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N.º 24

Presidencia do exmo. Sr. Duque d'Avila e de Bolama

Secretarios.- os dignos pares

Eduardo Montufar Barreiros
Conde da Ribeira Grande

SUMMARIO

Leitura e approvação da acta da sessão antecedente. - A correspondencia é enviada ao sou destino. - O digno par Couto Monteiro apresenta a carta regia que eleva ao pariato o sr. conde de Torres Novas. - O digno par conde de Rio Maior manda para a mesa um requerimento de Antonio de Almeida Correia de Sá Portugal, pedindo para tomar assento na camara como successor de seu bisavô, o marquez do Lavradio. - Continuação da discussão do parecer n.° 23 sobre o projecto que tem por fim auctorisar o governo a conceder por arrematação a cobrança do imposto denominado o real de agua. - Considerações dos dignos pares Barres e Sá, e marquez de Ficalho. - Desistem da palavra os dignos pares Mendonça Cortez, Carlos Bento, conde de Rio Maior Miguel osorio e visconde de Chancelleiros.-Ponderações do digno par marquez de Vallada. - O digno par visconde de Chancelleiros requer votação sobre a sua proposta para que o projecto por 48 votos contra 38. - A generalidade do projecto é approvada. - Passa-se á especialidade: entra em discussão o artigo 1.º - Considerações do digno par visconde de Chancelleiros.

Ás duas horas e um quarto da tarde, sendo presentes! 20 dignos pares, o sr. presidente declarou aberta a sessão.

Lida a acta da sessão precedente, julgou-se approvada, na conformidade do regimento, por não haver reclamação; em contrario.

Mencionou-se a seguinte

Correspondencia

Um officio da presidencia da camara dos senhores deputados, remettendo a proposição, que tem por fim restringir a tres mezes o praso de lei que se estabeleceu para a organisação e revisão de uma tabella de valores que servisse; de base para o despacho dos principaes generos de exportação.

Á commissão de fazenda.

(Estiveram presentes os srs. presidente do conselho, e ministros da fazenda, marinha e obras publicas.)

O sr. Couto Monteiro: - Mando para a mesa a carta regia que elevou á dignidade de par do reino o sr. conde de Torres Novas.

O sr. Presidente: - Vae ser remettida á commissão respectiva.

O sr. Conde de Rio Maior: - Mando para a mesa o requerimento, em que o sr. Antonio de Almeida Correia de Sá Portugal pede para tomar assento n'esta camara como herdeiro de seu bisavô o sr. marquez de Lavradio.

D sr. Presidente: - Este requerimento vae ser remettido á commissão competente.

ORDEM DO DIA

Continuação da discussão na generalidade do parecer n.º 23

0,sr. Presidente: - Tem a palavra o sr. Barros e Sá para proseguir no seu discurso.

O sr. Barros e Sá: - Sr. presidente, forçado hontem a interromper o meu discurso, porque a hora marcou o termo fatal da sessão, devo continuar só por pouco tempo, pois que a camara está enfadada com esta discussão e a materia está esgotada.

Sem recapitular, entro na materia.

O systema de cobrança dos impostos indirectos sobre o consumo, por meio de arrendamento, imporia uma novidade.

Este methodo de cobrança está na nossa legislação antiga, e está igualmente na moderna.

O codigo administrativo approvado no anno de 1878, e que hoje é lei do estado, estabelece claramente este methodo de arrecadação no artigo 370.°, que diz assim.

(Leu.)

É, pois, clara a disposição da lei vigente proposta e referendada pelos dignos pares que hoje acham horroroso este systema!

Foi preciso que passassem dois annos para mudarem tão completamente de opinião?!!

Poderá parecer que por coherencia deviam s. exas. propor a revogação do indicado artigo 37.° do codigo administrativo, pois de outro modo o governo póde contratar avenças com as camaras, e estas podem depois arrematar, como effectivamente estão, arrematando. - Assim, pela legislação actual, as camaras podem fazer aquillo que agora se considera perigoso, sendo feito pelo governo.

E o que é a avença, principalmente a avença geral, feita com as camaras municipaes? - A avença é um verdadeiro e effectivo arrendamento. É um arrendamento dos tributos do estado feito sem praça, sem concorrencia, á porta fechada, sem garantia de publicidade. - Assim, pois, aquelles que não querem o arrendamento em praça, consentem-o e defendem-o sendo feito ás escondidas. Não querem o arrendamento directo e querem o indirecto. Não querem o arrendamento directo feito aos particulares mas consentem a sublocação feita pelas camaras!!

Dizem que a arrematação é um mau principio, e que a administração é um bom principio. Isto não é assim; - o principio está no imposto, tudo o mais é questão do methodo.- Não ha principio contra principio, - ha pratica e methodo contra methodo.- Póde ser que em certos casos e em certas circumstancias o resultado de administração directa, seja melhor, e em outros que seja peior. - Não ha, não póde haver, regra geral. Não ha, não póde haver verdade absoluta. A bondado ou maldade de um e do outro systema são, e serão sempre relativas; relativas ás circumstancias do tempo, do logar, do fim e dos meios de que se póde dispor para conseguir o fim que se tem em vista. - Qual a rasão porque nós, aqui votâmos annualmente que as obras publicas sejam feitas por arrematação? Porque é que nós recorremos á industria particular para fornecer os nossos arsenaes de armamentos e as nossas esquadras de navios de guerra? É porque entendemos que é melhor, mais proveitoso aos interesses do estado confiar na actividade individual do empreiteiro de que na collectiva do estado. - Se se tratasse de administração de justiça- da organisação e sustentação da força publica- da administração geral do estado, etc., etc. - quem se atreveria a propor o systema de empreitada ou de arrendamento? Mas segue-se d'aqui que não póde haver serviço algum publico que em dadas hypotheses seja melhor realisal-o por empreitada ou arrematação? Não se segue. - A questão é do modo, de circumstancias, de occasião é de fim.

Mas diz-se que o rendeiro ganha, e que portanto perde o estado.- Sim, é provavel que o rendeiro ganhe; mas

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não terá havido exemplos de perderem os rendeiros?- Mas quando ganhem, não será esse ganho equivalente ao risco, á sua maior actividade - ao seu zêlo, ao seu trabalho? - Mau será para o thesouro que o rendeiro perca. - Mas o estado não lucra igualmente a economia que faz nas despezas de percepção e fiscalisação? - Não é lucro tambem a certeza da cobrança do imposto?

Assim, - a verdade é que nem sempre o estado perde, nem sempre o rendeiro lucra. Em todo o caso este lucro será compensado pela economia na cobrança e certeza na percepção.

Emquanto aos vexames, é inquestionavel que a percepção e fiscalisação do imposto nos generos de consumo é sempre vexatoria, mas é vexatoria igualmente, quer seja feita por conta do estado, quer seja feita por arredamento.

O contribuinte é sempre vexado, quer seja fiscalisado pelo rendeiro, quer seja pelo agente do fisco.-O rendeiro, porém, terá sempre mais cautela em não vexar inutilmente porque o seu interesse está cem não irritar o contribuinte, em não se tornar odioso, em não levantar contra si a opinião da publico.- Se o rendeiro não e tolerante levantará contra si a animadversão dos contribuintes, e encontrará uma resistencia que não poderá vencer, e perde tudo.- A fiscalisação é sempre a mesma, quer na administração do estado, quer na do rendeiro. Quanto mais activa mais vexatoria; mas se não for activa não servirá de nada, e em tal caso é melhor extinguir o tributo.

Fallou-se tambem aqui em influencia eleitoral e politica. Eu entendo que é muito mais de receiar a influencia do fiscal do governo do que a do rendeiro, porque a d'este não poderá ser empregada senão á custa dos seus proprios interesses, e a do fiscal do governo será exercida á custa do thesouro.

Sr. presidente, está reconhecido por todos que os actuaes meios de percepção e fiscalisação do imposto do real ds agua são insuficientes.- Por isso é que por varias vezes se tem tentado estabelecer barreiras nas povoações, e guias de transito para a circulação. -Nenhum d'estes meios de cobrança tem podido praticar-se.-As barreiras caíram em 1868; e apesar do restauradas em 1878 pelos srs. Serpa e José de Mello, não poderam ser estabelecidas.- As guias de transito que foram propostas em 1873 e em 1878 pelo sr. Serpa não podaram vingar.- Se, pois, estes meios de fiscalisação, usados nas nações estrangeiras, são aqui rejetados, a que meios deveremos recorrer?!!

Não basta, auctorisar impostos, é preciso estabelecer meios administrativos de percepção.- Rejeitados aquelles que a experiencia de outros povos aconselham, quaes poderão ser adoptados? Sem meios adequados de fiscalização e cobrança é melhor extinguir o imposto.

Estou cansado, e a camara estará enfadada. Termino, pois, aqui as minhas observações.

O sr. Marquez d9 Ficalho: - Só por distracção poderia pedir a palavra, porque tenho negação para questões de fazenda, mas a minha distracção tem desculpa, porque quanto mais se afastava a discussão do projecto do real de agua, tanto mais se approximava da questão politica, e de tal modo me illudi, que julguei que era a resposta ao discurso da corôa.

Seria grande atrevimento fallar em finanças n'uma camara tão competente, que só ministros de fazenda conta seis ou sete, alem d'isso ha muitos annos que ando confuso, porque, se de um lado me dizem que podemos e devemos pagar mais, do outro me asseguram que não podemos com os encargos que temos; uns julgam-nos ricos e outros pobres; no entanto escuto as demonstrações de um e outro lado, e cada vez fico mais confuso, e noto que o maior numero julga pelo instincto estas questões; o meu, sr. presidente, diz-mo que Portugal não é miserave], nem pêco, mas que é pobre.

Não foi para tratar a questão de fazenda que pedi a palavra, pedi-a porque quero declarar que sou regenerador, e não o sou da vespera, sou do dia seguinte, porque vi inscriptas na bandeira d'esse partido duas palavras que me prenderam: paz e trabalho: a paz não a conhecia, em guerra tinha passado a minha vida, e justo era querer acabar em paz.

Sr. presidente, quando tive uso de rasão vestiram-me de luto, e rara era a familia portugueza que não tinha um signal igual; é certo que ouvi apregoar as pazes em 1804, mas a fatalidade não quiz que fossem para Portugal, porque a nação, abandonada pelo Rei, e offendida em todos os seus brios, conspirava.

Lembro-me, sr. presidente, com horror do dia em que foram justiçados Gomes Freire e os seus malfadados companheiros.

A conspiração n'esse tempo tornara-se mais larga, e propagára-se em mais vasta área; sentia-se, mas não se via, porque era agora mais sagas e prudente; rebentou por fim, e foram proclamados os principies da constituição de vinte. Porque não trouxe este movimento a paz? Porque pouco depois rebentava uma revolta era Traz os Montes. E viu-se então o seguinte quadro: um rei em Villa Franca, um principe em Santarem, as côrtes abandonando o seu palacio, a capital entregue ao seu povo, e este dando a mais severa lição a todas as outras classes, e denunciando claramente que se a anarchia pretende ás vezes ter logar nas altas regiões, não chega a propagar-se quando o povo não concorda com ella.

Chegou a carta, sr. presidente, e a paz viria com ella se não fossem os oito annos do guerra civil, acompanhada do seu tenebroso sequito de ruins paixões. Essa guerra que começou em 1826 acabou em 1834. Corramos um véu sobre as lastimaveis scenas d'esse tempo.

E eu, no entretanto, sr. presidente, descrente de encontrar a paz ambicionada, VI abrir-se ante mim um novo caminho. Fui levado por um homem, a quem preso e estimo infinitamente, a presenciar um espectaculo inteiramente novo. Esse homem senta-se n'aquellas cadeiras; refiro-mo ao sr. João Chrysostomo de Abreu e Sousa. Fomos companheiros e collegas nos trabalhos, collega não direi bem, porque elle foi mestre e eu discipulo. Fomos companheiros nas luctas; eu tinha visto Como se levantavam trincheiras, como se abriam fossos, como se assestavam baterias, mas não tinha visto como se faziam os sulcos na terra para dar passagem a esse novo elemento - o caminho de ferro.

Foi esse o espectaculo a que assisti.

Começava a nova era - a era da paz e o trabalho. (Apoiados.)

E essa nova era, sr. presidente, inaugurou-a a regeneração.

Eu applaudi sempre as idéas da regeneração, e ainda hoje as applaudo. Vejo n'aquellas cadeiras (apontando para as cadeiras do ministerio) cavalheiros comi cuja politica não concordo.

Não pergunto donde vem, nem para onde caminham. Donde vem, sei-o eu perfeitamente, mas para onde vão sabel-o-hei mais tarde. O que quero deixar bem consignado é que mo não contem nem no numero de seus adversarios, nem que me tenham na conta de seus amigos.

No resto da minha vida espero votar como jurado.

Não posso votar a arrematação do real do agua.

Tenho dito.

(O orador foi comprimentado por muitos dignos pares.)

O sr. Presidente: - Tem a palavra o digno par, o sr. Mendonça Cortez.

O sr. Mendonça Cortez: - Desisto da palavra.

O sr. Presidente: - Tem a palavra o sr. Carlos Bento.

O sr. Carlos Bento: - O exemplo é contagioso. Desisto da palavra.

O sr. Presidente: - Segue-se na ordem da inscripção o sr. conde de Rio Maior.

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O sr. Conde de Rio Maior: — Tambem desisto da palavra.

O sr. Presidente — : Então tem a palavra o sr. Miguel Osorio.

O sr. Miguel Osorio: — Cedo da palavra.

O sr. Presidente: — Tem a palavra o sr. visconde de Chancelleiros.

O sr. Visconde de Chancelleiros: — Peço a v. exa. que tenha a bondade de me dizer por que motivo me chegou já a palavra, havendo tantos oradores inscriptos a favor do projecto?

O sr. Presidente: — Cederam da palavra os dignos pares, os srs. Mendonça Côrtes, Carlos Bento, conde de Rio Maior e Miguei Osorio, e então segue-se v. exa.

O sr. Visconde de Chancelleiros: — Sr. presidente, nunca me vi em tortura igual.

Queria responder ao sr. Barros e Sá, e tinha tanto mais obrigação de o fazer, corria-me tanto mais apertado o dever de responder a s. exa., quanto é verdade que foi depois do seu discurso que a maioria, se julgou convencida, e que todos os oradores ensarilharam as armas, cederam da palavra.

Este facto equivale, nem mais nem menos, a julgar-se a materia discutida.

N’estas condições, sr. presidente, usarei da palavra na especialidade, porque não quero contrariar a indicação parlamentar de que a materia está discutida.

Peço a v. exa. que me inscreva para usar da palavra na especialidade.

O sr. Marquez de Vallada: — Sr. presidente, não desejo tomar muito tempo à camara, mas careço, em presença d’este senado, de explicar o meu procedimento e de motivar o meu voto.

Está a materia demasiadamente discutida, e de certo não tenho eu a pretensão de vir illustrar o debate; mas tenho o dever de mostrar-me coherente com os principios que sempre tenho seguido na minha já longa carreira politica, e de explicar a divergencia que existe, n’este ponto só, entre mim e o meu amigo, que respeito como um dos homens que se tem illustrado pelo seu trabalho e intelli-gencia, o sr. Mello Gouveia, que é o relator do projecto.

Poderia soffrer critica e dar logar a censuras esta apparente divergencia entre mim e o sr. Mello Gouveia, estando nos fillados no mesmo grupo que tem por chefe o nobre duque d’Avila e de Bolama, o honrado homem d’estado que todos veneram e que o para inteiro respeita, e que eu sobre todos prezo. Mas a verdade é que não ha no meu procedimento, com relação ao projecto que se discute, nenhuma antinomia com aquelle meu illustre correligionario.

Tambem o sr. Barros e Cunha, outro caracter honrado, outro homem de trabalho que milita sob a bandeira hasteada pelo illustre duque d’Avila e de Bolama, na outra casa do parlamento expendeu a sua opinião no sentido em que eu apresento aqui a minha sobre a medida que agora se discute. Tambem s. exa. declarou que não podia votar a arrematação do real de agua, sem que por esse modo se declarasse em hostilidade aos seus amigos que n’este ponto votam de uma maneira diversa.

Trata-se, porventura, n’este momento de uma questão de dogma politico?

Seguramente que não. É, pois, uma questão de disciplina administrativa a que se debate, e n’este ponto a divergencia nunca póde significar nem que se mudou de campo, nem que se faltou ao que se devia como soldado fiel, e leal companheiro.

A camara sabe que eu tive a honra de fazer parte da commissão administrativa d’esta casa durante o ministerio regenerador, e quando ali se apresentou o codigo administrativo proposto pelo sr. Sampaio, eu combati as suas disposições na parte que me pareceram vexatorias para os povos, e mais tarde do alto desta cadeira sustentei as mesmas idéas que expendêra na commissão contra os artigos d’aquelle codigo que estabeleciam, no que toca á parte fiscal, meios vexatorios para o publico. Por conseguinte não posso deixar por coherencia de ter agora um procedimento analogo votando contra o projecto em questão, porque eu hei de rejeitar sempre tudo que possa parecer vestigio da escola do absolutismo. Sou liberal sincero e convicto, e espero nunca desmerecer no conceito dos homens profundamente dedicados aos principios de liberdade e ás instituições que n’ella se baseiam. Respeito o caracter do sr. ministro da fazenda, o seu saber e o seu amor ao trabalho, e não quero aggravar s. exa. de modo algum, nem proferir palavra que o possa ferir quer como politico, quer como homem.

Não tinha rasão para isso.

Mas permitta-me s. exa. que discorde das suas apreciações sobre a questão que nos occupa, especialmente com relação ás arrematações.

«Mas é um ensaio que vae fazer-se», diz o sr. ministro. Ensaio, creio que não; porque ensaio dá idéa de uma medida nova, e esta medida é velha. Isto mesmo, se póde confirmar com o testemunho da historia e com o relatorio do sr. ministro.

Esse outro vexame que está imminente sobre nós todos em uma das propostas do sr. ministro da fazenda, e que se chama imposto de rendimento, pergunto eu — tambem será novo?

A historiada França, a historia dos acontecimentos que precederam a revolução, ahi estão para nos mostrar que n’aquelle paiz achavam-se estabelecidos impostos vexatorios com meios fiscaes ainda mais vexatorios. Isto tudo é velho, mas é velho, mesmo pessimo. O do sal, por exemplo, que era obrigado a pagar mesmo quem não o consumia. Toda a creança desde os sete annos tinha de pagar o imposto do sal, ou por si ou por seus paes ou tutores.

Havia tambem o imposto de capitação. Todos os homens embora miseraveis e pobres, todos os que vendiam pelas ruas, ferros velhos, por exemplo, e outros, tinham como os outros cidadãos de pagar; e um operario, por exemplo, que ganhasse 240 réis diarios era obrigado a pagar annualmente, 3 libras e 9 soldos.

A historia nos recorda que os empregados fiscaes até chegaram a entrar nas casas dos pobres operarios, e conta um notavel escriptor que o homem do fisco fôra a casa do operario Quatremain, que morava n’um sexto andar, e cuja alcova era representada por uma chaminé, aonde se abrigava com seus quatro filhos menores, ahi mesmo foi o kommebleu do fisco procural o para o intimar ao pagamento; li tambem em o mesmo auctor, que certo proprietario querendo fazer obras n’umas poucas de casas cobertas de telha vã, onde residiam familias pobres e pouco remediadas operarios, essa pobre gente que vivia apenas do seu trabalho, e querendo aquelle senhorio que se concertassem e melhorassem, ou o que é o mesmo, se bemfeitorisassem essas casas, cujos tectos estavam a desabar por serem frageis, os moradores disseram-lhe: não faça tal, porque as obras de reparo dão logar á supposição de que augmentou a riqueza dos inquilinos, Q, portanto, vem logo o homem azul (assim chamavam ao empregado do fisco) vexar-nos mais, fazendo acreditar que melhorámos de condição, tendo pão alvo em logar de pão de rala para as nossas parcas e magras refeições.

Sr. presidente, eis aqui as bellezas, não de boa disciplina administrativa e de administração equitativa, de finanças, mas de vexação, que nos esperam.

Conta o sr. ministro levar a cabo todas as suas propostas? Elle diz que sim, creio eu; acceita, comtudo, algumas modificações.

Mas as modificações serão ligeiras? Serão radicaes? É o que ha de dizer a discussão.

Já procedeu o governo a inqueritos agricolas, sem fallar agora nos inqueritos, ás secretarias que, por emquanto, estão jazendo nas trevas?

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Obteve os dados necessarios para tomar medidas e a beneficio da nossa agricultura e do paiz?

Quer o sr. ministro da fazenda proceder á revisão das matrizes?

Quaes os resultados destes inqueritos? Era que estado se encontra a agricultura no paiz?

Podem e devem reformar-se as pautas? Em que pontos, em que extensão?

O que lhe ensinaram os inqueritos? Trevas! Trevas!

Appareça a luz, que o povo carece de ser illuminado.

Creio que é melhor cuidar do paiz, como disso o sr. marquez de Ficalho, do que estar a mostrar eloquencia, embora todos a admirem, ou paixão, que seguramente podo illudir a muitos, que póde ser filha de sentimentos muito patrioticos, mas que não póde inspirar, como a reflexão faria, o que melhor convem ao paiz.

Assim se daria uma demonstração das nossas crenças e dos nossos principies, e da firmeza nos intuitos de cumprir o que deve ser o nosso programma, que não deva ter por fim senão a realisação de medidas que tendam a dotar a nação com aquelles bens de que ella carece.

E a proposito de programma, direi que vi trazer para a discussão o programma do partido progressista, e sem querer levantar de novo o debate a seu respeito, sem querer ferir qualquer collega, nem commetter erro, seja-me permittido perguntar a que veiu aqui esse programar? Não sei quem primeiro o trouxe a terreno; mas ouvi declarar ao sr. ministro da fazenda, que o governo havia de cumprir o que n’esse programma se promettia, que elle havia de ser cumprido em todas as suas partes. E isto declarou s. exa. com voz clara, em linguagem eloquente, como homem que sabe fallar e que não sabe faltar.

Portanto ficâmos inteirados e certos porque o sr. ministro nol-o affirmou e prometteu que o governo ha de realisar a reforma da camara dos pares, pois que, cumprindo o programma na sua totalidade, ha de cumprir esta parte d’elle.

É ella como muitas outras que se podem chamar reformas revolucionarias? A promessa deve seguir-se a execução. Mas poderão realisal-a? Aterraria a alguem essa promessa do sr. ministro da fazenda, essa affirmativa que todos ouviram?

A mira do certo não aterrou. Deverei eu ver em s. exa. um novo general de Angoreau entrando na camara dos representantes da Franca e dispersando-os das [...] no decimo oitavo fructidor; ou porventura veremos no sr. ministro um segundo general Bonaparte entrando no conselho dos legisladores, e [...], de accordo com seu irmão Luciano Bonaparte, que mais uma vez mostrou n’essa occasião aquella lealdade de parentesco que é tão proprio dos homens de coração e de que ainda ha pouco deu provas n’esse caso outro homem que, se se não chamava Luciano Bonaparte e nem irmão do um imperador, chamava-se o sr. Barros e Sá, e era sogro do sr. Barros Gomes, actual ministro da fazenda.

Não se pense, pois, que eu, referindo me a este digno par, pretenda fazer de s. exa. um Luciano i3cDaparto. (Riso.}

Foi uma comparação que veiu a proposito, porque o sr. Barros e Sá declarou aqui que os vinculo de sangue o haviam chamado ao debate, que a voz d’esse dever o trouxera á arena. Foi exactamente o que disse Luciano Bonaparte quando presidia ao conselho dos legisladores, e n’elle se pedia o julgamento da Bonaparte no dezenove Brumario, elle se recusára a cooperar no empenho.

Prosigamos. Mais tarde este general ordenava que se entrasse n’aquelle conselho, dissolvia-o e mandava embora os seus membros.

Deverei eu ainda ver no sr. ministro da fazenda o celebre Cromwell, que não só limitou a entrar na ara do parlamento inglez e a mandar embora os seus membros, mas poz n’ella escriptos, e collocando um papel á porta do edificio, no qual dizia:

— Esta casa aluga-se?

Já se vê que os escriptos são antigos. (Riso.)

Os escriptos são antigos; não são uma novidade do presente; são da historia do passado.

Cromwell poz escriptos e não se contentou com isso; entrou no parlamente, fechou-o á chave e metteu a chave na algibeira.

Mas estaremos nós nas mesmas circumstancias? Não, de certo.

Então para que é aterrar-nos com estas affirmativas do sr. ministro da fazenda? As palavras de s. exa. são muito eloquentes; talvez possam servir de muito para animar os correligionarios, que no meio do debate estejam prestes a esmorecer. É como o general, que vendo, no calor do combate, desanimar alguns recrutas, lhes dirige, com receio que elles desertem, umas vezes palavras de conforto, outras de ameaça.

Mas parece-me, sr. presidente, que as palavras do sr. ministro da fazenda são mais de conforto do que de ameaça.

Sr. presidente, diz-se que o programma do partido progressista ha de ser cumprido. Muito bera. É verdade que esse programma tem aterrado muita gente; mas, repito, que a mim não me aterra.

A proposito do programma da Granja, lembro-me de uma historia que li n’um livro velho latino, a qual peço licença para referir, sem intenção de offender pessoa alguma. E conto-a a proposito do programma da Granja, com o qual o sr. ministro da fazenda nos ameaça.

Vamos, pois, á historia que prometti.

Lembro-me de ter lido no tal livro, que um certo camponez procurára um mathematico, e entrando no seu gabinete de estudo, vira uma esphera celeste. Pegou n’ella, voltou-a, e viu de um lado, um escorpião; do outro, um centauro; de outro, um leão; e por fim, um caranguejo.

Fez-lhe tal impressão toda esta bicharia, que perguntou, ao mathematico o que significam aquelles monstros desde o leão que ameaçava até e caranguejo que retrocedia; ao que o mathematico respondeu dizendo-lhe que tudo que via representava os celestes signos com que se governavam os tempos.

Espantado, porém, o rustico de que houvesse tantas menstruosidades no céu, para que elle observasse melhor o que n’aquella grande bela viu pintado, preparou-lhe o mathematico um formoso astrolabio, e accommodando-lh’o em fórma lh’o entregou ao seu arbitrio.

Principiou então o rustico nas suas diligencias para ver se descobria no céu alguma n’aquellas feras, e, como não divisasse mais do que estreitas, por maior esforço que empregava e por maior actividade que punha no empenho, desenganou-se que o haviam illudido; e então disse ao mathematico as seguintes palavras, que repito em latim, porque em latim está escripta a historia que li e estou contando: «Cur mihi illudis o homo? Ista quex in coelo suspicio non sunt ferce, sunt stalloe.» Porque me enganas, homem? Estes astros que me mostras não são feras, são estrellas.

Applico o exemplo. Se no programa da Granja ha monstruosidade que a muitos espantam, não são de certo foras que amedrontem; é verdade que tambem não são estrellas que esclarecem, são apenas fogos fatuos que enganam e illudem. Ha só isso. Não ha mais.

O que ha n’aquelle programma, repito e não me fatigarei de o repetir, é muito fogo fatuo, muita promessa que não se realisará. E se alguma vez, por acaso esse fogo fatuo, que illudo, se converter em fogueira que abraze, será seguramente para deslumbrar os olhos dos mais cegos.

Tambem farei a comparação do programma da Granja com aquelle celebre navio tão celebrado por Maximo de Tyrio, que um principe aventuroso fez no mar de Colchos, e que em logar de mandar construir um baixel veoleiro,

Ap^iico o exemplo. Sc no progranima da Granja ha iuon&traosidades qr.e a muitos eiipautain, na,o srio de certo feras que amedrontem; é verdade que tr.mbom nilo são ostrclvs que esclarecem, s?ic apenas fogo a fátuos que en-gpiifiin o iiludcni. Ha só isco. 1ão ha mnls.

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mandou fabricar sobre as inquietas vagas d’aquelle elemento uma cidade movei.

E, ou fosse, fabula, ou fosse historia, parece que aquelle navio, que era superior ao notavel Pimpão, em si continha: palacio para vivenda, templo para culto, arvores para sombra, jardim para recreio e bosque para caça; mas, apenas se apartou esta maça naval do estaleiro, que, ao impulso de ingente procella se desfez diante de todos os olhos todo aquelle aquatico paraizo.

O programma da Granja tambem é Pimpão; tambem contem em si um aggregado de venturas, como o antecessor do Pimpão do Tejo no mar de Colchos, mas tambem como elle se ha de desfazer, não com o sopro violento de uma tempestade, mas apenas com o desengano da impossibilidade do o realisar e com a manifestação clara das repugnancias por parte de pessoas sem o apoio das quaes o ministerio não póde viver ou caminhar.

Ora, acrescentarei ainda, que onde os regeneradores vêem feras e os progressistas estrellas, não estão, nem umas, nem outras; assim, digo tambem que ao partido progressista, quero dizer, ao seu programma, ha de succeder o que aconteceu não sómente ao navio a que acabo de me referir, mas ao celebre Parolo de Athenas, que não serviu durante tanto tempo para mais do que para conduzir por mar as imagens dos deuses, ou as estatuas dos heroes, para serem conduzidos nos triumphos, ou as offerendas e os votos com que demonstravam os povos o fervor do seu culto no altar dos deuses; o que um tanto mais tarde lamentou Demosthenes em ver este galeão sagrado, que por fim chegou tempo em que já por velho não trazia outra carga, em logar d’aquelles religiosos simulacros para os templos, mais que lenha e carvão para as fornalhas.

Na historia do passado aconselho eu aos homens politicos, que aprendam o quanto convem ser medido nos propositos, ser discreto nas promessas, e ser bem avisado e comedido nos planos, aliás terão o desengano como justa recompensa da sua imprudencia, e a censura das gerações que passam como premio da sua audacia.

Estou persuadido que o sr. ministro da fazenda não poderá cumprir as promessas que tem feito, por as rasões que expendi, e limito-me ás observações que fiz, com as quaes me parece não offendi nem de longe o melindre de pessoa alguma, pois entendo que se não governa nem administra injuriando ou lançando desfavor sobre todos os contrarios.

Governa-se, governando com prudencia e com tacto, e não sob o dominio de estranhas e damninhas pressões, procurando a todo o paiz maximo bem estar, e o alargamento de todas as liberdades justas, dentro da orbita da justiça, da equidade e do patriotismo.

Não quero alongar esta discussão, e por isso reservo-me para em occasião mais opportuna, se o julgar a proposito o levantar a questão politica.

O que desejo que fique bem assente é que, votando esta medida não pratico um acto de menos apreço para com o cavalheiro que está perto de mim, e que é o relator do projecto, o sr. Mello Gouveia!

Estou onde estava, e nada mais. Estou aonde estava é aonde continuo a estar e a permanecer com o sr. duque de Avila e com o grupo de que elle é chefe e guia.

Aguardo o resultado da votação, e faço votos para que o sr. ministro se compenetre das necessidades do paiz, e de que lhe corre o dever de nem investir com a corôa, nem com o povo, e com o povo não se investe tambem, porque elle nos seus dias de angustia tambem sabe soltar seus queixumes com energia e vigor.

Sr. presidente, olhemos para o estado do paiz com desassombro, e faça-se justiça. Por esta estrada poderemos caminhar; e só por ella, para que se consolidem as instituições, para que se comprehendam as liberdades, e para que do systema constitucional e monarchico possa colher beneficos fructos a nação} abençoando a liberdade e bemdizendo a justiça.

O sr. Bispo de Bragança:— Eu tenho a honra de mandar para a mesa a proposta que vou ler.

«Proponho a seguinte, addição ao projecto- de lei n.° 5, artigo 3.°:

«§ l.° São considerados incompativeis para concorrer como licitantes ás arrematações, ou sublocações, de que trata este artigo, os empregos publicos, e pessoas do estado ecclesiastico.

«§ 2.° São considerados inelegiveis para deputados, ou para cargos municipaes, os arrematadores ou sublocatarios, a que o mesmo artigo se refere, durante todo o tempo de suas arrematações ou sublocações.

«Sala das sessões da camara dos dignos pares, 6 de março de l880. = Bispo de Bragança e Miranda.»

Deveria talvez apresental-a na especialidade quando se tratar do artigo 3.°, mas como a minha votação na generalidade se liga com a proposta, por isso entendi dever apresental-a n’esta occasião.

O sr. Presidente: - Vou consultar a camara.

Consultada a camara, admittiu a proposta do sr. bispo de Bragança.

O sr. Presidente: — Vae votar-se o adiamento.

O sr. Visconde de Chancelleiros: — Requeiro votação nominal.

O sr. Presidente: — Os dignos pares que approvam que haja votação nominal sobre o adiamento, têem a bondade de se levantar.

Assim se resolveu.

Procedendo-se á chamada

Disseram, approvo os dignos pares: Marquezes; de Ficalho, de Fronteira, de Monfalin, de Vallada, de Vianna; Condes, dos Arcos, de Avilez, de Bomfim, de Cabral, do Farrobo, de Fonte Nova, de Gouveia, da Ribeira Grande, da Torre, de Valbom; Viscondes, de Alves de Sá, de Bivar, da Borralha, de Chancelleiros, de Seisal, da Silva Carvalho; Barão de Ancede, Agostinho de Ornellas, Mello e Carvalho, Couto Monteiro, Fontes Pereira de Mello, Rodrigues Sampaio, Serpa Pimentel Barjona de Freitas, Xavier Palmeirim, Montufar Barreiros, Simões Margiochi, Andrade Corvo, Trigueiros Martel, Lourenço da Luz, Camara Leme, Vaz Preto e Ferreira Novaes.

Disseram rejeito os dignos pares: Duque d’Avila e de Bolama, Mártens Ferrão, Duque de Palmella, Marquez de Sabugosa, Arcebispo de Evora; Condes, de Bertiandos, de Castro, de Linhares, de Paraty, de Rio Maior; Bispo de Bragança; Viscondes, de Borges de Castro, de S. Januario, de Ovar, de Portocarrero, de Villa Maior; Ayres de Gouveia (bispo eleito do Algarve)-, Egypcio Quaresma, Florencio de Sousa Pinto, Barros e Sá, Mello e Saldanha, Costa Lobo, Vasconcellos Pereira Coutinho, Xavier da Silva, Carlos Bento, Eugenio de Almeida, Sequeira Pinto, Mendonça Cortez, José Augusto Braamcamp, Baptista de Andrade, José Joaquim de Castro, Mello Gouveia, Mexia Salema, Costa Cardoso, Baião Matoso, Luiz de Campos, Daun e Lorena, Luiz de Castro Guimarães; Manuel Antonio de Seixas, Marino Franzini, Mathias de Carvalho, Canto e Castro, Miguel Osorio, Placido de Abreu, Calheiros e Menezes, Thomás de Carvalho, Vicente Ferrer e Seiça e Almeida.

O sr. Presidente: — O adiamento foi rejeitado por 48 votos contra 38.

Vae proceder-se á votação do projecto na generalidade.

Lido na mesa, e procedendo-se á votação, foi approvado na generalidade por 48 votos contra 38.

O sr. Presidente: — Vae entrar-se ha discussão da especialidade.

Leu-se na mesa o artigo l.°, e entrou em discussão.

O sr. Visconde de Chancelleiros: - Sr. presidente, felicito o governo e o partido que o acompanha, pelo triumpho parlamentar que acaba de obter, conseguindo restaurar os antigos arrematantes dos direitos reaes.

Foi pequena a votação que lhe deu essa victoria, e eu

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quizera antes que uma tal medida, tão contraria e avessa aos principios liberaes que estamos praticando, não tivesse apenas uma maioria de dez votos.

Dez votos, sr. presidente! Dez votos não é apoio que robusteça e de prestigio ao pensamento de um projecto de lei, que levantou n’esta casa tamanha opposição, e que tem levantado e sobressaltado contra si a opinião publica do paiz.

Vi, com sentimento meu, empenhada a lucta politica em tuna questão, em que ella não devia nem podia caber; e, porque esse facto se deu, é que eu estimo mais que a minha proposta de adiamento fosse rejeitada, do que approvada.

Assim, não me cabe nenhuma responsabilidade de haver provocado, por uma proposta minha, uma crise do governo.

Por outro lado, travada a lucta politica, e, portanto, sacrificada a ella a repugnancia de opinião que se podesse levantar no seio da maioria contra o projecto em discussão, a maioria de dez votos significa mais o desejo de apoiar o governo na questão politica, do que o de o sustentar na defeza da restauração dos antigos arrematantes de odiosa memoria.

E já que fallámos de restaurações, digamos, que se este, camara significa a restauração dos tres estados, como ha pouco pareceu sustentar na sua ordem de idéas o digno par sr. Barros e Sá, o clero não votou comnosco, foi contra nós.

Sr. presidente, houve já quem dissesse que o estylo era o homem, creio que foi Buffon. Bem, pois se o cctylo é o homem, eu direi, com não menos propriedade, que o paiz é o parlamento. Tal parlamento, tal paiz.

Sr. presidente, é me doloroso dizer, e sinto deveras dizel-o, é triste, depois de cincoenta annos de systema parlamentar, o ver na ultima hora de um debate largo, latissimo, tão amplo, que parte dos oradores inscriptos desistiram da palavra, por já não ter que dizer, ou por não poderem combater o que diziamos; e triste, repito, o ver na ultima hora do debate entrarem n’esta sala, para votar, pares que nem sabiam nem podiam saber sobre que questão se lhes ia pedir o seu voto! (Apoiados.)

Que triste lição estamos dando ao paiz sobre o modo por que praticamos o systema parlamentar!

Sr. presidente, esta questão não podia, não devia ser nunca uma questão politica, Se os illustres ministros se tivessem compenetrado bem da responsabilidade que lhes ha de advir d’este facto, não teriam consentido nunca em que esta questão se tivesse collocado sobre esse terreno. (Apoiados.) E se n’esta questão não houvéssemos sacrificado ás exigencias politicas, duvido muito de que o governo se não convencesse da inconveniencia da sua insistencia em obter do parlamento uma auctorisação, que é nas suas mãos uma arma tão perigosa, como o póde ser igualmente nas mãos do governo que haja de lhe succeder.

O meu adiamento não matava a questão, porque não era um adiamento indefinido, dava tempo a que a necessidade da auctorisação pedida se justificasse pelos factos.

E assim a rasão economica ou a rasão financeira tirava pretextos de suspeição contra o governo, e punha de lado para justificação d’este projecto a rasão politica.

Este era o fim a que eu me propunha, esta era a idéa de que os srs. ministros se deviam ter inspirado, e se s. exas. se compenetrassem bem d’ella havia mil meios praticos, n’estas conhecidas evoluções de tactica parlamentar, para substituir o adiamento que formulei na proposta que se votou, por outro qualquer expediente que nos levasse ao mesmo fim.

Se praticassem commigo a tal respeito, eu que, se não sou ministerial, tambem não sou opposição, e que apenas quero e desejo ser governamental, teria acceitado como expediente do occasião, em vez da proposta de adiamento na generalidade, o adiamento na especialidade, voltando o projecto á commissão por effeito de quaesquer emendas nos seus artigos, não para dormir lá o eterno somno, caíndo no limbo, iras para ficar ahi tanto tempo quanto as exigencias de occasião e de opportunidade o pedissem.

Não o quizeram, porém, assim os srs. ministros, nem aquelles que os apoiam, e que muitas vezes são e se mostram mais ministeriaes que o proprio governo.

Pois bem, ahi têem a auctorisação pedida. Iniciem a sua carreira politica e a sua carreira financeira, restaurando os antigos arrematantes.

Venceu o governo, venceu por pequena maioria, menor ainda se d’ella subtrahirmos os votos que deve a circunstancias especiaes e estranhas á questão.

Ainda hontem ouvimos a voz de um digno par declarar que se afastara de antigos amigos e de antigos correligionarios politicos, cedendo a um impulso do coração. Oh! sr. presidente, pois acaso podemos e devemos subordinar a voz da convicção que vem do espirito, á voz do sentimento que vem do coração? Eu nunca fiz isto n’esta casa; creio devoras não o haver feito nunca, e d’isso dei já prova e documento seguro. Vim combater n’esta mesma questão do real de agua, com o governo, entre cujos membros tinha, não só amigos aos quaes me prendia antiga e sincera affeição, mas alguem a quem me prendiam e me prendem laços de proximo parentesco. É que eu entendo e entendi sempre que aqui não se combatem homens, combatem-se principies. N’esta casa reunimo-nos e somos homens publicos, diante de homens publicos, desprendidos do todas as rasões de affecto e de sympathia, obrigados a tratar as questões com independencia de acção e de opinião, e antepondo a todas as considerações de affecto e de interesse o unico interesse da causa publica.

O digno par a quem me refiro, e cujo voto não póde ser contado para os effeitos da questão politica, como voto politico, declarou ter abandonado, attrahido por affectos brandos, as tendas onde se havia abrigado por muitos annos nos arraiaes da politica da regeneração. Ao que parece o rigor da disciplina não lhe deixava lá o coração desafogado para taes affectos.

Ainda assim, os habitos cantrahidos não se perdem facilmente, e para combater e adiamento e defender o projecto, vimos ainda o digno par voltar de novo áquelles arraiaes, procurar lá o sr. Sampaio, e pedir aos actos d’aquelle digno par, quando foi ministro, as melhores das armas que o digno par empregou na defesa do projecto, e que talvez em outras condições tratasse de açacalar e polir para o combater.

O sr. Presidente: — Peço licença para observar ao digno par que não se está discutindo a generalidade do projecto, e que o artigo 53.° não regimento não permitte as apreciações que o digno par está fazendo com relação ao procedimento de alguns dos seus collegas.

O Orador: — Permitta-mo v. exa. que lhe diga que, sobre o thema do artgo 1.° do projecto, posso desenvolver as considerações com que julgo dever motivar o meu voto. Demais, já outros oradores, quando trataram da generalidade do projecto, só espraiaram em observações entranhas a elle. V. exa. pediu-me que me restringisse á materia em discussão, e eu, para obedecer á recommendação de v. exa., contrahi as minhas palavras, quando fallei na generalidade, na mais acanhada das fórmas por que o poderia fazer.

O sr. Presidente: — Observo ao digno par que o nosso regimento é bem claro a cate respeito. Eu. passo a ler o que elle diz no artigo 53.°

«O presidente deverá interromper o orador se este se desviar da questão, infringindo o regimento, ou por qualquer modo offender as considerações de civilidade e de respeito devidas á camara.»

O Orador: — Parece-me, sr. presidente, que estou no direito de combater a idéa que se contém no primeiro artigo do projecto, e, com este proposito, de fazer as considerações que o debate me tem suggerido...

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O sr. Presidente: — O digno par tem-se desviado da questão não discutindo o artigo que está em discussão, é censurando o modo por que alguns dos seus collegas tem feito uso do seu direito de fallar e de votar.

O Orador: — Ha vinte o cinco annos que estou no parlamento e nunca fui chamado á ardem.

O sr. Presidente: — Eu não chamei o digno par á ordem, só lhe pedi que tivesse em vista, o que dispõe o artigo 53.° do regimento. Agora poço lhe de novo, que se compenetre da necessidade, que eu tenho, de manter a ordem, dando cumprimento ao regimento.

(Sussurro na camara, fallando ao mesmo tempo o sr. presidente e o sr. visconde de Chancelleiros, não se póde tomar nota das suas palavras.)

0 sr. Presidenta: — Repito, que não chamei o digno par á ordem, mas se o tivesse feito a disposição do artigo 54.° à expressa (leu):

«Todo o par que for chamado á ordem pelo presidente, deve immediatamente submetter-se.»

O Orador: — Submetto-me á disciplina regimental, mas parece-me que posso sustentar o direito que tenho de usar da palavra nas condições em que o fiz.

(Continuando o sussurro na sala disse o)

O sr. Presidente: - A camara deve fazer-me a justiça de acreditar, que para mim é extremamente desagradavel este incidente. Peço a todos os dignos pares que se compenetrem bem de que o meu dever, e obrigação é fazer respeitar o regimento.

O regimento diz no artigo 53.° o seguinte:

(Leu.}

Ora, o digno par não estava discutindo o artigo 1.° do projecto, estava fazendo apreciações, que q liando muito seriam cabidas na generalidade, sobre a qual, note se bem, o digno par cedeu da palavra, e estava censurando a maneira por que tinham fallado e votado alguns dignos pares; o que prohibe expressamente o artigo 53.° do regimento.

O Orador: — N.º 3o faço censura a nenhum digno par.

O sr. Presidente: — Ninguem tem direito de entrar nas intenções dos dignos pares quanto á maneira por que fallam, e por que votam.

O Orador: — Eu não quiz entrar das intenções de ninguem.

O sr. Presidente: — Se o digno par deseja que eu lhe mantenha a palavra, deve discutir unicamente o artigo 1.°

O Orador: — Não continuo a usar da palavra sem que v. exa. Consulte a camara sobre se eu estou ou não estou na ordem.

(Sussurro.)

O sr. Presidente: — Não tendo eu chamado á ordem o digno par, só posso perguntar á camara se, tendo acabado a discussão na generalidade...

O sr. Conde de Valbom: — Não é essa a pergunta que v. exa. tem a fazer.

Alguns dignos pares usam, ao mesmo tempo da palavra.

Grande rumor nas galerias.

Agitação na camara.

O sr. Vaz Preto: — Peço a v. exa. que cumpra-o regimento, mandando sair das galerias os amotihadores.

É necessario que não se confunda a gente seria com essa claque que veiu fazer barulho aqui.

Sr. presidente, mande sair os desordeiros, que são poucos, e mande-os sair já para deixarem em socego a gente seria que está nas galerias, e para os obrigar a serem respeitosos para com o parlamento.

Sr. presidente, faça manter a ordem e o socego.

O sr. Visconde da Silva Carvalho: — Peço a v. exa. que mande evacuar as galerias.

Outros, dignos pares se pronunciam no mesmo sentido.

O sr. Visconde de Chancelleiros: — Cedo da palavra.

O sr. Presidente: - Já mandei evacuar as galerias, o suspendo a sessão por um quarto de hora.

Eram quatro, horas e quinze minutos.

Um quarto de hora depois reabriu-se a sessão, e disse

O sr. Presidente: - A ordem do dia para terça feira, 9, é a continuação da de hoje.

Está levantada a sessão.

Eram quatro horas e meia da tarde.

Dignos pares presentes na sessão, de 6. de março de 1880

Exmos. srs.: Duque d’Avila e de Bolama; João Baptista da Silva Ferrão de Carvalho Mártens; Cardeal Patriarcha; Duque do Palmella; Marquezes, de Ficalho, de Fronteira, de Monfalim, do Sabugosa, do Vallada, de Vianna; Arcebispo de Evora; Condes, dos Arcos, de Avilez, de Bertiandos; de Bomfim, de Cabral, de Castro, do Farrobo, da Fonte Nova, de Gouveia, de Linhares, de Paraty, da Ribeira Grande, do Rio Maior, da Torre, de Valbom; Bispo eleito do Algarve; Bispo de Bragança; Viscondes, de Alves de Sá, de Bivar, de Borges de Castro, de Chancelleiros, de Ovar, do Portocarrero, da Praia, da Borralha, de S. Januario, do Seisal, da Silva Carvalho, de Villa Maior; Barão do Ancede; Ornellas, Mello e Carvalho, Quaresma, Sousa Pinto, Barros o Sá, D. Antonio de Mello, Couto Monteiro, Fontes Pereira de Mello, Rodrigues Sampaio, Serpa Pimentel, Costa Lobo, Coutinho de Macedo, Barjona de Freitas, Xavier da Silva, Palmeirim, Carlos Beato, Eugenio de Almeida, Sequeira Pinto, Montufar Barreiros, Margiochi, Andrade Corvo, Mendonça Cortez, Martel, Braamcamp, Andrade, Pinto Bastos, Castro, Costa Cardoso, Lourenço da Luz, Mello Gouveia, Mattoso, Mexia Salema, Camara Leme, Luiz de Campos, Castro Guimarães, Daun e Lorena, Seixas, Vaz Preto, Franzini, Mathias de Carvalho, Canto e Castro, Miguel Osorio, Placido de Abreu, Calheiros, Ferreira; de Novaes, Ferrer, Seiça e Almeida, Thomás do Carvalho.

Discurso proferido pelo digno par visconde de Chancelleiros na sessão de 1 de março, e que devia ler-se a pag. 146, col. 2.ª

O sr. Visconde de Chancelleiros: — Sr. presidente, decididamente a conjunctura do acaso não me protege.

Como v. exa. sabe, em uma das passadas sessões havia eu pedido a palavra, suppondo que depois do si1. Serpa, que então estava usando d’ella, não havia nenhum outro orador inscripto.

Fallou, porém, aquelle orador, seguiu-se-lhe immediatamente O sr. ministro da fazenda, e concluido o seu discurso, v. exa. concedeu a palavra ao sr. conde de Valbom.

Interpuz então o meu requerimento, pedindo de preferencia a palavra julgando-me preterido na inscripção, e v. Exa; com a auctoridade que o regimento lhe dá, e adscripto á escrupulosa observancia d’elle, oppoz ao meu requerimento a affirmativa de que não era eu o primeiro na inscripção, e que para alternar o debate entre os oradores que fallassem contra e aquelles que fallassem a favor do projecto em discussão (ainda em cumprimento do preceito regimental), me pedia que eu declarasse se era a favor, se contra. Respondi: que a synthese das rasões que eu produzisse no meu discurso daria a qualificação é a justificação do meu voto; mas que, se para obter desde logo a palavra fosso necessario inscrever-me a favor ou contra o projecto, eu dava a s. exa. a liberdade de me inscrever como quizesse, comtanto que me concedesse de prompto a palavra.

Não foi isso possivel, e eu não usei d’ella n’essa occasião.

Sabe, porém, v. exa. a rasão da minha insistencia em procurar obter- a palavra n’aquelle momento? É que eu, que apenas queria justificar o meu voto sobre o projecto que se discute, e que para tal fim me bastou considerar na apreciação restricta do seu pensamento e das suas dis-

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posições, a materia em discussão, presentia já que, entrando n’ella um orador nas condições do sr. condo de Valbom, assignalado pela sua competencia em materia de finanças, e animado do certo pelo desejo de fazer conhecidas as suas idéas e os seus principies sobre tão vasto como controvertido assumpto, havia do ver empenhadas na lucta as diversas escolas financeiras do paiz, e aberto para ellas um largo campo para largas discussões, fechado para mim, que o sonho como defezo pelo dever que me impuz de não sair fóra da questão, e de definir apenas sobre ella a rasão do meu voto.

Realisou-se, pois, a minha previsão, sr. presidente, e porque ella se realisou, vimos já o sr. ministro da fazenda occupado mais em responder ás diversas considerações apresentadas sobre a questão geral do fazenda pelo sr. conde de Valbom, do que em defender o pensamento e artigos do projecto em discussão, respondendo aos argumentos com que o combateu o digno par o sr. Antonio de Serpa.

Póde ser que s. exa. deixasse para o final do seu discurso essa tarefa, e n’essa supposição, affirmo mais uma vez que o acaso me não protege, porque em rasão da ausencia do sr. conde de Valbom, sou obrigado a usar da palavra, intercallando as minhas observações no discurso que o sr. ministro, por uma delicada rasão do differencia, deixa interrompido.

Usarei, pois, da palavra, e tratarei da questão que se discute, no campo restricto, d’onde, me parece, ella não devia ter saído.

Nós não professamos aqui um curso de finanças, o acho mal asada a conjunctura para trazer ao debate a historia geral do nosso systema financeiro, a apreciação o confrontação de leis que se não discutem, ou de systemas que não cabe agora apreciar. O que julgo necessario ter em vista para comprehender bem o pensamento d’este projecto é qual a genealogia das idéas, qual a ordem da factos que aqui o trouxeram.

Com este intuito, sr. presidenta, vou relembrar á camara o que só tem passado com referencia ao imposto do real de agua, não fazendo a historia d’este imposto, mas referindo apenas as tentativas de reforma que se tem procurado fazer na sua administração e na sua cobrança desde 1878.

N’esse anno presidindo v. Exa. a um ministerio qualificado de transição, teve v. exa. como collega, entre outros cavalheiros de muita illustração e de reconhecida respeitabilidade, o sr. José de Mello Gouveia. Sinceramente confesso que não tinha a s. exa. como um dos primeiros financeiros do paiz., ha via muito tempo que o acatava e respeitava por muitos e diversos titulos; francamente, porém, eu que não tenho por habito significar por elogios aos meus collegas as provas de deferencia e de respeito que elles me merecem; francamente, repito, devo dizer de s. exa. que, como ministro da fazenda, deu inteira e caba! prova nas medidas que apresentou ao parlamento, de um grande vigor de iniciativa, de uma perfeita competencia em assumptos financeiros, e de um espirito de observação analytico e pratico, que aliás não tem sido commum a todos os homens que tem gerido aquella pasta.

S. exa. confessa no seu relatorio, por exageração de modestia, que: «ministro por um accidente de effeitos transitorios não tinha nem a auctoridade nem a força necessaria para traçar uma vereda financeira abrigada das vicissitudes a que estão sujeitos os ministros que não têem o apoio que veir da communhão de principios e do fins francamente accentuados nos corpos co-legisladores.»

A sincera modestia de s. exa. mal lhe deixou ver, que exactamente como ministro interino, como membro de um ministerio considerado do transição, é que s. exa., e o governo de que fazia parte, se encontravam, na minha opinião, nas melhores das condições para resolver a questão financeira, se os partidos politicos d’este paiz se houvessem compenetrado da idéa de que a questão de fazenda não é questão de partido, é questão de paiz.

Todos somos interessados em a resolver, todos ternos procurado resolvel-a, mas como até hoje se tem feito sempre da questão de finanças uma questão politica, luctam todos os partidos, sendo governo, com as difficuldades que crearam sendo opposição.

Aquelle governo de transição era, dadas estas circumstancias, um governo de politica neutra; todos os partidos militantes o podiam e deviam apoiar auxiliando-o com o seu concurso, no interesse commum de todos elles, a resolver a questão de fazenda.

Não aconteceu, porem, assim, sr. presidente. Caíu a administração a que v. exa. presidiu, e os governos que lhe succederam vieram beber na fonte pura das propostas do sr. José de Mello Gouveia, que tilo facil lhes fôra, apoiar, e inspirar-se da iniciativa d’aquelle ministro para resolver a questão de fazenda.

O proprio sr. Antonio de Serpa, ministro da fazenda por tantos annos, e que por vezes tentara a reforma do imposto do real de agua, alterando a taxa d’este imposto e a sua incidencia, acceitou sem modificação importante, todas as idéas consignadas na auctorisação pedida pelo sr. Mello Gouveia, para reformar a administração e cobrança do imposto do real de agua.

A camara sabe quaes eram as bases d’aquella auctorisação. O sr. Mello Gouveia confrontando os dados estatisticos que lhe offerecia o estudo parallelo e comparativo da cobrança do real de agua nos diversos concelhos, com o rendimento do mesmo imposto cobrado e fiscalisado por conta do estado, chegou ao conhecimento de que sendo a taxa do imposto maior e a base do incidencia amesma, ainda assim a cobrança do real de agua porconta do estado era sempre inferior á cobrança municipal. Viu alem d’isso que nos concelhos onde se haviam melhorado as condições da fiscalisação o rendimento d’aquelle importo havia subido logo na proporção de 20 a 30 por cento.!

Firmado n’estes factos s. exa. persuadiu-se, e affirmou no seu relatorio, que convenientemente reformada a fiscalisação e cobrança do real de agua era de esperar que a soa receita passasse de 800:000$000 réis ao dobro, e em harmonia com estas idéas pedia auctorisação para rever a legislação sobre o imposto do real de agua, para estabelecer um serviço especial de fiscalisação do mesmo imposto, não despendendo para esse fim quantia superior a 12 por cento da sua receita actual; para modificar o systema de cobrança, estabelecendo barreiras nas capitães do districto e nas cabeças dos concelhos, finalmente propondo tambem que os impostos da mesma natureza do imposto do real de agua, lançados pelas camaras municipaes, fossem fiscalisados o cobrados conjunctamente com o do real do agua, quer dizer, fundindo a cobrança e fiscalisação municipal na do estado.

Era esta a idéa que aind;1 In pouco o sr. Antonio de Serpa disse constituir o seu ideal, e que entretanto s. exa. não tratou de realisar praticamente quando apresentou a sua proposta sobre o real de agua, tendo acceitado as mesmas bases que encontrara definidas na auctorisação pedida ao parlamento pelo sr. Mello Gouveia, com uma unica excepção apenas, a de não exigir dos produciores dos generos sujeitos ao imposto a declaração que se lhes pedia na proposta do sr. Mello Gouveia.

Quer dizer supprimiu-se uma disposição que, com o espirito de de suspeição que tem o nosso povo contra tudo que [...] era realmente absurdo; mas adoptou o [...] proposta a cobrança do imposto nas [...] da circulação, contra o que se deviam ]...] com effeito, os clamores da opinião.

D’esse espirito de opposição geral e espontaneo no paiz fui eu [...] n’esta casa vindo combater, com toda a energia de que era capaz o meu espirito, o projecto sobre o imposto do real de agua, projecto que, caso novo até então nos an-

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naes parlamentares, vinha acompanhado de um parecer da commissão de fazenda, em que se affirmava a declaração por parte do governo de que não faria uso da auctorisação para o estabelecimento do imposto de circulação se não quando a experiencia tivesse provado que os outros meios de fiscalisação não bastavam, nem eram sufficientes Assim tambem, declarando que o systema de barreiras era a base do projecto, affirmava depois que não importava um preceito a que o governo tivesse forçosamente desobedecer mandando-as estabelecer desde logo: quer dizer, o parecer subtendia o adiamento da questão.

Em este o pensamento do parecer da commissão de fazenda; mas como a camara vota projectos e não vota pareceres, ou por outra, como concorre para fazer leis votando projectos e não pareceres de commissões, aconteceu que a camara votou ao governo uma auctorisação para estabelecer à cobrança do real de agua nas barreiras, para cobrar o imposto de circularão só .assim o quizesse, e para organisar o serviço de fiscalisação, dispondo para isso até 12 por cento da receita do real de agua, calculada1 para aquelle anno economico em 800:000$000 réis approximadamente.

Tão forte foi, porem, o movimento da opinião contra aquella medida, que sabido e conhecido que o governo punha de lado o systema de cobrança nas barreiras e o imposto de circulação, aindaassim1 de adiamento em adiamento não logrou publicar o regulamento do serviço do real de agua; e d'aquella projecto que defendeu, entrincheirado na Questão politica, com tanta insistencia e com tanto zêlo e fervor, colheu apenas o quê? Uma immensa impopularidade perante o paiz, e o resultado sempre funesto de excitar debalde o espirito publico.

- É isto aconteceu com um governo que se vangloriava de ter a seu favor a opinião publica, a confiança da corôa, o apoio de uma granel o maioria parlamentar, o que havia assumido a responsabilidade d'aquella famosa restauração, que eu condemnei como impolitica, e que é fóra dos verdadeiros principios do systema parlamentar, me parece até inconstitucional.

Aqui tem v. exa., pela sua ordem genealogica, os factos que se deram até á constituição do novo gabinete.

O sr. ministro da fazenda publicou o regulamento em data de 29 de dezembro Gentia queda sua execução resultará, como affirma no seu relatorio, um acrescimo effectivo de receita não inferior a 200:000$000 réis. O que, porém, me surprehende, o que me parece incomprehensivel, é que esperando tanto do regulamento e das condições em que por elle se estabelece a administração do real de agua por conta do estado, venha pedir hoje auctorisação para dar de arrematação esse imposto!

Pois s. exa. confia tanto da administração por conta do estado, e antes de saber o que ella dá, antes de saber o que ella póde dar, pede a auctcrisação para a supprimir nos concelhos onde o governo entender que deve substituir a administração peia arrematação? Comprehende-se isto?

Uma vez, porém, que o sr. ministro quer á arrematação, vamos a ver o que ella é, e o que vale. Uma vez que o sr. ministro, quer substituir ao estado o arrematante, vejamos se este o substituo em todos os direitos com relação ao contribuinte. E começarei por perguntar: nos concelhos onde se der a arrematação fica, ou deixa de ficar em execução o regulamento? Confia o governo mais no zêlo do arrematante, do que no zêlo da administração por conta do estado, armada com os meios que a lei lhe da, e com as disposições do regulamento, que é um perfeito codigo fiscal? Que o diga o governo, ou que o declare em nome d'elle, e bem precisamente, o sr. relator da commissão que acaba de pedir a palavra.

No parecer da commissão sobre o projecto que se discute nada se diz a tal respeito. A commissão, segundo o precedente estabelecido na discussão do projecto sobre o real de agua em 187o, restringe no parecer a auctorisação ampla do artigo 1.° do projecto. Mas, sr. presidente, a declaração do ministro no seio da commissão não vale o preceito da lei. Que importa que a commissão diga: que ao governo declarou no seio da commissão (para ser aqui expressamente consignado) que é seu proposito não usar d'esta auctorisação, senão nos casos e nos logares em que o defeito da acção fiscal do estado se mostra persistente?» Que vale isto? Em que obriga o governo? É se obriga moralmente o governo de hoje, obrigará da mesma fórma o governo de ámanhã? Repito, valem os preceitos da lei, ou as rasões do parecer? Diz ainda um outro dos seus1 considerando? fallando das oppressões e vexações a que póde dar logar a arrematação, que «a opinião é a implacavel vingadora da todas as oppressões.» Como assim! Pois já chegámos a invocar no seio do parlamento a opinião como vingadora implacavel de oppressões, que está na nossa mão evitar, que é nosso deve evitar, que se dêem no paiz? Pois tão desarmados estamos para combater as demazias do poder, é dos seus delegados, as vexações da administração do governo, ou dos arrematantes que a substituem, que acceitemos e peçamos como correctivo d'esses abusos o movimento da opinião publica indignada?

A commissão refere sé tambem ás odiosas violencias dos contratadores das rendas publicas, e diz que ellas desappareceram com á legislação contemporanea. Sim, senhor, se desappareceram, resurgem agora pelo projecto que discutimos. Teremos de novo o arrematante dos direitos reaes, é se deixo a outro definir o que elles foram, o que a camara de certo ouvirá da bôca auctorisada do professor de finanças na universidade, que vem prestar á questão do real de agua o subsidio litterario da sua palavra e do seu voto, direi apenas o que elles ficam sendo á face do regulamento de 29 de dezembro, que joga com este projecto, e que hão póde deixar de ser discutido com elle.

O regulamento é tudo para saber o que é a administração e a fiscalisação por parte do governo, é ainda tudo para saber o que fica sendo p arrematante que substitue o governo, e para o qual o governo transfere todos os seus direitos com relação aos contribuintes.

O regulamento de 29 de dezembro diz no capitulo 2.°, artigo 6.°:

«A fiscalisação do imposto do real de agua compete:

«1.° Nos districtos á direçção geral das alfandegas e contribuições, indirectas;

«2.° Nos concelhos de cada districto, ao respectivo delegado do thesouro;

«3.° Nas freguezias de cada concelho, ao respectivo escrivão do fazenda, auxiliado por fiscaes devidamente remunerados;

«4.° Na cidade do Porto e Villa Nova de Gaia, á respectiva alfandega.

«5.º Na arca dos districtos fiscaes das alfandegas, aos respectivas empregados, qualquer que seja a sua graduação;

«6.° Nos concelhos avençados com a fazenda publica, ás camaras municipaes que ficaram, subrogadas para este fim em todos os direitos da fazenda.»

Ora, sr. presidente, o digno par, o sr. Antonio de Serpa, disse, e o sr. ministro não contestou essa asserção, me o arrematante se substitue á fazenda, tendo todos os direitos que esta tem com relação aos contribuintes. Nem podia deixar de ser assim; e como a camara vê, com referencia ás camaras municipaes que se avançarem com a fazenda publica, ficam estas subrogadas para o fim da fiscalisação em todos os direitos da fazenda.

Se o regulamento não fallou das arrematantes, é porque a idéa de cobrar o imposto do real de agua por arrematação lhe foi posterior.

Se, porém, a arrematação se faz por concelhos, segue-se que o arrematante se substitue ao escrivão de fazenda,

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e como este é auxiliado pelos fiscaes, sel-o-ha tambem o arrematante.

E quer a camara saber o que o regulamento diz a respeito dos fiscaes?

«Para o serviço interno de cada concelho haverá o numero de fiscaes que for indispensavel.»

Admittamos por hypothese que haja apenas 2 fiscaes em cada concelho. Sendo o numero de concelhos no continente de 266, teremos 532 fiscaes nomeados pelo governo, alem de um fiscal em cada districto ao serviço do delegado do thesouro.

Que grande contingente a juntar ao exercito de empregados fiscaes que cobrem o paiz! E disto que o paiz tem medo, o tem rasão.

São estas harpias peiores que aquelles abutres que o sr. conde de Valbom symbolicamente poz empoleirados sobre as ruinas. do capitolio do velho partido progressista.

Oh! sr. presidente, e é para justificar a politica que se inicia pela fatal resurreição dos arrematantes, e pura cobrir, acceitas as proporção cio governo, todo o paiz de agentes fiscaes, que se invoca o nome e as tradições do partido a que presidiu o sr. duque de Loulé? Permittam-me então que no lado d'aquelle respeitabilissimo homem de estado, cuja politica aliás eu combati, ou ponha o primeiro vulto da revolução liberal, Mousinho da Silveira, e invoque a sua memoria para affirmar que, se elle podesse erguer hoje aqui a sua vez, diria como no famoso relatorio do decreto de 16 de maio: «não já: Senhor, Portugal é um povo de juizes»; mas sim, dirigindo-se ao chefe do estado: «Senhor, Portugal é um povo de fiscaes!»

Sr. presidente, façamos politica para o paiz e politica que o paiz comprehenda. Não me canso de o repetir. Procuremos desfazer os attritos que a susceptibilidade do contribuinte, aggravada por todos os receios, por todas as suspeitas, por todos os terrores com que o temos melindrado, offerece á acção do fisco. Ao sobresalto com que a consciencia publica póde receber a applicação de um regulamento que vae montar a fiscalisação e cobrança do real de agua de um modo mais activo, e, portanto, tornar a acção fiscal mais forte e energica; a esse sobresalto justificado não juntemos uma rasão de susto e de desconfiança maior, fazendo suppor que as armas que são já de si terriveis na mão do governo passem a sel-o ainda mais nas do arrematante.

E não ha exageração de apreciação, sr. presidente, são com effeito temiveis essas armas; e quer v. exa. caber o porque? Vejamos.

O artigo 80.° diz o seguinte:

«É considerada transgressão, para os devidos effeitos a falla de observancia rigorosa de qualquer das obrigações prescriptas n'este regulamento.»

Os devidos effeitos vem definidos no artigo 97.°:

«As transgressões d'este regulamento serão punidas com a multa de 2$000 réis. Por cada reincidencia mais l$000 reis.»

Ao zêlo interesseiro da acção fiscal juntamos o zelo suspeito do denunciante. O artigo 84.° diz o seguinte:

«São auctorisadas as denuncias por quaesquer transgressões ou descaminho nos termos dos artigos seguintes.»

Ora, o regulamento tem 133 artigos, e a falta da observancia rigorosa de qualquer d'elles importa uma transgressão, e, portanto, um processo, e consequentemente uma multa. De modo que cada contribuinte, para andar seguro, precisa trazer debaixo do braço este celebre regulamento, acompanhado dos livros de hermeneutica para o poder interpretar bem.

Se faltar á observancia rigorosa de qualquer nas obrigações prescriptas no regulamento, cáe-lhe a espada da lei sobre a cabeça, ou antes entra-lhe logo a multa pela algibeira. (Riso.)

Do producto das multas que o regulamento estabelece, 5 por cento são para o escrivão de fazenda, outros 5 para os empregados que se tornarem distinctos no serviço, o tambem em caso de denuncia metade para o denunciante, se a quizer acceitar, (poderá não querer) (Riso.) e a outra metade dividida em partes iguaes para os interventores na diligencia competente.

Ora, cr. presidente, diga-me v. exa. se n'este paiz, com os habitos da nossa administração, é ou não é uma arma terrivel na mão do governo a fiscalisação e cobrança do real de agua, com este regulamento e com o pessoal que por elle se cria? Mas se isso acontece com o governo, que poderemos dizer do arrematante? Oh! que se conhecessemos o paiz, se os srs. ministros nos viessem dizer o que por elle vão!

Fallm nos da Saxonia, dos estados secundarios da Allemanha, da Prussia, da Austria; citámos com emphase tudo o que se passa em questões de administração e de finanças por toda a Europa, e desconhecemos na maioria dos casos o que se passa no paiz!

Pois como homem, sinceramente o confesso, para saber o que ó a nossa administração, e como havemos de emendai1 os seus erros e de corrigir os seus abusos, vale mais para mim, e prefiro antes, saber o que se passa em Castro Daire, ou em Freixo de Espada á Cinta, do que conhecer os factos contemporaneos de historia estranha, que pouca luz de verdade pratica podem trazer, applicados a questões que se encontram para resolver em um meio diverso do civilisação, tanto moral, como material.

Acodem-me agora á memoria deis factos, que provam bem, entro milhares d'elles, o que e a administração publica em Portugal, e que distancia immensa ha a vencer para chegarmos da liberdade real que o povo tem, á liberdade individual que a lei lhe garante.

Ha uma lei que manda que os testamentos que deixam aos testamenteiros o cumprimento de legados pios, sejam presentes á administração do concelho, que ahi sejam registados, e que satisfeito o legado pio se do d'isso parte á auctoridade administrativa, dentro de um anno, sob pena de multa e custas do processo.

O officio mais importante cio administrador de concelho parece que devia ser o fazer conhecer dos seus administrados aquellas disposições da lei, cujo não cumprimento importa para elles uma penalidade qualquer.

Não succede, porém, assim, porque se não comprehendo d'este modo a indole essencialmente paternal da administração.

Succede, pois, com relação ao facto que aponto, que uma pobre viuva que recebeu por testamento de seu marido a obrigação de lhe mandar dizer por alma dez missas, que as manda dizer cumprido o legado, mas que deixa por ignorancia de participar á administração que o cumpriu, pagou as missas que lhe custaram, por exemplo, réis 5$000 mas paga 20$000 ou 30$000 réis de multa e custas de processo, por não ter satisfeito o preceito da lei, que não conhecia, cuja ignorancia lhe não aproveita em direito, mas pela qual de facto ella não é responsavel moralmente, ainda que o seja effectivamente á face da lei.

É isto duro? É; das asseguro a v. exa. que d'estes factos ha um sem numero de exemplos por todo o paiz. Sinto que não esteja presente o sr. ministro do reino, porque mais alguma cousa diria sobre este assumpto, com referencia ao qual, creio, s. exa. prestou já um bom serviço, fazendo com que pela força das suas allegações os tribunaes superiores decidissem já sobre esta questão, como do rasão e de direito deviam decidir, para pôr um termo ao abuso com que se vexavam os povos sob pretexto do legados pios não cumpridos.

Citarei ainda outro facto, e esto, como diz respeito a eleições, vou narrai-o em segredo. Peço até aos srs. tachygraphos que não tomem nota das palavras que vou dizer, porque tambem as não porei no meu discurso, quando mesmo o publique, o que é mais que duvidoso. E a este respeito permitta-se me que abra um parenthese no que estou discado.

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Sr. presidente, a publicidade é condição obrigada do regimen parlamentar. As nossas sessões; são publicas; a palavra solta d'esta tribuna deve ter echo no paiz, e não o tem apenas porque é ouvida do publico que, concorre á nossas sessões, tem-na a principalmente pela publicidade que lhe damos, convertendo a palavra, fallada em palavra escripta. Podemos, porém, satisfazer as exigencias d'essa publicidade que deve ser tal qual o regimen a pede, verdadeira e fiel, publicidade que transmitta a palavra escripta, como ella o foi fallada, emquanto tivermos o serviço tachygraphico montado como o temos? Sinceramente creio que não; e não me queixo dos tachygraphos, queixo-me da organização do serviço, tachygraphico, que, pelo modo por que está montado, nos não póde dar os elementos de uma publicidade fiel e rapida.

Tenciono fallar em occasião opportuna mais largamente a tal respeito, e pedirei então, com insistencia que se organise o serviço da tachygraphia e da stenographia, de modo que por elle tenhamos garantida a publicidade tal qual systema parlamentar a pede e exige como condição de systema, sem que o tornemos dependente apenas do maior ou menor concurso do publico e da sua assistencia ás nossas sessões.

Fechado este parenthese; volto ao meu caso, trazido aqui para provar o que é a administração e a que serie de abusos ella sujeita os povos sob a influencia da politica.

Terminada a eleição geral a que ultimamente se procedeu, e na qual, como já affirmei, foi respeitada a liberdade da urna, tanto quanto o podia ser por um governo, que não intervinha na lucta para realisar o ideal das suas aspirações, eu vi em uma pequena freguezia, perto d'aquella onde resido, serem citados para pagamento, de multas por pretextadas infracções de posturas municipaes, dezeseis individuos, que haviam votado contra o candidato apoiado pela auctoridade. Isto, dois dias depois da eleição! Com o concurso e apoio do competente, regedor!

Ora, sr. presidente, em um paiz onde se dão estes factos, que são conhecidos, e contra os quaes a consciencia publica nem se indigna, nem se levanta, talvez já por crer que o fosse debalde, ponhamos ainda á disposição da paixão politica mais uma influencia eleitoral, dependente do governo, representando-o nos seus direitos com relação aos contribuintes, e fallem-nos depois no ideal das eleições livres.

Pois o arrematante do real de agua não fica sendo nos concelhos, onde o governo arrematar o imposto, o mais influente de todos os seus agentes eleitoraes, e o mais poderoso de todos elles?

Pois queremos desaffrontar a uma de todas as pressões, e vamos, sem que nenhuma rasão o justifique, crear um instrumento obrigado dos mais odiosos de todos elles, dos que se exercem em nome do governo, e protegidos por elle?

Quer a camara isso? Póde justifical-o com qualquer consideração? Creio que não.

Porque, o que é verdade, é que se o pensamento do projecto senão defende, nem sustenta com nenhuma rasão plausivel, a sua urgencia ainda menos.

Pois que rasão ha para pedir e conceder esta auctorisação quando ainda se não sabe o que póde dar, a fiscalisação e cobrança do real de agua depois de executado o novo regulamento?

Voltarei ainda á referencia obrigada n'esta discussão ás medidas apresentadas pelo sr. Mello Gouveia.

Fiz já, sr. presidente, o devido elogio á proficiencia com que aquelle illustre ex-ministro elaborou as suas medidas, faço justiça ao zêlo e consciencia com que procurou desempenhar-se do cargo em que estava investida, mas avalio de diverso modo os actos dos seus successores para quem o illustre ex-ministro trabalhou sic vos non vobis nidificate aves, sem que lhe adoptassem nem o systema nem o pensamento d'elle.

S. exa. não procurou apenas obter o augmento do imposto do real de agua pelas medidas que propunham que foram acceites pelos seus successores, lembrava outros meios de que estes se esquecem completamente. Assim com referencia á fiscalisação do imposto de real de agua e de direitos de entrada de vinhos na cidade do Porto, lembrou a importancia de estabelecer n'aquella cidade a linha de circumvallação, e calculava que, feita ella o augmento de receita do imposto de real de agua é dos direitos de entrada dos vinhos no Porto seria de 50 por cento, quer dizer, réis 200:000$000. E para esta obra que é importante, apresen-tava o sr. Mello Gouveia as fontes de receita.

Inculcava; tambem s. exa. a necessidade, de melhorar as condições da fiscalisação externa tanto na raia, como nas costas e nos portos, com o que se obtinha um augmento de receita e uma economia.

(Leu.)

Tambem lembrou a conveniencia de melhorar o armamento dos guardas das alfandegas, e affirmando que isso importa metade da fiscalização, assegura, tambem que com o armamento actual ou essa fiscalisação se não exerce ou se torna dispendiosissima.

(Continua a leitura.)

Vê a camara? Aqui está accusada a necessidade de melhorar o serviço da fiscalisação maritima, e de pôr em communicação por meio do telegrapho as diversas estações fiscaes da raia e da costa, como meio efficacissimo de facilitar a fiscalisação.

É provavel que não. E a rasão é simples: Os eleitores pedem que se lhes façam reparos nas igrejas do campapanario, mas não pedem embarcações, para que melhore o serviço da fiscalisação maritima.

É facil pôr em communicação telegraphica as estações fiscaes da costa com as da raia. mas é mais politico o pôr em communicação os eleitores e os contribuintes do real de agua com o governo por via dos arrematantes. As obras da circumvallação no Porto calcula-se custarem 200:000$000 réis, tanto quanto se suppõe que deve augmentar a importancia do imposto do real de agua e de direitos de entrada dos vinhos n'aquella cidade. Porque não preferir o sr. ministro essa idéa á da arrematação? Pois não seria mais justificada? Penso que sim.

Acode-me á memoria um outro ponto, sobre o qual farei algumas reflexões.

O sr. Antonio de Serpa apresentou na sessão passada, entre outras propostas, uma que eu julgava de uma utilidade pratica real, e a favor da qual eu teria votado. Fallo d'aquella pela qual se creavam os visitadores fiscaes das contribuições directas e os escrivães privativos das execuções fiscaes.

Ouvi a muitos homens competentes, que se esta proposta fossem convertida em lei o serviço das execuções fiscaes não estaria atrazado como hoje está, e que dando andamento a processos executivos que estão, e continuarão a estar parados, dariam entrada no thesouro contos de contos de réis.

E é justo que isso aconteça, que o governo permitta que se devam por contribuições contenares de contos réis ao thesouro, e que não empregue todos os meios para os cobrar? E querem os srs. Ministros que, conhecidos o sabidos estes factos, não haja por parte do paiz reacção contra o augmento de impostos?

A primeira das condições para vencer essa reacção é convencer o paiz que a receita creada pelo imposto é bem applicada; a segunda é que, ao passo que se pedem ao paiz novos sacrificios, se fazem todas as economias que sensata e prudentemente se podem fazer; e que sem contemplações nem deferencias pessoaes, nem sob influencia de pressão politica, por causa d'ella se deixa de se exigir de quem deve aquillo que deve e póde pagar; e a terceira,

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se ainda me admittem uma terceira rasão, é convencer o paiz de que a questão financeira não é uma questão de politica, que ao paixões não devem intervir n'ella, e que todos os partidos por interesse unico do paiz devem procuram resolvel-a sendo governo, cabendo-lhes tambem a obrigação de não crear difficuldades para a solução d'ella; sendo opposição. N'isto não póde, nem deve haver differença de escolas; é um principio commum a todas ellas.

Pergunto, porém, sr. presidente, teremos nós escolas financeiras?

O sr. ministro da fazenda declarou que havia duas; tendo, porém, o prazer de ouvir ante-hontem o sr. conde de Valbom, respondendo ao sr. ministro, fiquei persuadido que havia tres escolas; e se continuarem a intervir mais oradores na discussão, poderemos crer que ainda ha mais, ou por outra, e com mais rasão, que não ha nenhuma.

Pois ha escolas financeiras com principios definidos, e vemos os diversos homens publicos acceitarem sendo ministros aquillo que combateram sendo opposição, e combaterem como opposição o que apoiaram e apresentaram, por iniciativa propria, sendo governo?

E não procedeu assim o sr. Antonio de Serpa, e não está procedendo hoje da mesma fórma o actual ministro da fazenda?

Sr. presidente, vou concluir declarando, que estou prompto a apoiar com o meu voto todas as propostas financeiras que o governo apresentar, inspirando-se das verdadeiras condições economicas do paiz e da necessidade impreterivel de equilibrar a receita com a despeza, e do organisar definitivamente as nossas finanças. Este projecto, porém, não o voto.

Combati com energia o projecto sobre o real de agua do governo passado, combato com igual energia esta auctorisação que o governo pede para poder dar de arrematação a cobrança d'aquelle imposto, e francamente declaro que nem mesmo cheguei ainda a comprehender qual o intuito do governo apresentando uma tal proposta.

O governa acabava do usar de uma auctorisação publicando o regulamento de 29 de dezembro.

Tinha os meios necessarios para montar convenientemente o serviço da fiscalisação e da cobrança do real de agua; que significa, pois, o vir hoje, sem saber o que dá o novo systema, pedir uma auctorisação, que é a negação d'aquella de que acabou de fazer uso?

Sr. presidente, será este o meio de vencer as reluctancias que por imprudencia nossa temos levantado no paiz contra todo o imposto?

Ha uns poucos de annos que, permitta-se-me a phrase, estamos fazendo cocegas ao paiz com o real de agua, e não queremos que elle as sinta, que se mecha, que só revolte! Pois não lh'as fizessemos!

Sr. presidente, espero com impaciencia o documento a que o sr. ministro se referiu na sessão passada, rendendo louvor ao empregado que o elaborou, louvor que eu agradeço, que sei que é merecido, e que por isso mesmo honra o ministro que o faz e o empregado a quem o dirige, e que eu agradeço como se me fosse feito pessoalmente, tão de perto me diz respeito tudo o que é concernente á pessoa a quem o illustre ministro se refere.

Venha esse documento, e por elle verá a camara e o paiz que desigualdades monstruosas se dão nas contribuições de lançamento.

Pois bem, corriijámos essas desigualdades, aperfeiçoemos as matrizes, e cortemos pela raiz a rasão d'essa imperfeição, que vem sobretudo e principalmente de sacrificarmos a administração á politica.

Sou proprietario, e creio poder affirmar que a propriedade não reage contra o imposto equitativamente distribuido, e que por interesse proprio ella deseja contribuir para que se equilibre a receita, com a despeza, e se acabe por uma vez com uma desorganisação fiananceira que traz sobresaltadas todas as relações da economia publica.

São de louvar todos os esforços que o illustre ministro emprega para conseguir esse fim; o paiz, porém, fazendo justiça ás suas intenções, póde deixar de acceitar as idéas de s. exa. e o pensamento das suas medidas como sendo o meio mais seguro e efficaz de obtermos a organisação definitiva das nossas finanças. Nem esta se obtem com ensaios como o do projecto que se discute, nem com medidas que, contrariando a indole dos nossos costumes, e juntando ao encargo do imposto o odioso do vexame, e o arbitrio da acção fiscal, predispõe instinctivamente contra si a consciencia já hoje demaziadamente susceptivel do contribuinte.

Não me canso de o repetir; vejamos em que paiz estamos e como o temos educado. Se a questão financeira se resolvesse pelo recurso ao imposto, independentemente do saber se o paiz o pagava, ou podia pagar, era facil resolver a questão de fazenda. O difficil, porem, é pôr em harmonia as exigencias do thesouro com as condições do contribuinte.

As difficuldades com que lutámos vem herdadas de longos annos; constituem a responsabilidade de diversas situações; e o illustre ministro, cujo animo é para muito, e cujo enthusiasmo é para muito mais, póde ver-se assoberbado pela audacia do commettimento de querer vencer de repente todas as difficuldades que o cercam, e que encontrou creadas com a responsabilidade de todos os partidos e de todas as situações. As suas aspirações têem de lutar aqui com a realidade dos factos, com a verdade pratica das condições em que o paiz se encantra. N'isto me faz s. exa. lembrado o que D. Francisco Manuel conta de um certo fidalgo nas suas Epanaphoras politicas, quando diz:

«Era este fidalgo mais especulativo que pratico em os negocios publicos; e discursando comsigo mesmo ácerca das causas do empenho em que se via a fazenda real, se persuadiu que elle só, depois de tantos, lhe achára justo e facil o remedio.»

Sr. presidente, em vista das considerações que tenho produzido já v. exa. vê que veio contra o projecto em discussão.

Como disse, a synthese do meu discurso dá a rasão do meu voto.

É possivel que o sr. ministro da fazenda, que vão usar da palavra, possa oppor ás considerações que tive a honra de apresentar á camara, argumentos que resolvam as duvidas que no meu espirito e no de muitos dos meus collegas se levantam contra a conveniencia que possa resultar ao paiz de ser approvado o projecto em discussão. Oxalá que o possa fazer, e que s. exa. convença a camara e o paiz de que a opposição que está soffrendo cata sua medida é injustificada, como são injustificados os receios de que posta ella em vigor se não consiga senão tornar mais odiosa a idéa do imposto.

Sr. presidente, quando se entrar na analyse dos artigos do projecto, na discussão da especialidade pedirei de novo a palavra, reservando-me para então propor algumas modificações aos artigos do projecto.

Por agora concluo votando contra elle na generalidade.

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