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CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO

SESSÃO N.° 4

EM 3 DE JUNHO DE 1908

Presidencia do Exmo. Sr. Conselheiro Antonio de Azevedo Castello Branco

Secretarios - os Dignos Pares

Luiz de Mello Bandeira Coelho
Marquez de Sousa Holstein

Leitura e approvação da acta. - Expediente.- O Sr. Ministro da Guerra envia para a mesa uma proposta que tende a permittir que o Digno Par Almeida Garrett possa accumular as funcções legislativas com a de lente da Universidade. Approvada. - O Digno Par Luciano Monteiro dirige perguntas ao Governo acêrca do programma do concurso para a adjudicação do Theatro de S. Carlos. Responde a S. Exa. o Sr. Presidente do Conselho. - O Digno Par João Arroyo rectifica a maneira por que foram interpretadas umas palavras suas, em uma das sessões anteriores, referentes á reforma d'esta Camara e á marinha de guerra.- O Digno Par Francisco José Machado reporta-se a assuntos que contendem com a administração do Hospital das Caldas da Rainha.

Ordem do dia: (Continuação da discussão do projecto de resposta ao Discurso da Coroa). - Conclue o seu discurso, começado na sessão anterior, o Digno Par José de Azevedo. Segue-se-lhe o Digno Par José de Alpoim, que fica com a palavra reservada para a sessão seguinte. - Encerra-se a sessão e designa-se a immediata bem como a respectiva ordem do dia.

Pelas 2 horas e 30 minutos da tarde o Sr. Presidente abriu a sessão.

Feita a chamada verificou-se estarem presentes 22 Dignos Pares.

Lida a acta da sessão antecedente, foi approvada sem reclamação.

Mencionou-se o seguinte expediente:

Officio do Ministerio da Fazenda, sobre um pedido de documentos feito pelo Digno Par Sr. Teixeira de Sousa.

Para a secretaria.

Mensagem da Camara dos Senhores Deputados enviando a proposição de lei referente á fixação da força armada.

Para a commissão de guerra.

O Sr. Ministro da Guerra (Sebastião Telles): - Sr. Presidente : mando para a mesa, por parte do Sr. Presidente do Conselho e Ministro do Reino, a seguinte proposta:

O Governo pede autorização á Camara dos Dignos Pares do Reino para que o Digno Par Conselheiro Gonçalo Xavier de Almeida Garrett, lente da faculdade de mathematica da Universidade de Coimbra, possa, querendo, exercer as funcções legislativas alternativamente com as do ensino da Universidade.

Secretaria de Estado dos Negocios do Reino, em 30 de maio de 1908. = Francisco Joaquim Ferreira do Amaral.

Leu-se na mesa, e foi approvada a proposta.

O Sr. Luciano Monteiro: - Mando para a mesa os pareceres dá commissão de verificação de poderes sobre os requerimentos em que os Srs. Conde de Castro e Saccheti Taveiro pedem que lhes seja permittido entrar nesta Camara por direito hereditario.

Peço a V. Exa. a fineza de communicar ao Sr. Presidente do Conselho e Ministro do Reino que desejo o comparecimento de S. Exa., na proximo sessão, para
pedir-lhe uns esclarecimentos relativos a algumas clausulas do programma do concurso para a adjudicação do Theatro de S. Carlos.

Os pareceres foram a imprimir.

(Entrou na sala o Sr. Presidente do Conselho}.

O Sr. Presidente: -(Dirigindo se ao Sr. Presidente do Conselho).

O Digno Par Sr. Luciano Monteiro acabava de pedir, quando V. Exa. entrou na sala, que desejava a sua presença aqui, para tratar de assuntos respeitantes á adjudicação do Theatro de S. Carlos. Não posso dar agora a palavra ao Digno Par Luciano Monteiro porque, antes de S. Exa., estão inscritos os Dignos Pares Arroyo e Francisco José Machado.

O Sr. João Arroyo: - Se V. Exa. concordar, eu cedo a palavra ao Sr. Luciano Monteiro, pedindo que o meu nome continue a figurar na lista da inscrição.

O Sr. Presidente: - Mas tambem está inscrito o Sr. Francisco José Machado.

O Sr. Francisco José Machado: - Eu tambem cedo a palavra ao Sr. Luciano Monteiro, pedindo a V. Exa. para me inscrever depois do Sr. Arroyo.

O Sr. Luciano Monteiro: -Agradeço aos Dignos Pares Arroyo e Francisco Machado a amabilidade com que me distinguiram. O assunto que desejo tratar é relativamente insignificante.

Desejo que o Sr. Presidente do Conselho me preste alguns esclarecimentos, não estranhando que m'os não possa fornecer neste momento.

V. Exa. sabe que foi publicado no Diario do Governo o programma do concurso para a adjudicação do Theatro de S. Carlos, em que se inscrevem varias clausulas, ás quaes os concorrentes teem de sujeitar-se.

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Uma d'ellas diz:

A adjudicação será feita ao concorrente que por menor preço, dentro da quantia de 9:000$000 réis, se comprometter a realizar a installação electrica segundo as condições da clausula 14.ª do programma e suas alineas a) e b).

E a clausula 14.ª e suas alineas a) e b) estabelecem o seguinte:

A aquecer á sua custa a sala do theatro em noite de recita, e a fazei- igualmente á sua custa uma nova installação para a illuminação electrica, tanto da sala como do palco e dependencias, apropriada á corrente fornecida pelas Companhias Reunidas Gaz e Electricidade.

a) A importancia d'esta installação, que deve comprehender todos os projectores, jogos de luz, lampadas, reflectores, etc., necessarios aos effeitos de luz exigidos nas operas de grande espectaculo, ficará exclusivamente a cargo da empresa, devendo as facturas das respectivas despesas ser verificadas pelo Ministerio das Obras Publicas.

b) A differença entre a quantia de réis 9:000$000 e o preço offerecido na sua proposta pelo adjudicatario, como representativo do valor da installação electrica, será applicada em outras bemfeitorias do theatro, indicadas pelo Governo.

Confesso, a V. Exa. que me causou grande estranheza a forma de indicar as obras para a installação da luz electrica na sala do theatro. Isto é: seguiu-se o caminho inverso ao que é de uso adoptar em concursos d'esta natureza, Nos concursos anteriores, a praxe estabelecida era fixar o minimo, e deixar que os concorrentes indicassem o maximo.

Aquelle que offerecia maior quantia era o preferido.

Neste programma, ao contrario de outros, fixa-se logo a quantia de £) contos de réis, como maximo da licitação.

A alinea a refere-se aos materiaes necessarios para a installação da luz electrica.

Pergunto ao Sr. Ministro do Reino qual a razão d'esta alinea, desde que as installações são feitas por conta do candidato, não despendendo o Estado nem um real.

A referida clausula d i 'i que as facturas do material para a installação hão de ser verificadas pelo Ministerio das Obras Publicas.

Se a obra fosse feita pelo Estado, comprehendia-se esta exigencia, mas, sendo a empresa quem faz a obra, não sei por que se ordena que as facturas fiquem sujeitas á inspecção do Ministerio das Obras Publicas, Neste contrato diz-se: (Leu).

Depois, sendo a unica base da licitação o menor preço em que os concorrentes valorizem a installação electrica, tambem eu desejaria saber qual o criterio a adoptar para a preferencia no caso da desvalorisação ser lavada ao menor valor possivel, a zero réis por exemplo.

(S. Exa. não reviu).

O Sr. Presidente do Conselho de Ministros e Ministro do Reino (Ferreira do Amaral): - Tenho a dizer ao Digno Par que se estabelece que as facturas das obras a fazer na installação electrica do Theatro de S. Carlos sejam sujeitas á verificação do Ministerio das Obras Publicas, para se criar 'mais um elemento de apreciação, alem da inspecção directa do material, e para se avaliar se as obras da installação são feitas nos devidos termos. Essa clausula em nada prejudica os concorrentes, e para nada influe na razão da adjudicação.

Quanto ao estabelecer-se que o concorrente valorize as obras a fazer, no caso indicado pelo Digno Par. de dois ou mais concorrentes valorizarem as obras em zero réis, direi que esses. concorrentes ficarão em circunstancias iguaes ás que se dariam se as valorizassem em 2, 3 ou 4 contos de réis.

Se, alem d'esses que valorizem as obras em zero, houver outro que as faça, e ainda offereça 500$000 ou 600$000 réis, será preferido, porque d'este modo apresentará uma quantidade negativa com vantagens sobre os outros concorrentes.

(S. Exa. não reviu).

O Sr. Luciano Monteiro: - Peço a palavra.

O Sr. Presidente: - Não posso dar a palavra a V. Exa., não só porque iria preterir outros oradores, como porque não está pela Camara resolvido que este assunto prefira qualquer outro.

V. Exa. falará em outra occasião, excepto se os oradores inscritos lhe deixarem tempo para falar.

O Sr. João Arroyo: - Pedi a palavra para fazer uma rectificação a algumas referencias que foram feitas aqui por dois Dignos Pares a uma parte de um discurso que eu proferi nesta casa do Parlamento.

É claro que não se trata neste momento de discutir; trata-se unicamente de fazer uma rectificação.

O Sr. Julio de Vilhena e, mais tarde, o Sr. Teixeira de Sousa deram ás minhas palavras uma interpretação, que se não harmoniza com a opinião que emitti.

Referem-se essas observações dos Dignos Pares ás opiniões que expendi sobre a reforma da Camara dos Pares e acêrca da marinha de guerra.

Sr. Presidente: os dois oradores viram na minha referencia á Camara dos Pares a opinião de que esta Camara não deve ser reformada.

É certo, Sr. Presidente, que eu, usando da palavra na sessão de terça feira, me referi a este assunto, mas não opinei a favor nem contra a reforma da Camara.

O que disse foi completamente distincto: referi-me á Camara dos Pares, fazendo nessa occasião a citação de umas palavras proferidas pelo Digno Par Sr. Machado.

Este Digno Par, analysando uma parte de um discurso anterior, em que eu tinha definido a situação dos partidos, pretendeu atacar as minhas considerações com o argumento de que esta Camara, não fazendo por assim dizer guerra á politica portuguesa, dirigida por esses grandes partidos, não necessita de reforma.

Eu disse, nessa occasião, ao Digno Par que não era necessario reformar a Camara para que qualquer Ministerio que não fizesse parte dos partidos rotativos com ella pudesse viver e sustentar-se.

As minhas considerações de então não se referiam á conveniencia ou inconveniencia de reformar a Camara; referiam-se unicamente a sustentar que não era preciso reformar a Camara dos Pares para qualquer Ministerio poder viver com ella.

A minha opinião sobre a reforma da Camara dos Pares, e sobre o ponto de se saber se deve ou não ser reformada, opportunamente a indicarei.

Quanto á questão da marinha e da guerra tambem preciso fazer uma simples rectificação.

Por forma alguma sustentei a necessidade de haver em Portugal uma grande marinha de guerra. O que disse foi simplesmente aquillo que vou repetir agora: que, fora da esquadrilha de torpedeiros, naturalmente indispensavel á defesa do porto, a marinha de guerra tinha de ser, em primeiro logar, uma marinha de serviço colonial, apropriada ás condições do ultramar, sem deixar de satisfazer, em sua modestia, aquillo que é indispensavel á sua instrucção e á nossa representação.

Foi o que eu disse.

(S. Exa. não reviu.)

O Sr. Francisco José Machado: - Sr. Presidente: pedi a palavra para dar conta ao Sr. Presidente do Conselho de um grande vandalismo que se tem praticado e parece estar resolvido continuar se, nas dependencias da administração do Hospital Real das Caldas da Rainha.

Sr. Presidente: quem tem visitado as Caldas da Rainha conheceu duas formidaveis arvores seculares, frondosas, copadas a que davam magnifica sombra, que existiam no Largo da

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Copa, á entrada do parque e da galeria denominada Ceu de Vidro.

Eram dois lindissimos exemplares, que davam uma grande majestade áquelle lindissimo largo.

Estas duas arvores eram muito copadas e gigantescas, produzindo magnifica sombra, e dando aspecto de grandeza áquelle grandioso largo.

Pois uma d'essas formosissimas arvores foi arrancada no dia 22 do mês passado, pela madrugada, com o pretexto de que tinha uns ramos na parte superior que estavam secos. Essa formosissima arvore morreu! Foi assassinada!

Depois da arvore derrubada viu se que tinha o tronco perfeitamente são e apenas uma pequena fenda ou buracos nelle; nada mais.

Esta arvore tinha, pouco mais ou menos, duzentos annos, e dizem os entendidos que estava ainda para poder conservar-se por mais cem annos.

A desolação que se apoderou do coração dos habitantes das Caldas, que viram este vandalismo, foi extraordinaria!

É necessario pôr cobro a esteje outros factos que se estão praticando na administração do Hospital Real das Caldas da Rainha.

Antes de proseguir, tenho a declarar a V. Exa. e á camara que nenhuma má vontade me anima contra o cavalheiro que está dirigindo áquelle estabelecimento, para se não suppor que tenho qualquer intuito reservado ao fazer estas referencias.

Mais algumas arvoras teem sido derrubadas na mata do hospital; consta-me que cento e tantas, para se fazer carvão, e esta que foi derrubada agora, que tanto, embellezava áquelle largo, porque dava uma sombra bastante agradavel, tambem vae ter o mesmo fim, segundo as informações que de lá me mandaram.

Sr. Presidente: o que é notavel é que tudo isto se faz á sombra de uma disposição do regulamento que foi publicado ha tempo, que transformou a disposição do antigo regulamento, que dizia que o director, alem do seu ordenado, teria um certo numero de litros de azeite, e poderia disfrutar as frutas e hortaliças ali produzidas.

Esta disposição foi substituida por outra em que diz que o director, alem do seu ordenado, pode gozar das regalias do hospital e estas regalias abrangem tudo.

Cento e tantas arvores foram derrubadas para fazer carvão, para que o director tivesse mais esta regalia!

Tenho aqui cartas de pessoas das Caldas, á disposição dos meus illustres collegas que as quiserem ler, que manifestam a sua consternação por este facto.

O corte recente da arvore foi como que o fallecimento de uma pessoa muito querida d'aquella terra, tal foi o desgosto que se apoderou d'aquella população.

Vou ler á Camara alguns periodos d'essas cartas, para se ficar sabendo qual a impressão desagradabilissima que ali produziu.

É necessario e indispensavel que o Sr. Presidente do Conselho e Ministro do Reino olhe com attenção para o que se está praticando na administração do hospital das Caldas da Rainha, e S. Exa. veja que, alem do corte das arvores, mil outras irregularidade s ali se teem praticado, a que em outras sessões me tenho referido.

Basta referir a V. Exa. uma carta que me relata o seguinte facto:

Como os empregados do hospital teem direito, pelo regulamento, aos remedios gratuitos, fornecidos pela pharmacia do hospital, um d'estes annos, só em aguas mineraes e de mesa saiu da pharmacia do hospital um tal numero de garrafas no valor de 400$000 réis!

Está aqui, numa carta d'ali recebida, não invento.

Perguntar-me-hão V. Exas. por que, razão tomo tanto calor pelas Caldas da Rainha?

Eu tive a honra de ser eleito Deputado pela primeira vez por aquella região, pelo circulo constituido pelos tres concelhos das Caldas, Óbidos e Peniche. Fui por lá eleito muitas outras vezes, onde se travaram lutas ingentes, e eu não costumo ser ingrato para ninguem quando me dispensam algum favor e muito menos para um concelho por onde pela primeira vez eu tive a honra de vir ao Parlamento.

Mas fique bem assente que eu não tenho má vontade contra o director, nem desejo que elle soffra absolutamente nada; é muito boa pessoa, mas não sabe administrar os dinheiros do Estado: deve-se-lhe impor uma efficaz fiscalização e uma grande responsabilidade.

Está nomeada uma commissão de pessoas competentissimas para estudar os melhoramentos a introduzir na administração d'aquelle importante estabelecimento: não sei seja foi entregue o relatorio da commissão, de que eu pedi a copia. Só depois de me ser enviada poderei tomar conhecimento das providencias propostas.

Sr. Presidente: o Hospital das Caldas da Rainha e suas dependencias é um dos primeiros estabelecimentos do Estado naquelle genero, onde as primeiras familias da capital e de outras terras ali vão, não só para fazerem uso das aguas, como para gozarem a amenidade d'aquelle clima.

É um estabelecimento que faz dispendio ao Estado, e, por consequencia, é triste e grave que muita gente pelas circunstancias que apontei se afaste d'aquella estancia verdadeiramente encantadora.

Em abono da reprovação que taes actos estão suscitando nas Caldas, bastará ler á Camara trechos de algumas cartas que, acêrca do ultimo vandalismo ali praticado pela administração do Hospital, me foram enviadas.

Diz uma d'essas cartas:

IIImo. e Exmo. Sr. - É tal o vandalismo que se tem feito na mata, são taes as infamias que ali se praticam, que estou certo que em poucos dias o arvoredo é desbastado para fazer carvão ou talvez para cultivar o terreno para semear batatas. Durante o inverno foram derrotadas muitas arvores para fazer carvão, que foi consumido pelo director. Os caldenses estão indignados e com razão.

O vandalismo que se fez ás 4 horas da manhã, cortando a arvore secular que havia no Largo da Copa, só um louco praticaria. Foi um crime que devia ser punido. Ha uma censura geral. É extraordinario que se corte uma arvore cheia de vida. Todo o tronco estava completamente são; havia apenas alguns ramos secos.

A administração interna do hospital é um chaos.

Passo em claro algumas linhas da carta, por decencia.
..................................................

Continua a carta:

Mas felizmente os caldenses já censuram, porque os escandalos são tantos e tão claros que revoltam toda a gente. Fiscalização não existe. Materiaes teem-se vendido quasi de graça Ninguem fiscaliza.

Dormentes, madeiras antigas e materiaes de construcção tudo tem desapparecido.

Depois do director ter a approvação do orçamento tem transformado parte do hospital, de onde retira grande quantidade de vigamentos, que estão ao abandono no antigo matadouro, trabalhos feitos no tempo de D. Rodrigo Berquó.

O parque está transformado em Perna de Pau.

Os gastos são por todos os lados.

Emfim, a administração é pessima, ninguem trata senão de explorar.

Outra carta diz entre varias cousas o seguinte :

Hoje, 22, fomos surprehendidos pelo triste espectaculo de ver cortado o ulmeiro secular que estava no Largo da Copa e ali fazia tão boa sombra.

Parece que o director, tendo assistido á deslocação de uma casca seca que ha dias se destacou da arvore, consultou um silvicultor, que lhe aconselhou o corte.

O tronco estava são e podia durar mais de 100 annos.

Toda a gente das Caldas está indignada com semelhante vandalismo.
...................................

Que fatalidade pesa sobre esta terra!

O freixo que está defronte tambem vae ser cortado.

Chegou aqui uma familia em automovel, e, passando pela arvore derrotada, ficou tão horrorizada de a ver abatida que disse que, se tal soubesse, não passaria por ali.

É bom que se torne responsavel quem

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mandou praticar tal monstruosidade. Que vandalismo! O triste espectaculo que estou vendo faz-me o effeito da morte de uma pessoa das minhas relações.

Ainda outra carta, que diz o seguinte :

O correspondente do Seculo mandou dizer que o ulmeiro foi cortado por ordem do director das obras publicas e que estava ameaçando ruina e por isso perigava a segurança do publico.

Tudo isto é redondamente falso; nem o director das obras publicas interveio, nem o ulmeiro estava podre, como toda a gente das Caldas viu.

Apenas havia alguns braços, pequenos, em mau estado. A arvore, na sua grandiosa majestade de 200 annos de idade, podia viver ainda mais de um seculo.

Creia que é esta a verdade que toda a gente affirma menos os corypheus.

Sr. Presidente: é preciso fazer uma declaração á Camara.

Nenhuma má vontade me move contra o cavalheiro que está dirigindo aquelle estabelecimento e apenas me move o reconhecimento á povoação que pertence ao circulo que primeiramente representei em Côrtes, ao primeiro circulo que me elegeu Deputado.

O actual director do Hospital é muito boa pessoa, mas tem pouco feitio para administrar o que é dos outros e, principalmente, o que é do Estado. S. Exa. goza de faculdades taes, que não ha em Portugal outra entidade semelhante.

Nenhum Ministro tem faculdades tão amplas, visto que em todos os Ministerios existem corporações technicas especiaes que, em determinados assuntos da sua competencia, teem de ser ouvidas pelos Srs. Ministros.

Assim no Ministerio das Obras Publicas ha o Conselho Superior do Commercio e Industria, o Conselho Superior de Obras Publicas e Minas e o Conselho Superior de Agricultura; no Ministerio do Reino ha a Commissão de Explosivos, o Conselho Superior de Instrucção Publica, o Conselho Superior de Saude Publica e Hygiene e o Conselho Superior de Beneficencia; no Ministerio da Justiça ha o Conselho Superior Judiciario, o Conselho do Notariado, o Conselho Superior do Ministerio Publico e o Conselho Disciplinar da Magistratura Judicial; no da marinha ha a Junta Consultiva do Ultramar, etc., etc.

Só a administração do Hospital Real das Caldas da Rainha ise exerce sem a menor fiscalização directa, tendo plenos poderes para dispor dás verbas orçamentaes consoante lhe apraza. Isto não pode continuar.

Depois de approvado o orçamento ninguem vae fiscalizar, ninguem vae ver como são applicados os dinheiros. É um estabelecimento cujo director tem faculdades como ninguem as tem iguaes no país. Depois do orçamento approvado pelo Ministerio do Reino não ha mais fiscalização.

A nenhum dos Srs. Ministros acontece isto. Os diversos Ministros estão sujeitos a muitas fiscalizações.

Ora os Ministros não podem resolver sem a consulta d'estas corporações.

Só o director do Hospital das Caldas da Rainha é que tem tão amplas faculdades. Mas se elle soubesse usar d'essas attribuições ainda estava bem!

Termino instando pela attenção do Sr. Presidente do Conselho e Ministro do Reino para todos estes vandalismos, e enviando para a mesa os seguintes requerimentos:

Requeiro que, pela Administração do Hospital das Caldas da Bainha, me seja enviada copia de toda a correspondencia trocada com o Ministerio do Reino, ou com qualquer autoridade, e que se refira ao enorme vandalismo que se praticou cortando a magnifica e secular arvore que existia no Largo da Copa e que tanto embellezava aquelle formoso largo. = Francisco José Machado.

Requeiro que, pela Administração do Hospital Real das Caldas da Rainha, me seja enviada nota:

1.° Da importancia dos medicamentos que, durante os annos da actual administração, teem sido fornecidos gratuitamente para casa do director;

2.° Da importancia das garrafas de aguas medicinaes e de mesa que gratuitamente teem sido fornecidas da mesma pharmacia, indicando as pessoas para quem foram essas garrafas de diversas aguas;

3.° De qual a receita que produziram as maçagens feitas no hospital pelo maçagista contratado em todos os annos desde que este serviço se installou;

4.° De qual a receita que produziu o carvão das arvores cortadas na mata e quantas foram as arvores cortadas. = Francisco José Machado.

O Sr. Presidente: - Vaé passar-se á ordem do dia.

ORDEM DO DIA

Continuação da discussão do projecto de resposta ao Discurso da Coroa

O Sr. José de Azevedo: - Deve reconhecer que, desde alguns dias, a Camara e elle, orador, estão sob o influxo de uma má estrella.

O orador por ter resolvido tomar a palavra sobre a resposta ao Discurso da Coroa, não vendo quanto a opinião publica está desinteressada d'esse assunto; a Camara porque, não tendo o orador tido occasião de terminar o seu discurso na sessão anterior, vê-se de novo condemnada a enfastiar-se com as considerações que o orador vae fazer a respeito da moção que teve a honra de apresentar.

A Camara não estará muito tempo sob o pesadelo da sua palavra e terá depois occasião de ouvir a palavra vibrante, eloquente e sempre interessante do Digno Par Sr. Alpoim.

Invoca esta espectativa para que se lhe conceda aquella tolerancia que é devida, pelo menos, aos importunos.

Estava na sessão passada tratando do problema politico português, no seu triplice aspecto social, economico e colonial, quando teve de interromper as suas considerações. Disse então que a instrucção era um dos meios mais efficazes para resolver o problema politico e tinha um fim principal, que era preparar os individuos para serem cidadãos uteis á sociedade e a si proprios, mas entre nós, pelo seu valor educativo, a instrucção é peor do que se não existisse, porque é má.

A instrucção primaria não tem produzido aquella somma de effeitos que havia a esperar da organização que tem.

Existem mais de 5:300 escolas, o que corresponde a uma escola por 900 habitantes, o que é superior ao que se dá em outras nações, onde se obteem resultados mais seguros e certos.

O beneficio de uma escola reside na acção paternal, instructiva e moralizadora do professor, e traduz-se na aprendizagem do ler e escrever e na acquisição de preceitos moraes e instrucção civica que prepare as crianças para a vida.

Se isto se não produz entre nós é porque a escola em Portugal não satisfaz ao fim para que se fazem os sacrificios do Estado.

A primeira falta está na casa da escola. A segunda no professor, que, á parte honrosissimas excepções, não tem o espirito de sacerdocio ou abnegação, não tem aquelle amor pelo bem e pelas crianças indispensavel para lhes formar o espirito. Em terceiro logar falta tambem uma lei que obrigue os pães a mandarem os filhos á escola e o Estado a assistir ás deficiencias d'ella.

Nestas circunstancias, todos os sacrificios do Estado são perfeitamente perdidos e completamente inutilizados. . A escola primaria é tambem a preparação indispensavel para o ensino secundario que é o unico que forma o cidadão.

As ultimas das assembleias em que se deve tratar dos problemas da instrucção são as politicas. Esses problemas devem ser tratados em assembleias especiaes, ás quaes incumbe tratar d'elles: são os conselhos superiores de instrucção publica.

Poderá esta questão, que é vital, ser resolvida por meio de leis?

Não crê. As leis, desgraçadamente, são insufficientes para resolver os problemas sociaes.

Já ha 2:000 annos, Horacio, que era um alevantado espirito, sendo embora um epicurista, dizia que era necessario reformar primeiro os costumes e depois as leis.

Não é só na ordem moral que o país

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soffre. O país está atravessando uma grande crise economica, caracterizada especialmente por um relativo depauperamento das suas forças productoras.

Não vae fazer uma longa dissertação sobre as causas que determinaram essa crise, mas irá ao ponto determinante das causas que a originaram.

Portugal é um país pobre, porque não produz, porque não vende e porque está desprotegido pela lei e com magra iniciativa particular.

Porá de parte a Inglaterra, a França e a Allemanha, indo buscar pequenas nações que teem, como Portugal, soffrido crises iguaes.

Todos conhecem o valor maravilhoso d'essa força chamada associação, quer na ordem politica, quer na economica.

Na ordem politica, criaram as associações a greve, pondo-se assim ao serviço das suas revindicações. Na ordem economica, quem não conhece o que são as caixas economicas, os bancos ruruaes, os syndicatos agricolas, as diversas formas de que a agricultura lança mão para viver?

No norte da Europa havia e existe ainda hoje uma nação que ha poucos annos era pobre, com um terreno ingrato e vetado á usura.

Essa nação é a Dinamarca.

A Dinamarca desenvolveu as caixas economicas, os bancos ruraes e populares e criou uma admiravel legislação economica.

Pois a Dinamarca, esse país pobre, de terreno ingrato e victimado pela usura, empobrecido pela falta de producção e pela pouca concorrencia, viu alvorecer uma epoca de prosperidade.

Quem não conhece os beneficios que da associação teem tirado a Italia, a Suissa e a França?

Quem desconhece os beneficios que para a industria dos lacticinios, por exemplo, em França, trouxe o syndicato das leitarias?

Pergunta: procura alguem resolver em Portugal o problema politico e economico por meio das associações, como ellas são comprehendidas entre nós e estão expressas nas leis?

Não. Não se resolve assim o problema economico; e, se algum dia houver Ministro do, fomento, da agricultura e da industria, terá de armar-se de um arsenal de leis e dos meios que são absolutamente indispensaveis para determinar o estabelecimento das associações, sem as quaes nada se conseguirá sob tal ponto de vista.

Falará agora do problema colonial.

Portugal é uma nação colonial, a terceira da Europa segundo a categoria.

Mas Portugal, pelo seu desnorteamento e absurdo de ideias em materia colonial, pelas leis que vigoram nas colonias e pelo absurdo da sua administração, merece ser classificado como ultima das nações da Europa colonizadora.

Dá para tudo o nosso regime colonial, que é ao sabor do Ministro e segundo os caprichos dos respectivos governadores.

A solução do problema colonial não é facil, attenta a indole da raça e attenta a pobreza do Thesouro.

O português, como os demais latinos, é um povo singularmente colonizador, mas não tem, nem na sua iniciativa nem no seu estimulo, a natural independencia das forças intrinsecas que dão aos anglo-saxões o caracter de se fixarem nas colonias, constituindo, por assim dizer, um Estado.

Entretanto, Portugal formou o Brasil, tem colonizado, bem ou mal, a Africa, e, se não serve somente pela sua indole e raça para caracterizar o espirito aventureiro, tem a alta capacidade de soffrer e de resistir aos climas e situações viciosas através os tempos.

O que predomina nas colonias ? A acção do poder central.

Entretanto o Estado não pode prescindir de exercer acção muito directa sobre ellas. Porquê?

Porque ellas não teem condições de se governarem por' si, visto que a população fixa das colonias é representada pelos funccionarios publicos, que são individuos sem liberdade para se dedicarem á agricultura ou ao commercio.

Dadas as condições da população fixa das colonias, o que seria a administração economica d'ellas entregue ao capricho dos funccionarios?

Seria ruina maior da que já hoje existe.

Ao problema colonial está ligado o da marinha, porquanto as colonias precisam de ter os necessarios elementos de civilização e protecção ao seu commercio.

Não podem existir colonias sem marinha colonial.

Quer isto dizer que devemos ter uma marinha de guerra?

Não, senhor. Uma marinha de guerra é hoje um grande luxo e um pesadelo para as nações que a manteem.

Comprehende-se que a Inglaterra, depois de Cromwell, começasse a organizar fortemente a sua marinha.

Comprehende-se que a Allemanha, nação militarista por excellencia, tambem reorganizasse a sua marinha.

Comprehende-se que a França fizesse e faça o mesmo, porque tal pode fazer quem é rico.

Mas que assim pretenda fazer uma nação como Portugal, constitue um sonho doentio que merece um grande e collossal hospital de Rilhafolles.

O que Portugal precisa é ter uma marinha colonial que represente uma protecção aos interesses da patria nas possessões da Africa e da India.

O resto seria ridiculo, porque Portugal não pode nem sequer ter um couraçado de dimensões grandes, visto não o poder sustentar.

Vae entear agora propriamente na discussão do projecto de resposta ao Discurso da Coroa e referir-se a uma frase que lhe merece allusão especial.

Disse El-Rei, no seu discurso, que folgava por ver que eram boas e cor-diaes as relações de Portugal com o estrangeiro.

Esta frase, ou é profundamente banal, ou tem um alto significado.

Quer dizer tal frase que são corteses as nossas relações com as outras potencias?

Sendo assim, está de acordo.

Mas quererá dizer essa frase que nas relações internacionaes não exista nenhuma causa que possa determinar má disposição do estrangeiro para comnosco?

Se assim é, tal frase representa uma desastrada falsidade.

Effectivamente Portugal não está em guerra com nação alguma da Europa, mas está, segundo elle, orador, pensa, em paz incerta com algumas nações da Europa.

Ora na natureza nada se perde; tudo se transforma.

E todos sabem que ha um principio em biologia que diz que não ha orgão sem funcção, e que, todas as vezes que a funcção deixa de realizar-se, o orgão atrofia-se e desapparece.

Este principio é rudimentar; succede na natureza, mas succede tambem nas sociedades, nas quaes, quando uma funcção deixa de exercer-se, o orgão perde o seu valor.

Portugal não tem diplomacia porque não tem politica externa.

Todos devem estar lembrados d'aquelle descredito contra todos os homens publicos, que foi espalhado pela Europa inteira. (Apoiados).

São magros os recursos da diplomacia portuguesa. Ninguem é obrigado, na posição que occupa, a imprimir movimento lógico a uma imprensa que se desnorteia, ou por interesses, ou por erros de principios.

Mas a verdade é que a diplomacia portuguesa nada fez para evitar ou mudar a orientação do que se disse lá fora sobre Portugal.

Não faz censuras a ninguem, mas a verdade é que se permitte como nosso representante numa potencia um homem na idade em que começa a segunda meninice, aos 73 annos!

Falará agora de si proprio.

Não é um ambicioso politico. Nunca o foi. Se algumas vezes teve ambições, diluiu-as a tempo.

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6 ANNAES DA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO

Orientou sempre a sua vida pelo desejo, como cidadão, de não ser nocivo a ninguem e de poder cumprir honestamente o seu dever. (Apoiados).

Que não tem sido nocivo a ninguem, prova o o não se ter ninguem ainda julgado affrontado, pondo-se defronte d'elle, orador, discutindo direitos feridos. Nunca, pelo seu procedimento, foi accusado de prejudicar fosse quem fosse. Não merece, por isso, censura alguma. A esse ponto tem limitado as aspirações da sua vida.

Significa, porem, um tal procedimento que tenha tido uma existencia tranquilla e não eivada de difficuldades?

Não. Na luta pela vida tem sido assaltado pela calumnia, não por invejas, que a sua posição não permitte, mas por outras circunstancias.

Entretanto, graças á Divina Providencia, foi educado naquelle espirito philosophico que ensina que a maior força para destruir a calumnia é o desprezo, confrontando-se com a propria consciencia!

Em taes condições, pedindo ao Governo uma serie de providencias ou medidas, foi unicamente inspirado por um sentimento de patriotismo e amor, que lhe dá direito a ser respeitado. E, se depois de assim falar, a morte o surprehender, não lhe dando tempo a fazer testamento, roga simplesmente que no seu tumulo seja posta esta singela frase de Abéllard: "Logica me perdidit", o que os passageiros poderão traduzir assim: "Coitado, foi a tolice que o matou!".

Vozes: - Muito bem, muito bem..

(O discurso a que este extracto se refere será publicado na integra, e em appendice, quando S. Exa. tenha revisto as notas tachygraphicas).

O Sr. Presidente: - Estão inscritos para falar sobre o projecto os Dignos Pares Alpoim, e Condes de Arnoso e Bomfim.

Peço a V. Exas. que declarem se falam a favor ou contra.

O Sr. José de Alpoim: - Se eu disser que falo contra, V. Exa. dá-me a palavra immediatamente?

O Sr. Presidente: - Como não está presente o Digno Par Sr. Conde de Arnoso, pergunto ao Digno Par Conde de Bomfim se é contra ou a favor.

O Sr. Conde de Bomfim: - A favor.

O Sr. Presidente: - Tem então a palavra o Digno Par Alpoim.

O Sr. José de Alpoim: - "Falar para quê?. . . Lutar, de que serve?. . .

Os fados hão de cumprir-se!.. . Vêem-se no ceu sinaes que não falham!.. . Nas pessoas, como nas collectividades, passa ás vezes um vento de loucura, que é presago de morte . . . Para quê?... Se os homens quererá, e as Instituições querem tambem, porque despertar aquelles que tacteiam com o pé a beiça do abysmo, como somnam bulos, de olhos abertos e fixos que se obstinam em não ver?"

Foram estas as palavras com que abri o meu discurso, vae já passado mais de um anno, na resposta ao Discurso da Coroa.

"Nas pessoas, como nas collectividades, passa ás vezes um vento de loucura, que é presago de morte". Só lhe não sentia as lugubres rajadas quem tinha os ouvidos cerrados! A morte veio: as Instituições não resvalaram á sepultura sobre que se debruçavam, mas nella desappareceram para sempre, numa funesta tragedia de sangue, filhos da nossa terra.

Os meus agouros realizaram-se, porque a historia me dizia, e o espectaculo do país me ensinava, que um povo livre não podia governar-se pela maneira como já então se desenhava a acção politica da Coroa e dos seus Ministros.

Não se chegara ainda áquella febre intensa de desvario e paixão, áquella loucura de força e de arbitrio que passou sobre o país como um pesadelo tragico e mau.

Mas nesta Camara já haviam occorrido factos que faziam prever, pela sua violencia, os sinistros attentados politicos da ditadura. A semente estava lançada á terra. Progressistas e regeneradores liberaes, conchavados em nome da lei e da liberdade, já a haviam falseado.

A dissolução arbitraria das Côrtes, a recusa de inqueritos parlamentares, a defesa dos crimes policiaes de 4 de maio, a falsificação eleitoral dos desdobramentos, o acto desassisado da publicação das Cartas Régias e a recusa em deixá-las discutir, o palacianismo.. tão opposto á doutrina do glorioso e grande liberal que foi Gladstone, de que não devem permittir se em Côrtes questões parlamentares sobre a maneira como os Soberanos cumprem os seus deveres publicos, o caso estranho dos adeantamentos illegaes feitos á Casa Real, denunciados pelo Governo, que se recusou a trazer ao Parlamento as provas da sua denuncia, tudo isso soava já como um pregão de desgraça e como um dobre de finados.

Nos actos do Governo de então, gerado da concentração liberal, nascido da alliança esponsalicia de progressistas e regeneradores liberaes, já se achavam em germen os ataques á Constituição, os aggravos ao Thesouro Publico, a suppressão das garantias individuaes, essa ditadura violenta que teria como suprema coroa o decreto de 31 de janeiro mais cruel que a famosa lei de 22 de Prairiai, que foi o formidavel instrumento do Terror.

Por esta lei, um tribunal odioso, mas legalmente constituido, julgava, sem advogados, sem testemunhas; mas era um tribunal, votado e criado por uma assembleia legislativa.

Aqui, ao Governo, arvorado por si proprio em tribunal, a sete homens que a elles mesmos se attribuiram funcções judiciaes, com desrespeito de todas as leis de justiça humana, com offensa de todos os principios de organização social e politica, eram outorgadas faculdades de dispor da liberdade, da honra, da vida dos cidadãos, que podiam ser atirados até á morte em longinquos e mortiferos climas, ou arremessados para uma existencia de miseria e de desterro em países estrangeiros.

Eis a obra final da ditadura, o ukase sinistro que parece elaborado nessa Russia autocratica e feroz, onde a politica é mais feia do que as congeladas aguas do Neva, mais cruel dós que as alcateias de lobos a uivar nos steppes nevados da Siberia - a terra do frio, da dor e da morte! Tudo isso já se desenrolava no horizonte.

"Nas pessoas, como nas collectividades, passa ás vezes um vento de loucura, que é presago de morte".

E é por isso que aqui em pleno Parlamento, perante o retrato do Rei, á face do país inteiro, eu soltei estes gritos de sinistra profecia e disse ao Chefe do Estado o que sentia e pensava, respondendo a El-Rei com áquella verdade e sinceridade que deve animar os membros de um poder do Estado, falando a outro poder do Estado.

Disse-o d'aqui, d'este mesmo logar, "... d'esta casa que é do povo e não salão do Paço, no meu modesto vestuario plebeu, que não é farda de cortesão, com o desassombro de membro do poder legislativo, que é um poder do Estado, como o moderador".

Não me arrependo, não!

Os tempos justificaram os meus conselhos, que irrompiam de um coração sincero e liberal, cada vez mais convencido de que só no respeito fanatico da lei, que é superior ao Throno, só no culto apaixonado da democracia, que hoje é a suprema dominadora dos povos, a Monarchia portuguesa pode encontrar a força e a robustez, que já não basta a dar-lhe o prestigio da tradição.

E essa mesma intemerata paixão democratica, esse sincero amor da verdade, que não atraiçoarei nunca, é que hoje me põe nos labios palavras de applauso e de fé, confiando plenamente nas palavras do novo Rei: buscarei ins-

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pirar-me no exemplo dos imperantes que são, para gloria da monarchia e bem das nações, lição viva na arte de reinar: e reinarei, protesto-o, como manda a lei.

A essas palavras respondeu a Camara que o Rei de Portugal justificará no decurso do seu reinado as esperanças que os iniciou d'elle teem despertado, e reinará sempre - consoante solemnem ente protestou - como manda a lei.

Sim! tem esta nobre Camara razão: grandes e douradas esperanças!

Não serei eu que traga agora, aqui, as palavras de esquerdos agouros, de tristeza melancholica, que soaram na minha voz, a ultima vez que aqui falou um Rei de Portugal.

Hoje, agora, essas palavras são de confiança e de fé.

Ha ainda no ar nuvens escuras: mas avistam-se largas clareiras de luz.

Na terra, conhecem-se os sinaes da tormenta, mas a tempestade, se traz comsigo o graniso e o raio, tambem entorna sobre a terra a chuva vivificante e criadora.

Respira-se! Sente-se que acabou um regimen.

Não é só um reinado novo que se inicia: floresce uma Dynastia nova.

E é preciso que assim seja, para o inteiro esquecimento do passado, e para uma reconciliação sincera entre a nação, que é a democracia portuguesa, e o Rei, que deve ser o primeiro, campeão da democracia e liberdade.

Tudo faz prever que outros tempos vieram!

O novo Rei tem por si - e é uma grande qualidade nos homens publicos, e o Rei é o primeiro homem publico do seu país - esse conjunto de condições que produzem a grande força de sympathia popular.

O seu nome evoca o mais glorioso passado da nossa historia. Dá-se, nelle, a coincidencia de haver sido chamado ao Throno por uma morte como o foi o Principe Venturoso.

Não lhe cabem responsabilidades do passado.

E, mais que tudo, nos seus actos de reinar, transparece uma tão profunda vontade de acertar, um tão sincero desejo de ser um Rei liberal e bom, que a Nação, cansada dos longos annos de uma politica sem norte e sem lei, precisa até de repousar na fé de que essa criança não será perdida, nem por maus Ministros nem por maus conselheiros, e comprehenderá o seu officio de reinar - officio que obriga todos os portugueses ao respeito e ao amor, se é 'exercido com a liberdade e com a lei, officio que os solta de todo o juramento e desprende de todo o affecto, que tem como justa e honrada represalia o direito de resistencia, levada ás derradeiras consequencias, se o Soberano atraiçoa a lei e converte uma monarchia livre em regimen de arbitrio e de força.

Não esqueço, não, o dia em que o Rei veio ao Parlamento, no luzimento de pompas e galas, que são compativeis com a ideia democratica.

Não ha país mais liberal que o da Inglaterra, e conserva as velhas pompas como uma tradição: e a tradição é, na alma popular, uma força poderosa.

Na Inglaterra, que um grande republicano, Ministro da França, Hanotaux, diz ser o país onde, por uma sabia evolução, mais se têm realizado a doutrina da grande e sagrada revolução, ainda hoje, no dia da coroação dos seus Monarchas, um cavalleiro vestido de uma armadura antiga, atira o guante de ferro ao meio da multidão, reptando aquelle que queira disputar o Throno ao Rei que vae ser coroado.

O novo Rei veio aqui com o luzimento das velhas monarchias, com a sua Côrte. Quem não ficou, porem, com a impressão, nitida e profunda, de que na sua alma havia o ardente anceio de governar com a lei, que é superior aos Reis, com a liberdade, que é a condição da vida dos Povos e dos Principes? As palavras do seu discurso, o carinho com que accentuou, e sublinhou com a voz algumas affirmações legalistas e liberaes, causaram profunda impressão. Mas não foram essas palavras, a commovida vibração da voz, que feriram a ternura da nossa alma peninsular.

Foi que atrás d'essas palavras havia alguma cousa! Havia a libertação de presos atirados por odio politico para a sombra dos ergástulos; havia o regresso ao país dos foragidos que ameaçava o arbitrio e o rancor; havia a restauração do direito de reunião e de imprensa; havia o resurgimento das garantias individuaes; havia uma amnistia que é um acto de generosidade e de clemencia; havia, pela carta de 5 de fevereiro, o desinteressado repudio de dinheiros illegalmente arrancados aos cofres do Estado ; havia, emfim, um sepultar do antigo regimen e um alvorecer de vida nova.

Quem pode duvidá-lo? A justiça deve-se aos humildes como aos poderosos, aos Principes como aos Povos. Os meses do reinado do actual Soberano são uma radiosa esperança. E ao Governo eu não recuso o meu fervoroso applauso pela obra de reparação e de justiça, de que é, legalmente, o responsavel!

Ah! Como seria admiravel que essa obra pudesse ter sido mais larga e mais profunda! Se os dissidentes tivessem o poder, não se contentariam com o que se fez. Iriam mais longe. Dariam immediatamente a amnistia á imprensa, a amnistia aos marinheiros, a amnistia

para todos os crimes politicos, praticados até 31 de janeiro, fossem de natureza civil ou militar.

A amnistia não abrangeu os crimes militares. Porquê? Em nome da disciplina? São elles de uma feição tão revoltante que não merecessem a indulgencia? Mas, com dor. pergunta-se, pode comparar-se com esses crimes o attentado, sem nome, de um Governo rasgar a Constituição, manchar a Coroa, esmagar os direitos individuaes, roubar as garantias populares, e querer, para esta obra, associar a si o exercito, que deve ser o supremo defensor da ordem, da lei e da liberdade, o exercito, que é a mais bella e gloriosa instituição nacional, porque é o proprio prolongamento da nação? Pois a amnistia abrangeu os Ministros que commetteram taes attentados: e não a ha para militares do exercito português !

Não teriam os dissidentes annullado somente alguns decretos ditatoriaes:
tê-los-hiam annullado todos, com excepção d'aquelles que já representassem um facto consummado, ou implicassem perturbações difficeis de sanar.

Fariam o contrario do que praticou o Governo; a regra geral seria a annullação de todos os decretos: a excepção seria a conservação, para o Parlamento os estudar e analysar, d'aquelles que não pudessem logo ser suspensos. Mas podia fazê-lo o Governo, tão larga e audazmente enfeudado ás imposições e conselhos dos dois partidos que lhe dominam a acção, que o prendem e paralysam?

Não serei eu quem venha discutir a organização do actual Gabinete, até porque ignoro como foi o processo da sua gestação. Estava em Salamanca, quando os jornaes eppanhoes noticiaram que se constituiria um Gabinete para succeder ao Sr. João Franco, com representação de todos os agrupamentos monarchicos, excluido o que fôra precipitado do poder, no intuito de acalmar os espiritos e de se iniciar uma politica ampla e generosa, rasgadamente liberal, extinguindo se resentimentos perante as desgraças publicas havendo ao menos uma pax Dei nos odios pessoaes e politicos que talvez fossem o incentivo para a concentração liberal, a causa da alliança de progressistas e franquistas - alliança que uniu os mais oppostos inimigos da politica portuguesa, que trouxe tantos males á liberdade e foi a causa fundamental da ditadura com todos os seus horrores.

Emfim, não falemos do passado, até porque na minha alma não cabe sentimento de represalias. . . O certo é que essa noticia chegou. Não a acreditei, porque conhecia infelizmente as paixões politicas da minha terra, e de

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longe adivinhava o que se tecia já, de enredos e conluios da velha politica á beira do ataude real. Não" imaginei que semelhante Ministerio pudesse ir por deante, não só por esses e ainda varios motivos, mas porque até quando a tentativa se fizesse os dissidentes não poderiam entrar nelle senão reclamando condições taes e immediatas de uma politica democratica, legalista, que seriam acceitas pela Coroa - a qual teem visto agora ser sensata e liberal- mas não o seriam por elementos preponderantes na politica portuguesa. As minhas previsões realizaram-se.

Dias depois soube que o Ministerio se organizara sob o influxo dos chefes dos dois partidos: o Sr. Ferreira do Amaral ainda ha dias declarou que entrara pelas mãos d'elles e pelas d'elles saíria.

O nobre almirante, cujo caracter liberal e alta dedicação monarchica, e cujo espirito de sacrificio me merecem rasgados. elogios, acceitou os Ministros que os partidos lhes deram, reservando-se dois amigos pessoaes.

Os chefes dos partidos não entraram no Governo., nem nelle entraram os antigos Ministros, leaders parlamentares na ultima sessão. Nada d'isto importou ou importa aos dissidentes. Haviam os dois partidos combatido a ditadura por maneira ao espirito publico ver nelles os defensores intemeratos dos direitos e regalias populares? Tinham elles lutado pela lei e pela liberdade de maneira a imprimir confiança em que as saberiam amar e defender? Não tinham sido elles que haviam commettido uma serie de erros, de onde derivara o Governo do Sr. João Franco? Não havia um d'elles, o progressista, esquecido os seus antagonismos enormes com o franquismo ao ponto d'este alcançar o poder, de onde derivaram tantos males e catastrophes, somente pela sua influencia e apoio? Acaso não se podendo formar um Ministerio com todos os partidos, não se deveria fazer um. fora de todos elles? Eram cousas que os dissidentes poderiam adduzir nos jornaes, ou allegar como motivo para uma intransigente hostilidade. Não cuidaram d'isto os dissidentes, nem agora o discutem.

Para elles não houve considerações officiaes nem extra-officiaes. Não se maguaram com isso: nem isso moveria a sua acção.

Disse-se que, durante semanas consecutivas, se travou rija peleja para a nomeação das autoridades administrativas, e que os dois partidos, mal soldado ainda o tumulo real, se occuparam sobretudo de retalhar o país em morgadios locaes para os seus apaniguados.

Uns districtos pertenciam a um partido, outros ao partido contrario; concelhos para uns e concelhos para outros ; e parece que não só houve brigas entre os partidos, mas ainda a dentro dos proprios agrupamentos.

Eram, a um tempo, os threnos funebres por alma do Rei morto e os primeiros hymnos triunfaes do reinado novo, para gloria e prosperidade do Senhor D. Manuel.

Foi verdade tudo que se contou? Que tristeza!

O certo é que o país, governamentalmente, pertence aos partidos. Pela sua mão entrou o Sr. Ferreira do Amaral; pela sua mão diz que quer sair. Elles é que aconselharam a Coroa. Não se dá um passo, portanto, sem que sejam ouvidos.

Se houvesse a menor duvida, ahi estão as declarações feitas, ha dias, no discurso em resposta ao Digno Par Sr. Baracho.

O Discurso da Coroa foi obra sua, ou inspiração sua, ou pelo menos da sua tolerancia.

Feito um Governo pelos partidos, elles decerto traduziram, no primeiro discurso do Rei ao Pais. os principios fundamentaes de uma politica de reinado novo - dynastia nova, melhor deve dizer-se! - que deve iniciar uma revolução pacifica nos nossos costumes politicos e contrapor-se á politica, reaccionaria e pessoal, dos ultimos dezoito annos, em que, pouco a pouco, foram abolidas as liberdades e introduzidas na legislação portuguesa as leis de excepção que a maculam e deshonram.

Que se annuncia no Discurso da Coroa com respeito áquellas liberdades fundamentaes, sem as quaes não ha um povo livre, uma nação regendo-se por si propria?

O que se promette no primeiro discurso de um novo Rei, e quando se quer um regimen novo, com respeito áquellas liberdades essenciaes, cujo desapparecimento é a morte de toda a instituição democratica?

Liberdade de imprensa, liberdade de associação, liberdade de reunião, liberdade da nação, traduzindo-se por um Parlamento livremente eleito sem candidatura official, Parlamento nacional, independente - eis as liberdades fundamentaes.

Não ha no Discurso da Coroa uma palavra sequer acêrca da liberdade de imprensa, de reunião, de associação!

Acêrca do Parlamento, promette-se uma nova lei eleitoral, sem se designar sequer as suas bases.

Já disse, no Discurso da Coroa da sessão anterior, a minha opinião acêrca do que ella devia ser para se acommodar ás circunstancias do país e ás necessidades inadiaveis de fazer uma lei que, pelo alargamento do suffragio, por uma remodelação no processo de organizar os recenseamentos eleitoraes, pela representação das classes operarias, pela restricção do direito do voto ás praças da policia militarmente organizada, com a eleição por lista uninominal, mas criação de pequenos circulos com minorias, e eleição por lista plurinominal nos concelhos que tiverem por sede uma cidade (capital de districto) com mais de 15:000 habitantes, pela restauração do subsidio aos Deputados, seja a restauração de um verdadeiro regime parlamentar. Mas uma lei eleitoral que não seja acompanhada do desenvolvimento da liberdade de escrever, de se associar, de se reunir, é uma ficção.

Para as eleições serem livres, os cidadãos hão de poder pensar livremente, associar-se para a defesa das suas ideias, reunir-se para a exposição das suas doutrinas e protestos contra os abusos do poder, fazer, pela imprensa, a propaganda que todos os publicistas modernos acham ser a fundamental caracteristica das democracias.

Que pensa o Governo? Pensa que se contenta com a legislação existente! Isto é, os dois partidos pensam assim.

Os dissidentes, não. Entendem que urge uma reforma radical na legislação existente, porque não ha liberdade politica sem a liberdade de reunião, de associação e de imprensa. A liberdade de reunião não existe entre nós. E necessaria participação previa á autoridade ; são exigidas formalidades restrictivas aos presidentes e promotores das reuniões; subsistem restricções policiaes; não podem fazer-se reuniões de empregados do Estado senão em condições de verdadeira dependencia do Governo e da autoridade: pesam taes imposições que as reuniões dos professores de instrucção primaria, os modestos funccionarios que teem a alta missão de educar a mocidade, não podem realizar-se senão em condições deprimentes e vergonhosas. Porque não ha de adoptar-se a lei da Republica Francesa, lei votada com applauso dos proprios reaccionarios e até para, na questão da separação da Igreja do Estado, servir os seus interesses? É nitida essa lei. Tem dois artigos. O primeiro é:

Artigo 1.° As reuniões publicas, qualquer que seja o seu objecto, podem realizar-se sem declaração previa e a toda a hora.

No artigo 2.° derogam-se todas as leis em contrario.

Não ha nada mais simples. E com respeito ao direito de associação? A lei actual, pela exigencia da approvação dos estatutos, por varias providencias de caracter policial, pelo direito de dissolução dado ao Governo, deixa de ser uma ideia liberal.

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É opposta a todos os principios democraticos. A doutrina dominante, hoje, é a subordinada á theoria das associações declaradas e não declaradas, adoptada na Italia, na Belgica, na França, depois do Ministerio Waldeck Rousseau, e na propria Allemanha, depois da promulgação do Codigo Civil.

Pelo artigo 2.° da lei francesa, as associações de pessoas poderão formar-se livremente, sem autorização ou declaração previa. Assim as associações politicas, as ligas, os clubs, não são coagidos á declaração previa; não indicam sedes, nem regime interno: são absolutamente livres na sua organização e funccionamento. É uma lei fundada sobre a distincção das associações declaradas e não declaradas que os dissidentes desejariam ver estabelecida em Portugal.

E com respeito á imprensa? Entendem os partidos que deve subsistir a actual lei? Comprehende-se isso por parte do partido progressista, que, ao contrario de todas as suas affirmações, e ferindo absolutamente todo o seu passado, a votou. Mas, os regeneradores? O Sr. Julio de Vilhena não fez aqui declarações terminantes? Não vim eu discutir essa lei, que foi um dos instrumentos da morte politica do Sr. João Franco. Presagiei-lh'o! Nb discurso em que a combati lembrei ao Sr. João Franco o episodio do imperador romano, alfageme do. seu officio, erguido ao imperio por uma conspiração de soldados pouco depois atravessado, do peito ás costas, pela adaga de um pretoriano, que, ao cravar-lhe a espada no corpo, bradou: a foste tu que a forjaste!"

O chefe regenerador liberal teve, na execução d'essa lei, nos verdadeiros comicios dos tribunaes, um dos mais temiveis instrumentos de demolição.

Viu-se forçado a um attentado, ainda maior que o seu erro: a suspendê-la pela violencia.

A lei de imprensa tem de ser revogada. Ha de adoptar-se como base o julgamento do jury e não o dos tribunaes correccionaes.

Não ha homem publico sinceramente liberal que não comprehenda que a liberdade da imprensa é, em todos os povos, a historia da liberdade. Mal começaram a apparecer nos países da Europa as pequenas machinas movidas a braços, as grosseiras letras de chumbo, os Principes despoticos e crueis moveram uma guerra de odio e sangue áquelles que as empregavam.

Quantos corpos humanos aspados e rodados, fracturados horrivelmente pelos instrumentos de tortura, esfarelados nas chammas da fogueira!

No nosso país vê-se que ao mais pequeno sinal de reacção politica a imprensa é immediatamente abafada por leis de repressão.

No reinado dos Senhores D. Pedro V e D. Luiz I, que tinham ao seu lado estadistas e soldados educados nas lutas civis e militares da liberdade, a imprensa foi livre.

Desenhou-se a doutrina do engrandecimento do poder real: e immediatamente, logo, surgiram leis de perseguição !

A imprensa pode ter causado grandes males pelos seus desvarios, mas a sua acção é tão generosa e larga, tem feito tantos beneficios á humanidade, que o prejuizo dos seus excessos desapparece deante dos jorros de luz e de justiça que tem derramado pelo mundo inteiro.

Li, ha dias, um adoravel artigo de Anatole France, sobre a imprensa. Nelle figuram dois homens publicos, um conservador, outro liberal, que discutem se a imprensa deve ou não ser livre.

Num dos lances do dialogo, o defensor da repressão lê ao seu interlocutor doze linhas de um jornal em que este era insultado na sua honra e pergunta-lhe se ellas não o indignavam e maguavam. E obteve esta bella e doce resposta:

"Essas doze linhas, que, consideradas só em si proprias, são de baixo preço, eu tenho-as como intangiveis e sagradas, pois, despojadas da ideia, ellas foram ao menos traçadas com os sinaes do pensamento, com os caracteres da imprensa, com estas santas e pequeninas letras de chumbo que levaram pelo mundo fora o direito e a razão".

Cumpre que nesta grande e superior comprehensão da imprensa se inspirem os homens publicos.

Os dissidentes, se fossem poder, realizariam a obra de dotar o país com a lei mais absolutamente democratica que pudesse fazer-se. E não comprehendem sequer como regeneradores e progressistas não pusessem na boca do Rei frases decisivas e terminantes a este respeito.

Para a imprensa ser grande, basta a sua acção moderna na questão dos tabacos, dos sanatorios da Madeira e na questão dos adesatamentos!

E, a proposito, vou occupar-me da questão dos adeantamentos, não só pelo meu direito de tratar um dos assuntos que mais se referem á causa publica, mas porque já o versei na ultima resposta ao Discurso da Coroa e importa accentuar bem a comparação entre o estado em que se achava essa questão e aquelle em que se encontra agora. Esse estado aggravou-se.

Não vou discutir a proposta de lei sobre os adeantamentos, porque isso seria longuissimo, e desconheço até as modificações que nella possam ser introduzidas pelas respectivas commissões parlamentares.

Apenas quero expor o que, se os dissidentes tivessem o poder, fariam numa questão tão grave, de natureza moral, politica, administrativa - até internacional, se com esta palavra se pode significar que nella se fixam os olhos do mundo inteiro.

E, antes de tudo. quero accentuar o que já affirmei na sessão anterior, sem desmentido algum: "Não acredito, não posso acreditar, que qualquer Governo progressista houvesse entregue á Casa Real, ou a qualquer membro da Familia Real, sommas illegalmente concedidas". O chefe progressista affirmou-o: devo crê-lo.

Não pode haver artificio em assuntos tão graves. No meu tempo de Ministro não se deram.

Ou então ao conhecimento do Conselho de Ministros nunca foi levado conhecimento d'esse facto. Eu não tive conhecimento. Limito-me a falar por mim. Nem o illustre chefe do Ministerio a que pertenci, nem o meu collega da Fazenda me falaram em tal assunto. Foi o que disse: repito-o agora. Cada vez me cresce mais essa minha convicção, até pela presença do Sr. Espregueira nos Conselhos da Coroa - e na pasta da Fazenda.

O Sr. Espregueira não pode ter dado á Casa Real, nem a nenhum membro da Familia Real, qualquer somma illegal. Deus nos livre que assim fosse! Aliás qual seria a sua situação, a sua honra de homem e de Ministro?

Pode julgar alguem, por mais inimigo que seja do Sr. Espregueira, que S. Exa. commetteria a acção, sem nome, de vir elle proprio liquidar os seus erros, de entrar agora para a pasta da Fazenda com o firme intento de se subtrahir a responsabilidades, organizando nesse sentido a sua proposta de lei?

A mais simples noção de probidade moral não consentiria semelhante attentado!

O Sr. Espregueira está ali porque não fez esses adeantamentos. Nem o chefe do partido progressista escolheria para a pasta da Fazenda, agora, um dos responsaveis nesse acto illegal, porque isso, provando-se tal responsabilidade, daria ao país a impressão de que o Sr. Espregueira foi ali collocado para abafar as suas responsabilidades e as do chefe do seu partido. A organização do Ministerio, pelo menos na pasta da Fazenda, pareceria uma emboscada. Não acredito que se pudesse levar tão longe o desrespeito pela dignidade pessoal, pelo brio politico, pelos direitos da Nação - e até pela lealdade ao Rei!

Ao Rei sim! Porque foi Elle quem deu a demonstração, cinco dias depois do seu advento ao Throno, de que é um

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Soberano constitucional e liberal, respeitador dos direitos da nação.

No dia 5 de fevereiro El-Rei dirigiu ao Sr. Presidente do Conselho uma carta em que repudiava o decreto dos adeantamentos e do aumento da lista civil, sendo seu "firme proposito que a fazenda da Casa Real não utilize recursos que não tenham sancção parlamentar".

O Chefe do Estado não praticou uma acção elevada somente sob o ponto de vista pessoal:. deu uma lição de respeito aos direitos do povo e ensinou o caminho aos Ministros e homens publicos.

Tudo que prenda com a fazenda da Casa Real, sujeito á acção parlamentar, para sua sancção, é preciso que o Parlamento conheça todo o assunto, sem o menor obstaculo, inteiramente.

Senão não é sancção de uma assembleia livre: é chancella de uma assembleia corrompida ou inferior.

Basta aquella carta do Chefe do Estado para ver como Elle se põe fora de interesses, sobranceiro a todas as considerações.

Nesta questão, a Coroa não tem hoje a menor responsabilidade. Nem pode ser-lhe nunca attribuida, qualquer que seja a solução.

A culpa, se a solução for má, é dos que a não liquidaram com honestidade, com clareza, como se vê que o Rei quer.

E o que entendem os dissidentes por uma liquidação assim?

Vou dizê-lo depois de haver feito uma breve historia da questão.

O Sr. João Franco declarou, na Camara dos Senhores Deputados, que havia adeantamentos illegaes á Casa Real.

Não especificou a origem d'esses adeantamentos, a qual, pelo menos officialmente, ainda hoje se ignora.

Levantada esta questão na Camara dos Pares, o Sr. Hintze Ribeiro e o José Luciano fizeram declarações que não tiveram um absoluto caracter de nitidez: a impressão no espirito publico foi de que se negava a existencia de adeantamentos illegaes á Casa Real ou á Familia Real.

O Sr. João Franco insistia na sua existencia, no Parlamento e nos seus jornaes, sem se resolver a dizer a verdade aos representantes do povo.

Eis a situação 'até o apparecimento do decreto ditatorial.

Na opinião do país - é preciso dizer toda a verdade - formou-se o convencimento de que existiam esses adeantamentos, e que elles haviam sido, nas mãos dos partidos, um processo de acquisição e exploração do poder: e, nas mãos do Sr. João Franco, um processo de destruir os partidos, deshonrando-os, e de, ao mesmo tempo, protelando a solução, conservar e, Coroa na sua dependencia.

Veio o decreto ditatorial de 30 de agosto ultimo, liquidando essa questão e aumentando a lista civil: a situação teve logo cambiantes.

O partido regenerador, que pela voz do Sr. Hintze convidara o Sr. João Franco a trazer tudo ao Parlamento, emmudeceu nas suas reuniões, e calou-se na sua, assembleia geral. O partido progressista, não. Rompeu violentissimo fogo contra a Coroa e contra o Governo do Sr. João Franco.

A commissão executiva do partido progressista, e a sua assembleia geral, votaram moções em que é reconhecida a necessidade de serem liquidadas com intervenção dos representantes do Parlamento as dividas da Fazenda Real ao Thesouro Publico, em vista dos documentos e investigações indispensaveis para esclarecerem o país e o Parlamento sobre tão graves assuntos. Esta alteração fundamental na attitude do partido progressista, tão contraria á sua primeira affirmação, este reconhecimento de dividas, isto é. adeantamentos, só podia explicar-se de duas maneiras : ou porque, da primeira vez, o seu chefe occultara a verdade, e não quero eu, fazer tão grave accusação, ou adquirira a certeza de que outros, e não podiam ser senão os regeneradores, os tinham feito. Não ha fugir d'este dilemma. A situação, depois do decreto ditatorial, era esta: os progressistas, atacando violentamente, affirmando os direitos do Parlamento, a necessidade de investigações e da publicação de documentos, - e os regeneradores, silenciosos! Esta foi a situação até o tragico dia 1 de fevereiro.

E os dissidentes? Esses, logo no apparecimento d'essa questão, affirmaram a necessidade de que ella fosse resolvida com a maior publicidade, ás claras, com os devidos inqueritos parlamentares. Disseram-no no Parlamento; disseram-no na imprensa. Em dois documentos, enviados aos chefes dos partidos, afirmara a absoluta necessidade de as dividas da Fazenda Real serem fixadas em Côrtes, procedendo-se aos inqueritos parlamentares, com representação de todos os agrupamentos politicos. Esses dois documentos são o parecer da commissão executiva do partido dissidente, enviadas aos chefes dos dois partidos - um, Indicando a maneira de se criar e organizar a resistencia contra a ditadura; o outro, fazendo à longa exposição das razões por que o partido dissidente, vendo improficua e esteril a acção do bloco, d'elle se apartava. Uma das razões d'esse rompimento era o silencio absoluto do partido regenerador, nas suas reuniões e moções, acêrca da sua attitude perante o decreto ditatorial dos adeantamentos, e ainda o não satisfazerem completamente as affirmações, nesse ponto, da moção progressista, que não permittia revogar immediatamente semelhante decreto e o queria entregar á acção do Parlamento.

Está pois o partido dissidente ligado a affirmações publicas, nas Côrtes, na imprensa, até amarrado a compromissos escritos, entregues aos chefes dos partidos. Não quer desligar-se d'elles. Não poderia, ainda que quisesse.
Veda-lh'o a sua honra.

Nestas condições, o que fariam os dissidentes, se fossem poder?

Organizariam um relatorio largo e circunstanciado sobre essa questão, dando conta ao Parlalmento, aos representantes do povo, do estado das relações financeiras entre a Casa Real e o Thesouro. Fá-lo-hiam acompanhar de todos os documentos.

Se o Parlamento exigisse quaesquer inqueritos, ou á administração da Casa Real ou ás secretarias de Estado, ou a ambas, não os recusaria. Pelo contrario. Pediria que nas commissões dos inqueritos entrassem representantes de todas as parcialidades! Não confundiria nunca a fixação da lista civil, que é uma obrigação constitucional, com a questão .dos adeantamentos, que é uma liquidação de dividas.

Pelo aumento da lista civil não pode pagar-se ao Estado, porque é o Estado a dar dinheiro para se pagar a si proprio.

A indole da lista civil não é nem pode ser essa.

O partido dissidente traria, pois, á Camara, para que ella resolvesse, esse assunto, tanto com respeito ás responsabilidades dos Governos, quaesquer que ellas fossem, como com respeito á responsabilidade do devedor, quaesquer que fossem as quantias. Não exerceria a menor influencia sobre a sua solução. A Camara resolveria soberanamente.

Eis como os, dissidentes tratariam esta questão. A luz do sol, como no Parlamento Inglês se tem tratado das dividas particulares do Rei e até do Principe de Galles. Com acatamento dos direitos dos representantes do povo, e até de conformidade com os desejos do nosso Soberano, que tão bem procedeu e que não pode ser responsavel pela solução que, aproveitando-se das suas influencias politicas, os partidos dêem a esta questão. A elles, e a mais ninguem, caberão as responsabilidades. A solução honrada, liberal, de prestigio para a Coroa, de respeito para o país, é a que os dissidentes adoptariam. Não pode ser outra. E um aggravo ao país, é um mau serviço á Coroa.

O Sr. Presidente: - Lembro ao Digno Par que faltam apenas dez minu-

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SESSÃO N.° 14 DE 3 DE JUNHO DE 1908 11

tos para se encerrar a sessão. Pergunto, pois, a S. Exa. se deseja terminar as suas considerações ou ficar com a palavra reservada, visto que S. Exa. pediu tambem a palavra para antes de se encerrar a sessão.

O Orador: - Ficarei com a palavra reservada, mesmo porque estou fatigadissimo. Passarei, portanto, a referir-me ao assunto que desejava versar antes de encerrada a sessão.

Tive conhecimento pelo illustre Deputado por Lamego, Sr. Ramalho, que viria a Lisboa uma commissão, a fim de tratar de obter uma solução para a crise do Douro. Sei tambem que o Sr. Conselheiro Teixeira de Sousa, a cujo talento e caracter presto a minha homenagem, e o Sr. José de Azevedo, para quem não posso deixar de ter palavras muito affectuosas, já haviam procurado os Srs. Ministros, como se combinara com alguns Pares e Deputados, a fim de lhes pedirem providencias para a dolorosa questão do Douro. Eu, pela minha parte, farei tudo quanto caiba nas minhas forças, quaesquer que sejam os sacrificios a vencer, para contribuir para a resolução da crise do Douro, que deve ser resolvida com a maior urgencia.

Vozes: - Muito bem.

(S. Exa. não reviu}.

O Sr. Presidente: - A proximo sessão é na sexta feira proximo com a mesma ordem do dia que vinha para hoje.

Está encerrada a sessão.

Eram 5 horas e 20 minutos.

Dignos Pares presentes na sessão , de 3 dê junho de 1908

Exmos. Srs.: Antonio de Azevedo Castello Branco; Eduardo de Serpa Pimentel; Marquês Barão de Alvito; Marqueses: de Avila e de Bolama, de Pombal, de Sousa Holstein; Condes: de Arnoso, do Bomfim, de Figueiro, de Lagoaça, de Martens Ferrão, de Monsaraz, de Paraty, de Sabugosa; Bispo de Beja; Visconde de Asseca; Alexandre Cabral, Pereira de Miranda, Teixeira de Sousa, Campos Henriques, Eduardo José Coelho, Fernando Larcher, Veiga Beirão, Dias Costa, Ferreira do Amaral, Francisco José Machado, Francisco José de Medeiros, Ressano Garcia, Jacintho Candido, D. João de Alarcão, João Arroyo, Teixeira de Vasconcellos, Gusmão, José de Azevedo, Moraes Sarmento, José Lobo do Amaral, José de Alpoim, Silveira Vianna, Julio de Vilhena, Luciano Monteiro, Poças Falcão, Bandeira Coelho e Sebastião Telles.

O Redactor,

JOÃO SABAIVA.

Rectificação

Em o n.° 10 dos Annaes, relativo á sessão de 16 de maio, pag. 6, col. 2.ª, lin. 4.ª, a rubrica deve ser assim rectificada: (Apoiados do Sr. Julio de Vilhena).

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