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CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO

SESSÃO N.° 17

EM 17 DE JUNHO DE 1908

Presidencia do Exmo. Sr. Conselheiro Antonio de Azevedo Castello Branco

Secretarios - os Dignos Pares

Luiz de Mello Bandeira Coelho
Marquez de Sousa Holstein

SUMMARIO.- Leitura e approvação da acta.- Expediente - O Digno Par Sr. Ayres de Ornellas justifica as suas faltas ás sessões, e aponta o motivo por que não acompanhou a deputação que foi entregar a Sua Majestade El-Rei a resposta ao Discurso da Coroa.- O Digno Par Sr. Conde de Arnoso allude ao regicidio, e pergunta ao Governo se não toma a iniciativa de mandar collocar na arcada do Terneiro do Faço uma lapide perpetuando os nomes das martyrizadas victimas. Responde ao Digno Par o Sr. Ministro da Justiça.- O Sr. Sebastião Baracho pede providencias que obstem a um abuso de que estão sendo victimas os passageiros dos tramways, do Porto, apresenta reclamações de vendedores de tabaco e dos operarios manipuladores de tabaco do Porto, ambas contra exorbitancias e injustiças da respectiva companhia, refere-se ao emprestimo de 500:000 libras ultimamente realizado, trata da previa censura theatral applicada a uma peça que se destina ao Theatro D. Amelia, reporta-se ao julgamento, effectuado no dia anterior, dos implicados numa explosão na Rua de Santo Antonio, á Estrella, critica o cadastro policial ordenado pelo Sr. Presidente do Conselho, e, por ultimo, pede que seja publicada quanto antes a syndicancia aos acontecimentos de 5 de abril ultimo. Responde ao Digno Par o Sr. Ministro da Justiça.- O Digno Par Sr. Francisco José Machado envia para a mesa uma representação de proprietarios de algumas pastelarias e confeitarias de Lisboa contra algumas disposições do decreto que estabeleceu o descanso semanal. A Camara delibera que a representação seja publicada nos Annaes da Camara.

Ordem do dia.- (Discussão da proposta do Digno Par Sr. Sebastião Baracho relativa a um inquerito ás Secretarias de Estado). Usam da palavra os Dignos Pares Sra. Julio de Vilhena e Sebastião Baracho.-O Sr. Ministro, da Justiça manda para a mesa uma proposta em que pede á Camara a necessaria licença para que o Digno Par Sr. Eduardo José Coelho possa accumular as funcções legislativas com as que desempenha no seu Ministerio. Esta proposta é approvada.- Encerra-se a sessão, e designa-se a immediata, bem como a respectiva ordem do dia.

Pelas 2 horas e 20 minutos da tarde, o Sr. Presidente abriu a sessão.

Feita a chamada, verificou-se estarem presentes 25 Dignos Pares.

Lida a acta da sessão antecedente, foi approvada sem reclamação.

Mencionou-se o seguinte expediente:

Mensagens da Camara dos Senhores Deputados enviando as proposições de lei que teem por fim:

Fixar o contingente de recrutas para o exercito e armada, guardas municipaes e fiscal para 1908;

Isentar de direitos de importação o material de guerra vindo do estrangeiro, para serviço do exercito;

Regular a promoção no corpo dos officiaes da administração militar e as condições de matricula do curso, a antiguidade dos segundos capitães de artilharia e a entrada nos quadros dos officiaes em disponibilidade;

Imprimir á custa do Estado as publicações da Liga Nacional de Instrucção, e isentando de franquia a correspondencia official da mesma Liga.

Foram enviadas ás commissões respectivas.

Officio do Ministerio da Marinha e Ultramar, sobre um pedido de documentos do Digno Par Sr. Sebastião Baracho.

Para a secretaria

Officio do Ministerio das Obras Publicas, sobre um pedido de documentos do Digno Par Sr. Francisco José Machado.

Para a secretaria.

Dois officios do Ministerio da Fazenda, sobre pedidos de documentos do Digno Par Sr. Antonio Teixeira de Sousa.

Para a secretaria.

Officio do Ministerio dos Negocios Estrangeiros, sobre um pedido de documentos do Digno Par Sr. Francisco José Machado.

Para a secretaria.

Officio do Mercado Central de Productos Agricolas, enviando 50 exemplares do relatorio sobre o commercio de vinhos no Reino Unido da Gran-Bretanha e Irlanda.

Para serem distribuidos.

Officio da Real Companhia Vinicola do Norte de Portugal, enviando 130 exemplares do opusculo sobre o commercio de vinhos nos Paises Baixos.

Para serem distribuidos.

Mensagem da Camara dos Senhores Deputados, enviando a proposição de lei que tem por fim conceder o bronze e autorizar a fundição da estatua de Manuel Fernandes Thomás.

Á commissão respectiva.

O Sr. Ayres de Ornellas: - Participo a V. Exa. que tenho sido obrigado a faltar a algumas sessões por motivo de serviço publico e pela mesma razão tambem não pude acompanhar a deputação nomeada por V. Exa. e encarregada de apresentar a Sua Majestade El-Rei a resposta ao Discurso da Coroa.

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2 ANNAES DA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO

O Sr. Conde de Arnoso: - A segunda vez que na presente legislatura tive a honra de falar verberei, como devia, o procedimento do Governo em frente dos vergonhosos acontecimentos que se seguiram ao criminoso e vil attentado do dia 1 de fevereiro.

Não lembrarei á Camara as lamentaveis respostas do Sr. Presidente do Conselho.

Não quero abusar de tão facil triunfo.

Prouvera a Deus, com sinceridade o digo, tivesse sido uma derrota, e a razão não estivesse toda do meu lado.

A Camara não pode ter esquecido que eu terminei nessa occasião as minhas succintas considerações pedindo ao Governo de Sua Majestade tomasse a iniciativa de mandar collocar na arcada do Terreiro do Paço, onde o barbaro attentado se commetteu, uma lapide perpetuando os nomes das martyrizadas victimas.

É tempo de saber se o Governo quer tomar essa sagrada e inadiavel iniciativa.

Não querendo - em nome talvez da chamada acalmação - organizar-se-ha uma commissão, que encarregará o nosso mais celebrado esculptor de conceber e executar essa singela memoria. Depois, bem entendido, pedir-se-ha licença ao Governo para a collocar. Não pode pensar-se que possa haver Governo que não defira tão piedoso pedido.

Mais uma vez solemnemente declaro (parece nunca ser de mais) que não estou aqui a fazer sombra de politica. Apenas, e como sempre, a cumprir o meu dever, e só inspirado nos mais rectos dictames da minha serena e intemerata consciencia.

Fazer politica com o criminoso attentado do dia 1 de fevereiro seria enfileirar na horda dos proprios assassinos.

Se eu, sem pertencer ,a nenhum partido, quisesse fazer politica, na estreita e vulgar accepção d'esta mal comprehendida palavra, tinha bem por onde escolher, e em todos os Ministerios encontraria materia vasta para exercer o meu direito de critica.

Se não aponto factos bem dignos de censura, para justificar as minhas palavras, é unicamente para se não poder dizer que, por um simples e transparente artificio de rhetorica, faço a tal politica, que previamente declaro não querer fazer.

A minha politica é a de todo o modesto patriota digno d'este nome.

Os homens que com superior criterio governarem ter-me-hão sempre a seu lado.

Assim, pude votar o convenio que os erros dos partidos tornaram necessario; assim votei e poderei votar muitas outras medidas, sem curar e sem querer saber dos partidos que as apresentarem.

Posto isto, quero ainda explicar á Camara a razão do pedido que tive a honra de fazer ao Governo. Ha na minha ideia muita devoção e respeito pela memoria de quem por tão largos annos servi, e, como já aqui tive a honra de o affirmar-sem nunca ter sido cortesão -, mas ha tambem, não posso, nem devo escondê-lo, o intuito de salvar de um possivel errado julgamento da historia esta nossa desgraçada geração, que assistiu a tão momentoso crime.

Não nos confundamos com quem nem sequer quis, ou não soube, ter palavras de justa reprovação para tão vil attentado.

Ha dias, um meu antigo amigo, que tem interesses numa publicação litteraria que por igual se destina a Portugal e ao Brasil, procurou-me para me pedir um trecho do meu livro em preparação sobre o mallogrado Rei D. Carlos, trecho que elle amavelmente desejava dar aos seus leitores antes de apparecer em volume. Affirmei-lhe que nenhum livro estava escrevendo.

Foi-me difficil convencê-lo da verdade.

Se até sabia de pessoas que em minha casa tinham assistido á leitura de um capitulo!...

Peço licença á Camara para repetir o que lhe disse:

Mais de vinte annos de constante convivencia com o martyrizado Rei arraigaram, no meu espirito a profunda convicção de que o definitivo juizo da Historia será para a memoria d'El-Rei o Senhor D. Carlos a mais solemne e mais triunfante das consagrações!

Se alguma duvida tivesse, com certeza empregaria o resto da minha vida a enaltecer lhe a memoria, lembrando e fixando milhares de factos todos em seu louvor e em sua honra. A Historia, porem, não precisará do meu testemunho. Têlos-ha de sobra e os factos, desapaixonadamente e friamente estudados, bastarão a impor-se, dando a Sua Majestade El-Rei D. Carlos a imperecivel aureola que a consciencia de cada um principia já a descobrir-lhe.

Taes foram as minhas palavras.

Não fiquemos nós perante a Historia, nem tão faltos de intelligencia que o não soubemos comprehender, nem tão faltos de coração que nem sequer o soubemos prantear, negando até o preito da nossa infinita, saudade ao innocente Filho, heroicamente morto em defesa de seu Pae!

Aos partidos da minha querida terra, todos tão ciosos de liberalismo, a todos peço que meditem as justas palavras do Sr. Clemenceau pronunciadas ha dias em Rennes, na velha Bretanha das grandes e lendarias luta, preconizando as grandes reformas pacificas do actual momento, para as quaes é necessario alliar o sentimento de ordem ao sentimento de humanidade:

"II n'y a pas d'ordre sans le principe superieur d'humanité, et il n'y a pas d'humanité sans l'ordre et sans la discipline".

Ora o primeiro e primordial principio de humanidade é o sagrado respeito pelos mortos.

É esse o que eu peço.

(S. Exa. não reviu).

O Sr. Ministro da Justiça (Campos Henriques): - Sr. Presidente : pedi a palavra, não só por um dever de cortesia e deferencia parlamentar para com o Digno Par, mas para respondera uma pergunta que S. Exa. dirigiu ao Governo.

É certo que o Digno Par tem o direito de interpellar e de censurar o Governo quando entender que elle não cumpre o seu dever, e a obrigação do Governo é ouvir attentamente e responder ás observações que sejam feitas, justificando os seus actos.

O Governo não pode ter nenhuma duvida em tornar a iniciativa, ou acompanhar a iniciativa parlamentar para que á memoria de D. Carlos e do Principe Real se faça a consagração que for digna e propria da sua alta posição. Se o Governo se não apressou a fazer esta declaração foi porque ao Sr. Presidente do Conselho se afigurou que a homenagem era, porventura, simples de mais. De resto, nós, que tambem servimos com lealdade, dedicação e prazer o Monarcha extincto, temos pela sua memoria o maximo respeito e muita saudade.

(S. Exa. não reviu).

O Sr. Sebastião Baracho: - Por não ter havido mais cedo sessão, só hoje peço providencias ao Governo, relativamente a um abuso que se está commettendo no Porto, e de que fui informado em telegramma dirigido d'aquella cidade e assinado por quinze cidadãos.

Segundo me é communicado, os passageiros dos tramicays são obrigados a tomar os seus bilhetes nas estacões de embarque, sob pena de serem obrigados a pagar a importancia dos mesmos bilhetes como se tivessem embarcado na estação de origem - importancia acrescida com 25 por cento de multa.

Chamo a attenção do Governo para este facto, e peço as providencias que o caso reclama, se, como tudo indica, deriva de um abuso em prejuizo do publico.

Duas outras reclamações recebi tambem, mas estas alvejando a Companhia dos Tabacos: - Uma d'ellas é

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firmada por trinta e um vendedores tabaquistas de Braga, que se queixam das exorbitancias da Companhia; e outra provem dos operarios manipuladores do Porto, contraditando com os melhores fundamentos as asseverações feitas pelo Sr. Ministro da Fazenda, quando num dos ultimos dias o interpellei sobre o assunto.

Outras questões de avultado interesse tenho a versar com respeito á privilegiada e absorvente Companhia dos Tabacos; e igualmente me proponho a tratar do onzeneiro e illegal emprestimo de 500:000 libras esterlinas, não menos illegalmente caucionado com o rendimento do monopolio dos fosforos.

Ha dias pedi a comparencia do Sr. Ministro da Fazenda, chamando-o a terreno nos assuntos que deixo esboçados. Agora insisto pela sua presença, porque, ao contrario do que suppõe a ingenuidade indigena, o Sr. Conselheiro Espregueira está de pedra e cal no Governo.

Os seus meritos rotativos estavam já potentemente affirmados: mas desde que S. Exa. attingiu até á consagração de se manifestar na outra Camara, como réu confesso de illegalidades e como adeantador autenticado, tem pasta garantida, com caracter inamovivel e vitalicio. Não ha que duvidar. Posso portanto esperar alguns dias pela comparencia do titular da pasta da Fazenda, o que não succede referentemente ao Sr. Presidente do Conselho, por cuja presença nesta casa insto igualmente. Para que não haja surpresas, direi muito perfunctoriamente. a rim de que algum dos Srs. Ministros presentes lh'os transmitia, quaes os motivos determinantes do convite que lhe endereço.

Desejo ouvir o Chefe do Governo acêrca da arbitrariedade commettida com a censura previa theatral. Nem ella é permittida, nem quando o fosse a poderia exercer o chefe da policia administrativa. O artigo 1.° e seu § unico do decreto de 29 de marco de 1890 e o artigo 2i-l.° do decreto de 20 de janeiro de 1898 são explicitos a tal respeito. Reservo-me para o ler na presença do Sr. Presidente do Conselho; e nessa occasião o chamarei, simultaneamente, á autoria pelo que se está passando com as prisões arbitrarias, realizadas pela policia preventiva, de que são victimas varios individuos, cuja. cruel incommunicabilidade dura ha dezoito dias.

Estes processos terroristas, que só teem cabimento nos paises corroidos pelo despotismo, produzem, fatalmente resultados contrarios aos que são previstos pelos autocratas e tyrannos que os empregam.

O desenlace patenteado ante-hontem, na Boa Hora, do processo motivado ela explosão na Rua de Santo Antonio á Estrella, fala mais alto do que quaesquer considerações que eu me permittisse adduzir.

Na execranda Bastilha foram os dois accusados inquisitorialmente tratados. Nem menos de seis meses e tres dias 'orara conservados na mais completa incommunicabilidade. Não pode haver attestado de maior crueza e perversidade.

Duas testemunhas d'esse mesmo processo, Augusto José Vieira e José do Valle, do quadro do pessoal do Mundo, estiveram detidos á ordem da Bastilha, em calabouços infectos, na qualidade, repito, de meras testemunhas, o primeiro 76 dias e o segundo 65, a maior 3arte do tempo incommunicaveis. Dezenas de cidadãos se acharam, por identico motivo, submettidos a iguaes tratos de polé.

O jury popular soube, felizmente, ante-hontem, fazer justiça, pondo em liberdade os dois accusados, que foram os dois unicos apurados para responder em audiencia, de tantos martyrizados no inicio da instrucção da causa.

Com o supposto cadastro a realizar do pessoal d'O Mundo, algo tenho a dizer tambem ao Sr. Presidente do Conselho, não obstante a violencia que se commettia ter deixado de ser praticada aã alguns dias.

O cadastro policial é a peor recommendação que podem ter os homens honestos. É exclusivo dos criminosos.

Para elaboração de outra especie de adastro não é idonea a Bastilha, cujo desprezivel pessoal exercita, especialmente, a suspeição, a delação, e a espionagem.

Nesse aviltante mester, e para retribuir despesas inconfessaveis, vão gastos no anno economico de 1907-1908 61 contos de réis, isto é, mais 25 contos de réis do que a dotação orçamental.

Attenta a miseria que atravessa o país, é positivamente um crime, e dos mais graves, desbaratar por forma tão impropria os dinheiros publicos, com o degenerado objectivo de pôr em relevo doentio um outro salafrario e de irritar os espiritos e de cultivar os odios, o que tudo é indubitavelmente lesivo para o viver social.

Tenciono, por ultimo, convidar o Sr. Presidente do Conselho para que faça publicar quanto antes a syndicancia realizada em virtude dos sangrentos acontecimentos de 5 de abril.

O Diario de Noticias publicou hontem e hoje duas notas de feição officiosa que, se ellas traduzissem, o apuramento do inquerito, seriam o corollario da nota igualmente, officiosa de 6 de abril preterito, que procurava irresponsabilizar os pretorianos discolos policiaes, civis e militares, que fuzilaram cobardemente o povo inerme da capital.

Hoje, como nas occasiões anteriores em que me tenho occupado do assunto, consigno a indispensabilidade de que ás victimas que sobreviveram, e ás familias de todas ellas, seja dada a devida reparação, com o merecido castigo dos delinquentes.

Demais, ao exercito, que soube em circunstancias extraordinarias desempenhar suasoria e suavemente o serviço policial, tem tambem de ser dada a necessaria satisfação.

Não pode elle, orador, naturalmente, conformar-se com que fiquem impunes as barbaridades e os delictos praticados por alguns dos seus membros, destacados nos corpos policiaes.

Appareça pois a lume, e sem demora, a syndicancia effectuada, para que d'ella possa ser feita a critica imparcial, que terá de abranger os syndicantes, os syndicados e quem mandou syndicar.

De outra forma, e pela parte que me respeita, servir me-hei das notas officio-sas publicadas, para verberar, como me é licito fazê-lo; este ainda candente assunto.

(S. Exa. não reviu}.

O Sr. Ministro da Justiça (Campos Henriques): - Sr. Presidente: são unicamente duas palavras em resposta ao Digno Par que acabou de falar.

Em primeiro logar certifico a S. Exa. que communicarei aos meus collegas das Obras Publicas e da Fazenda as considerações que S. Exa. acaba de apresentar, e tenha S. Exa. a certeza de que elles se apressarão a tomar as providencias que reclamarem as circunstancias que o Digno Par apontou, dando-lhe em seguida as explicações necessarias.

Quanto á syndicancia ás occorrencias de 5 de abril, o Governo nenhuma duvida tem em que ella seja publicada.

Communicarei ao Sr. Presidente os desejos do Digno Par.

Por ultimo devo declarar que as prisões ultimamente realizadas o teem sido em harmonia com as disposições legaes.

Quanto a incommunicabilidade, sou informado de que já acabou ha dias, e que foi determinada por motivos e causas attendiveis.

São estas as informações que, muito resumidamente, posso dar ao Digno Par.

(S. Exa. não reviu).

O Sr. Sebastião Baracho: - As minhas informações dizem-me que a incommunicabilidade dos presos se mantem ainda.

O Sr. Francisco José Machado: - Mando para a mesa uma representação dos proprietarios de algumas pastela-

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rias e confeitarias de Lisboa, contra algumas disposições do decreto que estabeleceu o descanso semanal.

A circunstancia de ter chegado a hora de se entrar na ordena do dia impede-me de dizer algumas palavras em abono das razões allegadas neste documento; todavia, para que essas razoes sejam conhecidas, peco a V. Exa. que se digne consultar a Camara sobre se permitte que esta representação seja publicada nos nossos Annaes 1.

Consultada a Camara resolveu affirmativamente.

ORDEM DO DIA.

O Sr. Presidente: - Vae passar-se á primeira parte da ordem do dia, que é a discussão da proposta do Digno Par o Sr. Baracho.

Foi lida na mesa.

O Sr. Julio de Vilhena: - Inqueritos e adeantamentos: eis a questão. Folgo de ver, Sr. Presidente, que o Digno Par e meu antigo amigo o Sr. Baracho tenha apresentado a proposta que V. Exa. acaba de submetter á apreciação da Camara. Ella representa mais uma das muitas manifestações que o Digno Par tem dado, nesta assembleia, do seu elevado talento, do seu despelado estudo e da sua acrisolada dedicação pelos interesses do país. Nenhuma voz nesta Camara é mais persistente, nenhuma tem abrangido em mais largo ambito a vasta encyclopedia dos interesses nacionaes.

Com a apresentação d'esta proposta, o Digno Par reconheceu, que mal procederia a Camara dos Pares deixando em silencio., ou sem um debate especial, um assunto que é, neste momento, o principal, se não o unico, que occupa e interessa a attenção do país. Tenho muito prazer em prestar esta homenagem ao Digno Par, o que é ditado, não só pela justiça que todos lhe devemos, mas ainda pela amizade que desde muitos annos me prende a S. Exa. E por que é a primeira vez que me encontro combatendo as opiniões do Digno Par, é tambem .esta a primeira occasião em que cumpro este, para mim, gratissimo dever.

Nesta proposta envolvem-se as attribuições das duas Camaras em materia de inqueritos, a sua acção conjunta ou separada, a esfera da acção das diversas especies de inqueritos, permittidos pela Constituição, e ainda a questão dos adeantamentos, na parte da jurisdição, competente para a apreciar e julgar. É, como se vê, Sr. Presidente, um assunto sob todos os aspectos interessante nesta occasião, e se a politica, na accepção perturbadora d'esta palavra, não vier envenenar o debate; se a questão for discutida com a placidez e serenidade que devera presidir sempre ás lutas da palavra nesta casa do Parlamento, eu creio que alguma luz sairá da discussão da proposta do Digno Par, e que novo rumo seguirá essa questão, que tem, infelizmente para todos, assumido até agora um aspecto inconveniente e, por vezes, irritante e apaixonado.

Por mim asseguro a V. Exa. que vou occupar-me do assunto sem preconceitos nem prevenções de ordem politica. Farei todos os esforços, não para que a minha palavra seja eloquente, que nunca o foi, mas para que seja clara, nitida e precisa e leve o convencimento á razão dos que me ouvem. Não pretendo despertar as emoções do sentimento alheio, pretendo convencer o país d'aquillo que se me afigura uma verdade juridica e moral. Um dos Dignos Pares que me está ouvindo, o Sr. Arroyo, num dos seus eloquentes discursos proferidos em 1896, dizia, referindo-se a um orador a quem respondia: teve um successo, mas não teve um syllogismo. Excellente frase é esta que mostra bem quanto convem, na maior parte dos casos, procurar mais uma boa argumentação do que os effeitos de uma declamação brilhante.

Um d'esses casos é este. Antes de tratarmos de responsabilidades seja de quem for, antes de abrangermos em condemnações fulminantes homens e partidos, colloquemo-nos a nós mesmos dentro da ordem constitucional, deixemos o Rei em paz, tiremo-lo das nossas discussões de todos os dias, porque se hoje o chamamos ao debate para o elogiar, amanhã, estabelecido o principio de que a sua pessoa pode entrar nos nossos discursos, acontecerá que possa ser censurado quando qualquer orador assim o julgar conveniente. Neste ponto eu proporia um acordo sob a fiscalização de V. Exa. e esse seria não nos referirmos á pessoa do Rei, respeitando sempre e para todos os effeitos a irresponsabilidade real, sem a qual não é possivel o systema monarchico, e direi mesmo nenhum outro systema, porque desde que o Chefe do Estado, qualquer que seja a sua denominação, Rei ou Presidente, for arrastado aos debates dos partidos não pode existir nem o vitaliciado das monarchias, nem o septennado, ou qualquer outro periodo de duração da presidencia das republicas. Por mim cumprirei tal acordo, e quando acordo se não faça, manterei na minha acção individual o principio que foi sempre um dos pontos fundamentaes do credo regenerador.

Lembrada estará certamente a Camara de que ainda na sessão passada quando se discutiram aqui as cartas do Rei eu empreguei todos os esforços para afastar do debate a sua pessoa. (Apoiados).

Apresentei a verdadeira doutrina constitucional e mostrei que, uma vez envolvida nas lutas dos partidos a pessoa do Rei, desprezado o principio da sua irresponsabilidade, ficava ferida no cerce a instituição monarchica, porque perderia a estabilidade, ficando a fluctuar á mercê dos embates das opiniões apaixonadas.

Deixei bem assinalado o meu parecer de que a primeira obrigação do homem do Governo é impedir que o Rei seja arrastado ás lutas dos partidos, devendo o estadista que comprehenda a sua missão collocar-se sempre como um antemuro entre o Rei e o seu aggressor, assumindo todas as responsabilidades e evitando por todos os modos esse combate terrivel entre o Chefe do Estado e os partidos e que termina geralmente por um desenlace fatal. Não é só um principio theorico é tambem uma verdade historica.

Posto isto que constitue uma conversação preambular, vou entrar propriamente no assunto para que pedi a palavra.

A proposta do Digno Par tem tres artigos: no primeiro propõe S. Exa.:

Que por ella seja nomeada uma commissão de 21 membros, que, dividida em secções, procederá a rigorosa syndicancia ás Secretarias do Estado e suas dependencias, a qual abrangerá todo o periodo do reinado transacto.

Fundamenta o Digno Par a sua proposta no § 5.° do artigo l5.° da Carta e ainda sob a egide do artigo 14.° do Primeiro Acta Addicional. É, como se vê, uma commissão encarregada de examinara administração de todo o reinado transacto.

A primeira questão a resolver é, pois, a seguinte:

Pode a Camara dos Dignos Pares, com o fundamento nos referidos artigos da Constituição, nomear uma commissão de inquerito aos actos do reinado findo, ou esta funcção parlamentar deve começar na Camara dos Srs. Deputados?

Eu penso que se nós approvassemos a proposta ao Digno Par praticariamos um abuso de poder, collocando-nos fora da Constituição.

Vejamos qual é a doutrina constitucional a este respeito.

Segundo o § 5.° do artigo l5.° é de attribuição das Côrtes, na morte do Rei ou vacancia do Throno, instituir exame da administração que acabou e reformar os abusos nella introduzidos e, conforme o § 1.° do artigo 36.°, tambem principiará na Camara dos Se-

1 Esta representação vae publicada no final da sessão.

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nhores Deputados o exame da administração passada e a reforma dos abusos nella introduzidos.

É pois manifesto que, considerados estes dois artigos, é de iniciativa da outra Garoara o exame dos factos praticados durante o reinado findo, assim como é a iniciativa sobre impostos e recrutamento e a discussão das propostas do poder executivo.

A Camara dos Deputados não perdeu essa iniciativa por nenhuma disposição posterior, porque a unica que existe é a do artigo 14.° do Primeiro Acto Addicional e essa não alterou nem modificou, neste ponto, a funcção da Camara dos Deputados.

Esse artigo 14.° dispõe, é certo, que cada uma Camaras tem o direito de proceder por meio de commissões de inquerito ao exame de qualquer objecto da sua competencia e o seu § unico addiciona e amplia os artigos 36.°, § 1.°, e 139.° da Carta, mas é mester verificar em que se fez essa ampliação.

Na conformidade da Carta o poder legislativo apenas podia fazer inqueritos em dois casos, o primeiro- no caso de vacancia do Throno ou morte do Rei, que é a hypothese dos artigos 15.°, § 5.°, e 36.°, § 1.°, o segundo no principio das sessões, e somente para saber se a Constituição politica do reino tinha sido cumprida no intervallo das sessões, que é a hypothese do artigo 139.°

Não havia o direito amplo de fazer inqueritos. Inqueritos só eram permittidos naquelles dois casos restrictos.

O Primeiro Acto Addicional. facultando o exercicio do direito de inquerito a ambas as Camaras sobre objectos da sua competencia, ampliou os artigos a que se refere.

Foi nisto que consistiu a ampliação do Acto Addicional: alargou a faculdade parlamentar de inquirir a todos os assuntos da competencia das Côrtes, que até ahi estava restricta a dois unicos casos.

Foi de um grande alcance a nova disposição, porque estendeu a acção parlamentar, permittindo-lhe investigações até então hão autorizadas.

Quanto, porem, a, ficar pertencendo á iniciativa da Camara dos Deputados o inquerito ou exame dos feitos do reinado anterior, ahi não houve alteração.

Esse continuou como uma das immunidades da Camara popular.

E comprehende-se que assim acontecesse, porque a Camara dos Deputados, pela sua proveniencia, pelo modo da sua constituição, representa mais directamente do que nós a soberania da nação.

Deve pertencer-lhe, por isso, o que mais directamente tambem toca aos interesses das classes populares.

O imposto que affecta essas classes, o recrutamento que sobre ellas pesa como em serviço oneroso, o exame dos abusos de um reinado que podem ferir gravemente os direitos e as liberdades individuaes, tudo isso cae naturalmente sob a acção predominante da outra Camara.

Essa prerogativa tem a sua explicação natural na origem de onde provem a Camara dos Deputados, que é o voto dos cidadãos.

É certo que a Camara dos Dignos Pares tambem representa o país, e não o Rei que a nomeia, mas tal representação assenta mais no convencionalismo da lei, do que na expressão rigorosa dos factos.

Quem genuinamente, e sem convenções de nenhuma especie, representa o país, é a Camara dos Deputados, porque é investida na sua funcção legislativa pelo mandato directo dos eleitores.

Que admira, pois, que a Constituição lhe conferisse a preeminencia ao exame dos actos do reinado findo e a encarregasse de propor as providencias tendentes a impedir os abusos futuros?

Não é isso a consequencia lógica dos principios que caracterizam no nosso direito constitucional a funcção d'essa Camara?

Decerto que sim.

Estas razões de ordem juridica explicam perfeitamente a preferencia concedida pela Carta á Camara dós Deputados na faculdade primacial que lhe compete acêrca da inquirição sobre os factos de ordem administrativa occorridos durante o reinado extincto.

Mas taes razões são ainda corroboradas pela analyse das circunstancias historicas que rodeavam a promulgação da Carta.

A Carta de 1826 foi uma transacção entre o elemento tradicionalista e conservador, e o espirito liberal que presidira ás lutas contra o absolutismo.

A camara dos Dignos Pares appareceu com um caracter mais aristocratico do que popular.

As classes mais elevadas, as que representavam mais genuinamente as tradições de familia e os privilegios da nobreza, obtiveram todos ou quasi todos os logares nesta Camara na sua primitiva constituição.

Nem o clero foi esquecido na sua representação mais elevada, o episcopado.

A transmissão das funcções, por virtude da hereditariedade, constituia dentro d'esta camara pequenas dynastias qui muito contribuiam para que ella fosse considerada, acima de tudo, como uma camara essencialmente conservadora.

Esta foi a sua indole primitiva, que é sempre conveniente não esquecer quando se estudam as suas attribuições.

Representando, em contraposição, o elemento popular ficava a Camara dos Deputados. Natural era, portanto, que a essa Camara fossem concedidas faculdades especiaes em assuntos que mais de perto podiam affectar os direitos e regalias da classe popular.

Ahi ficou a iniciativa sobre impostos, sobre recrutamento, sobre as propostas do poder executivo e sobre o exame da administração do reinado.

Á camara dos Pares ficou em compensação a faculdade exclusiva de julgar os delictos especiaes commettidos pelos Ministros, Conselheiros de Estado ou membros da Familia Real.

Assim se distribuiam as funcções conforme o caracter assinado a cada um dos ramos do poder legislativo.

Mas, Sr. Presidente, se é certo que a analyse explicada das disposições da Carta me leva á conclusão que deixei enunciada, não é menos certo que, se recorrermos ao chamado elemento historico na interpretação da lei, elle vem corroborar que nunca foi intenção dos legisladores do Primeiro Acto Addicional privar a camara dos Deputados da iniciativa que sobre o assunto lhe confere o § 5.° do artigo 15.° da Carta.

Vejamos como nasceu e com que intuitos foi feito o artigo 14.° do Acto Addicional.

Na sessão de 4 de março de 1852 foi apresentado na camara dos Deputados o projecto da respectiva commissão sobre o Acto Addicional.

O projecto do Governo, dizia no artigo 15.°:

Cada uma das Camaras tem o direito de proceder por meio de commissões de inquerito ao exame de qualquer objecto da sua competencia.

§ unico. Fica d'este modo addicionado e ampliado o artigo 139.º da Carta Constitucional.

O projecto da commissão dizia no artigo 14.°:

Cada uma das Camaras das Côrtes tem o direito de proceder por meio de commissões de inquerito ao exame de qualquer objecto da sua competencia..

§ unico. Fica d'este modo addicionado e ampliado o artigo 139.° da Carta Constitucional.

Examinados e comparados os dois projectos observa-se:

1.° Que a commissão apenas faz uma ligeira alteração na proposta do Governo, que vem a serrem logar de cada uma das Camaras, dizer se: cada uma das Camaras das Côrtes, o que não tem importante significação;

2.° Que em ambos os projectos não se fala na ampliação ou addicionamen-

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6 ANNAES DA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO

to do § 1.º do artigo 36.° da Carta, j mas apenas do artigo 139.°

Na sessão de 24 de março é lido o artigo 14.° do projecto e refere-o Diario dos Sessões que foi logo approvado.

Na sessão de 4 de junho o presidente diz:

Está concluida a discussão do Acto Addicional; voltará á commissão para a ultima redacção.

Entrou, portanto, o projecto na commissão de redacção e na sessão de 7 de junho o Deputado Ferrer enviou a ultima redacção para a mesa, acompanhando-a das seguintes palavras:

Sr. Presidente: agora vou ler as emendas de redacção ao Acto Addicional: ellas são de pouca monta, e parece-me que podem ser approvadas desde já a fim de se poder expedir o projecto para a Camara dos Dignos Pares.

E o Diario das Sessões acrescenta:

Seguidamente foi lida na mesa e approvada sem discussão a ultima redacção do Acto Addicional.

Não apparece no Diario a ultima redacção do projecto, mas ella encontra-se na proposição n.° 7, enviada á Camara dos Pares e que entrou em discussão na sessão de 28 de junho. Nesse documento lê se: "artigo 14.°, § unico: Ficam deste modo addicionados e ampliados os artigos 36.°, § 1.°, e 139.° da Carta Constitucional". Assim foi approvado por esta Camara e assim se encontra no Acto Addicional em vigor.

D'esta narração que faço á Camara, devidamente documentada, prova-se á evidencia que a referencia ao artigo 06.°, § l.°? da Carta foi apenas uma questão de redacção e nada mais. Essa referencia foi na propria expressão de Ferrer de pouca monta, e como tal passou sem a mais ligeira discussão.

Creio que não seria considerado de pouca monta, se fosse a intenção dos legisladores, o expropriar a Camara dos Deputados de uma faculdade tão importante como é aquella que lhe dá a iniciativa na nomeação da commissão de exame no fim do reinado ou vacancia do Throno. O fim do Acto Addicional foi, pois, o alargar o perimetro de acção das duas Camaras em materia de inqueritos, sem embargos de prerogativa pertencente á Camara popular. E por isso que a boa redacção da lei exigia que, tendo-se alludido ao artigo 139.°, que trata do uma especie de inquerito, se alludisse tambem ao § 1.° do artigo 36.°, que trata da outra. Assim a redacção ficava perfeita.

Se como elemento de interpretação da lei quisessemos ainda invocar a pratica seguida na sua execução, ella ahi está para attestar que nunca a Camara dos Pares nos casos do fallecimento dos nossos Reis, occorridos no tempo da sua vigencia, nomeou qualquer commissão com o fim de examinar os actos do reinado findo.

Que razões superiores poderia haver para que neste momento estabelecêssemos uma nova pratica, que seria, na minha opinião, inteiramente inconstitucional? Temos por acaso motivo para duvidas da imparcialidade da outra Camara? Não nos dá ella a segurança pela natureza da sua commissão, onde figuram membros de todas as especialidades politicas, de que a sua apreciação será austera e rigorosa? Que embaraços poderá encontrar com excepção d'aquelles que provêem naturalmente da impossibilidade de examinar todos os factos occorridos num largo espaço de tempo? Por mim, Sr. Presidente, declaro que essa commissão me inspira toda a confiança e só lamento que ella não possa cumprir o dever que lhe impuseram pelos embargos naturaes que a sua acção ha de encontrar a cada passo.

Poderia limitar aqui as minhas considerações, porque demonstrada, como fica, que é inconstitucional a proposta do Digno Par, nada mais me restava do que a rejeitar com o meu voto. Mas como esta questão é muito complexa eu desejo tratá-la ainda sob outros aspectos que me parecem interessantes.

Supponhamos (mera hypothese apenas para continuar a discussão) que esta Camara podia nomear uma commissão em tudo semelhante áquella que foi nomeada pela Camara dos Deputados. Quaes seriam as attribuições d'essa commissão? Poderia ella desempenhar o mandato que o Digno Par lhe pretende attribuir? O que propõe o Digno Par?

Que a commissão inaugurará os seus trabalhos, procedendo ao apuramento das responsabilidades de toda a ordem, motivadas pelos adeantamentos illegaas á Fazenda da Casa Real e a quaesquer funccionarios do Estado - apuramento que deve abranger todos os beneficias de natureza varia, auferidos pela Coroa, por os diversos Ministerios, com violação das leis do reino.

Que a commissão seja investida de plenos poderes, indubitavelmente consentaneos com a melindrosa e alta missão que lhe é confiada, e indispensaveis para que ella não possa; por circunstancia alguma, ser contrariada e diminuida no exercicio das suas importantes funcções.

Todo este amplissimo mandato que o Digno Par quer que a Camara confira á commissão tem apenas o inconveniente de lhe não poder ser conferido, por que não possuimos faculdades constitucionaes para tanto.

Antes de fazer a competente demonstração do que affirmo, consulta-me a Camara que eu diga o que penso acêrca d'esta commissão de fim de reinado que tanto nos preoccupa neste momento.

Isto não passa de uma fantasia da Carta, que durante oitenta annos da sua vigencia nunca foi tomada a serio e que precisava de uma revisão, que supponho está proximo de ser convenientemente elminada e substituida. O ultimo reinado durou dezoito annos, e o do Rei D. Luiz. vinte e seis, e vinte o de D. Maria II. Quem ha ahi que comprehenda que possa ser escrupulosamente examinada toda a administração de tão largos periodos? Para examinar o ultimo reinado seria necessario dividir a actual Camara dos Deputados em sete commissões de vinte e um membros, ficando a cargo de cada uma um dos Ministerios, e ainda assim o exame dos actos de um só Ministerio durante dezoito annos não poderia realizar-se durante todo o periodo parlamentar. A Camara toda, assim dividida em commissões, não poderia funccionar para cumprir a sua missão legislativa, porque lhe não chegaria o tempo para andar pelas secretarias a investigar a administração passada dos Governos. Não sei onde a nossa Carta foi haurir esta imaginosa disposição. Da Carta francesa de 14 ou das prelecções romanticas de Benjamin Constant, onde muitas vezes foi matar a sede de um novo direito constitucional, não foi d'esta vez.

Das lições d'este publicista veio o poder moderador, não com este nome, que foi inventado pela Carta, mas com o nome de poder neutral, encarregado de manter o equilibrio entre todos os outros poderes do Estado e com as mesmas attribuições. Verdadeira utopia, porque esse poder neutral está sujeito como todos os outros ao abuso, deixa se influenciar como elles pelas paixões que dominam os homens, e não raras vezes, longe de manter o equilibrio, faz inclinar a balança para o lado que mais lhe convem. Mas d'esta vez não foi o fim idealista do direito publico que dirigiu a mão dos autores da Carta.

Só encontro disposição identica na sua irmã germana, porque foram nascidas do mesmo pae, a Constituição que vigorou no Brasil no reinado de D. Pedro II. Lá está a mesma doutrina e nos mesmos termos. É pois esta disposição da simples fantasia tropical.

E nunca realmente foi tomada a serio. Até hoje nenhuns resultados praticos tem produzido.

Quando morreu D. Maria II, o Deputado Cardoso Castello-Branco, na sessão de 17 de janeiro de 1854, fez a seguinte proposta:

Proponho que seja nomeada uma commissão que proceda ao exame da administração no reinado que acabou e indique, para serem reformados, os abusos que nella se tenham porventura introduzido.

Era a primeira vez que se pretendia executar a disposição da Carta.

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SESSÃO N.° 17 DE 17 DE JUNHO DE 1908 7

Surgiram logo duvidas de todos os lados.

A que especie de commissão seria enviada a proposta?

Poderia executar-se a disposição da Carta sem lei regulamentar?

Por fim foi enviada á commissão de legislação, e só passado um anno é que se nomeou uma commissão que foi puramente nominal, porque nunca apresentou o resultado de quaesquer trabalhos.

Depois do fallecimento de D. Luis nenhuma commissão se nomeou.

É que acima de todas as leis reside o bom senso, que é o melhor interprete, e esse indica que ou o exame ha de ser precipitado, incompleto, pondo em relevo alguns casos e omittindo outros, praticando injustiças relativas, ou para ser completo e justo tem de levar largos annos.

Esta disposição da Carta tem de ser eliminada por inutil e substituida de modo a tornar rapida, pronta e effectiva a fiscalização parlamentar sobre os actos do Governo.

Não precisamos para isto de ir forragear preceitos á legislação constitucional dos países estrangeiros porque temos em nossa casa excellente doutrina, com algumas modificações. Está ella na Constituição de 1838.

Aqui está no artigo 38.°:

Cada uma das Camaras no principio das sessões ordinarias examinará se a Constituição e as leis teem sido observadas.

arece á primeira vista que esta doutrina é identica á que se encontra no artigo 139.° da Carta. Pois não é.

O artigo 139.° entrega ás Côrtes Geraes, e unicamente, as transgressões da Constituição; o artigo citado determina que qualquer das Camaras pode fazer o exame, e comprehende tambem as transgressões de todas as leis, embora não sejam constitucionaes.

A disposição da Constituição de 1838, com o simples acrescentamento de que a Camara é obrigada a nomear a commissão no prazo de oito dias depois de constituida e esta dar o seu parecer no maximo prazo de dois meses, estabelecera uma fiscalização parlamentar effectiva, e em todos os annos, o que dispensa certamente o exame improficuo de todo o reinado.

Basta uma disposição assina redigida e a sua execução pontual no principio de cada sessão ordinaria para se restabelecer o governo parlamentar.

O maximo prazo de nove meses de administração do Governo não exige um largo espaço de tempo para se examinar.

E assim teremos a fiscalização parlamentar effectiva em cada anno, não sendo portanto necessaria a fiscalização, realmente inutil, sobre factos occorridos muitos annos antes.

Não seria, parem, bastante reformai neste sentido o artigo da Carta.

Seria necessario fazer uma lei regulamentar, marcando as attribuições especiaes das commissões de inquerito e facultando-lhes todos os meios de desempenhar a sua funcção.

Presentemente, as commissões de inquerito não teem força coactiva para obrigar ninguem a depor perante ellas, não podem receber testemunhas com juramento, senão quando voluntariamente os interrogados quiserem depor com essa formula.

Como poderão as commissões obrigar os funccionarios publicos a fazer declarações sobre objectos do seu conhecimento official, quando não só os regulamentos das secretarias, mas até a lei penal, os pune com a demissão, pelo menos, se revelarem os segredos de que tiverem obtido conhecimento no exercicio dos seus empregos?

Não pode traduzir muitas vezes o depoimento uma inconfidencia e o desprezo do sigillo profissional?

Que penas se podem impor aos particulares que façam perante as commissões declarações falsas em materia de facto? Nenhumas.

A lei penal só castiga taes declarações quando tenham sido prestadas perante quem tenha autoridade legal para as exigir.

Desajudada de uma boa lei regulamentar que resolva todas estas difficuldades, nenhuma disposição constitucional poderia realizar o que todos desejamos, e que é ver funccionar as commissões de inquerito com resultados praticos e efficazes, auxiliando, pela larga copia de informações que possam alcançar, o exercicio de qualquer dos poderes do Estado.

Aqui está um ponto em que a nossa Constituição pode ser vantajosamente reformada. (Apoiados).

Mas, visto que falo em reforma constitucional, permitia-me a Camara que eu não deixe passar esta occasião sem affirmar mais uma vez o que penso a este respeito.

É possivel que esta breve digressão fatigue a attenção da Camara (Vozes de todos os lados: - Não, não), mas quero mais uma vez assegurar que não abdico em ponto nenhum das minhas ideias já manifestadas a este respeito. Entendo que a Carta deve ser sujeita a uma revisão geral, saindo d'essa revisão uniu Constituição nova, o que não quer dizer que se não conservem todas as disposições da Constituição actual que nenhuns inconvenientes tenham trazido até agora na sua execução.

A reforma deve ser essencialmente pratica e só a pode fazer quem conheça não somente o direito publico theorico mas toda a historia da nossa Carta durante o largo periodo da sua vigencia.

É preciso ter amplo conhecimento das duvidas e questões de interpretação até agora apparecidas no decurso de largos annos a fim de que fiquem as disposições imperfeitas ou de interpretação duvidosa devidamente esclarecidas.

Limpar a Carta de todos os vicios de redacção, determinar claramente o verdadeiro sentido dos seus preceitos, introduzir-lhe os principios mais liberaes, mas sempre exequiveis, que possam regular a Constituição e as attribuições dos poderes politicos, taes são as bases sobre que, em meu parecer, se deve erguer a nova obra constitucional.

Nada de theorias mais ou menos fantasiosas. Lembremo nos que nunca os grandes apostolos das emancipações sociaes conseguiram fazer constituições de execução duradoura.

Pediu o Estado da Carolina uma Constituição a Locke; pediu a Corsega uma Constituição a Rousseau.

Tambem a Kant pediu um- outro Estado, cujo nome me não occorre neste momento, porque a minha memoria vae tendo os desfallecimentos proprios da idade, uma lei constitucional para seu uso.

Que bellas Constituições não seriam essas geradas por tres dos mais potentes cerebros do mundo ! Não eram Kant e Locke os dois grandes metaphysicos? Não era Rosseau o grande patriarcha do direito publico, o architecto do novo edificio social? Pois o que saiu de tudo isso? Trabalhos perseverantes puramente theoricos. Não foram codigos para reger os povos; foram simplesmente compendios para as escolas.

O que poderia ser a Constituição da Corsega, nascida do cerebro de um homem que principiava o seu contrato social por uma affirmação puramente mataphysica: "O homem nasceu livre, por toda a parte está em ferros".

O homem nasceu livre!

Tão livre que nasce preso ao cordão umbilical e que precisa de mão estranha para o libertar da cadeia que o prende ao ventre materno! Tão livre que precisa de que o lavem e o limpem das impurezas que trouxe, da viscera em que foi gerado! Tão livre que carece de que o amamentem e o vistam para não morrer logo ao apparecer na terra! Tão livre que vem manchado por todas as taras hereditarias que podem impedir-lhe o movimento livre dos seus apparelhos ou limitar-lhe as criações do seu livre arbitrio! Tão livre que precisa do auxilio do po-

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8 ANNAES DA CAMAKA DOS DIGNOS PABES DO REINO

der paternal que o alimenta, que o veste, que o educa até á acquisição plena dos seus direitos de homem e de cidadão!

Não. O homem nasceu escravo, e foi só pelo seu esforço, alliado ao dos seus concidadãos, que elle na luta de todos os dias foi conquistando a liberdade de que goza.

O que poderia ser uma Constituição, criada por quem possuia aquella noção do homem para o qual a mesma Constituição era feita? Um excellente livro de metaphysica, mas não um codigo que pudesse reger os direitos individuaes e as relações e attribuições dos poderes.

Não é por este processo. Sr. Presidente, que eu desejo ver reformada a nossa Constituição. (Apoiados).

Mas pondo de parte neste momento o direito a constituir, e tendo de não perder de vista que a questão é sobretudo de direito constituido, eu pergunto novamente se. a commissão de inquerito sobre o reinado findo pode exercer as funcções que lhe marca a proposta do Sr. Baracho, ou que funcções poderá exercer.

As funcções d'esta commissão estão preceptivamente fixadas no proprio § 5.° do artigo 15.°; ahi se diz que ella é destinada a fazer o exame da administração que acabou e a reformar os abusos nella introduzidos.

Nada mais e nada menos.

A sua funcção é exclusivamente legislativa. Se encontra abusos, o seu dever é reformá-los, evitando os de futuro e apresentando á assembleia que a elegeu os competentes projectos de lei.

Não póde fazer mais do que isso, porque as suas attribuições proveem da lei e a lei não lhe dá outras.

Encontra a commissão, por exemplo, actos ditatoriaes praticados por qualquer Governo e suppõe isso um abuso?

Deve apresentar á camara as providencias necessarias para que taes abusos se não repitam.

Encontra adeantamentos feitos a qualquer pessoa ou entidade?

O seu dever é identico; apresente os meios de reformar o abuso existente.

Para as ditaduras proponha, se quiser, o que por ahi se tem indicado como meio de as impedir no futuro.

Sobre os adeantamentos illegaes proponha, se quiser, a responsabilidade civil e criminal conjunta, ou só a primeira, não tendo havido intenção criminosa, para os Ministros que os tenham autorizado e a immediata restituição de quem os recebeu. Isso ou o que melhor entender.

Mas só pode fazer isto e nada mais, porque é unicamente para taes fins que a lei constitucional á autoriza.

Quer isto dizer que a commissão occulte um crime que por acaso encontre no seu exame? De medo nenhum.

Mas não lhe pertence a ella qualificá-lo, nem determiná-lo, nem designar-lhe as penas.

Refere apenas o facto e se a Camara entender que envolve responsabilidade criminal para o agente, pelo moio ordinario em taes casos deverá proceder.

E se a propria commissão da Camara dos Deputados tem de proceder assim, quando tem faculdades exclusivas de accusação, como seria admissivel que a Camara dos Dignos Pares pudesse, por via de tal commissão, proceder ao apuramento de responsabilidades de toda a ordem, incluindo, portanto, as puramente criminaes?

Esta Camara tem competencia exclusiva, para o julgamento dos delictos praticados pelos Ministros de Estado, tem de estar livre de toda a suspeição; para que a sua sentença seja imparcial não pode pronunciar-se antes d'ella sobre a existencia do delicto.

O delicto chega ao seu conhecimento pela accusação proveniente da outra Camara, só depois d'essa accusação pode verificar a sua existencia, determinar a sua qualificação, assinar as penas que lhe são applicaveis.

Antes d'isso, se tal fizesse, ficaria inhibida de funccionar como tribunal.

E quantos conflictos não surgiriam entre as duas Camaras!

Ambas a apurarem as mesmas responsabilidades com opiniões porventura diversas, intromettendo-se cada uma na esphera da outra!

Seria uma completa e irremediavel anarchia.

A Camara dos Dignos Pares julgava que esse determinado facto era delicto; não o considerava assim a Camara dos Deputados e não propunha a accusação.

Ao contrario a Camara dos Deputados considerava delictuoso um determinado facto, mas não o reputava assim a Camara dos Dignos Pares.

Como poderia este constituir-se em tribunal quando já de antemão tinha manifestado o seu voto?

Não, Sr. Presidente, se tal commissão pudesse ser nomeada sem transgressão da lei constitucional, elle nunca poderia desempenhar as multiplas e complexas funcções que lhe incumbe a proposta do Digno Par.

Mas a proposta quer que a commissão proceda ao apuramento de responsabilidades de toda a ordem motivadas pelos adeantamentos illegaes á fazenda da Casa Real, e assim entro na terceira questão que me proponho trata.

Não desejo nesta occasião discorrer acêrca da questão, dos adeantamentos, se porventura existem, sob o aspecto de quem os fez, nem das pessoas a quem pertençam quaesquer ordens de responsabilidades. Isto ficará para mais tarde 5 por emquanto julgo a discussão intempestiva.

Só á vista dos documentos é que poderemos, creio eu, fazer juizo seguro.

Eu ignoro absolutamente o que ha a tal respeito. Conheço unicamente as declarações feitas nestes casos pelos dois chefes dos partidos; as declarações do chefe do Governo passado, o decreto ditatorial sobre o assunto e a declaração feita ultimamente pelo ex-Ministro da Fazenda.

Refiro-me á questão sob o ponto de vista dos principios e não me parece que isso seja inutil, porque, fixada a boa doutrina, é possivel que a questão entre no seu verdadeiro terreno, do qual anda manifestamente transviada sem vantagens para ninguem nem para os homens, nem para os partidos.

Ora eu pergunto: pode qualquer das Camaras directamente, ou por intermedio das suas commissões de inquerito, fixar o debito da Casa Real ao Estado e decretar o modo do seu reembolso? Respondo positivamente que não.

Nos adeantamentos feitos á Casa Real ha duas questões de natureza diversa, que até agora teem andado confundidas e que é necessario destrinçar.

Uma é a das relações estabelecidas entre a Casa Real e o Estado por via dos adeantamentos feitas e recebidos.

Outra é a da responsabilidade de qualquer ordem que pertença aos Ministros que fizeram os adeantamentos.

A primeira é de ordem puramente civil; a segunda é que é de ordem politica.

A Casa Real é uma pessoa moral com capacidade civil, representada pelo seu administrador, o seu mordomo como lhe chamava a Constituição de 1822, ou o seu vedor como lhe chamam os alvarás de 1733 e 1735, susceptivel de direitos e obrigações.

O Estado ou a Fazenda Nacional é outra pessoa moral tambem com a sua capacidade civil reconhecida.

Os adeantamentos feitos pelo Estado á Casa Real são verdadeiros emprestimos sem prazo fixo de reembolso, mas reembolsaveis pelo credor, no tempo e conforme as condições que se ajustarem.

A liquidação ou o apuramento das quantias em divida nunca pode pertencer á Camara dos Senhores Deputados, nem á Camara dos Dignos Pares, nem ás duas funccionando como poder legislativo, pela simples razão de que é uma questão entre partes, que pode tornar-se litigiosa no momento em que qualquer d'ellas não esteja de acordo no apuramento.

Onde é que a Carta Constitucional concede ás commissões de inquerito esta faculdade., que é na sua essencia uma faculdade judicial, porque a deli-

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SESSÃO N.° 1Z DE 17 DE JUNHO DE 1908 9

beração definitiva não pode deixar de ter forca de sentença e execução apparelhada? Onde está esse poder que seria a invasão de todas as legitimas jurisdições?

Já tive occasião de dizer que a Carta e o Acto Addicional referem-se a inqueritos em tres artigos.

O primeiro é o artigo 15.°, § 5.°, que trata do fim do reinado. Tal disposição não autoriza a commissão a fazer apuramentos de contas. Só lhe permitte que, se encontrar abusos, venha á Camara propor a sua reforma. Nada mais.

O segundo é o artigo 139.°, que se refere á commissão de inquerito no começo das sessões e que só tem competencia para conhecer das violações da Constituição no intervallo d'ellas.

Onde está ahi o direito de apurar débitos em liquidação?

O terceiro é o artigo 14.° do Primeiro Acto Addicional, que permitte a cada uma das Camaras nomear commissões de inquerito sobre qualquer objecto da sua competencia. "Da sua competencia", note se bem. E qual é o artigo da Carta que dá competencia a qualquer das Camaras para dirimir questões de interesses de ordem civil entre as partes interessadas!

Que extraordinario absurdo!

Figuremos uma hypothese para tornar bem frisante o contra-senso de semelhante doutrina.

A commissão de inquerito apura os debitos da Casa Real e declara que elles importam em 2:000 contos de réis por exemplo. Mas a Casa Real, no uso do seu pleno direito, contesta a cifra por qualquer dos muitos motivos que se podem imaginar, ou porque foram comprehendidas na totalidade dos debitos verbas que não podem reputar-se de adeantamentos por serem despesas a cargo do Estado, ou porque não foram as quantias indicadas precisamente aquellas que recebeu, ou por qualquer outra razão. Desde este momento quem ha de julgar a controversia?

A propria Camara? Como poderá ser juiz e parte ao mesmo tempo? Que força executiva tem a deliberação que ella tão illegalmente tomasse?

E é sobre um erro tão evidente que ha mais de um mês se architectam as mais extraordinarias doutrinas!

Eu tive conhecimento do primitivo projecto do Governo aqui mesmo nesta Camara, porque me foi mostrado por um dos Srs. Ministros e francamente nada me repugnou a sua materia.

D'esta vez tive conhecimento do projecto do Governo antes d'elle ter a devida publicidade.

Não foi só d'esta vez. Porque é preciso que eu declare que não tenho, nem desejo ter, com relação ao Governo, outra responsabilidade que não seja a do meu apoio a fim de realizar o seu conhecido programma de administração.

O Governo tem responsabilidades proprias indeclinaveis e intransmissiveis aos partidos que o apoiam.

Ainda no outro dia um dos mais eloquentes0 oradores d'esta casa, o Sr. Alpoim, num dos seus admiraveis discursos, me censurava porque o Discurso da Coroa não fazia a menor referencia á liberdade de imprensa, ao direito de reunião e de associação e a outros assuntos sobre os quaes eu tinha aqui mostrado, por diversas vezes, opiniões definidas. Nunca houve accusação mais injusta.

Eu só conheci o Discurso da Coroa quando o ouvi ler pelo Chefe do Estado. O mesmo me aconteceu com o projectado contrato de S. Carlos, com o emprestimo contraindo pelo Sr. Ministro da fazenda, com o concurso para a construcção de navios e com tudo o mais. Só conheci esses factos quando todos os conheceram.

Que responsabilidade directa posso eu ter em qualquer d'elles?

Não tenho eu affirmado que fui contrario á dissolução das Côrtes e não foi isso aqui confirmado pelo Sr. Presidente do Conselho, que justificou esse acto como entendeu conveniente?

E comtudo foi-me attribuida a responsabilidade d'esse acto.

Tem o partido regenerador no Governo dois dos mais eminentes dos seus estadistas, mas nem o partido nem o seu chefe intentam exercer a menor especie de tutela sobre os seus actos. Isso seria indecoroso, porque representaria um attentado contra a dignidade de quem tão nobremente acceitou o poder.

Governa o Sr. Presidente do Conselho com as suas ideias e as dos seus collegas e governa muito bem e por isso lhe damos a nossa confiança. Mas essa confiança não precisa de que eu conheça previamente os actos do Governo e nem exige qualquer acto que tire ao Governo a absoluta liberdade de proceder com as responsabilidades respectivas.

Não me repugnou a materia do projecto, porque eu suppunha que não ha para se fazer o apuramento do debito da Casa Real senão um de tres caminhos a seguir, traçados todos pelo mesmo pensamento fundamental:

1.° Entregar o apuramento a um dos tribunaes existentes no país, onde, com a audiencia da Casa Real, se fizesse a liquidação definitiva. Poderia sem inconveniente ser o Tribunal de Contas;

2.° Entregar a um tribunal, expressamente constituido para este fim, a solução da questão, que foi a doutrina do projecto do Governo;

3.° Entregar ao julgamento de um tribunal arbitral, constituido por dois arbitros nomeados pelo Governo, doia pela Casa Real e um arbitro de desempate, de reconhecida competencia e respeitabilidade, a definitiva liquidação dos debitos em litigio.

De todas as soluções, esta ultima seria para mim a preferivel, porque é a mais vulgar em circunstancias identicas e tambem a mais equitativa. Então a Casa Real pode merecer-nos menos consideração do que a Companhia dos Tabacos, a Companhia Real dos Caminhos de Ferro do Norte e Leste, a Companhia das Aguas ou qualquer outra companhia, das muitas que teem visto liquidar os seus débitos por meio de tribunaes arbitraes. Então os adeantamentos feitos em 1891 á Companhia, do Norte e Leste, em importancia muito superior aos da Casa Real, não foram liquidados directamente em controversia entre o Estado e aquella companhia? Houve, porventura, commissões de inquerito parlamentar com funcções juridicas de apuramento de contas? E não se tornou effectiva na Camara dos Deputados a responsabilidade dos Ministros que os autorizaram? Significa isto liquidar a occultas os débitos da Casa Real?

Não, Sr. Presidente. A liquidação teria a publicidade que teem todos os tribunaes e que, até agora, por falta d'esse requisito, ninguem se atreveu a declarar suspeitos. Quem impedia a Camara de pedir copia de todo o processo? Quem obstava a que ella interpellasse o Governo ou occultasse os autores dos adeantamentos por quaesquer irregularidades praticadas?

Mas ha tambem uma questão de ordem politica e não serei eu, certamente, quem a conteste ou quem pretenda impedir, a sua discussão. Essa questão é da competencia de ambas as Camaras e para a esclarecer pode nomear-se uma commissão de inquerito, por virtude do artigo 14.,° do Acto Addicional, não para apurar débitos nem fazer liquidações, mas para verificar a existencia das responsabilidades politicas de quem fez os adeantamentos.

Quero referir-me á declaração feita aqui pelo extincto chefe do partido regenerador, Hintze Ribeiro, na sessão de 21 de novembro de 1906. Concordo com o que disse o Digno Par Sr. Arroyo, em uma das ultimas sessões, e é que a declaração feita por Hintze Ribeiro deixou no nosso espirito a impressão de que os Governos regeneradores não tinham feito nenhuns adeantamentos á Casa Real. Comtudo, examinando attentamente essa declaração, sou levado a concluir que não é essa a interpretação rigorosa das suas palavras. Eis o que elle disse e consta do Annuario das Sessões. Depois de estranhar e censurar a declaração feita

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10 ANNAES DA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO

pelo Presidente do Conselho, acrescentou:

Tem havido despesas, alem das que são consignadas estrictamente á dotação da Familia Real. Essas despesas dizem respeito principalmente á representação do país e ás obras nos palacios reaes.

A dotação da Familia Real está calculada para o seu viver normal e não para os casos especiaes de visitas a soberanos estrangeiros, o que em toda a parte constitue uma despesa extraordinaria.

Analysando as palavras do eximio estadista, vê se que elle não nega a existencia de adeantamentos á Casa Real. Ao contrario affirma que se fizeram para despesas nos Paços Reaes e para representação do país. Alem d'estes confessa que houve outros, porque diz que estes foram os principaes. Deduzo eu que os outros adeantamentos foram do pequena importancia, e que os que realmente avultam foram as despesas feitas com a conservação e restauração dos paços reaes e com a representação do país, na parte desempenhada pelo Rei.

Ora, eu pergunto:

Devem reputar-se adeantamentos á Casa Real para o effeito de exigir o seu reembolso, as despesas feitas com a restauração dos paços reaes, muitas d'ellas em occasião que era preciso fazê-las para a condigna recepção dos Soberanos estrangeiros?

Não eram essas despesas, alem de obrigatorias para o Estado como proprietario dos paços reaes, necessarias para a representação do país?

Podem reputar-se adeantamentos as quantias gastas, ainda na parte entregue directamente á Casa Real, por motivo das visitas dos Reis de Espanha, de Inglaterra, do Presidente da Republica Francesa, do Imperador da Allemanha e de quaesquer Principes estrangeiros?

Podem reputar-se adeantamentos as quantias que se despenderam nas viagens do Rei a Espanha, a Franca e a Inglaterra?

Eu supponho que não. Em toda a parte despesas d'essa natureza, são chamadas extraordinarias e ficam a cargo do Estado. Se os Ministros que as autorizaram as não legalizaram trazendo-as á Camara, ou não abriram, estando ella fechada, os respectivos creditos, commetteram uma grave falta, mas a essa falta, de natureza politica, é estranha a Casa Real. Mas não é uma falta grave, pois só o seria se realmente taes despesas não pertencessem ao Estado.

Acêrca dos paços reaes, que é onde certamente figuram as verbas mais importantes, cumpre não esquecer o que se encontra nas leis do país.

A Carta entregava á Rainha D. Maria II todos os paços que tinham sido possuidos pelos Reis seus antecessores. Ficavam-lhe pertencendo, o que parece cobrir-lhe a propriedade plena. O decreto de 18 de março de 1834 extinguiu, porem, a casa do Infantado, incorporando os seus bens nos proprios nacionaes, mas os palacios e quintas da Bemposta, Alfeite, Samora Correia, Caxias e Monteira, casas, quintas e mais dependencias foram destinadas a recreio e decencia, da Rainha, como os palacios e terrenos de que tratava o artigo 80.° da Carta Constitucional. Estabelecida ficava assim a situação da Rainha com referencia a estes bens. Era simplesmente usuaria. Uso e habitação era o direito concedido.

Veio a lei de 19 de julho de 1855 e fez importantes alterações no regime existente. Permittiu o arrendamento dos bens da Coroa, com excepção dos jardins de recreio e dos palacios destinados para residencia ou recreio do Rei. Aquelles ficavam no usufruto da Coroa, nestes tinha o Rei o direito de uso e habitação.

E já se vê, Sr. Presidente, quanto era injusta e infundada a accusação feita á Casa Real por ter arrendado ao Estado alguns palacios e terrenos de que era usufrutuaria. Essa faculdade não só lhe é concedida expressamente pela lei de 1855, mas está comprehendida nos direitos geraes dos usufrutuarios, que podem, nos termos da lei civil, arrendar, alugar ou trespassar o usufruto. Dizia-se com a indignação, do costume: "Pois ha de permittir se que o Estado pague renda pelo uso de predios de que é proprietario?

Como se isto tivesse alguma cousa de censuravel!

Todos sabem que o proprietario não tem outro direito, em relação ao predio usufruido, que não seja o de consolidar com • á sua propriedade o usufruto, quando este termine. O usufrutuario pode arrendar a qualquer pessoa, incluindo o proprietario, o predio usufruido, porque a renda que este ou outro lhe pague é o supposto valor annual do usufruto; isto, que é rudimentar, andou por ahi em discussões de ordem politica como se fosse um delicto praticado em commum pelo Governo e pela Casa Reai.

Quanto ás despesas como os concertos e reparações, estão ellas bem reguladas. Nos bens de que a Coroa é usufrutuaria, essas despesas regem se pelas disposições da lei civil; nos outros bens a lei manda para aquelle effeito inscrever annualmente no orçamento a verba de 6:000$000 réis..

É necessario exceder a verba orçamental? O dever do Governo é proceder nesse caso como em todos os outros casos semelhantes. Mas isso não são adeantamentos feitos á Coroa; são despesas obrigatorias do Estado.

Das despesas para viagens ou recepção de Soberanos estrangeiros convem dizer que, se a Coroa fosse obrigada a pagá-las, duas visitas de Soberanos bastariam para absorver em festejos a dotação de um anno inteiro, ficando o Rei sem meios de sustentar a sua casa.

Ha outras quantias abonadas alem d'estas? Por mim não posso dar testemunho, porque, como todos sabem, estou ausente do. Governo ha cerca de dezasete annos. Isto não é fugir a responsabilidades. Cada um tem aquellas que realmente lhe pertencem. Mas se precisam para qualquer effeito politico de declarações minhas, ahi vae uma que ninguem me obriga a fazer, que para muitos será inhabil, por ser desnecessaria, mas que eu não tenho duvida em publicar, porque está na franqueza do meu caracter, que nunca será manchado por quaesquer artificios politicos.

Se eu fosse Ministro e visse o Chefe de Estado prejudicado na sua autoridade moral por exigencias dos seus credores, que elle não pudesse satisfazer pelos seus recursos proprios, se taes exigencias representassem o que se chama um escandalo, dentro ou fora do país, e se as circunstancias fossem urgentes, eu acudir-lhe-hia com os recursos necessarios para o evitar, e viria dizer immediatamente á Camara. Assumo inteiramente todas as responsabilidades do acto que pratiquei, porque entendo que é bem desgraçado o país que não tem um Ministro, não direi bastante corajoso, mas vulgarmente correcto para manter, evitando um escandalo, o prestigio da Monarchia, que lhe cumpre defender.

Austeridades á custa dos outros sempre as detestei. Nem do Rei, nem do mais humilde funccionario. Se alguma vez as pratiquei foi sempre á minha propria custa. Mas isso é commigo e não merece elogios nem louvores. Alcançar applausos por ter deixado exposto á irrisão publica o credito e o prestigio moral da pessoa que consubstancia em si a mais elevada das funcções monarchicas, isso nunca. Isso não é austeridade, é egoismo, quando não é timidez ou covardia. Estou convencido de que a Camara me absolveria, porque eu havia de justificar-me como o devem fazer os homens honestos. Mas se me condemnassem, não seria uma condemnação deshonrosa, porque dentro da minha consciencia encontraria a plena justificação do meu acto.

Conheço as difficuldades com que arrostou a Casa Real no ultimo reinado. Assisti ao contrato de cerca de 300 contos, que é do dominio publico e parlamentar, celebrado com o Banco de

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SESSÃO N.° 17 DE 17 DE JUNHO DE 1908 11

Portugal, e garantido por uma apolice de seguro de vida, porque a Casa Real não tinha outros valores que o pudessem caucionar.

Se é certo que em Londres possuia o monarcha fallecido 80 contos, que é isso como valor fie espolio, para quem deixa uma divida conhecida de cerca de 300?

Sabe se que a casa de Bragança vale mais de 1:000 contos e ninguem ignora que ella rende cerca de 40 contos annualmente. O seu rendimento durante os annos de todo o reinado não devia ter sido inferior a 1:000 contos. Nada poderia admirar, portanto, que chegasse para a desonerar de encargos, deixando-lhe ainda o saldo de algumas centenas de contos. E, comtudo, as despesas da Casa Real tudo absorveram, o que bem demonstra quanto eram* verdadeiras as difficuldades financeiras com que lutou.

Vou concluir, Sr. Presidente, terminando as minhas considerações nos seguintes termos:

Não posso com o .meu voto, e com muito sentimento o digo, approvar o projecto do Digno Par o Sr. Baracho, porque não é funcção d'esta camara nomear a commissão de inquerito do fim do reinado, e nem lhe poderia conceder os poderes discrecionarios que S. Exa. pretende.

Dou porem o meu voto a uma commissão de inquerito nomeada nos termos do antigo 14.° do Acto Addicional, que, reunindo por meio das possiveis investigações os documentos existentes sobre o assunto dos adeantamentos, nos habilite a desempenhar a funcção que nos pertence e que é discutir e votar o projecto de lei sobre os adeantamentos e a lista civil. Até aqui chega na minha opinião o direito d'esta Camara. Mas d'aqui não pode passar. - Essa commissão é mais do que sufficiente para que a Camara possa conhecer o assunto em todos os seus pormenores e para que possa tornar effectiva a responsabilidade politica de quem fez qualquer adeantamento. Venham todos os documentos; não se occulte nada nem á Camara nem ao país. A questão dos adeantamentos não pode tratar-se em these; só verificando cada uma das hypotheses, cada uma das verbas, as circunstancias em que o adeantamento foi feito, é que pode pronunciar-se um juizo seguro. Se algum dos Ministros dos Governos regeneradores abonou alguma quantia, elle pela sua voz eloquente se justificará. De pouco servirá a minha palavra para o defender, mas chegará até onde eu a puder levar, porque sei de antemão que só o interesse publico poderia dirigir os seus actos. Ponhamos, porem; a questão no seu verdadeiro terreno.

Os partidos nada teem com isso.

Pois quê! Não vemos nós os proprios Ministros que serviram em situações em que se fizeram adeantamentos declinando a responsabilidade d'elles por não terem sido approvados em Conselho de Ministros? Como hão de então os partidos ser responsaveis por actos em que não collaboraram?

Então esses Ministros nem mesmo pertenciam aos partidos que agora pretendem sobrecarregar de responsabilidades? Quando sairam d'elles passaram o rio do esquecimento, e deixaram na margem toda a carga das responsabilidades contrahidas? Não comprehendo, Sr. Presidente. Eu não intento impor responsabilidades a ninguem; cada um toma as que quer; acceito as declarações que façam; mas seja-me ao menos permittido tirar as conclusões que logicamente d'ellas derivam. Não chego a perceber como elles estão isentos de responsabilidades, por não terem sido ouvidos pelos seus collegas, e ao mesmo tempo sejam tão crueis para com os partidos que nem ouvidos podiam ser.

Aqui termino, promettendo voltar ao debate, se eu entender que é necessario responder a qualquer impugnação que me fizerem.

Tenho, concluido. (Vozes: - Muito bem).

(O orador foi cumprimentado por muitos Dignos Pares de todos os lados da Camara).

O Sr. Sebastião Baracho: - Agradeço, essencialmente penhorado, as lisonjeiras referencias que me fez o Digno Par, ao iniciar o seu brilhante discurso, tão recheado de curiosas informações e, sem a menor duvida, amoldado pela mais selecta jurisprudencia.

Não obstam, porem, estes predicados a que eu me mantenha no pé em que me colloquei, derivante dos genui nos preceitos constitucionaes, sustentados na minha proposta, cujas conclusões convem desde já indicar, e são d'este teor:

1.º Que por ella (por esta Camara) seja nomeada uma commissão de 21 membros, que, dividida em secções, procederá a rigorosa syndicancia ás Secretarias do Estado e suas dependencias, a qual abrangerá todo o periodo do reinado transacto,

2.° Que a commissão inaugurará os seus trabalhos procedendo ao apuramento das responsabilidades de toda a ordem, motivadas pelos adeantamentos illegaes á fazenda da Casa Real e a quaesquer funccionarios do Estado - apuramento que deve abranger todos os beneficios de natureza varia, auferidos pela Coroa, por os diversos Ministerios, com violação das leis do Reino.

3.° Que a commissão seja investida de plenos poderes, indubitavelmente consentaneos com a melindrosa e alta missão que lhe é confia-la, e indispensaveis para que ella não passa, por circunstancia alguma, ser contrariada e diminuida no exercicio das suas importantes funcções. = Sebastião Baracho.

O Digno Par a que tenho a honra de responder iniciou a sua oração alludindo ás cartas, tão debatidas nesta casa, do fallecido Rei D. Carlos, e protestou não chamar ao debate a pessoa do Rei.

Contraditorio comsigo mesmo - e não foi a unica vez que se patenteou sob essa feição- o illustre orador concluiu o seu discurso tratando de adeantamentos á Familia Real, pela forma melindrosa por que eu o não faria.

De resto eu não tenho por habito occupar-me, nas discussões politicas, das pessoas reaes. Alvejo sim o Governo, que é o responsavel, segundo a letra constitucional, pelos actos do poder moderador,- que mais cabidamente se deve denominar poder perturbador - o Governo, que é o responsavel pelo poder neutral, conforme a designação de Benjamim Constant, e que mais apropriadamente se poderia intitular poder parcial.

Os actos verdadeiramente perturbadores da boa ordem, e de parcialidade manifesta, os quaes tanto teem contribuido para a anarchia politica em que vegetamos, justificam as denominações por mim empregadas, e ainda a extincção de um tal poder, que não encontrou guarida na Constituição de 23 de setembro de 1822, nem tão pouco na de 20 de março de 1838.

Posto isto, seja-me licito insurgir-me contra a asseveração do Digno Par e meu velho amigo, de que esta Camara carece de idoneidade para proceder a inqueritos e syndicancias.

Pretendeu o Digno Par, com razões de ordem juridica, firmar a preferencia da Camara Electiva para o desempenho de missões d'essa natureza.

Labora, no meu conceito, o meu contraditor no mais completo engano.

Nesta Camara não predomina o facciosismo politico, e nella revive a prudencia, derivante da idade provecta dos seus membros. Demais, pelo caracter vitalicio dos seus membros, qualquer commissão inquiridora por ella nomeada disporia do tempo preciso para se desempenhar do seu mandato.

Afigura-se-me que estas condições que, em todo o ponto se recommendam, não residem na Camara electiva, cujo organismo, por ser muito differente, a não permitte cultivar.

Na Italia, que pode servir de modelo aos países democraticamente constituidos, o Senado procede a syndicancias dos actos e serviços publicos; e nem por isso fica privado de exercer as funcções de alto tribunal de justiça. Assim, quando em 1904, eu pedi aqui uma syndicancia a uma repartição do Estado, o Senado italiano procedia, por delegação propria, a um inquerito referente a assuntos de marinha. Recen-

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12 ANNAES DA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO

temente, funccionando como tribunal, julgou pelo crime de peculato e condemnou um antigo Ministro da Coroa, em onze meses de prisão, que foram integralmente cumpridos.

Já vê, Sr. Presidente, que, se pequei e peco, faço-o na melhor companhia. Á Italia sobeja a autoridade, em assuntos como os que estamos versando, para poder servir de modelo.

Mas não é preciso sair do reino para mostrar ao Digno Par quanto elle se afastou das boas praxes e normas, por que temos de nos pautar.

Citando o artigo 15.° da Carta e o seu § 5.°, attribuiu-os para exercicio da Camara electiva, quando assim não é. Figuram elles no titulo IV, intitulado do Poder Legislativo, e são concebidos por esta forma:

" Art. 15.° É da attribuição das Côrtes:

.............................................
§ 5.° Na morte do Rei ou vacancia do Throno, instituir exame da administração que acabou, e reformar os abusos nella introduzidos.

São as Côrtes, note-se bem, isto é, as duas Camaras, que disfrutam essas attribuições, e não apenas a Camara dos Senhores Deputados, como o illustre orador, por equivoco, assegurou.

Confirmação similar se encontra no artigo 14.° do Primeiro Acto Adicional de 5 de julho de 1852, e cuja letra é a seguinte :

"Art. 14.° Cada uno a das Camaras das Côrtes tem o direito de proceder, por meio das commissões de inquerito, ao exame de qualquer objecto da sua competencia.

§ unico Ficam d'este modo addicionados e ampliados os artigos 36.° e 139.° da Carta Constitucional".

Pelo que fica transcrito se reconhece, indubitavelmente, que aã duas Camaras se encontrara equiparadas, sem reservas nem subterfugios, na missão de inquiridoras.

Affirma o Digno Par que os legisladores de 1852 não pretenderam expropriar a outra Camara da regalia de syndicante.

E quem o contesta?

Eu, pela minha parte, limito-me a assegurar que, segundo a letra e o espirito do citado artigo 14.°, apenas se equipararam attribuições. O facto citado pelo Digno Par, de que Vicente Ferrei* só na ultima redacção da lei introduzira no § unico, retro-referido, o artigo 36.° e seu paragrapho, não contradiz a minha affirmação. Esta Camara não lhe oppôs reparos, e outro tanto succedeu na Camara electiva, quando a modificação foi conhecida. Todas as circunstancias se conjugam, pois, para collocar em pé de igualdade as duas casas do Parlamento.

Entende ainda o Digno Par que o apuramento das responsabilidades criminaes e civis, por intermedio d'uma commissão parlamentar, não passa de uma fantasia da Carta.

Contesto, permitia S. Exa., semelhante asserção. O apurada pela commissão politica de inquerito em 1879-1880 contradiz em absoluto essa affirmativa. Attribuir desde já omissões a trabalhos que teriam de se realizar importa em suspeições, que só é licito levantar quando derivem de actos notoriamente conhecidos. Num ponto, porem, estou de acordo com o Digno Par, e vem a ser quando promette fazer uma Constituição nova. Não será ella, por certo, amoldada pelas aspirações ultra liberaes. Todavia, representará, seguramente, um melhoramento, perante a Carta caduca, que hoje vergonhosamente vigora.

O Digno Par, cuja erudição é conhecida, citou João Jacques Rousseau, não o considerando, a despeito do seu profundo sentir humanitario, um bom inspirador de Constituições.

Conforme Herbert Spencer assegura na sua Sciencia Social, quem, em regra, mais lê, é quem possue poucos ou nenhuns livros. O Digno Par constitue excepção á affirmativa do grande philosopho britannico. Possue escolhida livraria, e dedica se á leitura dos livros que a exornam.

Por seu turno, citarei Pitt, para lembrar que elle cumpria á risca as promessas que fazia sem discrepancia alguma. Este facto originou dizer-se, como proverbio, que não se desculpa quem governa ao abrigo de promessas que se não cumprem.

Tenha presente o Digno Par este conceito, para que não falte a elaborar uma nova Constituição, quando vier a presidir aos Conselhos do Governo. Para então, reserva o Digno Par a doutrina consubstanciada no artigo 38.° da Constituição de 20 de marco de 1838, o qual é d'este teor:

Art. 38.° Cada uma das Camaras, no principio das sessões ordinarias, examinará se a Constituição e as leis teem sido observadas.

Nada tem a oppor a estes orthodoxos. preceitos, e unicamente notará que o Digno Par se esqueceu de citar o artigo 39.°, o qual completa o anterior, nos seguintes termos:

Artigo 39.° Cada uma das Camaras tem o direito de proceder, por meio de commissões de inquerito, ao exame de qualquer objecto da sua competencia.

Consoante se observa, e convem registar, na Constituição de 20 de março de 1838 as attribuições inquiridoras eram identicas para as duas Camaras.

O Deputado Castello Branco, citado pelo illustre orador, bem fez; em apresentar a proposta que apresentou - apesar do seu mallogro - para ser examinada a administração do reinado da Senhora D. Maria II. Era positivamente constitucional e utilmente fiscalizadora.

O segredo profissional, com que o Digno Par tropeça, para se levar a bom termo a inquirição, desappareceria com a adopção da minha proposta que nesse sentido previdencia.

Do mesmo, modo, não tem razão de ser a objecção apresentada de que são privativas da Camara electiva as accusações cujo julgamento compete aresta Camara. Isto não é positivamente assim. O artigo 37.° estatue effectivamente o seguinte:

Art. 37.° É da privativa attribuição da Camara dos Deputados decretar que tem logar a accusação dos Ministros de Estado e Conselheiros de Estado.

Já vê o Digno Par que a acção privativa da Camara electiva incide apenas sobre os Ministros de Estado e Conselheiros de Estado.

Outros poderiam ser, portanto, os responsaveis apurados; e, em todo o caso, a doutrina geral estabelecida preceitua igualdade de attribuições ás duas Camaras, na materia sujeita.

Passou depois o Digno Par a versar o negocio dos adeantamentos, assegurando que nelles residem duas questões:- uma de ordem civil, e outra de ordem politica. E eu addicionarei mais uma: -a de ordem criminal.

Note-se, porem, que as responsabilidades de ordem criminal só teem de ser exigidas aos vivos, porque aos mortos cabo serem exclusivamente julgados pela Historia, a qual saberá conjugar todos os factores, para formar o seu juizo recto, imparcial e justo.

Para apurar os adeantamentos, insurge-se o Digno Par contra os inqueritos parlamentares, e alvitra, em logar d'esse expediente salubrizador, estes tres processos: - entregar a questão ao Tribunal de Contas, ou ao tribunal criado pelo artigo 5.° da proposta de lei acêrca da lista civil; ou ainda a um tribunal arbitral.

Sou absolutamente contrario ao parecer do Digno Par.

A syndicancia parlamentar é, no meu entender, o recurso a todos preferido. Nenhum dos outros pode ter cabimento, e nomeadamente o juizo arbitral, para que é de costume appellar unicamente quando as duas partes estão em litigio.

Ora poder suppor que entre o Chefe do Estado e o Governo não haveria acordo na liquidação das suas contas importaria numa affirmação em todo o ponto desfavoravel ao credito das duas partes desavindas. Não é licito haver discordancia s entre as duas partes contratantes, em assunto de tão expressiva magnitude.

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SESSÃO N.° 17 DE 17 DE JUNHO DE 1908 13

Contraditorio foi de novo o Digno Par, que iniciando o seu discurso com a citação de Fontes, acêrca de responsabilidades, contraria essa mesma citação, affirmando que todos teem responsabilidades no negocio dos adeantamentos.

Pela parte que me respeita, protesto contra tal asserção, que só poderia tornar-se effectiva se eu os tivesse conhecido e me tivesse conservado partidariamente arregimentado. Como tal facto se não deu, a doutrina que sustento é a mesma que sustentei na sessão de 23 de novembro de 1906, quando o chefe do Governo d'essa epoca alimentou pretensões semelhantes.

Então, protestei em termos significativos, consignados pela forma seguinte:

"Conforme se observa, ha, repito, responsabilidades e responsabilidades. Não podem acêrca d'ellas alimentar-se confusões, como o pretendia o Sr. Presidente do Conselho.

Mais uma vez o recordo, não sou attingido por nenhumas1 outras que não sejam as minhas, muito minhas.

Estranho completamente á engrenagem do absolutismo bastardo dominante, isolado de todos os partidos e facções, monarchicos e republicanos, conservo-me ha annos em situação autónoma, respondendo apenas, como me cumpre, pelos meus actos. Mas, quando não me encontrasse nesta attitude excepcional, teria para me apoiar Fontes Pereira de Mello.

Em 1882, Saraiva de Carvalho e o Sr. José Luciano de Castro quiseram attribuir-lhe responsabilidades que, impendiam sobre o Ministerio anterior, da mesma costella politica, presidido por Antonio Rodrigues Sampaio.

Entra na sala o Sr. Presidente do Conselho.

Entra a proposito o Sr. Presidente do Conselho, a quem tenho de me referir mais adeante, e a quem peço desde já a sua attenção, a fim de poder apreciar como Fonte: pensava em questões de responsabilidades

Tem a palavra o antigo chefe do partido regenerador, que neste sentido se exprimia, replicando a Saraiva de Carvalho:

"... a responsabilidade politica, em relação ao Ministerio, é a responsabilidade que dá em resultado, ou a continuação do Ministerio á frente do poder ou queda d'esse Ministerio.

Mão tem consequencias nem as pode ter.

Ora, se este Ministerio fosse responsavel pelos actos do Ministerio anterior, e se isso em regra se pudesse estabelecer como meio de cobrir a Coroa da sua responsabilidade, o resultado era que vinha a ser responsavel pelos actos que tivessem praticado todos os individuos que se tenham sentado nestas cadeiras".

Dirigindo-se ao Sr. José Luciano de Castro, Fontes accentuava ainda a sua opinião da seguinte maneira:

"Nunca declinei a minha responsabilidade nem como homem publico, nem como particular, dos actos que pratico; mas, a dizer a verdade, nunca me julguei obrigado a acceitar a responsabilidade dos actos que os outros praticam, quer sejam dos meus amigos politicos, quer sejam das pessoas da minha propria familia.

Recordou este sensato parecer em 1903, e em 1904 nesta Camara. Os factos de agora aconselharam-me nova edição confirmativa da doutrina por que sempre me tenho orientado.

Renovado este meu protesto, direi que me não conformo com a affirmação feita pelo Digno Par, de que não teria duvida de occorrer illegalmente ás despesas da Familia Real, com ou sem bill subsequente. quando a lista civil não providenciasse nos termos devidos.

Semelhante aspiração, a tornar-se effectiva, seria essencialmente perturbadora, e invalidaria o que existisse honestamente legislado, e tem de merecer o respeito de todos, sem excepção.

Pelo contrario, eu só entendo indispensavel o acatamento integro da lei da lista civil, como julgo da maxima conveniencia determinar na mesma lista averba destinada a custear annualmente as obras nos Paços Reaes. Pêlo artigo 4.° da lei de 16 de julho de 1855, confirmada pela lei dotal do Rei D. Luiz, de 11 de fevereiro de 1862, e pela lei dotal do Rei D. Carlos, de 28 de junho de 1890, a verba destinada para tal fim era de seis contos de réis, que foram inseridos no orçamento, até ao exercicio de 1898-1899. Depois d'isso, as despesas avolumaram-se por centenas de contos, que se diziam despendidos em obras nos paços regios e em mobiliario, dando margem tão retinta prodigalidade aos mais severos e justos commentarios.

Não podem1, por principio algum, continuar semelhantes processos esbanja dores, impondo-se, como moralizador preceito inilludivel, a fixação de verba annual, para tal fim designada na lista civil.

E para concluir, visto ter acompanhado o discurso do meu contraditor, nas suas diversas modalidades, dir-lhe-hei que não acceito a transacção que me propõe, modificando a minha proposta.

Prefiro, por todos os motivos honrosos, que ella morra intacta, com as honras da guerra.

O simples exame, tal qual me é indicado, redundaria num arrolamento inutil, essencialmente rotativo a todos os respeitos. Eu sou fundamentalmente pratico, e nessa qualidade elaborei a minha proposta, cujos resultados seriam de beneficio apreciavel e no campo dos bons principios administrativos e da sadia moralidade.

O exclusivismo predominante não o entendo assim, e seguramente procedo norteado pela mesma bussola, concernentemente ás minhas outras propostas.

O rotativismo e consortes continua sem emenda, mantendo se no recinto fechado - seu logradouro uberrimo - o que produziu já o desabamento do reinado anterior e prepara a agonia, porventura proximo, do actual.

O absolutismo bastardo prosegue campeando, em toda a sua exuberancia.

Não ha liberdade de consciencia, nem de pensamento. Os direitos individuaes são completamente postergados.

A Bastilha hedionda ergue-se como o symbolo do opressor regime vigorante.

Tudo, na existencia official, se produz ao invés do que seria aconselhado para que as instituições se arraigassem, e a Nação tivesse vida desafogada.

Na vigencia do quadro que deixo esboçado, com a maxima precisão, ostenta-se dominador e inconsciente o rotativismo e adherentes, em connubio incestuoso, para não dizer em concubinagem affixada.

Esta é a verdade pura e simples - a triste verdade desgraçadamente.

(S. Exa. não reviu).

O Sr. Ministro da Justiça (Campos Henriques): - Sr. Presidente; mando para a mesa a seguinte proposta:

"Em conformidade com o disposto no artigo 3.° do Primeiro Acto Addicional á Carta Constitucional da Monarchia, pede o Governo á Camara dos Dignos Pares do Reino a necessaria permissão para que possa accumular, querendo, as funcções legislativas com as dos seus logares, dependentes do Ministerio dos Negocios Ecclesiasticos e de Justiça, o Digno Par Eduardo José Coelho.

Secretaria de Estado dos Negocios Ecclesiasticos e de Justiça, em 17 de junho de 1908. = Arthur Alberto de Campos Henriques".

Lida na mesa foi approvada.

O Sr. Presidente: - Deu a hora.

A proximo sessão é na sexta feira, 19, e a ordem do dia a continuação da que estava dada para hoje e em seguida os projectos n.ºs 10 e 11 e 2 e S.

Está encerrada a sessão.

Eram 5 e 30 minutos da tarde.

Dignos Pares presentes na sessão de 17 de junho de 1908

Exmos. Srs.: Antonio de Azevedo Castello Branco, Eduardo de Serpa Pimentel; Marquezes: de Avila e de Bolama, de Penafiel, de Sousa Holstein; Condes: de Arnoso, de Bertiandos, do Bomfim, do Cartaxo, de Figueiró, de Mártens Ferrão, de Paraty, de Sabugosa, de Valenças, de Villa Real; Viscondes: de Athouguia, de Tinalhas; Moraes Carvalho, Pereira de Miranda,

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14 ANNAES DA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO

Costa e Silva, Campos Henriques, Ayres de Ornellas, Eduardo José Coelho, Fernando Larcher, Matozo Santos, Veiga Beirão, Dias Costa, Francisco José Machado, Francisco Maria da Cunha, Ressano Garcia, Baptista de Andrade, D. João de Alarcão, João Arrojo, Teixeira de Vasconcellos, Gusmão, José de Azevedo, Silveira Vianna, Julio de Vilhena, Luciano Monteiro, Rebello da Silva, Pimentel Pinto, Poças Falcão, Bandeira Coelho, Sebastião Telles e Sebastião Dantas Ba racho.

O Redactor,

ALBERTO BRAMÃO.

Representação enviada ao Digno Par Sr. Francisco José Machado

Dignos Pares do Reino. - Os abaixo assinados, proprietarios da grande maioria de pastelarias e confeitarias de Lisboa, vêem com o maximo respeito, e uso da faculdade que lhes faculta a Carta Constitucional da Monarchia Portuguesa no § 28.° do seu artigo 145.°, representar á Camara dos Dignos Pares do Reino, a fim de que na revisão dos decretos de 7 de agosto de 1907 e de 14 de outubro do mesmo anno, sobre o descamo se manai, seja attendida a justa pretensão que passam a expor:

Pelo decreto de 7 de agosto de 1907 foi estabelecido o descanso semanal obrigatorio para as classes trabalhadoras.

A forma, porem, como nesse decreto se mandou praticar tão justa como sympathica revindicação dos que trabalham levantou numerosos attritos e innumeras reclamações, que deram em resultado a publicação do decreto de 14 de outubro, que, modificando em alguns pontos o de 7 de agosto, não logrou todavia obviar a todos os inconvenientes, nem deu satisfação cabal a muitos dos justos protestos formulados contra o primeiro decreto, que havia regulado materia tão difficil e onde tantos interesses se chocam e embatem.

Assim, as reclamações formuladas pelos donos das pastelarias e confeitarias de Lisboa não foram attendidas, continuando para taes estabelecimentos o encerramento obrigatorio aos domingos e nos mesmos dias o o descanso dos seus empregados, com grave prejuizo conjunto do publico e dos referidos proprietarios dos estabelecimentos.

E, todavia, nada mais justo em si, e até em comparação com outras disposições do alludido decreto, do que permittir-se a abertura das pastelarias aos domingos, tendo os respectivos empregados um dia de descanso por turnos em cada semana.

Vejamos:

No artigo 3.° do decreto de 7 de agosto excepcionam-se, entre outros do encerramento e do descanso semanal os estabelecimentos industriaes em que a cessação do trabalho produza a destruição dos productos do fabrico e bem assim as padarias, talhos, estabelecimentos de venda de fruta, hortaliças, legumes e peixe fresco, [...], etc.

A ideia que presidiu a estas excepções foi, quanto a umas, a indispensabilidade dos referidos productos e generos para o consumo publico diario; quanto a outras, a facilidade com que os mesmos productos e generos se damnificam e deterioram de um dia para o outro.

Pois ambas estas razões colhem em favor das reclamações dos proprietarios das pastelarias e confeitarias, porquanto os respectivos productos, pelos usos e costumes d'esta capital, se tornaram indispensaveis para o consumo publico diario e os mesmos productos de deterioram de um dia para o outro com extrema facilidade ou pelo menos perdem as melhores das suas qualidades pelas quaes se recommendam e se impõem ao paladar.

Ninguem dirá que as frutas, as hortaliças e legumes e até o pão e a carne de não podem comprar ao sabbado para o consumo ao domingo.

E, todavia, o decreto excepcionou aquelles generos, e muito justamente, da prohibição da venda ao domingo, porque, se não todos, ao menos alguns d'esses generos se tornam inferiores e se damnificam com a demora, em casa do consumidor.

E, todavia, tambem se não pode dizer que, por exemplo, as frutas sejam mais indispensaveis ao consumo diario do que os generos de pastelaria e confeitaria.

E se assim é com relação a qualquer ponto do pais; mais flagrante se torna a comparação se nos referirmos a Lisboa, onde, como é do dominio publico, os artigos de pastelaria e confeitaria são de consumo permanente e indispensavel, graças ao fino gosto na popução da capital, e esse consumo attinge muito maiores proporções aos domingos e das destinados a descanso e a prazeres e em que as classes menos abastadas, que nos dias de somma se privam d'esses generos, os não dispensam naquelles dias já transportando-os para suas casas, já, e principalmente, com-prando-03 e consumindo-os nos respectivos estabelecimentos.

Assim, pois, no vigor do decreto de 7 de agosto, nem os consumidores do referido artigo podem fazer convenientemente os seus fornecimentos aos sabbados, não só porque muitos d'esses generos se deterioram de um dia para outro, mas tambem porque se não confeccionam outros que exigem consumo immediato, na incerteza de venda aos sabbados e na certeza da prohibição da venda aos domingos; nem o innumeravel publico que concorria aos estabelecimentos aos domingos, e ali fazia largo consumo, tem presentemente essa regalia, por se acharem fechados os estabelecimentos.

Resulta pois do disposto no decreto de 7 de agosto não só o prejuizo do publico, mas tambem o prejuizo dos proprietarios das pastelarias e confeitarias; e uma lei que regule o descanso semanal não pode nem deve concorrer para o prejuizo de quem quer que seja e estabelecer regalias á custa do sacrificio de interesses legitimos e respeitaveis;

E tanto assim é, que o proprio decreto de 7 de agosto, em o n.° 1.° do § 1.° do artigo 4.°, estabelece que, quando haja prejuizo para o publico, possa ser escolhido outro dia que não o domingo para o descanso semanal.

E tanto no caso de que nos occupamos ha prejuizo para o publico e para os donos dos estabelecimentos, que o mesmo decreto, no § 2.° do artigo 4.° assim o reconheceu, exceptuando do descanso e do encerramento dos estabelecimentos o domingo gordo, 1 de novembro, 8 de dezembro, os dias que decorrem de 24 de dezembro a 10 de janeiro e do domingo de Ramos ao domingo de Páscoa. Estas excepções, porem, valiosas como prova a razão que assiste aos representantes em suas reclamações, não se poderá chamar justiça, porque conteem apenas uma parcela de justiça e não ha justiça que não seja inteira e completa.

A população de Lisboa são compra extraordinariamente os productos de pastelaria e confeitaria somente naquelles dias excepcionaes, antes faz d'elles largas compras o consumo todos os domingos.

De resto a pretensão dos abaixo assinados não prejudica os seus empregados, os quaes da mesma forma terão um dia de descanso em cada semana por turnos, e ao que deve attender se é ao descanso em si e não ao dia em que elle tenha de executar-se.

Tambem os representantes não vêem que das suas reclamações provenha prejuizo para terceiros, mas caso o haja remedeie-se e faça-se desapparecer na lei esse inconveniente, pois que os abaixo assinados de forma alguma desejam prejudicar quem quer que seja e apenas aspiram a elles proprios e o publico não serem prejudicados, como sem sombra de duvida o são pelas disposições em vigor.

Os representantes, pois, conscios da justiça que lhes assiste, esperam do poder legislativo a satisfação das suas relamações a fim de que os estabelecimentos de pastelaria e confeitaria fiquem comprehendidos na disposição do artigo 3.° e no § unico do decreto de 7 de agosto de 1907, ou nas disposições da lei que haja de substituir aquelle decreto, por forma que possam estar abertos e transaccionar em todos os dias, tendo os respectivos empregados por turnos um dia de descanso em cada semana.

Lisboa, 30 de maio de 1908. = José Rodrigues Pires = M. Rodrigues & Rodrigues = A- Martins & C.a = José Alces = Feliciano Carvalho Vasconcellos Junior = João Ferreira de Castro = J. D. Wagner = Guedes & Ennes = J. Fernandes Junior = Manuel Gomes Vianna = Manuel Marques & C.ta = Casimira Benard = Diogo da Cunha = Antonio R. Mauricio = Empresa Bijou des Gourmets, L.da = Luis Pedro Nunes Ribeiro = Joaquim Antonio Henriques = Porto & C.ta

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