ás proprias amisades politicas e pessoaes (apoia-

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dos), que viu succederem ás allianças mais antigas e a familiaridade habitual a frieza ou hostilidade, só porque entendeu que na gerencia dos negocios era necessario respeitar mais alguma cousa do que as influencias das pessoas, com quem se achava intimamente relacionado (apoiados).

A força dos governos esta em não despender os dinheiros publicos senão n'aquillo que é estrictamente necessario e que esta ordenado pelas leis (apoiados). E aponte a opposição o exemplo de um só maravedi que fosse gasto pelo governo para subsidiar o favor ou a lisonja de ephemeros cortezãos.

A força dos governos está em não encher constantemente as repartições com empregados supplementares, para satisfazer os compromissos de partido ou os empenhes de occasião, acrescentando escandalosamente o alimento, de que se mantém e com que avulta o déficit. E diga-nos a opposição qual foi o emprego que creamos, o empenho a que accedemos e o nome que ajuntamos a lista volumosa dos funccionarios.

A força dos governos esta em fazer o que eu tenho feito e o que tem feito os meus collegas.

Diga-nos a opposição se durante um anno quasi que levamos de ministros, havemos feito uma só nomeação, ou para captivar amigos, recrutar clientes e remunerar serviços interesseiros (apoiados).

Diga-me a opposição, se póde, onde esta o decreto que se haja referendado para nomear um só empregado no continente do reino. Diga-me se mandei um operario ou um servente para o arsenal da marinha; para o arsenal da marinha que foi durante muitos annos um hospicio da pobreza envergonhada e um asylo de invalidos do trabalho, onde a munificencia politica sustentava a expensas publicas, como no Prytaneo de Athenas, os benemeritos... das lutas eleitoraes.

A força dos governos esta em ter como regra o supprimir todas as despezas que o abuso, não a lei, o favor, não o serviço, tenham consagrado; em abolir todas as verbas que posto que legaes, não sejam necessarias para o bom e regular andamento da administração. E diga-me a opposição se o que principalmente inflamma a sua palavra contra o governo não são os golpes fundos por elle dados nos morgados bureaucraticos e nos pingues apanagios que a liberalidade politica tinha instituido em favor dos filhos dilectos do orçamento.

A força dos governos está em ter coragem para lutar com os amigos nas suas ambiciosas pretensões, e para resistir aos inimigos com as armas invenciveis da probidade e da justiça. E digam os amigos tornados em adversarios, digam as petições indeferidas, digam as intimidades rotas e pueril as dedicações mentidas a que subido quilate chegou a hombridade e a dureza do governo em materia de favores á custa dos dinheiros da nação.

A força dos governos esta finalmente em seguir cuidadosamente as indicações da opinião, e deixar a tempo as cadeiras do poder, para não ser obrigado a sair d'ellas entre as alas hostis das turbas irrequietas e insurgidas; para evitar as quedas estrepitosas depois de haver accendido a chamma dos odios populares de um até ao outro extremo do paiz; para não por em perigo a ordem na capital, e a paz no reino; para não comprar mais alguns dias de attribulada existencia no poder pelo sacrilego preço da agitação e da guerra civil.

Este é o dynamometro por onde se afere a força dos governos. E por isso eu digo que se a todas estas condições satisfez o gabinete, a moralidade, a economia, a liberdade, a justiça na distribuição dos sacrificios, ao esquecimento das affeições, a preferencia dada aos grandes e poderosos sobre os humildes e pequeninos, para os ferir em seus interesses e proventos; se a nossa massa multiplicada pela nossa velocidade iguala como resultante a todas as forças moraes que acabo de enumerar, estou convencido de que o governo actual é forte e popular (apoiados).

O governo é fraco, dizia o sr. deputado a quem me tenho referido. E se é fraco, porque se abriram impetuosas contra elle as cataratas da sua eloquencia, e se desatou o sr. deputado n'uma catadupa de irrasciveis imprecações contra estes pobres ministros inoffensivos, que estão sentados n'estas cadeiras?

O governo é fraco, porque (dizia o sr. deputado) não se impunha a maioria, porque aceitava as emendas das commissões!

Parece incrivel que n'um paiz constitucional, n'uma epocha das mais graves para a nação, numa quadra em que o accordo de todas as opiniões e o consenso de todas as vontades ainda não é penhor seguro de que possamos resolver as grandes difficuldades em que estamos envolvidos, haja alguem que accuse o governo de ser fraco, porque attende ás justas e judiciosas reflexões dos homens que são chamados a examinar as propostas do governo!

Se porventura ser forte é impor a vontade ás maiorias, é passar por cima das opposiçÕes, como dizia um antigo e illustre estadista d'esta casa, é preterir todas as regras e conveniencias parlamentares; se ser forte é desprezar a opinião sensata dos amigos e das commissões que constitucionalmente têem de intervir no exame das medidas legislativas, o governo rejeita essa força, porque é a dictadura exercida abertamente no seio do parlamento. O que o governo quer, e essa é uma condição essencial para que continue a sentar-se n'estas cadeiras, é o accordo politico da maioria, com quem tem tido a honra de viver até hoje, nas mais amigaveis relações; o que o governo quer é o conselho e apoio da maioria e das commissões; o que o governo quer é que a maioria governe com elle, e com elle se associe ao consulado. É um erro suppor que um governo consta apenas de seis homens; que entre si têem distribuidas as pautas das diversas repartições. Um governo não se compõe apenas de seis homens, senão de seis mil, de seiscentos mil; de seis ministros e mais todos os deputados que o circundam, e mais toda a opinião que o rodeia e favorece e lhe dá força. Isto é o governo, o governo nacional, o governo que recebe a sua investidura da vontade ou do assentimento do paiz. O mais não é governo, é autocracia.

O governo não se faz nas camarilhas politicas, nem nos conclaves partidarios, faz-se n'esta casa; faz-se na praça publica; faz se com o accordo e beneplacito de todos os amigos, e até mesmo com o conselho dos inimigos, porque até os proprios inimigos nos lances mais difficeis e nas crises mais perigosas, podem dar-nos alguma vez conselhos, que se não devem engeitar, só por vaidade e jactancia pueril e os exemplos de seus erros nos são boa advertencia e salutar prophyllaxia nas mais apertadas conjuncturas.

O governo tem a força que da a honestidade, a economia, a justiça, o espirito liberal, e sobretudo a ausencia da ambição. Conscio d'esta força, só deixará estas cadeiras no momento em que esta assembléa illustrada, e livremente saida da urna (apoiados), que tão solemnemente exprime o voto das populações, quando está possuida da doutrina das severas economias e reformas (apoiados), nos significar o seu voto imperativo e nos negar o seu apoio. Desde já prophetiso a camara e ao paiz que esta luzida phalange que expontaneamente nos circunda, não ha de desamparar o governo por ter feito reducções, economias e reformas, ou por alargar o ambito das que já estão effectuadas, ha de engeita-lo se afrouxar n'esta empreza patriotica ou se parar n'este caminho (apoiados); porque o paiz não enviou ao parlamento os seus representantes numa das mais graves conjuncções da sua vida politica e social, para satisfazer a interesses particulares nem pessoaes; para fomentar ambições de segurar ou de conquistar o poder; senão para continuar a obra da moralidade e da economia, para responder aos votos e aos desejos da nação, manifestados em janeiro; para cerrar a porta ás restaurações imprudentes do passado.

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A sua confiança não nos póde ser continuada, senão em quanto não apostatarmos do programma e do pacto governativo que com a nação e com a maioria juramos manter e conservar (apoiados).

Vozes: - Muito bem.

(O orador foi comprimentado por um grande numero de srs. deputados.)

Discurso do sr. deputado Paes Villas Boas, proferido nas sessões de 16 e 17 do corrente, e que devia ler-se a pag. 1:150

O sr. Paes Villas Boas: - Sr. presidente, observando as prescripções regimentaes, começo por ler a minha moção de ordem (leu).

Principio por confessar que me vejo n'uma situação embaraçosa e difficil. O projecto tem sido apenas defendido, e pelo correr da discussão até aqui, afigura-se me bem que não será impugnado.

Não esperava eu, e justificado motivo para isso tinha, encontrar-me só na impugnação de assumpto tão importante, de tão grave matéria. Quando v. exa. poz em discussão o projecto, alguns dos meus illustres collegas, pedindo a palavra, se fizeram inscrever contra. Então, dominados por bem diflerente ordem de idéas, convencidos eram s. exas. de que o projecto era discussão não estava no cabo de ser desde já convertido em lei do estado.

Reconsideraram pois og nobres deputados. Reconsideração realmente tanto para notar-se, quanto versava ella sobre materia, cuja gravidade por s. exas. foi ponderada.

O primeiro, que como defensor entrou no debate, foi o illustre deputado, e meu amigo, o gr. Ferreira de Mello. S. exa. pretendeu justificar a sua mudança de opinião, o seu hoje diverso modo de ver no projecto, sem ser o augmento do imposto predial, que se propõe, não só pequeno, de pouco valor, como temporario. Foram as palavras de s. exa., das quaes tomei nota.

O illustre deputado, antes de dar-se a desenvolver o argumento, encarregou-se elle proprio de o prejudicar, offerecendo testemunho de que o curto espaço de uma semana não era bastante para se operar n'elle tão completa transformação de idéas, para se lhe arraigar tão contraria convicção, pois que logo depois reconheceu que o imposto que se propõe era pesado e gravoso.

Mas s. exa. reputou o augmento de 20 por cento na contribuição predial pequeno e temporario; e eu julgo que e grande, e considero-o extemporaneo e inopporfuno.

Sr. presidente, se porventura não propozesse o adiamento da discussão do projecto, adiamento que proponho levado pela força de minhas convicções; se, influido por differente ordem de idéas, eu votasse pela approvação do augmento da contribuição predial, votaria pela approvação, considerando o imposto dos 20 por cento como pura e meramente temporario, como remedio extraordinario, applicado em circunstancias anormaes, e extraordinarias tambem. Mas nem como permanente, nem como temporario tão pouco, eu posso approvar este imposto, que reputo grande o extemporaneo, que julgo oneroso, pesado, vexatorio, oppressivo e desigualissimo (apoiados).

A consideração que acabo de enunciar farei por desenvolver tanto, quanto a fraqueza dos seus recursos de espirito, e a limitação do meu estudo em tão grave e complexo assumpto m'o permittirem.

Importa o augmento de 20 por cento na contribuição predial na quantia de 329:000$000 réis, se me não engana o calculo. Projecta se pois não só onerar a propriedade rustica, que em tão desgraçadas circumstancias se encontra hoje, como, e o que muito mais o aggravar as condições de desigualdade reconhecida e patente da contribuição predial (apoiados). Ora, sendo isto certo, como se póde justificar o augmento do imposto na importancia de 329:000$000 réis, com ser pequeno e temporario!

Sr. presidente, é a questão, por importante e complexa, da maxima gravidade, e por certo, a quem, como eu, que não tenho aturados estudos da materia, nem os mais conscienciosos, não será facil, nem similhante pretensão tenho, captar a attenção da camara. Sem embargo, professando no assumpto idéas mais ou menos definidas, opinião mais ou menos firmada, entendo que dever meu é expo-las pela fórma que compativel for com as minhas forças.

Reconheço que o augmento do imposto é uma necessidade impreterivel, porque impreterivel é a necessidade, e indeclinavel dever nosso prestarmos meios de augmentar a receita do estado (apoiados). Sou dos primeiros em reconhecer esta verdade; bem a reconhece a camara, reconhece-a o paiz, reconhecem-na todos, e senão todos sem excepção, reconhece-a a parte conscienciasa, do paiz, conhecem-na, e compenetrados d'ella estão todos aquelles que cuidadosamente, com a seriedade a que a importancia do objecto obriga, como portuguezes sinceros, se interessam deveras pelo conseguimento do remedio indispensavel a debellar o mal que nos affecta, e que bem poderá recrudescer a ponto de tornar-se incuravel, e pelo alcance de meios efficazes a conjurar a assustadora crise financeira que nos assoberba.

É o augmento do imposto pois de uma necessidade imperiosa, contra a qual não posso eu, e ninguem deverá reagir. Negar o augmento do imposto hoje, em regra, importaria negar ao paiz, não já os meios indispensaveis ao seu adiantamento e progresso; como á sua propria conservação (apoiados). Contradizer-se esta verdade é fazer-se perigar os mais caros interesses d'este paiz, é arriscar-se inclusivamente a nossa autonomia do cidadãos livres, de um paiz livre (apoiados).

Nem venho pugnar por excepções odiosas em materia de impostos. A necessidade é do paiz, a todos por isso cumpre concorrer com os meios indispensaveis a satisfação d'ella, cada um dentro da orbita de suas forças. O interesse é de todos, o risco é commum, a todos pois, a todas as classes de contribuintes, sem excepção, corre o indeclinavel dever da sujeição ao sacrificio, que não poderá deixar de ser commum tambem, porque o mal affecta gravemente o paiz, e conjura-lo deve interessar e importar igualmente a todos.

Bem, e infelizmente, conheço, e todos conhecemos, que as circumstancias em que o paiz se encontra são por tal fórma graves e periclitantes que o augmento do imposto é uma necessidade fatal. Venha pois o augmento da contribuição predial, mas venha tão equitativo quanto possivel seja.

Axioma é, em economia politica, que a pereguação do imposto é problema insoluvel, mas regra elementar de economia politica tambem é, que os impostos para que se tornem proficuos, para que sejam salutares, para que sejam meios de conservação e desenvolvimento de um paiz, devem obedecer as regras elementares da justiça e igualdade; tanto quanto possivel, pois que ou sãos principios de justiça e igualdade se não podem traduzir tão inteira e perfeitamente na distribuição do imposto, quanto convinha, e para desejar era.

Sr. presidente, ouvi hoje repetir ao nobre ministro da fazenda uma asserção na verdade estranhavel.

Avançou s. exa. que, segundo seu modo de ver na distribuição da contribuição predial, julgava preferivel o systema da quota, ou lançamento, ao systema da repartição, ao qual de futuro se inclinaria se porventura as circumstancias lh'o permittirem. Surprehendeu-me a opinião de s. exa. contraria ao systema de repartição, que tal é o que se encontra estatuido na carta constitucional.

Alem de outras rasões, a que perfunctoriamente me reportarei, que, quanto a mim cabalmente justificam o systema da repartição, que o aconselham, e que se por um lado demonstram que qualquer dos dois systemas é imperfeito e fallivel, porque da applicação de nenhum poderá resultar a igualdade desejada, por outro lado mostram que a pratica do systema de repartição esta sujeita a menores desigualdade se menos imperfeições, e menores abusos, do

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que a do systema de lançamento; eu estranhei, repito, sem embargo de conhecer que as leis não são immutaveis, nem mesmo o nosso codigo fundamental, que um ministro da corôa, alias cavalheiro respeitabilissimo, e por quem professo subida e particular consideração, avançasse proposição tão contraria a letra e ao espirito do § 8.° do artigo 14.° da carta constitucional da monarchia.

Sr. presidente, bem se conhece que nega-lo seria contradizer a irrefragavel prova dos factos, que a repartição da contribuição predial, assentando em bases desigualissimas, torna este imposto vexatorio e insupportavel aos contribuintes, senão a todos, ao maior numero dos não abastados, e que a reforma dessas bases é objecto do qual com urgencia cumpre cuidar-se de modo a tornar a repartição menos injusta e menos desigual.

Mas, se ha inteira concordancia n'estas idéas, objectar-se-ha ao adiamento que proponho, que seria adoptavel se com elle se não fosse prejudicar a proxima arrecadação d'este extraordinario imposto, pois que tudo é preciso nas circunstancias tão precarias do thesouro, nas gravissimas circumstancias em que o paiz está vergando ao peso da tão assustadora crise financeira, que é força vencer sem delongas e a todo o custo.

Sem maiores delongas, e com o menor custo, de accordo.

Se entendo que a repartição da contribuição predial não seria possivel levar-se sem demora ao ponto da justiça e igualdade, que necessario é, entendo tambem que sem larga demora se poderia attenuar essas tão reconhecidas injustiças, e revoltantes e perniciosas desigualdades. E eu até não proporia, talvez, o adiamento da discussão do projecto, se porventura a camara prestasse mais demorada attenção, e a mais larga discussão se tivesse dado, como muito convinha, ao projecto da contribuição predial ordinaria, concluindo por approvar a proposta apresentada pelo illustre deputado, meu antigo amigo, o sr. Raymundo Rodrigues, na qual s. exa. offerecia a consideração da camara a unica base aceitavel para a repartição da contribuição predial, tal era o rendimento collectavel. E sendo esta uma das principaes rasões que me moveu a propor o adiamento, permitta v. exa. e a camara que desenvolvendo esta idéa, mostre que as quotas do rendimento collectavel dos districtos administrativos são as bases racionaes, as unicas admissiveis, não digo com absoluta exclusão de outras, para a repartição do imposto predial.

Bem conheço que não era possivel fazer-se trabalho consciencioso e de maior importancia na organização de juntas bases sobre as quaes deveria assentar a contribuição directa de repartição, sem que deixasse de espaçar se a proxima arrecadação do imposto de modo prejudicial aos interesses do estado. Não era possivel sem tempo e trabalho levar-se a igualdade desejada as quotas dos contribuintes, nem a repartição pelos concelhos, mas bem se poderia attenuar as salientes desigualdades que se dão por uma mais equitativa repartição nas quotas districtaes. E isto bem se alcançava sem demora com a approvação da proposta apresentada pelo illustre deputado, e meu amigo, a que alludi.

Poderá a camara estranhar que eu me refira hoje a este assumpto, tendo me abstido de entrar na discussão da lei da contribuição ordinaria, par oceano da qual foi apresentada a proposta, cuja doutrina adoptava, e adopto.

Não tomei então parte na discussão, comquanto bem desejasse faze-lo, porque se me afigurou então que o assumpto não interessava demasiadamente a camara, que, se as minhas recordações me não mentem, depois de usarem da palavra dois illustres deputados, ás vozes de "votos", julgou sufficientemente discutida a materia. Pois, sr. presidente, eu não sei que objecto mais grave, que assumpto de maior importancia se offereça a consideração do parlamento, do que os projectos de lei para lançamento de impostos! (Apoiados.)

Por isso, pois, não usei da palavra, e me limitei a approvar a proposta apresentada pelo illustre deputado por Coimbra, e creio até que fui o unico que acompanhei s. exa. na votação.

Rejeito a proposta da contribuição extraordinaria, como rejeitei a da contribuição ordinaria, e já que então não pude motivar o meu voto, agora o farei, aproveitando esta talvez menos opportuna occasião, e associadamente justificarei o adiamento que proponho.

Disse que com a adopção do alvitre proposto não poderia resultar a possivel igualdade e justiça, porque o vicio e o defeito existo tambem nas matrizes, base fundamental do systema de repartição, mas que os defeitos da repartição se poderiam até certo ponto attenuar, fazendo-se esta em proporção das quotas do rendimento collectavel, base natural do systema legal.

Dois systemas ha, como a camara sabe, de contribuição predial, o systema do lançamento ou de quota, e o de repartição. D'esde 1654, data do primeiro regimento de contribuição directa, até 1854 esteve em pratica o systema de quota, assim como em França esteve até que, pela constituinte em 1791, foi abolido e substituido pela contribuição territorial de repartição.

Entre nos pela publicação do decreto dictatorial e regulamentar de 31 de dezembro de 1852, e pela lei de contribuição ordinaria discutida e promulgada em 1853, e executada no seguinte anno de 1854, poz-se em pratica o systema da repartição, já como disse, estatuido na carta constitucional. Foi pois, depois de não pequenos e repetidos esforços, condemnado e abolido o systema da quota por desigualissimo, por vexatorio, e por não susceptivel de aperfeiçoamento, e por não offerecer precisa garantia ao estado (apoiados). Sinto estar em tão aberto desaccordo com as opiniões do illustre ministro da fazenda, que para justificar a preferencia que dá ao systema do lançamento, o declarou mais exacto e igual nos resultados, e mais conveniente para o estado, porque lhe não defraudava tanto os interesses. Não sei se sou fiel e exacto n'esta minha apreciação, mas as notas que tenho aqui, e que tomei dos discursos de s. exa., accusam-me estes argumentos, com que s. exa. quiz fundamentar o seu systema.

Reconhecidos, como ponderei, os grandes inconvenientes do condemnado systema de quota, poz-se, em virtude do citado decreto regulamentar de dezembro de 1852, em execução o systema de repartição, estatuido já na carta constitucional, e assim alem de outras plausiveis rasões, emquanto que a lei não for derogada, não poderá admittir-se systema diverso.

(Interrupção que se não percebeu.)

Bem sei que se não trata agora de examinar se o systema tributario de repartição é mais ou menos conveniente do que o systema por lançamento ou de quota; mas eu, tendo ouvido ao nobre ministro uma opinião contraria aquella que reputo melhor, e de mais a mais legal, não posso dispensar-me de ser demorado n'este ponto.

Condemnou-se o odioso systema de quota, porque a desigualdade era infallivel, sempre certa, reflectindo-se e pesando de preferencia nos desprotegidos da fortuna; porque atacando os interesses do estado e da sociedade, era aos pequenos proprietarios a quem mais de perto gravava. Preferiu-se o systema de repartição que, comquanto fallivel, era susceptivel de aperfeiçoamento, qualidade de per si bastante para o aconselhar, de preferencia ao outro.

O systema de repartição, repito, é tambem fallivel e imperfeito como todos, porque com a applicação de nenhum d'elles poderemos obter a perequação. O sygtema de repartição, não podendo assentar em bases bastante definidas e seguras, ha de ser imperfeito tambem, e para isso bastara considerar que, para que as bases attingissem o desejado grau de justiça e igualdade, era indispensavel a confecção de um cadastro perfeito; e um cadastro em condições de perfeição, que accuse sempre e em qualquer epocha dada a verdade, é obra impossivel.

Não commungo pois na opinião d'aquelles que reprovam

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o systema da repartição, porque a sua applicação importa um cadastro. Objecto com o exemplo da França, onde a applicação d'este systema principiou muito primeiro do que entre nós, aonde se trabalha na confecção de um cadastro ha longos annos, com o que se têem despendido grossas sommas, avultados capitaes, e aonde ha departamentos a respeito dos quaes não ha cadastro.

O cadastro não é mais do que um methodo aperfeiçoado de se conhecer o rendimento collectavel dos predios, para o que importa a avaliação, a classificação e a medição dos predios. Ora, considerando-se que os predios soffrem continuadas e repetidas transformações, quotidianas, por assim dizer, reflectindo que a cada passo mudam de valor, ha de concordar-se que um cadastro ha de ser sempre imperfeito, e que portanto não póde offerecer bases seguras, que garantam a igualdade do imposto. E, d'esta sorte, se por outro qualquer modo se poder apreciar o rendimento collectavel dos predios, o que entre nós não será difficil, attendendo se á pequena area do paiz, parece-me que podemos dispensar o cadastro; trabalho este que nos absorveria capitaes de que não podemos dispor, e para o que conviria uma organisação de serviços que não temos. Creio que por emquanto devemos pôr de parte as esperanças de um cadastro, mesmo porque os sacrificios que ao paiz demandaria, não seriam por certo compensados pelos uteis que d'elle lhe poderiam provir (apoiados).

Sr. presidente, os elementos, os dados, que têem servido para a repartição ou distribuição do imposto predial, pelo menos os até agora conhecidos e usados com melhor ou peior resultado, são: as quotas do rendimento collectavel, formuladas pelas matrizes, base natural do systema, a população, a área do paiz, os valores das producções, e o numero de fogos e o dos recenseados. São estes os elementos que, como dados estatisticos, podem ser aproveitados para sobre elles se operar a repartição do imposto. Todos são reconhecidamente falliveis, inclusivamente o rendimento collectavel, mas seguramente o que melhor garantia offerece, o menos fallivel, é sem duvida a quota do rendimento collectavel districtal, que, com approximação da verdade, póde determinar-se pelo valor das matrizes exclusivamente, ou pelas matrizes conjunctamente com o valor das producções; é, quanto a mim, este o dado menos fallivel, e a base racional da decima predial de repartição.

Para demonstração do que digo, e como prova clara da desigualdade resultante do absurdo systema que se tem seguido, basta operar a repartição do contingente da contribuição predial, na importancia de 1.649:211$000 réis, em proporção das quotas do rendimento collectavel, na somma total de 22.217:632$644 réis, e comparar-lhe os resultados com as quotas dos contingentes districtaes. Resalta facil o absurdo, e manifesta-se clara a injustiça e a desigualdade na repartição da decima pelos districtos.

Antes de proseguir n'este ponto, direi que, quando me dei ao exame d'este assumpto, que fiz tão conscienciosamente quanto os meus por em quanto limitados conhecimentos da materia mo permittiam, o primeiro trabalho a que me entreguei foi a descobrir a base que tinha servido á illustre commissão de fazenda para a repartição da contribuição, tal qual no-la apresentou no seu parecer ácerca do projecto da contribuição ordinaria.

Cansei-me de a procurar; vali-me de todos os dados infructiferamente. Lancei mão das quotas do rendimento collectavel, e operando por ellas a repartição do contingente vim a resultado muito outro d'aquelle a que a illustre commissão tinha chegado. Soccorri-me do elemento da população e cheguei a resultado mais contrario ainda. Vali-me da área do paiz, e calculando pelo numero dos hectares de cada districto administrativo, tomei lhes as quotas correspondentes do contingente, e em conclusão tive um resultado avesso ao que pela commissão nos foi offerecido; e assim operando com o dado estatistico do numero dos fogos, e com o dos recenseados, e com os valores das producções.

Fui levado, pois, á conclusão de que a illustre commissão tinha chegado á solução de um problema, que eu reputava impossivel, qual é o fazer uma conta de repartir com o divisor incognito!

(Interrupção do sr. Henrique de Macedo, que se não percebeu.)

O illustre relator do parecer, e meu amigo, não apoia esta minha asserção, e natural é, porque s. exa. não podia condemnar a sua propria obra; espero que o illustre deputado, demonstrando a inexactidão do que avanço, me esclareça o espirito, mostrando a base da qual a commissão se serviu, base que eu no entretanto considerarei ignota. Todavia direi que me parece ter por fim descoberto a base adoptada para a contribuição, mas confesso que por muito reflectir n'ella, não acabava commigo de convencer-me que essa tal fosse a adoptada pela commissão ao cabo das suas vigilias e aturado estudo.

Logo tratarei d'este ponto, que antes tenho de demonstrar que para a repartição desigual e injusta que foi proposta não serviu realmente nenhum dos dados, de que se deva lançar mão para esta operação, os quaes já deixo mencionados.

Na demonstração de que o tal dito divisor incognito foi o mais injusto e condemnado farei referencia a dois, e quando muito a tres districtos, que para me não alongar demasiadamente, não tratarei de todos. Alludirei principalmente ao districto de Braga, não só porque da representação do qual tenho a honra de fazer parte n'esta casa, mas porque é o districto que mais e melhor conheço. Ao districto de Braga coube na repartição, como tem cabido, a quota districtal na importancia de 107:861$000 réis, ao passo que se porventura tivesse sido adoptada a natural base da quota do rendimento collectalvel, no valor de 1.025:271$755 réis, não competiria a este districto contingente superior a réis 76:104$000.

Abro aqui um parenthesis, para declarar que nos numeros que apresentar e tenho apresentado me responsabiliso apenas pelas unidades. Procurei levar a exactidão do calculo até ás casas decimaes, mas confesso que não fio inteiramente dá minha pouca pratica em operações de contabilidade.

Continuando, farei a comparação dos districtos do Braga com Coimbra, e principalmente com Vizeu, porque os considero em similhança de condições.
O contingente predial repartido ao districto de Coimbra é na importancia de 79:559$000 réis, e de Vizeu na de réis 91:156:000. Ora, sendo a quota do rendimento collectavel do primeiro no valor de 1,350:556$778 réis, e a do districto de Vizeu no valor de 1.778:907$056 réis, ambas as quotas em valor superior á de Braga, ao dois districtos repartida a contribuição em porporção do rendimento collectavel, deveria tocar:

[Ver tabela na imagem]

D'aqui se conhece que Braga; cujo rendimento collectavel é de 1.025:245$901 réis, cabe-lhe um contingente no valor de 107:801$000 réis, ao passo que a Vizeu, cujo rendimento collectavel é, como dito fica, superior ao de Braga, cabe-lhe o contingente de 91:156$000 réis, e ao districto de Coimbra, com a quota do rendimento collectavel superior tambem, cabe-lhe o contingente de 79:559$000 réis.

A desigualdade é pois saliente, e não sei como possa justificar-se.

(Áparte que não se percebeu.)

Eu não posso deixar de demorar-me n'estas considerações com relação aos dois districtos a que alludi, sem ter o intuito de acarretar desfavor aos dois referidos districtos que muito considero, e quando não fosse mais, para isso me bastava a camaradagem dos meus illustres collegas, seus representantes, a qual em muito aprecio.

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A contribuição está lançada, e não serei quem tenha força de fazer reconsiderar a camara.

Pelo que deixo dito, já v. exa. vê, e vê a camara que a illustre commissão não adoptou a base do rendimento collectavel, ou das matrizes, na repartição do contingente da contribuição predial.

Vejamos agora se a base escolhida foi a arca do paiz.

Tendo a superficie do paiz 8.954:010 hectares, distribuido por este numero o contingente predial na importancia de 1.649:211$000 réis, encontrei em coefficiente geral, a quota de 184,1 por hectare; ora, feita a distribuição por esta base, chega-se ao resultado seguinte:

[Ver tabela na imagem]

Por este resultado se vê que a commissão se não valeu d'este dado estatistico. E bem o fez, porque o contrario levá-la-ía a absurdos evidentes. Assim o districto de Beja, que certamente não é dos mais ricos, cujo rendimento collectavel no valor de 1.033:277$755 réis é inferior ao de Vizeu e Coimbra, mas cuja area abrange 1.076:522 hectares, approximadamente 1/8 da superficie do paiz, attingiria na respectiva quota do contingente a 198:137$700 réis, contingente esse superior ao que ao districto do Porto cabe, o qual é de 152:330$000 réis, e superior tambem á cifra de 46:024$631 réis, que tal seria o contingente para este districto, operada a repartição sobre esta base da superficie; e da mesma sorte seria o contingente do districto de Beja superior até ao que tocaria ao de Lisboa.

Passarei a considerar o dado estatistico da população.

Tendo o paiz, segundo o censo official de 1864, excellente trabalho que muito honra seus collaboradores, 3.829:018 habitantes, e repartido o contingente predial no valor dito de 1.649:211$000 réis por este numero, encontra-se em coeficiente geral a quota de 430,6 por habitante, e feita a repartição por esta base, dá-se com o resultado seguinte:

[Ver tabela na imagem]

Por este enunciado se vê que a illustre commissão se não valeu tambem do dado estatistico da população.

Sem desconhecer que a população é um elemento que não deve inteiramente desprezar-se, pois que os homens não se fixam ao acaso n'um dado ponto da terra, e que se n'esse ponto se multiplicam é porque ahi ha subsistencias, e as subsistencias são valores, e estes objecto de tributos, é certo porém que este dado estatistico é da menos seguros, e por isso dos mais falliveis. E assim ao districto de Aveiro, que está no duodecimo logar na ordem da importancia das quotas do rendimento collectavel, caber-lhe-ía o contingente de 102:784$220 réis, vindo assim a ficar o sexto na ordem dos valores do contingente, se porventura a repartição fosse operada pela base da população.

Pondo de parte os dados estatisticos do numero de fogos e do numero dos recenseados, para me não alongar demasiadamente, direi só que operando-se com estes dados se vem no conhecimento tambem de que a commissão não baseou n'elles a repartição.

Referindo-me por fim aos valores das producções, na importancia para todo o paiz de 38.680:527$000 réis, apresenta-los-hei comparados com as quotas districtaes do rendimento collectavel, pela fórma seguinte:

[Ver tabela na imagem]

Offerecendo a comparação d'estas cifras como irrefragavel prova da desigualdade da repartição do imposto predial, mostro tambem que a commissão se não valeu d'este dado estatistico, aliás, a meu ver, muito aproveitavel.

Os valores totaes das producções dos differentes districtos se obtêem sommando os valores parciaes dos principaes productos, tomando-se no calculo para media o preço dos generos n'um anno de regulares colheitas, e como media tambem os preços dos generos nos principaes mercados dos districtos. Eu tenho este dado dos valores das producções como um dos mais apreciaveis e certos, e por isso, como disse, muito aproveitavel para a repartição da contribuição. Conheço, e por isso confesso que não é isento de vicies, mas que considero do ordem inferior, e que facilmente se podem attenuar, de modo a approximar da verdade os valores accusados nos mappas respectivos.

Estes mappas são, como a camara sabe, primeiramente formulados nas parochias, das quaes passara a ser examinados pelos administradores de concelho, d'aqui vão para os governos civis e destes para as repartições superiores. Ora, consistindo o defeito dos mappas em accusarem uns valores um pouco inferiores aos reaes, e sendo esse defeito commum de todos e com pequena differença na mesma proporção, entendo que facilmente podem ser, se não interamente corrigidos, pelo menos attenuados. E tanto basta para que este dado estatistico possa offerecer garantia não de base inteiramente segura, mas muito apreciavel.

Presumo, sr. presidente, ter demonstrado que a illustre commissão de fazenda, não se tendo valido para operar a repartição da contribuição de nenhum dos dados estatisticos conhecidos, pois que a não baseou nem no rendimento collectavel, como segundo meu modo de ver, deveria basea-la, nem nos valores das producções, e assim na população, na superficie do paia, no numero de fogos, etc., continuo a ter como desconhecida a base infelizmente adoptada, e a considerar incognito o divisor.

Sr. presidente, tornando ainda roais saliente as desigualdades que na repartição do imposto predial se dão, tratarei do comparar as respectivas quotas districtaes de Braga o Vizeu, deixando de abranger com as minhas reflexões outros districtos, que irrespondiveis argumentos me forneceriam tambem, para não abusar em demasia da benevolencia da camara. Considerarei pois, os dois districtos, que realmente se me offerecem em prova frisante, pois que ao passo que o do Vizeu está manifestamente beneficiado na repartição, o de Braga está injustamente sobrecarregado.

(Áparte que se não percebeu.)

Faço-me cargo de tornar evidente a desigualdade, e para isso peço ao meu illustre collega e amigo, o sr. Barros Gomes, licença para me referir ao seu discurso, proferido na sessão em que se discutiu o projecto da contribuição predial ordinaria, na parte em que s. exa. pretendeu demonstrar que a desigualdade que era notada entre as quotas dos contingentes de Braga e Vizeu, era apenas apparente. O contrario, isto é, que a desigualdade é real, pretendo eu provar em face de todos os dados estatisticos.

Attingindo a cifra do rendimento collectavel do districto de Vizeu o valor de 1.778:907$056 réis, coube lhe o contingente de 91:156$000 réis, quando repartida a contribuição em proporção do rendimento collectavel, divisão esta, para mim, como deixo dito, a menos fallivel, e por isso a mais aceitavel, lhe deveria caber a quota districtal na importancia de 132:000$000 réis. Sendo o rendimento collectavel de Braga 1.025:245$901 réis, foi lhe repartido o contingente de 107:861$000 réis, quando em proporção da quota do rendimento collectavel lhe não poderia tocar mais de 76:104$000 réis.

Desculpe-me a camara a repartição fastidiosa d'estes numeros, mas a ella me não posso furtar na demonstração que me propuz.

Do simples enunciado que fiz, resulta de um modo evidente a desigualdade e a injustiça tambem.

Vejamos agora, segundo o dado estatistico da população.

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Tendo o districto de Vizeu 353:543 habitantes, e o de Braga 309:508, claro é que a quota do contingente de Vizeu deveria ser superior á do districto de Braga. Se a repartição fosse, pois, feita em proporção da população, a Vizeu caberia 152:235$615 réis, como já disse, ao passo que a Braga não competia mais do que 133:274$164 réis. E assim Vizeu pagaria mais 18:000$000 réis.

Passarei ao dado estatistico da superficie do paiz.

O sr. Barros Gomes: - O illustre deputado dá-me licença que o interrompa?

O Orador: - Pois não.

O sr. Barros Gomes: - Quando procurei demonstrar que não era possivel effectuar-se com os dados estatisticos existentes uma repartição do contingente predial, mais em harmonia com os principios da justiça, baseava-me no estudo dos mesmos dados; em primeiro logar o rendimento collectavel, depois a população, os valores da producção cerealifica, e agricola em geral, numero de fogos, e, emfim, todos os mais dados estatisticos. Se o meu illustre collega e amigo, se valeu de cada um d'esses dados, e com cada um d'elles calcular isoladamente, ha de chegar a conclusões inteiramente diversas.

Não foi essa a minha opinião. Eu procurei comparar o rendimento collectavel com o resultado dos demais dados estatisticos, e do confronto d'elles inferi, que não tinhamos dados sufficientes para effectuar uma nova distribuição do contingente predial em harmonia com os principios da igualdade.

O Orador: - Agradeço ao illustre deputado a explicação que acaba de dar-me, a qual mais uma rasão para mim é e me obrigar a continuar na referencia que estou fazendo ao seu excedente discurso, que com muita satisfação ouvi. E desde já direi, que o que principalmente inferi da explicação do meu illustre collega, é que s. exa. foi um dos eleitos que entrou no segredo do divisor incognito, pelo que o felicito.

Continuarei portanto na exposição de minhas idéas; cuja falsidade s. exa. me não demonstrou.

O sr. Barros Gomes: - V. exa. dá-me licença por mais uma vez?

O Orador:- Com muito gosto.

O sr. Barros Gomes: - Procurei tambem demonstrar que o imposto predial não era da natureza d'aquelles que em todos os annos, e a todos os momentos se póde alterar, sendo a este imposto inherente um certo caracter de fixidade, e não existindo o divisor, que v. exa. diz ser preciso, não convinha fazer-se hoje uma repartição para se alterar ámanhã. Por isso entendi que o melhor era a que assentava em bases mais seguras. Emquanto pois não possuirmos bases mais equitativas, temos que aceitar as que têem servido, para obstarmos aos inconvenientes de uma continua mobilidade.

O Orador: - Perdoe-me o illustre deputado; s. exa. não respondendo precisamente as minhas considerações, não destruiu tambem os argumentos que vou produzindo.

S. exa., no seu discurso a que estou alludindo, reflectindo que a notada desigualdade entre os contingentes dos districtos de Braga e Vizeu não passava de apparente, apparente desigualdade esta que com a reflectida comparação e detido exame dos dados estatisticos inteiramente desapparecia, passou s. exa. a demonstrar a asserção, fundando se nessa comparação e exame; ora, em face dos mesmos dados é que trato de provar que a desigualdade é não só apparente, mas real.

Estava eu considerando a base da população, quando s. exa. me fez o favor de interromper, e concluia que em face d'este dado, sendo a população de Vizeu superior á do districto de Braga, áquelle deveria caber maior contingente do que a este. Mas s. exa., querendo attenuar o effeito do seu contraproducente argumento, soccorreu-se ao numero da população urbana de Braga, superior á de Vizeu.

Direi que a população considerada urbana nas estatisticas do nosso paiz, não póde offerecer dado apreciavel, nem creio que tenha sido aproveitado.

É, como a camara sabe, difficil trabalho, apartar em certas terras a população urbana da rural; algumas ha nas quaes uma e outra população por tal sorte se encontram confundidas que quasi impossivel é o distingui-las inteiramente, havendo tambem outras, cuja população não é agglomerada, e aonde outras industrias, que não a rural ou agricola, apresentam um desenvolvimento superior. Varias têem sido as bases que n'outros paizes se têem adoptado para se taxar de urbana tal ou qual população agglomerada; nós é que não temos bases para a designação, ou se as temos são peculiares nossas; basta para isso notar-se que as tradições historicas têem sido uma das bases adoptadas, resultando d'aqui o encontrar-se nas nossas estatisticas com a designação de urbanas terras, cuja população agglomerada é muito inferior á de outras que são consideradas ruraes.

Alludiu tambem s. exa. á população especifica. Confesso que estava na idéa de que só a população legal ou de facto podia ser tomada como dado estatistico para a distribuição dos impostos, e que outro tanto se não dava com relação á população especifica. Não posso portanto alcançar a força d'este argumento, na consideração do qual me não demoro, mesmo porque o illustre deputado por elle passou ligeiramente.

Passarei ao dado estatistico da area do paiz.

Foi tambem n'este ponto s. exa. contraproducente, pois que tendo a área do districto de Vizeu 469:384 hectares, e a do distrato de Braga 270:406, claro é que baseada a repartição n'este dado, a Vizeu caberia maior contingente do que a Braga, em quanto que em virtude da repartição adoptada, a Braga cabe 398,8 por hectare, e a Vizeu 195,1 réis.

Referiu-se s. exa. tambem ao numero dos recenseados. Relativamente a este dado direi só que tem o districto de Vizeu 29:054 recenseados e o de Braga 20:678.

Quanto ao dado estatistico fornecido paio valor das producções nos dois districtos, sendo proximamente igual, visto que o valor das producções do districto de Braga é de 2.852:846$800 réis, e o de Vizeu 2,824:472$240 réis, não se póde inferir d'este dado estatistico, argumento contra a tão notoria desigualdade da repartição. Em reforço considerou s. exa. que, sendo feracissimos os terrenos no districto de Braga, ahi seria a producção superior á de Vizeu.

Tendo se o illustre deputado encarregado de rebater o seu proprio argumento, considerando que se eram feracissimos os terrenos no primeiro districto, o segundo tinha tambem terrenos de uma feracidade notavel, e que de mais a mais; se dava a compensação de ser mais larga a área do districto de Vizeu do que a de Braga, posso eu dispensar-me de faze-lo.

Occupou-se s. exa. por fim do numero das escolas existentes nos dois districtos. Principio por declarar que ignorava que o numero das escolas fosse dado que, entre nós pelo menos, podesse servir para a distribuição do imposto predial. Mas aceito esto dado, porque prova em meu favor; e na verdade, pois que tendo o districto de Vizeu 187 escolas de varões e 12 para femeas, tem o de Braga no para varões e 8 para femeas. Fundo-me na estatistica de 1804, unica official que temos publicada.

Aproveitando-me da occasião, e não vendo presente o illustre ministro do reino, chamo toda a attenção dos seus illustres collegas que estão presentes, para este importantissimo ramo do serviço publico, relativamente ao districto de Braga. Na comparação das estatisticas dá-se com uma notavel desproporção na distribuição das escolas de ensino primario, na qual distribuição o districto de Braga tem até hoje sido injustamente desattendido, injustificadamente descurado. Torno isto evidente dizendo que no districto de Braga ha por 100:000 almas 35 escolas de varões e apenas 2 de femeas! Similhante desproporção não se dá com ne-

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nhum dos districtos, mormente com relação ao numero de escolas para o sexo feminino.

Sr. presidente, persuado-me de que, ao passo que demonstrei que a illustre commissão de fazenda se não tinha servido de nenhum dos dados estatisticos conhecidos para a operação da repartição do contigente predial, apresentei as desigualdades que tornam inadmissivel a repartição proposta e adoptada, de modo a não poder sobre ella recaír nenhum augmento do imposto.

Verei agora se posso descobrir qual essa desconhecida base, qual esse incognito divisor, que tão condemnaveis resultados deu.

Já disse que em virtude do decreto dictatorial e regulamentar de 31 de dezembro de 1852, se estabeleceu em 1853 o systema da contribuição de repartição, pondo-se de lado, não sem que precedessem repetidas tentativas e reiterados ataques, o reprovado systema da quota ou lançamento. Condemnado então o systema do lançamento, porque, assentando em desigualissimas e nas mais vexatorias bases, não era susceptivel de aperfeiçoamento, preferiu-se, e com as melhores rasões, o systema da repartição.

Mas, sr. presidente, se por um lado se calcava o absurdo, por outro se levantava maior absurdo á altura da verdade.

Estabeleceu se o systema de repartição nas bases injustissimas e condemnadas do systema que se abolia. Condemnava-se por falso um systema e nas falsas bases d'este se fundava o outro contrario que se inaugurava. Para estranhar é; mas muito mais para estranhar e censurar é o estarmos hoje em iguaes circumstancias, e collocados no mesmo terreno, apesar das reiteradas promessas, durante largo curso de tempo, de se tratar com o cuidado e seriedade que importa, d'este assumpto grave, a respeito do qual têem por vezes sido geraes as queixas, e unisonas as reclamações do paiz inteiro (apoiados).

Disse que nos reconhecidos vicios do systema de lançamento se baseou o contrario systema de repartição, e para comprovar a asserção me basta adduzir os considerandos com que uma illustre commissão de fazenda, na sessão legislativa de 1853, fundava o seu parecer favoravel á proposta do governo de então para a contribuição predial de repartição. Considerava aquella illustre commissão que, competindo ás côrtes, em virtude da disposição do § 8.º do artigo 14.° da carta, a distribuição da contribuição directa; que a fixação annual da contribuição predial era um preceito o decreto com força de lei de 31 de dezembro de 1852; e que, finalmente (peço a v. exa. e á camara que notem este ultimo considerando) a somma fixada no artigo 1.º do projecto, era igual ao termo medio dos impostos extinctos pelo predito decreto nos tres ultimos annos de 1850, 1851 e 1852, e que as quantias repartidas pelos districtos do reino equivaliam á medida das quantias que elles satisfizeram durante os tres referidos annos, com relação aos mencionados impostos.

Foi, pois, o lançamento das contribuições extinctas a base da repartição do contingente de 1854. A base do novo systema foi o mappa do rendimento medio de todas as contribuições extinctas pelo artigo 1.° do decreto de dezembro de 1854, segundo os lançamentos dos annos de 1850, 1851 e 1852...

Vozes: - Deu a hora.

O Orador: - Sr. presidente, ouço dizer que deu a hora; termino, pois, pedindo a v. exa. que me reserve a palavra para a sessão seguinte.

Vozes: - Muito bem, muito bem.

O sr. Paes Villas Boas (continuando): - Sr. presidente, pedi hontem a v. exa. que me reservasse para hoje a palavra, a fim de concluir as considerações que na sessão de hontem comecei a expor, impugnando o projecto em discussão, o qual tende a augmentar com 20 por cento a contribuição predial, e justificando o adiamento que proponho até que se definam de um modo racional, e se organisem o mais equitativamente possivel as bases da repartição da contribuição predial directa.

Principiando por reconhecer a necessidade do augmento do imposto em geral, considerei que em vista da evidente injustiça e provadas desigualdades resultantes da repartição do imposto predial, segundo as bases actualmente adoptadas, bases essas reconhecidamente defeituosas e falsas, não poderia assentar-se n'ellas o augmento do imposto que se propunha sem aggravar-se de modo insupportavel para grande numero de contribuintes a desigualdade que os affecta, e que portanto entendia da maior conveniencia que se adiasse a discussão do projecto até que o governo apresentasse trabalhos, pelos quaes se podesse vir no conseguimento de bases, não absolutamente justas e inteiramente certas, que tanto não póde esperar-se, porque não é possivel, mas menos injustas, menos falsas e mais racionaes.

Quando hontem deu a hora começava a expor qual a base primordial da repartição do contingente, isto é, a base que adoptada tinha sido em 1853, quando se poz em execução o systema de repartição. Essa base foi, propriamente, o rendimento medio dos lançamentos de 1850, 1851 e 1852 pela seguinte fórma:

Districto de Braga

[Ver tabela na imagem]

Já hontem tive occasião de disser os motivos por que me reporto principalmente a Draga; escusado me é pois allega-los hoje.

Já vê v. exa. e a camara que, tendo-se distribuido a Braga em 1853, pelo systema de repartição que então se inaugurava, 80:994$956 réis, a rasão e a base foram as quotas que apresentei, tiradas do mappa do rendimento medio dos tributos que se extinguiam pela abolição do systema do lançamento.

Sr. presidente, que se tem feito e adiantado desde então para cá? Que adiantou o governo e a commissão com a proposta e parecer respectivo da contribuição ordinaria? Augmenar-8e progressivamente a decima predial, nada mais.

Que noa adianta a mesma illustre commissão no seu parecer ácerca do projecto que se discute? Que nos adiantou o governo, a citando este projecto do augmento dos 20 por cento?

Que dados, que bases foram as de que a commissão se valeu, a não serem essas falsas e já reconhecidamente defeituosas em 1853? Que nos deu a commissão ao cabo dos seus estudos, exames e aturado trabalho? Deu-nos simplesmente o que tinhamos.

Sou pois levado á concluso de que não foram outras as bases, não foram outros os dados estatisticos de que a commissão se valeu do que as quotas dos tributou extinctos em 1852 e 1853! Que o resultado dos seus trabalhos não foi outro do que aproveitar se da obra que encontrou feita (Apoiados.)

Que a commissão, que o governo de 1853, na impossibilidade de conseguirem na occasião, no momento dado, bases mais definidas, se socorressem das existentes então; seguindo mesmo o exemplo da França, desculpavel é, e justificavel mesmo poderia ser; mas que, depois do decurso de desenove annos, era 1869, com trabalhos preparados, com elementos estatisticos aproveitaveis, com matrizes confeccionadas, com o rendimento collectavel apreciavel, se não de um passo, se não offereça outro resultado a mais d'aquelle a que os estadistas de 1853 foram levados

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pela força das circumstancias, não me parece que possa facilmente justificar-se.

É força confessar que desde 1854, quer parlamentos, quer governos não têem feito mais do que fixar o quantum das contribuições, esquecendo se uns e outros de que, alem da fixação do quantitativo das contribuições, alem da fiscalisação do producto do imposto, lhe cumpre outra missão tanto, senão mais importante, e tal é o exercerem uma certa benefica influencia para os contribuintes, aligeirando lhes o peso do imposto, diligenciando por uma repartição menos vexatoria, injusta, desigual e gravosa. (Apoiados). Para sentir é que este grave assumpto não tenha merecido o cuidado e attenção que ha tanto tempo requer. E por tal modo se tem procrastinado a reforma das bases em que assenta a repartição da decima predial, que naturalmente commigo entra a duvida, de que venha governo que lhe vote de preferencia os seus cuidados e attenção. Oxalá! que me engane, e que cedo os actos do actual gabinete me mostrem o contrario.

Da maior gravidade é o assumpto, e não me canso de repeti-lo; um lado ha porque, deve ser encarado, e que cumpre não desattender. Alludo á repugnancia do contribuinte ao pagamento do imposto, repugnancia bem natural em certas classes, repugnancia essa que recrudescerá, que tomará proporções, á medida que um mesmo imposto, assentando em iniquas bases, for augmentado.

Muito convem que a isto se alteada com seriedade; é preciso que se alteada ao lado principal da questão, qual é a igualdade na repartição, para que se não arrisque n'um dado momento, não digo já o producto do imposto de um anno, mas o producto do imposto de muitos annos (apoiados).

Diz-se que tão apuradas são as circunstancias do thesouro, e tão urgente a necessidade, que não é possivel na conjunctura presente adiar-se a arrecadação do augmento do imposto predial. Devo dizer que o mal que nos afflige é antigo, tem fundas raizes, e que não me parece prudente, pelo muito que me arreceio dos effeitos dos remedios heroicos, debella-lo de um jacto. E de mais não se poderá o governo desde já considerar-se auctorisado para uma operação de credito em larga escala, destinada em parte á consolidação da divida fluctuante, e n'outra parte a prover ao deficit do corrente anno? Não estará porventura dentro de poucos dias o governo auctorisado tambem a arrecadar e dispor do producto das contribuições ordinarias e extraordinarias já votadas? Que absoluta necessidade ha pois que obrigue a votar desde já o augmento do imposto predial? Que aperto de circumstancias, que necessidade de dinheiro tão urgente ha que justifique esta falta de preoccupação da injustiça e desigualdade, que tanto se vae aggravar?!

O nobre ministro da fazenda, faltando da indispensabilidade de augmentar a decima predial, ponderou que o augmento era tanto mais justo quanto era certo que a riqueza da propriedade tinha crescido.

Eu não contesto que a riqueza da propriedade, que os valores dos predios tenham subido, sendo aliás certo que na actualidade soffrem depreciação em virtude da crise monetaria, mas devo reflectir que não tem crescida na mesma proporção o rendimento liquido dos proprietarios, ou o rendimento collectavel dos predios, no qual rendimento é que tem logar a incidencia do imposto. Certo é que a propriedade teve notavel incremento devido em parte ao desenvolvimento das vias de communicação, e em parte aos capitães vindos do Brazil; mas é justo attender-se a que esta classe de contribuintes é a que desde mais remoto tempo soffre estes continuos e successivos augmentos de imposto, e que finalmente se a riqueza do predio tem augmentado se o valor collectavel tem crescido, crescida e augmentada tem sido tambem a decima predial (apoiados). Isto mesmo accusa o mappa a que ultimamente me referi; ao districto de Braga cabia em 1854, 80:994$956 réis, emquanto que hoje lhe cabe o contingente de 107:861$000 réis, não contando os addicionaes que eu calculo na importancia de 54:235$000 réis.

Sr. presidente, é preciso tambem ter-se em vista as difficuldades com que actualmente luta a agricultura; é justo attender se a que não são inteiramente prosperas as circumstancias em que ella hoje se encontra. A falta de numerario, determinada principalmente pela crise monetaria do Brazil, affecta-a sensivelmente...

O sr. Pereira de Miranda: - Tambem as outras classes sentem essa falta.

O Orador: - Convenho n'isso; mas, quanto a mim, a pequena propriedade é que hoje maior falta sente. E demais é justo attender-se tambem a que o preço dos productos da terra não têem crescido na mesmo, proporção dos preços de outros productos de que o proprietario carece, mesmo para o desenvolvimento da sua lavoura; preciso tambem é que se tenha em conta a carestia dos generos e a escassez de algumas colheitas, mormente das colheitas do vinho, que em muito apuradas circumstancias têem collocado grande numero de proprietarios (apoiados).

Posso assegurar a v. exa. e á camara, pois que muito de mão a mão tenho tratado com contribuintes da ultima camada d'esta classe, posso assegurar, digo, que alguns d'esses se têem encontrado por vezes em graves embaraços para satisfazerem a sua quota da decima. Vezes ha que soffrem privações para paga-la, e assim com justificado receio ficarei, sendo o projecto approvado, de que com o augmento da contribuição sobre tão desiguaes bases se transformem em proletarios muitos cidadãos uteis ao paiz.

Sr. presidente, uma outra ordem de rasões tinha a expor para justificar a minha proposta de adiamento; mas, tendo n'esta parte sido prevenido pelo illustre deputado e meu amigo, que abriu o presente debate, limitar-me-hei, n'este ponto, a poucas palavras. O meu collega com a sua questão previa pediu ao illustre ministro da fazenda explicita e categorica resposta ácerca do proposito em que s. exa. estava sobre a proposta a respeito da contribuição de renda. Se folguei de ouvir a questão previa, confesso que não me agradou a resposta do nobre ministro; s. exa., longe de dar uma resposta categorica, contentou-se de nos ar a expressão dos seus desejos. Mas isto não basta, é preciso mais, e o illustre ministro não póde deixar de ter já as suas idéas definidas n'este ponto.

É justo que o sacrificio chegue a todos; é preciso que todas as classes contribuam para as urgencias do thesouro na justa proporção. É injustificavel que, ao passo que se trata de sobrecarregar certas classes de contribuintes, se deixem saborear-se outras, as mais abastadas, as dos favorecidos da fortuna, nas delicias de um privilegio iniquo! (Apoiados.) Pois grava-se a pequena propriedade, e deixam-se isentos de imposto os dividendos dos bancos e companhias, agora nestes apertos de conjunctura, n'estes apuros do thesouro?! Isto, que não me parece justificavel, apresento tambem como plausivel rasão para justificar o adiamento.

Diz a commissão no seu parecer (leu).

São exactamente essas regras que eu desejára saber.

Diz ainda... (leu.)

Rejeitou a commissão esta tão aceitavel innovação dos gremios na distribuição do contingente pelos contribuintes, que se continha no projecto primitivo. A commissão não queria senão o que estava feito, para innovações, ainda as mais bem indicadas, não se inclina ella (apoiados). Lamento sinceramente que se pozesse de parte o que havia de melhor no projecto (apoiados). Lamento que fosse desprezado este, como disse, tão aceitavel e tão indicado alvitre, que, a meu ver, seria um meio de attenuar as desigualdades, não na repartição entre os districtos, não na repartição da quota districtal pelos concelhos, mas entre os contribuintes de uma mesma parochia (apoiados). Eu que, sendo rejeitado o additamento que proponho, rejeitarei o projecto quer na generalidade, quer na especialidade, não tenho por isso

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que occupar-me em desenvolver as idéas que acabo de enunciar; e, se assim não fosse, eu não só defenderia a instituição dos gremios para a contribuição extraordinaria, como os proporia para a ordinaria, tanto se me afigura bom o alvitre (apoiados).

(Interrupção que se não percebeu.)

Sr. presidente, devo declarar, o que ha mais tempo devera ter feito, que com as desalinhadas considerações que tenho expendido, em defeza do adiamento, não me tem estado no animo, nem está, o irrogar leve censura ás intenções da illustre commissão de fazenda, cujos membros muito respeito e prêzo; nem s. exas. me farão tal injustiça.

Voltando ao objecto principal, de que tenho estado apartado, reclamo que se ensaie o systema de repartição, porque, é preciso dizer-se, que similhante systema não está em pratica. Nós o que temos é o absurdo, levantado á altura do systema assentado em bases encontradas e hybridas, pois que ao passo que a repartição do contingente pelos districtos se funda nas bases do reprovado systema de quota, reparte-se o contingente dos concelhos pela base da matriz! Portanto me parece extemporaneo e infundado quanto se diz, e argumenta contra o systema de repartição, que ainda não foi levado inteiramente á pratica.

Não peço, pois, sé, não direi a reforma, mas o aperfeiçoamento das matrizes, com as quaes se tem despendido já avultada somma, creio que de 300:000$000 réis, para, por assim dizer, de nada servirem; peço mais, reclamo a execução racional d'este systema, não só porque o reputo preferivel ao do lançamento prescripto pelo decreto de 31 de dezembro de 1852, mas porque o tenho como preceptivo da lei fundamental do estado.

(Áparte que se não ouviu.)

Declaro que, impugnando o projecto, não tenho o intuito de por minha parte crear embaraços ao governo. Entro sinceramente n'esta discussão, mantendo a mesma opinião, e sustentando as mesmas idéas que ha quinze dias tinha. Creio, sr. presidente, que com as rasões que tenho produzido, deixo sufficientemente fundamentada a minha moção. Todavia, seguindo outra ordem de idéas, adduzirei algumas reflexões mais, que á falta de mitras justificariam bastantemente o adiamento.

Poderia, sr. presidente, tambem propor que este projecto fosse adiado para depois da discussão do orçamento. Não é, certamente, regular fixar-se o quantitativo da receita do estado, sem previa fixação do da despeza (apoiados). Não é, sr. presidente, curial nem consentaneo ás boas regras de administração, nem da economia, este singular e errado systema de fixar a receita do estado, sem precedencia de uma analyse detida, de um exame escrupuloso das verbas da despeza (apoiados).

E na occasião, sobretudo, quando se trata de pedir novos sacrificios ao contribuinte, da maxima conveniencia seria que antes de se lhes exigir o augmento da receita, nos mostrassemos nós severos no exame e na discussão das verbas da despeza, evidenciando-lhes d'este modo que o que se lhes pedia era e que não podia deixar de lhe ser pedido (apoiados). Não quero com isto reconhecer que com a discussão do orçamento, que com o exame ainda o mais severo das verbas da despeza, levassemos as reducções a ponto de nos darem em resultado o equilibrio da receita com a despeza; sei bem que não, e grave erro será presumi-lo.

Sr. presidente, tão reconhecido e necessario é o augmento do imposto, como reconhecida a necessidade, e imperioso o dever de se proseguir no encetado caminho da economia. Bem conheço que só da combinação d'estes dois elementos poderá resultar o unico meio de extinguir se o deficit que assustadoras proporções toma, e de tornarmos as nossas finanças regulares, condição unica para melhorarmos as condições do nosso credito, injustamente ultrajado nas praças estrangeiras. E nós precisâmos de credito hoje, como precisaremos sempre, como todas as nações por regulares que lhes sejam as finanças, por abundantes que lhes sejam as fontes de receita precisam, porque as crises financeiras, determinadas umas vezes por erros, erros de intelligencia, dos homens que á testa dos negocios publicos são menos felizes n'um ou n'outro ponto da sua gerencia, são no maior numero de casos determinadas pela força de circumstancias, á qual nenhum paiz póde ser superior, e nas conjuncturas difficeis que ellas criam, só no credito se encontra o unico meio de as debellar.

Mas não basta só a reducção na despeza, e o augmento da receita; não basta a combinação d'estas forças, é preciso um terceiro elemento, qual é a mais proficua applicação da receita, e o desenvolvimento das fontes de riqueza. E n'este ponto declaro-me filiado na escola d'aquelles que têem os melhoramentos de viação, como medida economica de maior alcance. Desenvolver por todos os meios a viação publica, é crear fontes de riqueza, e por isso de receita. Estabelecer a mais facil communicaç3o entre os povos, é prestar impulso forte ao desenvolvimento da agricultura e do commercio, e ao aperfeiçoamento das industrias e das artes. Declaro-me sectario d'essa escola, cujos principios proclamo, e d'ella quero tudo, menos o delirio nos melhoramentos da viação (apoiados).

Quero-os em harmonia com as forças tributarias do paiz, e pelo modo que mais lhe aproveitem. Não quero o delirio dos melhoramentos, assim como, proclamando o principio da economia, reclamando-a por minha vez em nome da conservação e do futuro d'este paiz, eu que declaro que muito longe estamos da ultima palavra sobre reducção da despeza publica, que declaro a indispensabilidade de se proseguir sem pausa nem descanso no caminho nobremente encetado, declaro tambem que não quero o delirio das economias! (Apoiados.)

Digo, e repito, que só da combinação dos tres elementos: da reducção da despeza, do augmento de receita, e da mais acertada e proficua applicação dos redditos publicos, poderá resultar o equilibrio ela receita com a despeza, a extincção do deficit, e o levantamento do nosso credito. Mas isto não se obterá senão por meio de uma reforma tão larga no seu alcance, como meditada nas suas disposições; pois que só de uma larga reforma, obedecendo a um pensamento uniforme em todos os ministerios, provirá a melhor organisação dos serviços, d'esta a implicação d'aquelles, e d'esta a mais larga e real reducção da despeza publica. Trate-se pois d'essa reforma ha tanto tempo reclamada, e que n'ella predomine a tão preconizada descentralisação, tanto administrativa como financeira, tanto de encargos como de faculdades; haja descentralisação de encargos, mas a cada encargo descentralizado que corresponda a uma diminuição correspondente na quota do contribuinte para as despezas geraes do estado. É assim que comprehendo a descentralisação dos encargos, tão necessaria, repito, como a das faculdades, cuja descontralisação desenvolvendo a vida local, aligeirará o governo do peso de deveres, que estorvando a marcha regular dos negocios publicos, lhes não consentem votar-se com o tempo e reflexão precisas á solução dos graves negocios do estado.

Sr. presidente, pedindo a v. exa. e á camara que me desculpem esta divagação, a que por ultimo me entreguei, e na qual não prosigo, deixando incompleta a exposição das minhas idéas, porque conheço que tenho abusado da benevolencia da camara, vou terminar, mas não sem que deixe definida a minha posição politica n'esta casa.

Sr. presidente, estando no uso da palavra, poucos dias depois da formação do actual ministerio, entendo que não devo terminar sem definir a minha posição politica n'esta casa; e para sem rodeios, e em resumida fórma faze-lo, vou dar a rasão do meu voto sobre a moção apresentada pelo illustre deputado, o sr. Queiroz.

(Interrupção.)

Eu não votei, ou para melhor dizer, abstive-me de votar; parecerá a v. exa. e á camara estranha similhante de-

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claração. Abstive-me de votar, digo; e tendo a abstenção de voto, como voto dado, é essa que tratarei de motivar, definindo a minha posição politica para com o gabinete.

Sei que as abstenções de voto não são permittidas pelo regimento, nem creio que auctorisadas pelas praxes da camara. Será singular a declaração, seria singular o procedimento, mas não é propriamente uma novidade, pois que encontro o uso admittido por parlamentos de paizes tanto, senão mais adiantados do que o nosso, nos quaes similhantes abstenções de voto são permittidas e usadas. E, n'esta epocha em que tantos e tantos usos se importam do estrangeiro, seja licito que por minha parte importe algum tambem.

Estava na sala, e fazia até parte da mesa, quando o illustre deputado, a que alludi, apresentou a sua moção de ordem, cujo sentido claramente explicou. Assisti á discussão, tendo até no dia anterior pedido tambem a palavra.

Teve-se em vista com a moção consultar a camara sobre o programam apresentado pelo governo, programma esse na verdade aceitavel, porque era excellente a não puder ser mais: largas e bem combinadas reformas; moralidade na administração; a mais escrupulosa e severa economia na applicação dos redditos publicos; e, emfim, um bem entendido desenvolvimento das fontes da riqueza publica. Eu que inteiramente aceitava o programma, não poderá deixar de me deliberar no propósito de o approvar. Mas, julgada sufficiente a discussão, quando v. exa. se dispunha a pôr a moção á votação, levanta-se um dos meus illustres collegas, que muito respeito pelas luzes do seu espirito, e pela força da sua palavra, e declara de modo categorico, que a approvação da moção envolveria um voto de confiança politica ao gabinete, e não podia eu deixar de reputar no illustre deputado auctoridade bastante para avançar a declaração.

Assim pois, eu que não podia rasoavelmente dar um voto de censura ao governo, a proposito de um programma que julgava excellente, nem me tinha por habilitado para testemunhar-lhe uma confiança prévia; eu que à priori não podia confiar nem desconfiar, não podia conscienciosamente approvar nem rejeitar a moção, e porque as abstenções de voto não são permittidas, entendi que devia retirar-me da sala. Nem eu podia declarar-me mais ministerial do que o illustre ministro da marinha, que mui explicitamente declarou - que nem o ministerio com dignidade podia pedir, e esperar mais da camara, nem esta, sem quebra de dignidade propria, lhe poderia conceder mais do que - espectativa para os seus actos.

Na espectativa pois me declaro eu, reservando os meus votos de censura ou louvor para os actos do gabinete, e esperando que, sendo os actos a traducção fiel do programma apresentado, serei dentro em pouco tempo abertamente ministerial. Espero pois; e fico-me fazendo sinceros votos porque o governo leve fielmente á pratica e seu programma, que tanto vale fazar votos pelo bem e prosperidade do paiz.

Terminando, sr. presidente, tenho que pedir a v. exa. e á camara me queiram relevar de lhes ter empregado tão mal o tempo.

Tenho dito.

Vozes: - Muito bem, muito bem.

1:205 - IMPRENSA NACIONAL - 1869

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