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CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REIMO

SESSÃO N.° 46

EM 22 DE AGOSTO DE 1908

Presidencia do Exmo. Sr. Conselheiro Antonio de Azevedo Castello Branco

Secretarios - os Dignos Pares

Luiz de Mello Bandeira Coelho
Marquez de Penafiel

SUMMARIO. - Leitura e approvação da acta. - Expediente. - O Digno Par Sr. João Arroyo manda para a mesa uma representação do Montepio Humanitario de seu nome, reforçando-a de algumas palavras, e pedindo que fosse publicada no Diario do Governo, o que a Camara approva. - O Digno Par Sr. Alexandre Cabral participa a constituição da commissão de instrucção publica. - O Digno Par Sr. Teixeira de Sousa refere-se a varios assuntos ultramarinos, respondendo-lhe o Sr. Ministro da Guerra. - O Digno Par Sr. D. João de Alarcão manda para a mesa um parecer relativo á renuncia do Digno Par Sr. Anselmo Braamcamp. - O Digno Par Sr. José de Alpoim occupa se da transferencia do secretario geral de Macau, de assuntos que se ligam com a Companhia de Tabacos, da prisão de cinco individuos e da distribuição do milho. Responde-lhe o Sr. Presidente do Conselho.

Ordem da dia: Continuação da discussão do projecto que fixa a lista civil - Usa da palavra o Digno Par Sr. Luciano Monteiro, a quem se segue o Digno Par Sr. Francisco Beirão. - O Digno Par Sr. Francisco José Machado requer a prorogação da sessão, o que é approvado. - Fala o Digno Par Sr. Ressano Garcia, seguindo-se o Digno Par Sr. João Arroyo. - O Digno Par Sr. Sebastião Baracho requer a votação nominal da generalidade do projecto, o que é approvado. Em seguida é approvado o projecto. - Na especialidade, a requerimento do mesmo Digno Par, é votado nominalmente o artigo, 5.°, sendo approvado, bem como os restantes artigos. - É retirado um additamento ao artigo 5.º e rejeitado outro ao artigo 7.° - É encerrada a sessão e designada a ordem do dia da immediata.

Ás 2 horas e 25 minutos da tarde o Sr. Presidente abriu a sessão.

Feita a chamada, verificou-se estarem presentes 31 Dignos Pares.

Do Ministerio estiveram os Sr. Presidente do Conselho e Ministros da Justiça, da Fazenda, da Guerra e dos Negocios Estrangeiros.

Lida a acta da sessão antecedente, foi approvada sem reclamação.

Mencionou-se o seguinte expediente:

Mensagens da Camara dos Senhores Deputados, remettendo os projectos de lei que teem por fim:

1.° Autorizar as mesas das Camaras Legislativas a distribuirem uma gratificação pelos seus empregados;

2.° Fixar em 600$000 réis annuaes o vencimento do naturalista para a cadeira de botanica e para o Jardim Botanico da Universidade de Coimbra.

Petição de Alfredo Augusto da Silva Gouveia, no sentido de se attribuir, por lei, aos regedores; ordenado, gratificação ou isenção de contribuições.

O Sr. João Arroyo: - Sr. Presidente: mando para a mesa uma representação do Montepio Humanitario João Arroyo, do Porto, na qual esta associação de soccorro mutuo mostra as difficuldades financeiras com que luta o seu cofre, bem como o de grande parte das associações congeneres.

Allega aquella associação que o numero de socios, que carecem de soccorro pecuniario, é cada vez maior, por motivos que a Camara facilmente adivinhará: como são a insufficiencia de alimentação, insalubridade de moradia, etc., e que a situação é muitas vezes tal, que se tem tornado indispensavel refundir os estatutos, com o fim de cercear as prerogativas dos socios e de onerar os seus encargos para com o cofre da associação.

Os embaraços financeiros d'estas entidades teem tambem imposto por vezes a necessidade de eliminar socios, que se encontram inhabilitados na epoca da vida em que o soccorro mutuo mais lhes adoçaria a existencia.

O decreto de 2 de outubro de 1896, a que a representação allude, dispõe que, não havendo fundo de inhabilidade, ao doente impossibilitado permanentemente são suspensos os soccorros.

Suggerem os membros da associação a que me estou referindo a criação de um cofre do Estado para aquelles membros das associações, nos quaes a inhabilidade attingisse o caracter de permanencia, que consideram ruinoso para a prosperidade financeira d'estas associações.

Alem d'isto, Sr. Presidente, a representação, cujos considerandos estou transmittindo á Camara, insiste na necessidade de regular de outra maneira o cumprimento da lei de 14 de maio de 1892, que isentou o juro dos titulos da divida publica, pertencentes ás associações de soccorros mutuos, do imposto de 30 por cento.

O imposto era de facto descontado, e mais tarde reembolsado, precedendo, porem, a apresentação de um requerimento da associação interessada.

Reclamam os representantes contra este processo dispendioso e complicado para as associações rehaverem aquillo que não deveria sequer ter-lhes sido descontado no acto do pagamento dos juros.

Peço o mais instantemente possivel aos poderes publicos que prestem a sua attenção ao estado das associações d'esta natureza; e á commissão respectiva peço tambem que se occupe d'este assunto com todo o empenho de conhecer as difficuldades que a representação descreve.

Por ultimo, Sr. Presidente, achando-

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se a representação redigida em termos convenientes, requeiro a V. Exa. que se digne consultar a camara sobre se consente que ella seja publicada no Diario do Governo.

(O Digno Par não reviu).

Consultada a Camara, resolveu affirmativamente.

O Sr. Alexandre. Cabral: - Participo a V. Exa. e á camara que se acha constituida a commissão de instrucção publica, tendo sido eleito para seu presidente o Digno Par Sr. Beirão, e para secretario o Digno Par Sr. Conde de Monsaraz.

O Sr. Teixeira de Sousa: - Sr. Presidente: ha cêrca de um mês mandei para a mesa um requerimento em que pedi que, pelo Ministerio da Marinha, fossem remettidos a esta camara os documentos sobre que assentou o processo da transferencia violenta do secretario geral do governo de Macau para Angola. Então declarei que desejava apreciar estes factos.

Mas os documentos nunca vieram, e querendo eu desembaraçar me da obrigação que para mim proprio contraiu de me occupar deste assunto na Camara, vou pronunciar algumas palavras a este respeito.

O caso passou-se ainda no tempo do Governo transacto. O governador geral de Angola, que era o actual, entendeu que estava autorizado, ou tinha disposições legaes, para mandar um dia chamar ao seu gabinete o secretario geral da provincia e ordenar-lhe que embarcasse para a metropole. Perante uma intimação d'esta ordem, e feita nestes termos, o Sr. Manuel Mansilha, soube que passava um navio em Loanda e embarcou para Lisboa.

Aqui se manteve, Sr. Presidente.

Entretanto, o governador da provincia enviava uma queixa contra o secretario geral, queixa que foi apreciada pelo Sr. Ministro da Marinha.

Aquelle illustre funccionario respondeu porem de tal maneira, e justificou-se por tal forma, que o Sr. Ministro da Marinha entendeu que não havia motivo algum para proceder, e mandou por despacho archivar o processo.

Ficou portanto aquelle funccionario em condições de seguir carreira e de merecer a confiança do Governo.

Que fez então o Sr. Ministro da Marinha? Com surpresa minha vi nessa occasião que S. Exa. transferia para Macau o secretario geral de Angola, e para esta provincia o secretario geral de Macau.

Não conheço as razões que imperaram no espirito do Sr. Ministro da Marinha para S. Exa. proceder assim; mas direi que isto representa uma violencia, uma injustiça e uma illegalidade.

Não o podendo mandar para o seu logar, em Loanda, porque isso criaria uma situação irreductivel com o governador geral, que o havia mandado para o reino, o Sr. Ministro da Marinha entendeu que o melhor processo a adotar seria a transferencia reciproca com Macau, o que representava para o secretario d'aquella colonia uma injustificavel violencia, porque o collocava numa situação de inferioridade.

Este facto alem de uma violencia é uma illegalidade.

Não tenho hoje com quem o discutir; mas, tratando-se de um funccionario inteligente e zeloso, como é o Sr. Dr. Alfredo Lello, e não conhecendo eu o motivo e processo por que se fez esta transferencia, julgo da minha obrigação ler as informações que os diversos governadores de Macau, a partir de 1900, até ao actual governador, teem dado acêrca d'este funccionario, por que a camara não pense que elle praticou alguma falta que motivasse a sua transferencia.

(Leu).

Em minha convicção, Sr. Presidente, não ha sombra de fundamento para esta violencia, feita a um funccionario que é zeloso, intelligente e probo.

Sr. Presidente: o que não pode fazer o Governo na metropole sem lei votada no Parlamento, pode fazê-lo o governador geral de Moçambique, graças a este regime de descentralização, criado pelo decreto de 1907, em virtude do qual se deixa fazer a estes funccionarios publicos tudo quanto querem.

O recente boletim da provincia de Moçambique traz este mimo da celebre descentralização administrativa.

(Leu).

Em consequencia d'isto, os directores das companhias teem de permanecer nas enxovias da Zambezia, por tempo que vae de seis meses a um anno, ou pagar uma multa de 100$000 réis a 500$000 réis.

As leis do reino não permittem que o Governo estabeleça disposições penaes que vão alem de um mês, e multas que vão alem de 20$000 réis.

O governador de Moçambique, estabelecendo para estes casos prisões de seis meses a um anno e multa de 100 a 500$000 réis, vae, porem, mais longe que o poder executivo.

Sr. Presidente: eu conheço que todas as minhas reclamações são inuteis, não obtendo remedio para este estado de cousas; mas isto não faz senão convencer-me cada vez mais e mostrar que a nossa soberania em Moçambique pouco mais é que nominal.

(O Digno Par não reviu).

O Sr. Ministro da Guerra (Sebastião Telles): - Sr. Presidente: pedi a palavra para responder a algumas das considerações do Digno Par Sr. Teixeira de Sousa. S. Exa. tratou de um ponto que é especialmente da pasta da Marinha, pela qual eu não posso dar informações satisfatorias a S. Exa.

Com respeito á transferencia dos secretarios geraes dos governos de Macau e Angola, transmittirei ao meu collega da Marinha as considerações de S. Exa., a fim de que venha a esta Camara, logo que lhe seja possivel, dar os esclarecimentos precisos.

Direi tambem ao Sr. Ministro da Marinha que o Digno Par se queixa de lhe não terem sido enviados os documentos a que se referiu.

Relativamente á tributação do vinho em Lourenço Marques, o Governo procurou informar-se, mas ainda não veio resposta ao telegramma enviado ao governador geral. Pode porem o Digno Par estar certo de que o Governo considera essa questão importante e occupa-se d'ella com interesse.

Com respeito ás multas e prisões estabelecidas em Moçambique communicarei igualmente ao Sr. Ministro da Marinha as considerações apresentadas.

(S. Exa. não reviu).

O Sr. D. João de Alarcão: - Mando para a mesa o parecer da commissão especial encarregada de dar parecer acêrca da renuncia do Digno Par Sr. Braamcamp Freire.

Foi a imprimir.

O Sr. Presidente: - Vae ler-se um officio do Digno Par o Sr. Alpoim, em que S. Exa. pede licença para se ausentar do reino.

Consultada a Camara, concedeu a licença pedida.

O Sr. José de Alpoim. - Sr. Presidente: concordo com todas as palavras e affirmações do Sr. Conselheiro Teixeira de Sousa, a respeito do secretario de Macau Sr. Dr. Alfredo Lello, empregado publico digno de toda a consideração.

Ditas estas palavras, vou referir-me ao novo incidente, determinado pela carta, publicada nos jornaes, do presidente do conselho de administração da Companhia dos Tabacos Sr. Conde de Burnay. O meu querido amigo, illustre leader da dissidencia progressista na camara dos Deputados Sr. Dr. João Pinto dos Santos, já se referiu a esse incidente, e o Sr. Ministro da Fazenda disse que á Procuradoria Geral da Coroa já haviam sido mandados o relatorio do commissario junto á Companhia dos Tabacos e todos os documentos.

Sr. Presidente, eu peço que haja a maior rapidez nas providencias a tomar, pois o país está com ardente

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curiosidade de saber, entre outras cousas, como é que a Companhia dos Tabacos, tendo documentos tão compromettedores para homens publicos, se não serviu d'elles na occasião em que a sua honra, o seu interesse, e até patriotismo, se entendia que o seu contrato é que convinha ao país, lhe aconselharam e mandavam que desmascarasse os homens publicos que, sejam elles quem forem, são accusados agora, tres annos depois, quando tudo indica que se prepara um golpe da Companhia contra o Thesouro. Deve haver razões, mysteriosas e estranhas, para este facto

Mais uma vez insisto por se saber toda a verdade Não obedeço a qualquer sentimento de odio ou má vontade contra o Sr. Conde de Burnay, a quem nunca Falei, com quem jamais tive relações directas ou indirectas, e a quem aggredi politicamente quando os Srs. José Luciano e outros homens graduados do partido progressista chamavam burnaysia á regeneração e mandavam atacar o Sr. Burnay como prejudicial ao Estado.

Foi por estes motivos que o combati, e porque a minha consciencia me dizia que defendia os interesses nacionaes, sendo esta a razão por que, quando o chefe progressista achou bom o contrato feito com quem o partido progressista tanto combatera, eu e os meus amigos tanto nos oppusemos a esse contrato, não havendo na luta a menor interrupção, a menor incerteza, a menor hesitação, a menor ambiguidade.

E isso é um dos titulos de gloria da dissidencia.

Não me move pois nenhuma má vontade contra o Sr. Conde de Burnay. Quero que, se homens publicos praticaram a indignidade de se offerecerem por dinheiro á Companhia dos Tabacos, sejam castigados pelo seu crime; se o presidente do conselho de administração da Companhia dos Tabacos, o que é indignidade igual, malsina homens publicos, soffra as consequencias da sua má acção. É isto o que quero. (Apoiado do Digno Par João Arroyo).

Sr. Presidente: o juiz de instrucção criminal procede certamente em conformidade com as instrucções do Sr. Presidente do Conselho e Ministro do Reino, e por isso dirijo me a S. Exa. para saber qual a razão por que estiveram presos e incommunicaveis durante oitenta e um dias cinco cidadãos.

Sr. Presidente: não quero saber, nem sei quem estes sejam, nem a sua situação politica. Demagogos ou reaccionarios, a violencia praticada contra elles é uma obra offensiva de todos os principios de justiça, de humanidade e até da lei. Eu, como chefe de um partido radical, praticaria uma má acção, se não se referisse ao facto abusivo, indigno de um país civilizado e liberal. O artigo 21.° do decreto de 20 de janeiro de 1898, assinado pelos Srs. José Luciano e Beirão, é repugnantemente anti-liberal e urge revogá-lo.

Reclamo do Sr. Presidente do Conselho: como responsavel do occorrido pelo artigo 1.° do decreto de 19 de setembro de 1902, explicações sobre o caso revoltantissimo de tamanha arbitrariedade.

Estabeleceu-se tambem a esses presos a incommunicabilidade. Sr. Presidente, é verdadeiramente lamentavel que, nesta materia, se fosse hoje menos liberal do que no tempo do famoso Costa Cabral. Se eu e os meus amigos influissem nos negocios publicos, a instituição actual do juizo de instrucção criminal, com as suas doutrinas anti-liberars, desappareceria, pois as instituições monarchicas só perdem quando se assiste a violencias taes como as praticadas.

Para outro ponto chamo a attenção do Sr. Presidente do Conselho, e é para o que se está passando no norte com a distribuição do milho.

Fui informado que em Mesão-Frio a autoridade administrativa aproveita-se da faculdade de poder regular o distribuição, fazendo politica.

Peço ao Sr. Presidente do Conselho que se informe a este respeito, e se digne providenciar, mandando entregar essa distribuição ás camaras municipaes.

Era para estes assuntos que eu pedi a attenção do Sr. Presidente do Conselho, mas se S. Exa. não me puder responder hoje, eu virei aqui na proximo sessão.

(O Digno Par não reviu).

O Sr. Presidente do Conselho de Ministros e Ministro do Reino (Ferreira do Amaral): - Peço a palavra.

O Sr. Presidente: - V. Exa. só pode usar da palavra por poucos minutos.

O Sr. Presidente do Conselho de Ministros e Ministro do Reino (Ferreira do Amaral): - Poucos minutos me são precisos para responder ao Digno Par Sr. Alpoim.

Com relação ao caso do presidente do conselho de administração da Companhia dos Tabacos, conforme o Parlamento já está informado, foram mandados todos os documentos á Procuradoria Geral da Coroa, a qual dará o seu parecer no prazo que entender sufficiente para estudar bem a questão, e que eu creio que não será muito longo.

Com relação aos individuos detidos durante 81 dias procedeu-se, com effeito, em harmonia com a lei de 1898.

Pela necessidade de indagações que tiveram de fazer se no estrangeiro, protelou-se o tempo de prisão d'esses individuos. Como d'essas indagações se concluiu que não havia fundamento para accusação, foram então soltos, no mesmo dia em que chegou o resultado d'esses trabalhos.

A lei pela qual se procedeu assim, tem já dez annos de existencia; não deixo de reconhecer a conveniencia de a modificar, mas não é agora a opportunidade de lhe fazer alterações.

Aguardemos esse ensejo, aguardemos um periodo mais socegado.

V. Exa. e a Camara sabem perfeitamente que essa opportunidade se retarda muitas vezes, não por culpa dos Governos, mas das circunstancias que se apresentam.

Relativamente ao outro assunto, tenho a responder ao Digno Par que o projecto relativo á distribuição do milho já passou em ambas as casas do Parlamento, quer dizer, é lei.

Segundo essa lei, a distribuição será feita pelas camaras municipaes, o que dará garantia de se não poder allegar que essa distribuição é feita segundo os desejos dos administradores de concelho.

(S. Exa. A não reviu).

ORDEM DO DIA

Continuação da discussão da proposta de lei que fixa a lista civil

O Sr. Luciano Monteiro: - Pedi a palavra, e vou usar d'ella para fazer uma simples declaração de voto acompanhada de ligeirissimos commentarios.

O projecto que se discute tem duas partes inteiramente distinctas. Na primeira, fixa a dotação de El Rei D. Manuel, e na segunda trata de uma operação de ajuste de contas, apuramento de saldos e forma de pagamento.

A primeira parte contida nos artigos 1.° a 4.° do projecto approvo-a, não direi com orgulho, mas gostosamente, porque é, na sua intima substancia, o conteudo do decreto ditatorial de 30 de agosto de 1907, que o Ministerio transacto publicou.

O fim d'esse decreto, no tocante á dotação de El-Rei, era manter os 365 contos de réis e alliviar a Coroa de encargos. No projecto que se discute encontra-se precisamente o mesmo pensamento, com a ligeira differença de se não fixar o maximo para o custeio dos palacios reaes.

Se eu quisesse estabelecer confrontos, poderia talvez demonstrar a superioridade do decreto de 30 de agosto sobre o projecto em discussão.

Li nos jornaes que Sua Majestade El-Rei tenciona, no fim d'este mês ou no principio do mês de setembro, ir para o Palacio da Pena.

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Este palacio coube, no tempo de El-Rei D. Luiz, a um dos interessados no inventario de El-Rei D. Fernando e o Governo, por considerações de varia natureza, veio ao Parlamento pedir autorização para, com os seus annexos, o adquirir para o Estado.

O Parlamento concedeu essa autorização e o Estado adquiriu o Palacio da Pena com os seus annexos por 370 ou 375 contos de réis.

Quando se tratou do cumprimento do preceito constitucional de fixar a dotação de El-Rei D. Carlos, estabeleceu-se que o Palacio da Pena, durante esse reinado, seria usufruto d'aquelle Monarcha.

Tendo terminado, como terminou, esse reinado, o Estado readquiriu o dominio pleno do Palacio da Pena e, emquanto não houver um diploma legislativo que determine o contrario, esse palacio e suas dependencias não podem ser habitados por El Rei D. Manuel.

Esta é a situação de direito.

Devemos empenhar-nos todos para evitar á gentilissima criatura que hoje preside aos destinos do país o desgosto ou vexame de habitando o Palacio da Pena, ler nos jornaes a pergunta:

- Com que direito é que Vossa Majestade occupa esse palacio?

Com respeito á parte do projecto que se refere á liquidação de contas, declaro que a rejeito.

Tenho a responsabilidade solidaria de um diploma em que se julgam saldadas essas contas, e por isso não podia praticar a ignominia de jungir o meu voto á restauração d'ellas, e de mais a mais em relação a pessoa que não é o originario devedor.

Ainda que tal razão não existisse, não votaria o artigo 5.° do projecto, porque é inutil, injusto, e dá ao bello gesto de El-Rei uma forma cruel e ridicula.

Então, para se tratar de um ajuste de contas, de um apuramento de saldos, é necessario uma autorização par lamentar? Então o Governo, para determinar se algum funccionario deve ou não ao Estado determinada quantia, é obrigado a pedir autorização ao Parlamento?

Isso é um assunto de expediente, para o qual o Governo tem autorização permanente.

Desde a data em que se iniciaram os adeantamentos á Casa Real tem-se vivido sempre no regime do deficit orçamental; quer dizer, as despesas relacionadas no orçamento teem excedido as receitas ordinarias mencionadas no mesmo orçamento. Para satisfazer as despesas ordinarias fixadas no orçamento do Estado tem-se recorrido á divida fluctuante: e, se assim tem succedido, deduz-se, por uma forma logica, fatal e inevitavel, que os adeantamentos resultam tambem de dividas contrahidas pelo Estado, que este ainda não pagou, e que estão vencendo juro não inferior a 6 por cento.

A Casa Real quer pagar a sua divida ao Estado por meio de prestações annuaes de 5 por cento do saldo que se apurar?

Se assim é, taes prestações exprimem apenas um allivio, e esse mesmo parcial, dos juros que o Estado paga aos seus credores!

A nobreza do pensamento de El-Rei era libertar o Estado dos encargos que este contrahiu para fazer os adeantamentos. O expediente adoptado pelo artigo 5.° do projecto é uma falsificação ridicula d'esse pensamento.

Entendo por isso, repito ainda uma vez, que o mais conveniente seria dar como saldadas as contas do Estado com a Casa Real.

Sr. Presidente: ponho pôr aqui termo ás minhas considerações. Creio ter falado nitidamente, para que o meu voto não possa ter interpretações erradas. Approvo a primeira, parte do projecto, aquella que diz respeito á dotação do Rei. O artigo 5.° rejeito-o.

Tenho dito.

(O orador não reviu).

O Sr. Francisco Beirão: - Sr. Presidente: se o Digno Par do Reino Sr. Conselheiro José Luciano de Castro tivesse podido, como era seu vehemente desejo, tomar parte nesta discussão, eu talvez me abstivesse de falar, porque, para dar conta da minha responsabilidade individual, bastaria a minha assinatura apposta no parecer em discussão.

Mas como, infelizmente, o illustre chefe do partido progressista não pode aqui comparecer, vejo-me forçado, por essa circunstancia, a tomar algum tempo á Camara para fazer considerações a respeito e a proposito do projecto que se discute.

O partido progressista vota esta proposição de lei, mas vota-a sem restricções, sem emendas, sem additamentos; vota-a emfim tal qual como foi apresentada nesta Camara.

E vota assim o partido progressista, porque entende não só que cumpre o dever constitucional, de se fixar a dotação de El-Rei no principio do seu reinado, e se lhe não afigura que, d'este seu voto, possa resultar o minimo inconveniente para a Coroa ou para a nação, mas porque entende tambem que é necessario pôr cobro, e quanto antes, a uma situação que, se não é de modo algum perigosa para as instituições, é desagradavel para todos aquelles que as defendem.

Feita esta declaração, só me cabe justificar, singelamente, o meu voto relativamente aos artigos que teem sido impugnados por varios Dignos Pares, e que são os artigos 1.°, 2.° e 5.°

O artigo 1.° d'este projecto tem por fim fixar aquillo que, em direito constitucional, se chamava antigamente dotação movel ou dotação pecuniaria da Coroa.

De toda esta discussão, uma conclusão resulta, e é que a dotação pecuniaria fixada não é exagerada. Quando noutros paises que se querem apontar como politicamente mais adeantados - no que aliás não concordo - os representantes da nação, no uso legitimo de uma faculdade legal, e tendo em attenção o encarecimento successivo da vida nos grandes centros, aumentam o subsidio, é bom que se saiba que as Côrtes portuguesas votam ao Rei a mesma dotação pecuniaria que ha perto de um seculo foi fixada ao seu quarto avo.

É bom, repito, que esta conclusão fique bem assente.

Alguns Dignos Pares que tomaram parte nesta discussão julgaram necessario, para votar, habilitarem se primeiramente com informações e elementos que, disseram, não foram aqui presentes, e chegaram a exigir uma especie de inquerito á Fazenda da Casa Real para ficarem sabendo se a dotação mencionada no projecto era ou não exagerada.

Aproveito desde já a occasião para dizer que, em tudo quanto tiver de proferir, no meu modesto discurso, será de forma a respeitar a opinião de todos, sem, já se vê, desistir da minha liberdade de dissentir d'essas opiniões.

Sr. presidente: para votar a dotação de El-Rei o Senhor D. Manuel II eu não preciso dos elementos aqui pedidos, porque, em 1890, votei exactamente a mesma dotação a El-Rei o Senhor D. Carlos I sem exigir semelhantes informações.

Voto hoje como, com quasi toda a Camara aos Deputados, á qual pertenciam então muitos dos Dignos Pares que vejo presentes, votei igual dotação a El-Rei D. Carlos. E noto que, se por essa occasião houve uma proposta para se diminuir a dotação pecuniaria num terço, ella nem sequer foi admittida á discussão.

Um digno Par, meu antigo condiscipulo, que folgo de ver restituido ás lides parlamentares, perguntou quem era que em todas as acções concernentes aos interesses da Casa Real representava a Coroa.

A Carta dizia que era um mordomo, mas esse Digno Par não sabia quem era essa entidade. Teve razão. Já se pensou em remediar esse inconveniente no projecto do Codigo de Processo Civil, por uma disposição que foi modificada na Camara electiva, mas a commissão encarregada da ultima re-

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visão no Codigo eliminou esse ponto, não se sabe porquê.

O que seria conveniente é que este ou outro Governo abordasse o assunto e o resolvesse, para de uma vez para sempre terminarem duvidas. Para mim, não ha duvidas de que a entidade nestes casos é a administração da fazenda da Casa Real, mas não seria mau que se assentasse qualquer cousa de definitivo.

Passando ao artigo 2.°, observarei que as divergencias que tem havido a seu respeito são na forma e não no fundo.

Allega-se que El-Rei não pode fazer a cedencia relativa aos paços de Belem, Caxias e Queluz, pois que nada tem nelles a ceder, por serem inteiramente do Estado.

A argumentação não colhe, pois, em virtude da legislação em vigor, esses palacios pertencem já á Coroa - e logo explicarei o sentido em que tomo a expressão - pertencem, de que uso.

A argumentação é uma para o Palacio de Belem e outra para os outros palacios, e por isso, para clareza do assunto, tratarei separadamente de cada uma.

Vamos a Belem.

O artigo 85.° da Carta diz mui claramente: «Os palacios e terrenos reaes que teem sido até agora possuidos pelo Rei ficarão pertencendo aos seus successores; e as Côrtes cuidarão nas acquisições e construcções que julgarem convenientes para a decencia e recreio do Rei».

Quaes são esses paços reaes, perguntava-se? Aquelles que, pelo decreto das Côrtes Constituintes de 11 de julho de 1821, foram assinados para habitação e recreio de El-Rei D. João VI, respondia-se. E como entre elles não figurava o de Belem, este - conclue-se - não é d'aquelles a que se refere a carta que foi outorgada em 29 de abril de 1826.

Notarei, Sr. Presidente, que nada tem para o caso a data da outorga da Carta, mas sim aquella em que entrou em vigor. E como a Carta esteve pelo menos duas vezes sem vigorar, e a ultima vez que foi restaurada o foi em 10 de fevereiro de 1842, seria esta a data a attender.

Mas o artigo 85.° fala nos palacios que estavam na posse do Rei, e estes podiam ser mais dos mencionados no decreto de 1821, e não ha duvida que nessa posse estava o Palacio de Belem.

Acresce, porem, que esse decreto foi como nelle se declara, provisorio. E porquê? Presumidamente porque tendo sido publicado por virtude de uma das bases - note-se - da Constituição só era destinado a vigorar até a vigencia da Constituição seguinte. Ora esta foi assinada em 23 de setembro de 1892 e nella o artigo 140.° mandava: - que

as Côrtes designassem os palacios e terrenos que julgassem convenientes para residencia e recreio do Rei e de sua familia. E agora pergunto: quando é que se fez essa designação definitiva?

Passarei em seguida a occupar-me dos Palacios de Caxias e Queluz.

Estes palacios pertenciam á Casa do Infantado, que foi extincta pelo decreto de 18 de março de 1834, encorporando-se os seus bens nos proprios da Fazenda; porem alguns palacios que faziam parte do Infantado foram destinados para decencia e recreio da Rainha, que era então a Senhora D. Maria II. Isto posto, diz-se, expirando esta Rainha, terminou tal concessão, e tanto que foi mester renová-la pela lei de 16 de junho de 1855 para o reinado de El-Rei D. Pedro V e por outras leis para os reinados seguintes de El-Rei D. Luiz e de El Rei D. Carlos, e se renova por este projecto para o reinado de El Rei D. Manuel.

Esta argumentação parece procedente á primeira vista, mas não o é realmente.

Antes de tudo observarei que o decreto de 1834 diz «que os palacios nelle mencionados são destinados para decencia e recreio da Rainha».

Mas acrescenta: «como os palacios e terrenos de que trata o artigo 85.° da Carta Constitucional da Monarchia». E assim não se pode deixar de lhe applicar tambem a parte d'este artigo em que diz ficarão pertencendo aos successores.

Mais uma vez se verifica o Nihil novi sub sole.

Quando nesta Camara se discutiu a dotação do Senhor D. Pedro V, levantaram as mesmas duvidas jurisconsultos abalisados.

Houve duvidas nessa occasião sobre se a dotação do Senhor D. Pedro V, assinada no projecto que foi depois convertido na lei de 14 de março de 1854, e que era restricta á parte pecuniaria, prejudicava ou não o direito da Coroa aos bens immoveis designados no artigo 85.° da Carta e no decreto de 1834, que tinha extinguido a Casa do Infantado.

Ventila se agora uma questão identica.

Foi larga a discussão sobre a dotação do Senhor D. Pedro V. Houve primeiro o parecer da commissão respectiva; e, afinal, a Camara não votou a dotação áquelle Monarcha sem que ficasse exarada uma declaração muito significativa, qual foi a seguinte:

«Requeiro que se lance na acta que a Camara, approvando o projecto de lei n.° 99, tal como veio da Camara dos Senhores Deputados, não teve a intenção de prejudicar em cousa alguma a fruição dos palacios e terrenos reaes, tanto nos que pertencem aos successores do Rei por virtude de artigo 85.° da Carta, como dos que foram vendidos durante o ultimo reinado pelo decreto de 18 de março de 1854».

E alem d'isso o Ministro da Fazenda, que era Fontes, trouxe á Camara um projecto de lei em que essa declaração ficou incluida.

Ora essa lei é precisamente a de 1855, a qual começa por dizer - note-se - que continuaria em vigor o decreto de 1834 que assinou á Coroa aquelles palacios. Se continuou, é porque nunca houve intervallo de suspensão.

É certo que todos os palacios e terrenos assinados á Coroa são bens nacionaes, mas são bens nacionaes cuja propriedade pertence ao Estado e cujo usufruto pertence á Coroa.

Disse o Digno Par que acabou de falar que tendo lido num jornal que El-Rei tencionava ir para o Palacio da Pena brevemente, pedia ao Governo e a todos os membros da Camara que collaborassem com elle em defender a gentilissima criatura que preside aos destinos da nação, de um vexame que se pode dar. Podia muito bem acontecer que, no dia seguinte á ida de El-Rei para o Palacio da Pena, algum jornal perguntasse com que direito Sua Majestade habita este Palacio em Cintra.

E procurou justificar este seu receio com os termos em que se acha redigida a lei de 25 de junho de 1889.

Sr. Presidente: fiquei deveras surprehendido com um tal receio por parte do Digno Par, porque, a meu juizo, Sua Majestade El-Rei pode, quando quiser, ir habitar o Castello da Pena sem observação por parte de ninguem, visto que o direito de Sua Majestade ali poder permanecer está bem claramente expresso nessa mesma lei de 1889.

Esse diploma vem referendado por Barros Gomes, e, dadas as relações que existiram entre mim e o então Ministro da Justiça, ninguem supporá que eu não fosse ouvido sobre esse projecto. Ora, o certo é que esse diploma é o primeiro em que mais claramente se definem os direitos da Coroa e do Estado sobre bens immobiliarios nelle designados, e com respeito ás propriedades a que se refere, diz expressamente:

«§ unico. As propriedades adquiridas em virtude d'esta lei ficarão no usufruto da Coroa, sendo em tudo reguladas pelas disposições do artigo 85.° da Carta Constitucional e das leis de 16 de julho de 1855 e 23 de maio de 1859, e pelas mais que regem o exercicio dos direitos de proprietario e usufrutuario de taes bens».

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Portanto bem pode El-Rei habitar o Palacio da Pena sem o minimo receio de que alguem lhe faça a terrivel pergunta formulada pelo Digno Par: - e não precisam Governo e Pares collaborar numa obra já perfeita em 1889.

Vou agora passar ao artigo 5.°, que tem sido como que o clou da discussão.

Tem este artigo duas partes distinctas; a primeira tem por fim fazer com que uma commissão presidida pelo presidente do Supremo Tribunal de Justiço, e composta de um juiz do mesmo tribunal, de um vogal do Supremo Tribunal Administrativo, de um vogal do Tribunal de Contas, e um vogal da Junta do Credito Publico, seja incumbida da liquidação de contas entre o Estado e a Fazenda da Casa Real; e a segunda parte preceitua que a quantia que for reconhecida como saldo a favor do Estado será paga pela Fazenda da mesma Casa em prestações annuaes não inferiores a 5 por cento d'essa quantia até integral, pagamento.

Tem se pretendido classificar a commissão proposta como sendo uma commissão burocratica e, d'ahi o averbá-la de suspeita, como subordinada ao arbitrio do Governo.

Ainda que assim fosse, que não é, eu, Sr. Presidente, para honra do funccionalismo português, não averbaria tal commissão de suspeita. Os funccionarios publicos merecem me em regra confiança e não serei eu que os accusarei de falta de independencia.

A verdade, porem, é que a commissão ha de ser na sua maxima parte composta de juizes, que á sua independencia juntam a da magistratura que exercem, e que nem sequer hão de ser nomeados pelo Governo.

Allega se, porem, ser absolutamente inconstitucional - como contrario á divisão dos poderes - que uma commissão extra-partidaria apure as contas de que se trata e que esse apuramento fique dependente da sancção parlamentar.

Em resposta direi que o facto nem sequer será unico. Com effeito, como a Camara sabe, o Tribunal de Contas, que é o tribunal de justiça administrativa e tribunal fiscal das leis financeiras do Estado, está encarregado de organizar e processar as declarações baseadas nas comparações das contas dos responsaveis com as contas geraes do Estado e dos Ministerios, e as leis de receita e despesa e essas suas resoluções devem ser submettidas á apreciação do poder legislativo.

Mais.

Accordãos ha do Supremo Tribunal Administrativo que para se tornarem definitivos carecem, não da sancção das Côrtes, mas nem sequer da do Poder Executivo, mas só da sancção de um dos seus membros.

Pelo que respeita a ser paga em prestações não inferiores a 5 per cento a quantia que for reconhecida como saldo a favor do Estado, saindo essas prestações da dotação de El-Rei, affirmou-se que Sua Majestade não pode ser obrigado a pagar dividas, de seu pae alem das forças da sua herança.

Muito bem, e estou de acordo. Mas com o que não posso concordar é com as premissas que se pretenderam estabelecer para chegar a tal conclusão, e em virtude das quaes se impugnou tal disposição como duplamente inconstitucional por estabelecer uma excepção contraria ao direito commum, e por se lhe dar effeito retroactivo.

Disse-se aqui que El-Rei é herdeiro de seu pae, e que o herdeiro é obrigado só ao pagamento do passivo até onde chegar o activo.

Respeitando muito as opiniões dos meus collegas, direi que a qualidade de herdeiro do Senhor D. Manuel não tem absolutamente nada com esta discussão.

Com effeito, se herdeiro é o que succede na totalidade da herança ou em parte d'ella, sem determinação de valor ou objecto, a herança é o que bem claramente determina o proprio Codigo Civil aqui citado, no artigo 1737.°

Diz ahi o Codigo Civil:

«A herança abrange todos os bens, direitos, e obrigações do autor d'ella...»

Note a Camara:

«que não forem meramente pessoaes, exceptuados por disposição do dito autor, ou de lei».

A dotação do Rei é direito maramente pessoal, tão pessoal, que expira com a sua morte e é mester que uma nova lei assine uma outra ao successor. Logo não faz parte da herança do Rei fallecido; e por isso não ha herdeiro com respeito á dotação regia.

A lei de 16 de junho de 1855 manda regular pelo direito commum do reino:

«os bens pessoaes que o Rei possue e de que pode dispor...»

e diz mais, note ainda a Camara, que:

«Os rendimentos dos bens da Coroa mencionados nesta lei que tiverem vencimento durante o reinado; e bem assim todas as quantias e creditos de dotação real pecuniarios regula-se em quanto á livre disposição e á successão pelas mesmas leis que regem quaesquer bens particulares».

Isto posto, confirma-se que a dotação pecuniaria em si não ficou sujeita ao direito commum.

Mas ha mis. Todos os dias se está dizendo que o Rei é um funccionario da nação. Pois então não será de mais applicar-lhe a legislação respectiva. Ora os funccionarios publicos teem o direito de receber por adeantamento, em determinadas condições, uma parte dos seus vencimentos, e esses adeantamentos são-lhes descontados nos futuros ordenados. Os funccionarios que usam d'esse direito pagam o juro respectivo, e alem d'isso, note-se, um premio de risco que, consoante a idade de cada um, vae de 1 até 3 por cento. Premio de que risco?

Di-lo a lei: das difficuldades do reembolso.

Mas então se El-Rei D. Manuel não pode ser obrigado a reembolsar ao Estado as quantias autorizadas sobre uma dotação que acabou, como é que eu voto o artigo 5.°?

Muito simplesmente o direi. Para mim esse artigo não estabelece a obrigação de tal pagamento, pois que essa tomara a nobremente sobre si El-Rei, por acto espontaneo. Mais de uma vez o tem declarado o Sr. Presidente do Conselho e agora mesmo o está confirmando. Esse artigo reproduziu, pois, só uma generosa proposta do Monarcha, e como tal proposta não pode ter effeito sem a competente acceitação, que no caso consiste na sancção das Côrtes da nação, isso, e só isso, é o que, a meu juizo, representa tal disposição.

Sr. Presidente: farei agora ainda algumas considerações, não já sobre o projecto, mas a proposito d'elle.

O Sr. Conselheiro José Luciano de Castro, illustre chefe do partido progressista e dignissimo membro d'esta Camara e ao qual todos prestam homenagem (Apoiados), desejava comparecer aqui para tomar parte nesta discussão; mas se aqui não veio, foi isso devido somente ao aggravamento da sua doença, que todos lamentam. (Apoiados).

Eu disse em tempo que o Sr. Conselheiro José Luciano de Castro viria, brevemente aqui.

Era esse o seu intento. E viria aqui, não para obedecer a quaesquer intimamações, e isto digo sem quebra ou prejuizo da consideração devida a qualquer dos meus collegas que tivesse manifestado o desejo de o ver neste logar, mas digo-o como affirmação do meu direito de assistir ou não ás sessões da Camara, pois que aqui não ha, como me parece que na Camara dos Senhores Deputados existe, perda do logar por faltas. Viria para falar sobre o projecto, como era seu ardente desejo, e é possivel que a sua impossibilidade de aqui comparecer não haja sido indiffe-

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rente ao aggravamento do seu mal estar.

E vindo, usaria de um direito que se não pode negar a ninguem, qual o de legitima defesa.

Com effeito, tem o Sr. Conselheiro José Luciano de Castro sido accusado de contradição entre o que S. Exa. disse na sessão de 21 de novembro de 1906 e o que foi dito na Camara dos Senhores Deputados pelo Sr. Conselheiro Espregueira, na sessão de 15 de junho ultimo e o que escreveu na tão discutida carta dirigida ao então seu collega o nobre Ministro da Fazenda.

Creio bem Sr. Presidente, que não ha contradição alguma.

E para demonstrar a minha asserção bastar-me-ha ler as peças da accusação.

O Sr. Conselheiro José Luciano de Castro limitou-se a dizer aqui essencialmente o seguinte:

Tanto na imprensa como na Camara dos Senhores Deputados se affirmou que ao Augusto Chefe do Estado, pelos Ministerios anteriores ao actual, haviam sido feitos adeantamentos, e adeantamentos largos.

Tem a declarar que nunca, como Presidente do Conselho, lhe foi pedido qualquer adeantamento sobre a dotação do Augusto Chefe do Estado. Nunca lhe fizeram tal pedido, nem a nenhum dos Ministros das situações de que fez parte.

Esta declaração é absolutamente categorica.

Que declarou o Sr. Ministro da Fazenda na Camara electiva?

Declarou o seguinte:

Desde 1879 houve em liquidação contas entre a Casa Real e o Estado e desde 1889 1890 se fizeram supprimentos por conta d'essa divida, por uma forma ou por outra.

Uma commissão especial liquidou em 28 de fevereiro de 1895 a importancia que o Estado devia á Casa Real e depois de 1896 alguns supprimentos foram feitos para attenuar aquelle debito do Estado.

No tempo em que fui Ministro, 1899-1900, fizeram-se supprimentos á Casa Real de importancia que poderá verificar-se quando as contas forem publicadas; mas em 30 de junho de 1900, quando saí do Ministerio, o Estado era ainda devedor á Casa Real de uma quantia importante, incluindo toda a sorte de supprimentos feitos até aquella data.

Fui depois Ministro por algum tempo. Nessa occasião fiz supprimentos extraordinarios á Casa Real: mas esses supprimentos são muito inferiores ao limite que é dado ao Governo para fazer adeantamentos aos funccionarios publicos e, em todo o caso, correspondiam a despesas especiaes que se deram por aquella epoca e, deveriam, talvez, ser encontrados nas despesas das viagens a Inglaterra e a Paris, e da vinda a Lisboa do Imperador da Allemanha, do Presidente da Republica Francesa e da Rainha de Inglaterra

Algumas d'ellas não foram incluidas na conta especial d'essas viagens; não obstante poderiam ser incluidas todas, porque ellas foram para satisfazer despesas extraordinarias que aquelles acontecimentos traziam á Casa Real, que, como se sabe hoje pelos documentos publicados, estava em má situação financeira.

Lidas estas declarações, pergunto á Camara:

Aonde está a contradição?

O Sr. José Luciano declarou que nunca se lhe havia pedido a elle ou a collegas seus adeantamentos sobre a dotação de El-Rei, e o Sr. Ministro da Fazenda declarou que tinha feito supprimentos á Casa Real umas vezes por conta de uma importancia de que a Casa Real era credora, de outras vezes para despesas especiaes a encontrar, talvez nas de viagens de El-Rei e de Chefes de Estado.

E a carta, a celebre carta, diz acaso que o seu subscritor pedira ao collega para fazer adeantamentos sobre a dotação de El Rei D. Carlos?

Todos sabem que não foi assim.

Não ha, pois, contradição alguma.

Esta questão dos adeantamentos, em que, aliás, não quero entrar, é muito difficil e complexa; todavia impressiona-me sobremaneira a circunstancia de tanto ella preoccupar a attenção dos nossos homens publicos, quando por differentes Ministerios, e em diversas epocas, se tem feito abonos a bancos, companhias e a outras associações em importancia incomparavelmente superior á que tem sido entregue á Fazenda da Casa Real. (Apoiados).

Como é que se pode apagar da nossa memoria a crise bancaria de 1878, que levou o Ministro da epoca a acudir aos bancos que tinham suspendido pagamentos e fechado as portas, com a elevada quantia de 5:000 contos de réis?

E não se lembra a camara dos sacrificios que ao Thesouro impôs a necessidade de acudir á crise de 1890?

E pode esquecer o notavel parecer da commissão de inquerito da Camara electiva acêrca da accusação ao Sr. Ministro da Fazenda pelos adeantamentos feitos a empresas particulares por conta dos cofres publicos?

A que vem então esta celeuma, a proposito de antecipações sim, mas que - insisto - hão de ser reembolsadas ao Thesouro e antes de se ter pleno conhecimento das circunstancias que as determinaram?

É que no fundo de tudo isto alguma cousa se passa. Não se quer attingir simplesmente os homens. Visam-se as instituições. Nós é que não nos devemos deixar arrastar pela onda que tudo ameaça subverter.

Quando á Camara for apresentado o apuramento de contas entre o Estado e a fazenda da Casa Real, entendo, Sr. Presidente, sem intuitos de censura, que será essa a occasião opportuna de me referir aos chamados adeantamentos e liquidar quaesquer responsabilidades a elles ligadas.

E dito isto, vou dar-me á facil satisfação de fazer um bocadinho de opposição ao Sr. Presidente do Conselho, facil satisfação, accentuo, pois que, dada a feição especial da minha carreira politica, tenho sido mais vezes da opposição do que da maioria.

Ouvi ao chefe do Governo duas declarações que me surprehenderam, e contra as quaes não posso deixar de protestar.

Disse S. Exa. que não acceitava modificações no projecto que está em ordem do dia, e que se a Camara o alterasse, sabia o que lhe cumpria fazer.

Acrescentou S. Exa. depois que o Governo está no poder com o apoio dos dois partidos rotativos - acceite-se a denominação visto que ella está consagrada pelo uso - e que se o chefe de algum d'esses partidos lhe declarasse retirar-lhe o seu apoio, tambem sabia o que lhe cumpria fazer.

Esta maneira de dizer importa um euphemismo que significa apenas que, dadas quaesquer d'essas occorrencias, o Sr. Presidente do Conselho pediria a demissão do Governo a que preside.

Poderia pedi-la, é certo, mas não o deveria fazer. (Apoiados).

Nem em um nem em outro caso deveria pedir a sua demissão, e se o fizesse permitta-se-me que o diga com toda a lealdade e franqueza, não procederia bem. (Apoiados).

A Camara dos Pares tem importantes funcções politicas, é certo, mas não lhe compete derrubar Ministerios. (Apoiados).

Felizmente, desde que eu tenho a honra de pertencer a esta Camara, nunca vi que fossem apresentadas moções politicas, quanto mais votadas.

Se esta Camara introduzisse quaesquer modificações no projecto, deixasse que elle voltasse á outra Camara, depois, e só depois, é que o Governo saberia o que lhe cumpria fazer.

O Governo vive, é certo, com o apoio dos dois partidos, mas não só por causa d'esse apoio.

Vive porque tem por si todos os elementos constitucionaes.

Pelo que toca ao partido regenerador, a Camara ouviu as declarações apresentadas pelo Digno Par Julio de Vilhena.

Eu não estou nos casos de fazer declarações tão importantes, porque não tenho a honra nem a ambição de ser chefe de partido; mas creio bem que não contrario as intenções do meu honrado chefe, dizendo que o apoio do partido progressista ao Governo é sincero e leal. (Apoiados).

Não falta ao Governo o apoio dos dois grandes partidos, e creio que nem mesmo por hypothese se pode admittir essa falta; mas, quando reconhecesse que o desampara essa cooperação, devia lembrar se de que, acima d'essas influencias politicas, estava a opinião publica de todo o país, que não deixou

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até hoje de o favorecer com as suas sympathias e adhesões. (Apoiados).

O Governo só deve abandonar o poder, quando veja que lhe escasseiam as condições constitucionaes.

A respeito dos dois grandes partidos tradicionaes, vou referir-me á nova Saint Barthélemy a que parece quererem sujeitá-los.

Pois aos que fazem d'essa hecatombe dos dois partidos a sua Delenda Carthago, direi que no dia em que elles deixassem de existir, as instituições estariam em cheque.

Os partidos são organismos necessarios no nosso regime politico.

Todos os dias são accusados os partidos do mal que teem feito; e ninguem se quer lembrar dos grandes e relevantissimos serviços que teem prestado ao país. (Apoiados).

Pois compulse-se a historia dos ultimos cincoenta annos, e apurar-se-ha, sem grande difficuldade, os larguissimos beneficios que a nação tem recebido da iniciativa, acção e força d'essas agremiações politicas.

Quem foram aquelles que, apostolos convictos da liberdade de pensamento, e doidos de verem tanta victima do só crime de ter crença diversa da dos homens do poder, aboliram a pena de morte nos crimes politicos?

Foram os partidos.

Quem foram os que, mais tarde, inspirados por um pequeno livro, que é uma grande obra, o tratado de Beccaria, expungiram da legislação portuguesa a pena de morte, que outras nações bem adeantadas ainda conservam?

Foram os partidos.

Quem é que lançou por sobre o país essa musculatura de aço - os caminhos de ferro, que transportam de um ao outro extremo mesmo, homens e objectos?

Foram os partidos.

Quem é que desdobrou por cima das nossas provincias essa tenue rede nervosa - as linhas telegraphicas -, que fazem voar o pensamento entre as mais longinquas regiões do país?

Foram os partidos.

Quem foram os que, vendo que a terra de Portugal era mãe perdularia para uns e madrasta avara para outros, quebraram os vinculos que a algemavam a familias privilegiadas, e a mão morta que a prendia ao clero, dando a todos o direito de ter um campo onde viver e uma cova para dormir o somno eterno?

Foram os partidos.

Quem é que estabeleceu um regime predial, que é considerado ainda hoje um dos melhores, se não o melhor da Europa, dando credito á propriedade?

Foram os partidos.

Pois não teem pertencido aos partidos politicos os homens mais evidentes do país, em toda a sorte de manifestações da actividade humana?

Pois as duas correntes que agitavam a opinião, o conservantismo evolutivo e tolerante e a reforma progressiva e popular, não tiveram a sua representação em dois homens de partidos: Fontes, a suprema correcção, e o Bispo de Viseu, a suprema bondade?

Pois não foram partidarios homens de letras como Herculano e Garrett, homens de sciencia como Villa Maior e Bocage, homens de leis como Ferrer e Seabra, oradores como José Estevam e Rebello da Silva, jornalistas como Sampaio, Mariano, Navarro e Ennes? Pois as mais rutilas espadas do nosso valoroso exercito não as cingiram: partidarios como Saldanha e Terceira? Pois esse valente soldado que foi Sá da Bandeira, cavalleiro sans peur et sans reproche, não foi partidario?

Partidos que tanto fizeram e que tiveram d'estes homens não succumbem!

Eu, Sr. Presidente, ao contrario dos que attribuem á existencia dos partidos não sei que males mortaes sustento que, os mesmos partidos não hão de morrer. (Apoiados).

Pois d'esses homens dos partidos chegou-se a dizer que os chamados adeantamentos não eram mais do que a satisfação de favores que pediram á Coroa.

Felizmente que a historia desmente categoricamente tão grave offensa á memoria do Rei e aos partidos.

Pois não se procurava, durante o ultimo reinado, allegar que os Ministerios caíam todos no Paço? Que favores eram esses que nem sequer serviam para prolongar a existencia dos Ministerios? O certo, porem, é que El-Rei D. Carlos, se chamou ao Governo os partidos, nunca afastou ou excluiu algum, não partidario, do poder.

Pois não esteve El-Rei um largo periodo sem conseguir formar Ministerio presidido por homem fora dos partidos?

Pois já esqueceram os Ministerios extra-partidarios presididos pelo honrado general João Chrysostomo?

Pois o Sr. Dias Ferreira, afastado dos partidos, não foi Presidente do Conselho?

E afinal o Sr. João Franco, que se dizia expulso dos partidos e perseguido, não foi chamado ao Governo, por El-Rei, que lhe proporcionou todos os meios para o bom desempenho da sua missão?

Como é, pois, que se diz que os partidos fizeram os chamados adeantamentos, para conquistarem as boas graças da Coroa?

Justiça a todos. A allegação carece felizmente de fundamento.

Os partidos teem, incontestavelmente, e talvez agora mais do que nunca, uma nobre e elevada missão a cumprir, mas igual missão impende tambem a cumprir aos que não são partidarios.

Neste momento todos e cada um teem o dever de se sacrificar pelo bem commum. Todos podem concorrer para esse fim, tanto os que apoiam, como os que combatem, porque tão prestimoso é o apoio desinteressado e sincero como a opposição imparcial e justa. (Apoiados).

Disse um Digno Par ha dias, nesta Camara, que era necessario baralhar os partidos...

O Sr. João Arroyo: - Baralhar, e tornar a dar.

O Orador: - Já tive ensejo de contestar essa opinião, mas alguem me recordou depois uma frase de José Estevam, que talvez tenha hoje actualidade parlamentar notavel.

Dizia elle que era necessario emnaipar os partidos.

O indispensavel é que partidarios e não partidarios, numa acção commum, tratem de conjurar os males que nos podem assediar.

Celebra Portugal neste momento uma data gloriosa, aquella em que soube repellir a invasão estrangeira, em que a aguia imperial ficou de tal modo ferida que só pôde esvoaçar de serra em serra, de valle em valle até cair de todo nos plainos de Waterloo.

Como se conseguiu a gloriosa victoria? Foi - não se esqueça - pelo dedicado concurso de todos, porque ninguem deixou de cumprir o seu dever.

Quem tinha uma espada para a fazer luzir ao sol das batalhas, desembainhou-a, quem se achava armado de espingarda, não hesitou em a sopesar: mas nem por isso os que podiam alcançar uma caçadeira ou só dispunham de um foice, hesitaram em ir nobremente para a frente.

Quando vejo os homens publicos dilacerarem-se nas pugnas estereis de uma triste politica, lembram-me os antigos circos em que os gladiadores se degladiavam ferozmente para regalo dos espectadores!

Mas, no caso, os espectadores são os adversarios das instituições, e eu não quero, e confio que assim não acontecerá, que os gladiadores de agora lhes tenham de dizer «os que vão morrer... saudam-vos». (Vozes: - Muito bem).

(O orador foi muito cumprimentado).

O Sr. Francisco José Machado: - Requeiro a V. Exa. consulte a Camara sobre se permitte que se prorogue a sessão até se votar o projecto.

Consultada a Camara, resolve affirmativamente.

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O Sr. Ressano Garcia: - Sr. Presidente: o Digno Par que me precedeu, depois de uma longa digressão sobre os serviços prestados ao país pelos chamados partidos historicos, e sobre a missão que os mesmos partidos teem a desempenhar no futuro, permittiu-se dirigir ao Sr. Presidente do Conselho uma prelecção, pouco amoldada ao prestigio d'esta assembleia, acêrca do que deverá fazer o Governo, no caso da Camara dos Dignos Pares, no uso dos seus direitos, votar qualquer emenda ao projecto em discussão, ou ainda no caso de, por qualquer circunstancia, lhe faltar o apoio de algum dos dois partidos rotativos; e terminou pela commemoração das nossas gloriosas campanhas de ha um seculo.

Não acompanharei o Digno Par Sr. Veiga Beirão na apreciação d'esses assuntos, porque os considero absolutamente estranhos á materia da discussão, mas não posso deixar de sentir a violencia que a maioria acaba de praticar, votando um requerimento em que se pede a prorogação da sessão, depois de um discurso tão longo, se bem que muito eloquente, em que se versaram assuntos completamente alheios ao projecto constitucional que está na ordem do dia.

Não me afastando, pois, da questão que se debate, vou reportar-me á resposta que o Sr. Presidente do Conselho oppôs á modesta oração que tive a honra de proferir ha dias nesta Camara.

O nobre Presidente do Conselho tem uma forma parlamentar, que é sua e muito sua, como já foi aqui varias vezes notado e até criticado pelo Digno Par Sr. Conde de Arnoso.

S. Exa. não responde aos oradores que o precedem: responde a si proprio.

S. Exa. não rebate nem tenta rebater um só dos argumentos dos seus contraditores, mas attribue lhes palavras que não proferiram, asserções que não enunciaram e depois, muito contente de si proprio, recorre ao seu verbo o mais inflammado para fulminar triunfantemente taes palavras e asserções, que são apenas o fruto lidimo da sua fertil imaginação.

S. Exa., apesar de eximio no manejo das armas, como militar que é, valente e distincto, não quer ou não sabe parar os golpes dos seus adversarios e replicar aos ataques politicos que mais o podem ferir, mas compraz-se em esgrimir no ar, ficando entretanto a descoberto e demonstrando assim a sua falta de plasticidade para esta especie de torneios.

S. Exa. que, em politica governativa, anda e desanda, ao sabor das conveniencias de momento, sem que ninguem possa descortinar qual seja a sua orientação; em oratoria parlamentar, diz hoje e desdiz amanhã, no que é propriamente seu, e, mais ainda, faz e desfaz, no mesmo dia e na mesma hora, os discursos dos seus contrarios.

Com effeito, eu verberei vehementemente e continuo a verberar a fraqueza do Governo perante a ditadura de triste memoria, mantendo de pé, por medo dos ditadores, a sua obra nefasta, que tanto nos aviltou, em vez de a destruir pela raiz, arrancando da nossa historia politica essa negra pagina que a ennodoa e envergonha. (Apoiados).

Condemnei igualmente a desorientação do Governo que, ao mesmo tempo que se desinteressa da obra da ditadura e declina no Parlamento a sua apreciação e julgamento, vae inscrevendo no orçamento do Estado a despesa criada pela mesma ditadura na importancia de mais de 1:000 contos de réis.

Pois imagina alguem que o Sr. Presidente do Conselho respondeu uma só palavra a estas arguições?

Isso sim!

Mas, voltando-se para mim, disse:

«Tambem o Digno Par estranhou que o Governo não entregasse o Sr. João Franco á sanha popular e que preferisse intimá-lo a que saisse de Portugal».

E depois uma eloquente tirada sobre este assunto.

Ora, eu, Sr. Presidente, appello para o testemunho de V. Exa. e de todos que me ouviram para que me digam quando e por que modo estranhei que o Sr. Presidente do Conselho não entregasse á sanha popular o Sr. João Franco, onde e quando é que manifestei esses instinctos sanguinarios contra um homem, com quem, apesar dos seus graves erros politicos, mantive sempre as mais cordiaes relações de amizade pessoal?

Assim, o Sr. Presidente do Conselho, em vez de explicar, como devia, os seus actos, quis mais uma vez lisonjear os ditadores, mostrando que estava ali como seu patrono para lhes defender a vida contra a furia dos demagogos e assassinos.

Artificio é este que tinha de durar o que duram as rosas, o espaço de uma sessão, porque, Sr. Presidente, eu offereço o mais formal e categorico desmentido ás palavras ou intenções que arbitrariamente me attribuiu o Sr. Presidente do Conselho, como o demonstram a toda a evidencia as notas tachygraphicas que trouxe commigo para confundir S. Exa., se necessario fosse.

Tambem eu censurei o Governo porque, em vez de decretar uma amnistia ampla, larga e completa em fevereiro, logo no inicio do novo reinado, conquistando assim para o joven monarcha as sympathias que pessoalmente lhe eram devidas, a concedeu já dessorada e requentada em maio, quando então já ninguem lh'a agradeceu senão os ladrões, assassinos e contrabandistas.

Explicou de algum modo o Sr. Presidente do Conselho a demora havido na concessão da amnistia, transformando-a, de um acto que podia ser habil e politico, num acto inutil e até contraproducente, porque, quando se decretou, já em juizo se havia reconhecido a impossibilidade da pronuncia dos interessados?

Isso sim!

O Sr. Presidente do Conselho limitou-se a observar:

«O Digno Par queria que a amnistia fosse completa e que abrangesse tambem os militares».

E d'ahi uma larga prelecção sobre o que deve ser a disciplina da força armada, prelecção de onde parecia deduzir-se a singular theoria de que o exercito, organizado não só para defender a soberania e integridade da nação, mas tambem para manter a segurança e garantir a liberdade dos cidadãos, pode e deve, em determinadas circunstancias, ser mero instrumento da tyrannia e do despotismo, para cegamente opprimir e esmagar o país que o sustenta.

Mas, deixando de parte esta theoria, que eu condemno, visto não ser agora occasião opportuna para a combater, porque é que se não concedeu aos paisanos, logo em fevereiro, a amnistia por todos os crimes politicos e delictos de imprensa praticados até 31 de janeiro?

Combati tambem, como quasi todos os Dignos Pares que depois de mim falaram, e como os proprios membros do Conselho de Estado, a dissolução inconstitucional da Camara transacta.

A isto respondeu o Sr. Presidente do Conselho:

«Como é que se podia esperar que essa Camara derogasse medidas que a uma grande parte dos que a compunham tinham merecido pleno assentimento»?

Mas, quaes são as providencias ditatoriaes que a actual Camara tem derogado?

Tambem o Sr. Presidente do Conselho affirmou que o acto eleitoral correu com a maxima regularidade.

Assim fui para todas as eleições fabricadas no Ministerio do Reino; mas a unica eleição verdadeira, que foi a de Lisboa, correu com a regularidade de 14 mortos e 80 a 90 feridos.

Sr. Presidente: tendo eu lastimado a esterilidade da actual sessão parlamentar, que se arrastou entre doestos e ar-

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remettidas bem lamentaveis, sem nada fazer a favor da industria e do commercio, que lutam desesperadamente para se poderem manter; a favor das colonias, que pedem debalde que as livrem de peias e embaraços e lhes concedam, ao contrario, a protecção necessaria ao seu desenvolvimento; a favor das classes operarias, que, após annos e annos de labutar incessante e trabalho insano, só encontram a miseria como remate da sua afanosa existencia; a favor da instrucção, d'esse pão do espirito tão necessario como o pão material para o progresso e civilização do povo; observou-me S. Exa.:

«É o Governo que tem culpa da longa discussão a que foi sujeito, na camara dos Deputados, o projecto da lista civil, em que se tratou, cumulativamente, da questão dos adeantamentos»?

Pois de quem é a culpa senão do Governo? Quem é que enxertou no projecto constitucional da lista civil é celebre artigo 5.° com que, na sua redacção primitiva, se queria arrancar ao Parlamento a apreciação e resolução definitiva da questão dos adeantamentos?

Quem é que por uma teimosia inexplicavel o manteve, já depois de ter perdido a sua feição inicial, e apesar da opposição na Camara dos Deputados haver por varias vezes lealmente proposto que se separasse da lei esse artigo e com elle a discussão dos adeantamentos?

Quem é que ha tres meses se esfalfa a pregar por toda a parte que o artigo 5.° é estranho á questão dos adeantamentos, quando de outra cousa não trata, visto regular o processo da sua liquidação e a forma do seu pagamento?

Esse artigo 5.° inventado pelo Governo é tão bom ou tão mau que até o Sr. Julio de Vilhena, que vota o projecto como uma necessidade constitucional, não hesitou em o qualificar de verdadeira monstruosidade juridica e indignidade politica, no monumental discurso com que abrilhantou este debate, demonstrando que os annos, em vez de enfraquecerem, teem aprimorados os seus inexcediveis dotes de orador e de estadista; e o Digno Par Sr. Veiga Beirão, embora considerasse inconveniente e perigosa a eliminação, no actual momento, do referido artigo, deu bem claramente a entender que tambem teria preferido que elle não figurasse na proposta de lei.

Referindo-se ao artigo 1.° do projecto disse o Sr. Presidente do Conselho:

Concluiu, pois, o Digno Par, e muito bem, que a lista civil do projecto não é demasiada, nem superior á media adoptada nos paises congeneres».

Até aqui está muito bem, porque foi essa precisamente a conclusão a que eu cheguei e que lealmente expus á Camara.

Mas depois acrescentou:

«Provado pelo Digno Par que a lista civil do projecto não é maior do que devia ser, vejamos se é menor».

«É ainda o Digno Par quem se encarrega de provar que não é».

É o caso de dizer que, como o outro, eu fiz versos sem o sentir.

Mas como é que S. Exa. tirou das minhas palavras uma conclusão, contra a qual não posso deixar de protestar?

O Sr. Conselheiro Ferreira do Amaral, respondendo ao brilhante discurso do Digno Par Sr. Pimentel Pinto, descreveu-nos um combate naval com tão grande colorido e vozes tão apropriadas, que se diria estarmos assistindo á grande batalha de Trafalgar, pois que S. Exa. até parafraseou a celebre frase final do despacho de Nelson, do valente almirante inglês que pela sua bravura venceu a esquadra franco-espanhola, mas ali encontrou a sua morte gloriosa.

Ora Deus sabe se este projecto não será o Trafalgar de S. Exa., pois, como se vê, ha victorias que custam a vida do vencedor.

Mas, se no mar S. Exa. é um outro Nelson, em contas está muito longe de ser um Newton ou mesmo um simples Bezout.

Effectivamente, o que fez S. Exa.?

Tomou os 3:925 contos de réis em que eu computara, em face de documentos officiaes, as cedencias feitas pelas diversas pessoas da Familia Real a favor da Fazenda Nacional, durante os reinados de D. Maria II, D. Pedro V, D. Luiz e D. Carlos, deduziu d'essa quantia a divida actual da Casa Real ao Thesouro, que eu avaliara, grosso modo, em 768 contos de réis, o que lhe deu 3:157 contos de réis, e depois, dividindo esta differença per 72 annos, concluiu S. Exa., e não eu, que, durante o periodo constitucional, a lista civil excedeu em 44 contos de réis por anno as necessidades da Casa Real.

A chronologia tambem não é o forte de S. Exa., porque os quatro reina dos de que se trata duraram mais de 73 annos e não simplesmente 72, como suppôs.

Mas deixando de parte este pequeno senão, observarei immediatamente que isto não são contas, são contos.

Então a Casa Real durante o periodo constitucional não recebeu a mais da lista civil senão os 768 contos de réis que são agora devidos ao Thesouro?

E o aumento de dotação resultante da inversão em inscrições dos chamados diamantes da Coroa, cuja venda em 1859, 1860, 1863 e 1876, produziu, como ficou demonstrado pelo Digno Par Sr. Teixeira de Sousa, no seu substancioso discurso, cêrca de réis 1.048:607$771?

E as dividas pagas a D. Luiz em 1885 na importancia de 967:093$070 réis?

E a somma de 449:537$381 réis abonada a D. Carlos a titulo de reclamações e rendas relativas aos reinados anteriores ao seu?

E a quantia de 218:400$000 réis que lhe foi satisfeita nos quatro annos de 1902 a 1905, como excesso de renda sobre os 28:904$000 réis anteriormente ajustados?

Não, Sr. Presidente, não é assim que se fazem contas.

No reinado de D. Maria II a Familia Real cedeu para o Thesouro réis 1.601:080$000 e deixou de receber a quasi totalidade da verba de réis 120:328$826 abonada mais tarde a El Rei D. Carlos por virtude das antigas reclamações da Casa Real, que se referiam principalmente ao reinado da sua avó.

Assim, no reinado de D. Maria II, a lista civil, ou mais exactamente a dotação da Familia Real, pôde soffrer um desfalque medio de 90 contos de réis por anno, sem maior inconveniente, porque consta até que essa soberana deixou, por sua morte, uma certa fortuna a seus filhos.

No reinado de D. Pedro V a Familia Real cedeu para o Thesouro 1:040 contos de réis. Mas El-Rei recebeu a parte que lhe competia da herança de sua Augusta Mãe, recebeu o aumento de dotação pela inversão de réis 561:911$787 de diamantes em inscrições feita em 1859 e 1860 e deixou dividas de 416 contos de réis, alem de direitos á alfandega por liquidar na importancia de 9:614$200 réis.

Neste remado as cedencias da Familia Real, que attingiram em media 130 contos de réis por anno, foram muito alem dos recursos disponiveis, e d'ahi resultou começarem desde então as difficuldades com que luta a administração da Casa Real.

No reinado de D. Luiz a Familia Real cedeu para o Thesouro, réis 470:300$000.

Mas El-Rei recebeu até 1885 o aumento de dotação correspondente a 1.048:607$771 réis de diamantes invertidos em inscrições; recebeu em 1885 a importancia de 967:093$070 réis, produzida pela venda d'essas inscrições; e deixou uma divida por liquidar na alfandega, de 42 contos de réis.

Assim a dotação neste reinado mostra-se já insufficiente, independente-

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mente das cedencias feitas; que mais vieram agravar a situação.

No reinado de D. Carlos, a Familia Real cedeu para o Estado..... 567:900$000

Mas recebeu El-Rei a titulo de reclamações e rendas relativas aos reinados anteriores..... 449:537$381

e por excesso de rendas nos 4 annos de 1902 a 1905...... 218:400$000 e ficou a dever ao Thesouro. 768:000$000 1435.937$331

Deficit............... 868:037$381

Assim neste reinado o deficit, independentemente das cedencias, elevar-se-hia a 47:485$000 réis por anno; e por causa das cedencias attingiu réis 77:459$000.

Em resumo:

Reinado de D. Maria II - dotação da Familia Real sufficiente, apesar da cedencia de 90 contos de réis por anno para o Thesouro.

Reinado de D. Pedro V - dotação insufficiente, por causa das cedencias de 130 contos de réis por anno.

Reinado de D. Luiz I - dotação insufficiente, independentemente das cedencias de 16:796$000 réis por anno;

Reinado de D. Carlos I - dotação insufficientissima, independentemente da cedencia de 29:974$000 réis por anno, pois que o deficit annual se elevou a 77:459$000 réis.

Como estamos assim longe do superavit de 44 contos de réis por anno, que o Sr. Presidente do Conselho, por calculos grosseiros, que não resistem á mais ligeira critica, apurou indistinctamente para os quatro reinados do nosso regime constitucional.

Verifica-se pois o que era de prever: a dotação da Familia Real, sufficiente, por assim dizer, até 1854, começou, pouco a pouco, a mostrar-se escassa, pelos factos economicos que de todos são conhecidos acêrca da depreciação da moeda, aggravando-se consideravelmente os embaraços da Casa Real durante os dois ultimos reinados e mormente no de D. Carlos.

Mas ha ainda um facto importante a que o Sr. Presidente do Conselho não attendeu, e que vem concorrer para invalidar consideravelmente o resultado dos seus calculos.

As cedencias de 3:925 contos de réis, que eu apurei, durante os quatro reinados do nosso regime constitucional, não foram todas feitas exclusivamente pelos Chefes do Estado, mas tambem por outros membros da Familia Real.

Ora a dotação do Monarcha tem-se conservado constante, mas outro tanto não acontece á dotação de toda a Familia Real, incluindo o Rei, a qual tem diminuido constantemente.

Assim no reinado de D. Maria II a dotação da Familia Real variou quasi sempre de 560 a 565 e 595 contos de réis; no reinado de D. Pedro V manteve-se em 572 contos de réis; no reinado de D. Luiz I chegou a attingir 652 contos de réis em 1867-1868, baixando depois a 571 contos de réis; no reinado de D. Carlos I orçou por 525 contos de réis; e agora é apenas de 501 contos de réis.

Portanto, dos algarismos que apresentei á Camara não pode concluir-se, como pretendeu o Sr. Presidente do Conselho, que a dotação de El-Rei D. Manuel II não seja insufficiente; porque, ao contrario, eu sustentei que não chegará para occorrer a todos os encargos actuaes da Casa Real, sendo, portanto, necessario remodelar completamente a administração d'essa Casa, como muito judiciosamente propôs o Sr. Teixeira de Sousa, para evitar os deficits que, sem isso, serão fataes.

A este proposito, lembrarei que em 1826 a Infanta D. Isabel Maria, regente do reino em nome de D. Pedro, desejando introduzir economias nas diversas repartições que pertenciam á Casa Real, convocou todos os officiaes-mores incumbidos dos diversos ramos de sua administração, para conhecer, á vista do orçamento das despesas calculadas para o anno de 1826, qual a reducção que desde logo se poderia fazer sem faltar ao decoro e decencia devida á sua Real Pessoa e Real Familia, nem deixar na miseria as familias de antigos criados da Casa Real, a quem seu Augusto Pae tinha soccorrido com parte dos ordenados que venciam, sendo o resultado de tão louvaveis esforços apurar-se a possibilidade de diminuir 104:823$163 réis nas despesas.

Mas os tempos eram outros e muito diversos: a Casa Real que, por assim dizer, até essa epoca dispusera livremente do Thesouro Publico, habituara-se, como era natural, a gastar largamente, e assim se comprehende como foi possivel introduzir então na sua administração essas economias tão importantes.

Hoje a reducção ha de ser muito mais difficil e apertada, porque já não existem despesas de fausto e grandeza por onde se possa cortar.

Este ponto só poderia apurar-se devidamente por meio de um exame minucioso do orçamento das receitas e despesas da Casa Real, habilitando-se assim o Parlamento a resolver assunto tão grave com pleno conhecimento de causa.

Observou o Digno Par Sr. Veiga Beirão que não carecia agora de tal inquerito, como não careceu em 1890, quando votou a dotação de El-Rei D. Carlos I.

O argumento é contraproducente, porque os factos vieram demonstrar a insufficiencia da dotação estabelecida a este ultimo Monarcha, como o reconheceram os Governos em que S. Exa. tomou parte, fazendo-lhe os supprimentos necessarios para acudir ás difficuldades da administração da Casa Real.

E a isto se limitou o discurso do Sr. Presidente do Conselho, que na opinião do Sr. relator da commissão, me respondeu muito cabal e satisfatoriamente.

«Mas, acrescentou o Sr. relator, um ponto houve que ficou sem replica por parte do Chefe do Governo, e foi aquelle em que o Digno Par disse que elle havia incorrido em crime grave, fazendo que El-Rei subscrevesse os decretos de exoneração dos Ministros do Governo transacto com a declaração de que todos tinham servido muito a seu contento».

E, observando que esse Governo não praticou no reinado do actual Monarcha senão um acto: pedir a demissão, concluiu nestes termos: «E assim não pode deixar de suppor-se que esse Ministerio procedeu muito a contento de El-Rei».

A explicação é engenhosa e deve ter-se por verdadeira, dada a seriedade de caracter do Digno Par o Sr. Alexandre Cabral, e a autoridade especial que S. Exa. tem neste assunto como relator; mas sendo assim os decretos não deviam ter dito que os Ministros haviam servido, antes, ao contrario, que haviam deixado de servir muito a contento de El-Rei. Em vez d'isso, porem, o Sr. Presidente do Conselho levou inconvenientemente Sua Majestade a usar de ironia nos elogios que dirigiu aos Ministros de seu pae.

Mais correcto fôra supprimir a frase elogiosa, como em outras circunstancias menos justificadas se fez.

Sr. Presidente: vou agora tratar do artigo 2.°, a que se referiu tambem o Digno Par Sr. Veiga Beirão.

Sustentei eu que todos os bens, sem excepção, da extincta Casa do Infantado ficaram pertencendo á Fazenda Nacional e foram encorporados nos proprios d'ella, por virtude do artigo 2.° do decreto ditatorial de 18 de março de 1834.

Que nessa mesma situação se encontram ainda hoje todos esses bens, salvo os Paços de Samora Correia e Murteira que foram vendidos depois.

Que, alguns dos referidos bens, sem deixarem de pertencer á Fazenda Nacional e de continuarem encorporados nos proprios d'ella, foram pelo mesmo decreto e artigo destinados para decencia e recreio da Rainha D. Maria II,

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como os palacios e terrenos de que trata o artigo 85.° da Carta Constitucional.

Que esta concessão foi renovada, nos mesmos termos para o reinado de D. Pedro V por lei de 16 de julho de 1855, para o de D. Luiz I por lei de 11 de fevereiro de 1862 e para o de D. Carlos I por lei de 28 de junho de 1890.

Que tendo terminado esta ultima concessão, pela morte de El-Rei D. Carlos, os referidos bens poderão neste momento continuar na posse, de facto, da Casa Real, mas essa posse é illegal desde o dia 1 de fevereiro e só pode ser renovada e regularizada por esta propria lei, em virtude do seu artigo 6.° que mantem em vigor no actual reinado as disposições da lei de 16 de julho de 1855.

Tal foi a these que formulei em termos claros, precisos e categoricos.

Contra ella se insurgiram os Dignos Pares Srs. Ferreira do Amaral, Dias Costa, Alexandre Cabral, Campos Henriques, Julio de Vilhena e Veiga Beirão, isto é, um official de marinha, um official do exercito e quatro jurisconsultos.

Com os militares saberia eu havei-me, porque, apesar de paisano, já entrei em fogo, o que talvez não tenha ainda acontecido a S. Exas.; mas com os quatro jurisconsultos, e qual d'elles o mais distincto, é que a luta se torna difficil; por isso seguirei o exemplo do Digno Par Sr. Costa Lobo, citando textos e factos, para supprir a autoridade que me fallece.

Pena tenho de não dispor dos leitores da antiguidade a que se referiu o Digno Par Sr. Julio de Vilhena, para poder, pela variedade das personagens, tornar menos monotona a minha exposição.

O Sr. Julio de Vilhena lendo o artigo 2.° do decreto de 18 de março de 1834, que é assim concebido: «Os bens da extincta Casa do Infantado ficam pertencendo á Fazenda Nacional, e encorporados nos proprios d'ella; porem os Palacios de Queluz, da Bemposta, do Alfeite, de Samora Correia, de Caxias e da Murteira, casas, quintas e mais dependencias d'elles, são destinados para decencia e recreio da Rainha, como os palacios e terrenos de que trata o artigo 85.° da Carta Constitucional da Monarchia», pretende que aquella restrictiva porem significa que os palacios enunciados depois d'ella ficaram encorporados no dominio da Coroa, como os da Carta Constitucional.

Ora isto não é assim, porque a primeira parte do artigo formula a regra absoluta de que todos os bens ficam pertencendo á Fazenda Nacional e encorporados nos proprios d'ella, e a segunda parte diz apenas que alguns d'elles serão, apesar d'isso, destinados á decencia e recreio da Rainha.

O digno relator Sr. Alexandre Cabral vae mais longe e entende que basta o facto do artigo 2.° do decreto de 18 de março de 1834 se referir na parte final ao artigo 85.° da Carta Constitucional para d'ahi se concluir immediatamente que os palacios do Infantado estão exactamente nas mesmas circunstancias, em relação á Casa Real, que os palacios de que trata o referido artigo 85.° da Carta.

Isto é querer andar muito depressa. Effectivamente o decreto de 1834 não encorpara esses bens do Infantado na Fazenda Real: destina-os apenas para decencia e recreio da Rainha e só da Rainha, como para decencia e recreio são destinados os bens do artigo 85.° da Carta: mas não os equipara a estes ultimos, que ficaram pertencendo ao Rei e seus successores. Se esse decreto tivesse querido sujeitar os bens do Infantado ao regime do artigo 85.° da Carta Constitucional, empregaria a linguagem adoptada na lei de 17 de junho de 1889, que autorizou o Governo a comprar o Palacio da Pena para ficar no usufruto da Coroa, sendo em tudo regulado pelas disposições do artigo 85.° da Carta Constitucional.

E tanto assim é, e tanto se entendeu que os bens do Infantado não estavam radicados na Coroa, isto é, na Rainha e seus successores, que, fallecida D. Maria II, veio a lei de 16 de julho de 1855 determinar no artigo 1.° que no presente reinado do Senhor D. Pedro V continuasse em vigor a disposição do decreto de 18 de março de 1834, que assinou á Coroa os palacios e terrenos nacionaes nelle designados, com a limitação expressa na lei segunda de 19 de dezembro do mesmo anno, isto é, com exclusão do Palacio da Bemposta, que havia sido concedido para residencia da Imperatriz viuva, a Duqueza de Bragança.

Mas a este argumento, que é fulminante, replicou o Sr. Alexandre Cabral, que o artigo 1.º da lei de 1855 só se promulgou precisamente, por causa da tal delimitação, isto é, para tirar a El-Rei D. Pedro V o Palacio da Bemposta, e não para lhe dar os restantes, que já lhe pertenciam, como pertencem a todos os successores do Rei.

Temos assim a repetição do caso dos decretos de demissão dos Ministros da ditadura; porque S. Exa. entende que os decretos e leis devem dizer precisamente o contrario do que querem exprimir.

Então era assim que se expressaria a lei se quisesse apenas significar que o Palacio da Bemposta ficava excluido da Casa Real?

Mas se esse era o fim do artigo 1.º da lei de 1855, para que serviria elle, visto que essa exclusão estava já fixada na lei de 19 de dezembro de 1834?

Então fazem-se duas leis para dizer precisamente a mesma cousa?

Os Srs. Julio de Vilhena e Veiga Beirão quiseram tirar argumento a seu favor do artigo 3.° da lei de 1855, onde diz que os arrendamentos dos bens a que a mesma lei se refere poderão attingir 20 annos, devendo ser mantidos pelos successores até a expiração do prazo convencionado.

Ora os sucessores de que fala a lei não são os successores da Coroa, mas os successores na posse dos bens, que é o Estado, logo que finda o reinado, e mais tarde o novo reinante se o Estado declina nelle a referida posse, como até aqui tem feito.

Por ultimo invocaram os Srs. Alexandre Cabral e Campos Henriques a parte final de um diploma, a que chamaram decreto, de 9 de dezembro de 1850, pelo qual a Rainha D. Maria II, attendendo ás considerações que o Ministro da Guerra lhe fizera, «concedeu o uso» do Palacio da Bemposta e suas dependencias para ali se estabelecer a Escola do Exercito, «sem que todavia se considere por isso como separado do dominio da Coroa, e encorporado de novo nos bens nacionaes, o referido palacio, expressamente incluido no numero d'aquelles predios que, em virtude do artigo 85.° da Carta Constitucional, foram reservados para meu uso e dos meus herdeiros e successores».

Mas isto não é um decreto, como impropriamente se lhe chamou, e ainda menos uma lei do Estado.

É um simples alvará da Vedoria da Casa Real e nada mais: e em tal documento pode a Casa Real ter allegado o que entender, sem que isso obrigue a nação.

«Mas, observou o Sr. Campos Henriques, que melhor referencia a favor da doutrina d'esse alvará que a sua propria solicitação e acceitaçao?»

Quanto á solicitação, era ella perfeitamente justificada, porque o decreto de 18 de março de 1834 tinha de facto concedido á Rainha D. Maria II o usufruto d'esse predio, e só por cedencia de Sua Majestade podia este passar para o Ministerio da Guerra.

Quanto á acceitação, observarei que a Rainha obtemperava aos desejos do Governo, retrocedendo ao Ministerio da Guerra o Palacio da Bemposta, e que seria, por isso altamente improprio discutir com Sua Majestade os termos d'essa concessão, tanto mais que segundo o proverbio - e os proverbios são a sabedoria das nações - «a cavallo dado não se olha ao dente».

Mas como a verdade, por mais que

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queiram occultá-la com artificios, irrompe sempre como a luz das trevas, lê-se no referido alvará uma frase preciosa «que se não considere por isso o Palacio da Bemposta encorporado de novo nos bens nacionaes».

Então é que já tinha sido encorporado nos bens nacionaes.

Quando e como?

Precisamente pelo decreto de 18 de março de 1834, pois que outro diploma não ha que trate de tal assunto.

Ora isto prova que é a propria Casa Real que contesta o argumento, tirado pelo Sr. Julio de Vilhena da adversativa porem, visto como reconheceu, no seu alvará, que o Palacio da Bemposta, e portanto todos os outros do Infantado, foram de facto encorporados por esse decreto nos Proprios Nacionaes e não no dominio da Coroa: e prova tambem que, encorporados em 1834 na Fazenda Nacional, encorporados estão ainda hoje, porque nenhuma lei ulterior os desannexou do Thesouro Publico.

Mas, a esse alvará posso eu contrapor um documento muito mais valioso e significativo, que é a propria lei, já citada, de 19 de dezembro de 1834, que no seu artigo 3.° diz:

«O Governo porá á disposição de Sua Majestade a Duqueza de Bragança Imperatriz viuva, um dos palacios da Nação, que pelo decreto de 18 de março do corrente anno ficaram unidos á Coroa».

Assim a lei mandou que o Governo, sem annuencia, nem audiencia, da Casa Real, entregasse á Duqueza de Bragança um dos palacios da Casa do Infantado que tinham, sido destinados a decencia e recreio da Rainha.

Perguntarei: se o legislador poderia proceder do mesmo modo em relação a qualquer dos palacios de que trata o artigo 85.° da Carta Constitucional?

Não, porque esses pertencem ao Rei e seus successores, são do dominio da Coroa e não estão encorporados no Thesouro Nacional, ao contrario do que acontece com os palacios do Infantado.

Agora um facto. Em 1850, ou 1851, a Casa Real arrendou o palacio do Alfeite ao Conde de Thomar pelo espaço de 99 annos, na razão de 2:000$000 réis por anno. Este negocio levantou grande celeuma até nesta Camara precisamente com o fundamento de que tendo sido o usufruto do Palacio do Alfeite e dos outros do Infantado concedido exclusivamente á Rainha e não aos seus successores, não podia a Casa Real arrendá-lo a longo prazo.

Tão justa foi a critica que o contrato se rescindiu.

Sr. Presidente: expus a minha argumentação tão methodicamente quanto pude.

Mas que autoridade tenho eu perante a Camara, por muito boas que sejam as minhas razões, para levar de vencida jurisconsultos tão abalisados como aquelles a quem estou respondendo?

Então agora calar-me-hei e passarei a invocar os mortos, os estadistas que viveram na epoca a que me estou referindo, e que, melhor do que os actuaes, podem depor relativamente ao significado das leis de ha 50 ou 70 annos.

Será o primeiro Silva Ferrão, que foi durante onze annos, de 1836 a 1847, procurador geral da Fazenda, e depois Ministro por duas vezes, ora da Justiça, ora da Fazenda.

Este notavel jurisconsulto publicou em 1851 uma dissertação sobre a celebre questão do Alfeite, ou arrendamento de longo prazo, feito pela vedoria da Casa Real, de um dos bens da Casa do Infantado.

Ahi se lê:

«Estes bens reservados para decencia e recreio da Rainha, por aquelle decreto de 18 de março de 1834, não devem confundir-se com os palacios e terrenos reaes reservados para decencia e recreio do Rei e seus successores, pelo artigo 85.° da carta».

E depois continua:

«Este decreto contem disposições e prova a existencia de factos que, em virtude d'ellas, se consumaram.

O primeiro, na ordem d'estes factos, é a extincção da Casa do Infantado, e a revogação da instituição e leis por que se regulava a sua successão singular e especialissima.

O segundo foi a encorporação virtual, ipso jure, que em todos os bens, assim vagos e jacentes, se operou para os proprios da nação».

«O terceiro facto foi a reserva temporaria que, dos bens assim encorporados nos proprios da nação, fez o decreto, para decencia e recreio da Rainha.

O quarto facto foi o destino que deu o mesmo decreto, de todos os bens da Casa do Infantado, em favor do Thesouro Publico, que é o que querem dizer as palavras - encorporar nos proprios da Fazenda, por isso que os bens assim encorporados ficaram sendo fundos realizaveis, ou, segundo a expressão do decreto de 13 de agosto de 1832, no artigo 2.° - Thesouro Publico disponivel, em suspensão somente, quanto aos bens reservados para decencia e recreio da Rainha».

E mais adeante acrescenta ainda:

«Dos bens encorporados nos proprios da nação e da Fazenda, em consequencia da extincção da Casa do Infantado, foram separados certos e determinados predios para decencia e recreio da Rainha e os mais todos para o Thesouro.

O Senhor D. Pedro, regente do Reino, deu assim destino a uns e outros, com a differença, porem, que, a favor da Fazenda, não se contentou com declarar que lhe ficavam pertencendo, mas ainda que passavam aos proprios d'ella, emquanto que, a favor da Rainha, somente empregou a palavra destinados, e limitada á decencia e recreio.

Explicou-se o legislador com aquella precisão a respeito da Fazenda, para bem fazer sentir que os bens, comquanto da nação, passavam em pleno dominio para o seu Thesouro, a fim de que ninguem duvidasse da legitimidade de quaesquer alienações, feitas pelo mesmo Thesouro.

Não bastaram, para assim se ficar entendendo, as palavras «ficam pertencendo» em harmonia com as empregadas no artigo 85.° da Carta; o legislador julgou indispensavel acrescentar, para exprimir todo o seu pensamento «e encorporados nos proprios», e todos sabem que redundancias, nem superfluidades, se não presumem jamais no estão do legislador.

Debalde, pois, se cansará o Sr. S. - attenção Sr. Alexandre Cabral, que isto parece escrito para S. Exa. - «em demonstrar, que os palacios e quintas reaes, de que tratou o artigo 2.° do decreto de 18 de março de 1834, foram encorporados nos palacios e terrenos reaes, de que tratou o artigo 85.° da Carta, pois que a semelhante demonstração resistirá sempre a letra e os termos do mesmo decreto».

A referencia, que neste artigo 2.° do dito decreto se faz ao artigo 85.° da Carta, nada conclue, porque se refere ao modo da fruição restricta, quanto á decencia e recreio.

É como se o legislador dissesse:

«Assim como, por virtude do artigo 85.° da Corta, pertencendo aos successores do Rei os palacios e terrenos reaes, a Rainha goza dos mesmos palacios e terrenos, para sua decencia e recreio; assim tambem goze ella mais, por virtude d'este decreto, para sua decencia e recreio, dos palacios e quintas reaes, aqui designadas, e que foram da extincta Casa do Infantado»

Não foi um addicionamento á Carta, mas uma concessão ad instar, feita á augusta pessoa da Rainha, exclusiva e unicamente, sem comprehender os seus successores, que o legislador houvera mencionado, se o contrario desejasse, como mencionou o artigo 85.° da Carta.

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O legislador tinha perfeito conhecimento d'este artigo da Carta, e todavia, em logar de empregar a palavra «successores» empregou a palavra «Rainha» com referencia á Senhora Reinante, a nossa actual Rainha, a Senhora D. Maria II; e portanto foi a ella restrictamente que seu Augusto Pae quis contemplar.

Não ha motivo algum, bem fundado, para aqui se fugir da interpretação literal, restricta, mesmo que houvesse duvida, segundo a regra da lei 1.ª § 20.° fl. de exerc. act.: In re, dubia melius est verbis edicti servire».

Aqui está a sã doutrina exposta, não num discurso, mais ou menos improvisado, perante uma assembleia politica, discurso que o vento leva, mas num escrito meditado que fica para sempre.

Acaba Silva Ferrão por fazer esta profecia:

«Quando novamente se der o caso de uma deliberação das Côrtes, em conformidade com o artigo 80.° da Carta, então resolverão ellas se a parte de fruição, extincta com o reinado findo, ha de ou não continuar, e se, no caso affirmativo ha de ou não affectar em alguma cousa a Real dotação».

E o vaticinio realizou-se em breve, porque, tendo fallecido D. Maria II em 15 de novembro de 1853, foi necessario fixar a dotação de D. Pedro V.

A esse fim se destinou uma proposição de lei que foi discutida nesta Camara em 1854 e que sem alteração se converteu na carta de lei de 14 de março do mesmo anno.

A lei tinha apenas tres artigos.

No primeiro fixava-se a dotação de El-Rei num conto de réis diario.

No segundo estabelecia-se a dotação do Infante D. Luiz, que depois foi Rei de Portugal.

No terceiro prescrevia-se que «nenhuma outra quantia, alem das mencionadas nos artigos antecedentes, poderia ser abonada para as despesas da Casa Real, qualquer que fosse a sua natureza ou denominação», exactamente como no artigo 4.° do actual projecto.

Essa lei foi largamente combatida nesta Camara pelo Conde de Thomar e por Silva Ferrão, que desenvolveu brilhantemente a doutrina expendida na dissertação a que ha pouco eu me referi, sustentando ambos que, reduzida a lei a esses tres artigos, El-Rei poderia, quando muito, usufruir os palacios e terrenos reaes de que trata o artigo. 85.° da Carta Constitucional, mas não os palacios do Infantado, que só haviam sido concedidos a D. Maria II, e não aos seus successores. Ambos propuseram o additamento de um artigo 4.° destinado a preencher essa lacuna, para que D. Pedro V pudesse gozar os mesmo palacios que sua Augusta Mãe.

O additamento de Silva Ferrão, mais completo que o outro, era assim concebido:

«Artigo 4.° A dotação de Sua Majestade El-Rei o Senhor D. Pedro V em nada affecta a fruição dos palacios e quintas reaes, de que trata e artigo 85.° da Carta Constitucional da Monarchia.

§ unico. Esta disposição comprehende a fruição dos bens nacionaes da extincta Casa do Infantado, concedida á Coroa pelo artigo 2.° do decreto de 18 de março de 1834».

A Camara achava se perplexa entre o Governo e a opposição, quando Joaquim Antonio de Aguiar, isto é, o proprio Ministro do Reino de 1834, interveio na discussão para declarar que effectivamente na disposição do artigo 2.° do decreto de 18 de março de 1834, que elle tivera a honra de propor a Sua Majestade Imperial o Duque de Bragança, se tinha em vista o reinado da Senhora D. Maria II somente.

Este adverbio somente valia um discurso inteiro.

E attendendo a que as mesmas razões, que haviam servido de fundamento a esse artigo 2.°, subsistiam ainda, sendo de igual conveniencia prover ao esplendor do Throno, Joaquim Antonio de Aguiar mandou para a mesa o seguinte additamento ao artigo l.°:

«Esta dotação em nada affecta a fruição dos palacios, quintas e terrenos de que tratam o artigo 85.° da Carta Constitucional e o artigo 2.° do decreto de 18 de março de 1834».

Perante esta declaração, deveras esmagadora, o Ministro da Fazenda, que era Fontes Pereira de Mello, concordou em que o projecto voltasse á commissão de fazenda, para ahi, de acordo com o Governo, ser modificado e redigido nos termos que; parecessem mais convenientes.

Mais tarde a commissão de fazenda apresentou um novo parecer em que manteve a proposição de lei tal como viera da Camara dos Senhores Deputados, com os seguintes fundamentos:

«A commissão de fazenda, tendo examinado os additamentos... attendendo ... a que os ditos additamentos devem merecer mui particular attenção da Camara...; attendendo outrosim, ao grave inconveniente do serviço publico que pode resultar da demora d'esta lei: attendendo finalmente a que o Ministerio declarou que, para salvar todos os escrupulos e prover a tudo que se julgasse conveniente, com relação aos ditos additamentos, se compromettia a levar á outra Camara uma proposta de lei, que contivesse todas as disposições que nesta se julgam omittidas; é de parecer que a referida proposição, vinda da Camara dos Senhores Deputados, seja approvada sem alteração alguma».

Ora aqui está de onde derivou a lei de 1855, que o Sr. Alexandre Cabral imaginava que tinha por fim excluir Palacio da Bemposta, quando, na verdade, como o demonstram os registos parlamentares, visava, ao contrario, a assegurar na pessor de D. Pedro V a fruição dos palacios do Infantado que a Camara dos Pares considerava suspensa pela omissão na nova lei de 1854 de qualquer disposição a tal respeito, e tanto assim que só votou esta lei como uma necessidade constitucional, depois de se lançar na acta a seguinte declaração, a que se referiu o Digno Par, Sr. Veiga Beirão, feita de acordo com o Governo:

«A Camara, approvando o projecto de lei, tal como viera da Camara dos Senhores Deputados, não tinha a intenção de prejudicar em cousa alguma a fruição dos palacios e terrenos reaes, tanto dos que pertencem aos successores do Rei por virtude do artigo 85.° da Carta Constitucional, como dos que foram unidos á Coroa, durante o ultimo reinado, pelo decreto de 18 de março de 1834».

Na discussão do segundo parecer interveio novamente Silva Ferrão, que disse:

«A legislação, que fixava a dotação real durante o ultimo reinado e fruição da Coroa em todos os bens immoveis, que de facto actualmente possue a mesma Coroa, essa legislação caducou com o reinado da Senhora D. Maria II, á excepção dos palacios e terrenos de que fala o artigo 85.° da Carta.

A Casa Real possuia e possue actualmente bens immoveis de quatro especies:

Á primeira pertencem os palacios e terrenos, de que fala o artigo 85.° da Carta. Estes predios... pertencem á nação, tomada collectivamente, mas são, pelo artigo 85.° da Carta, vinculados á successão da Coroa ou aos successores do Rei, segundo a letra da mesma Carta...

Á segunda especie pertencem os bens patrimoniaes da Casa de Bragança...

Á terceira especie pertencem os bens que foram da extincta Casa do

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SESSÃO N.° 40 DE 22 DE AGOSTO DE 1908 15

Infantado, que, em virtude do decreto de 18 de março de 1834, artigo 2.°, não foram declarados como da nação, tomada collectivamente, mas encorporados logo nos proprios da Fazenda Publica, suspensa porem a disponibilidade do Thesouro, emquanto durasse a fruição da Rainha, a quem foram concedidos, e estes teem, portanto, uma natureza differente d'aquelles que foram perpetuamente unidos á Coroa, e que pela Carta pertencem aos successores do Rei.

Á quarta e ultima especie de bens immoveis, que a Casa Real possue, pertencem todos os adquiridos por aquelles meios e modos por que os cidadãos podem adquirir a propriedade...

Por esta exposição, que me parece ter feito com a necessaria clareza, das quatro especies de bens, que a Casa Real possue, ou pode possuir, segue-se necessariamente que a respeito dos bens immoveis (note se bem), encorporados especialmente na Fazenda Nacional, e não geralmente nos proprios da nação, tomada collectivamente, o que faz differença, suspensa a disponibilidade para o Thesouro, por decreto de 18 de março de 1834, somente durante a concessão feita á Senhora D. Maria II, todo o direito á fruição caducou com o reinado da mesma Augusta Senhora.

A verdade é que, no momento actual, diga-se o que se disser, os palacios da Casa do Infantado, em poder da Coroa, estão só possuidos de mero facto pela Casa Real».

Foi quasi pelas mesmas palavras que eu defini a situação, no momento presente, dos bens que foram do Infantado.

Vejamos se de toda esta longa discussão se pode deduzir algum principio claro e preciso.

A dotação da Coroa não comprehende somente uma quantia em dinheiro; consta tambem de um certo numero de bens moveis e immoveis.

Assim a lei de 31 de dezembro de 1852, quando trata dos bens isentos da contribuição predial, diz que são tambem isentos «os palacios, quintas e outros bens de raiz, que fazem parte da dotação do Rei».

A propria lei de 16 de julho de 1855 outro fim não teve senão regular a dotação movel e immovel do Rei D. Pedro V.

Effectivamente o respectivo parecer da commissão de legislação da Camara dos Senhores Deputados dizia:

«Senhores. - A commissão de legislação examinou a proposta de lei, offerecida pelo Governo, para regular a dotação movel e immovel do Rei».

E na Camara dos Dignos Pares, a commissão de fazenda, exprimia-se assim:

«Á commissão de fazenda foi presente o projecto de lei n.° 243, vindo da camara dos Senhores Deputados, tendo por fim regular a dotação movel e immovel do Rei».

Em França, o decreto das Constituintes de 26 de maio de 1791, que foi o que criou a dotação da Coroa a favor de Luiz XVI, tratava no artigo 4.° dos palacios e parques, destinados á fruição do Rei, no artigo 5.° do mobiliario e no artigo 6.° dos diamantes da Coroa.

Ora, segundo a Carta Constitucional, a dotação caduca pela morte do reinante, porque as Côrtes Geraes teem de assinar ao novo rei, logo que subir ao Throno, uma dotação correspondente ao decoro da sua alta dignidade, e no mesmo sentido era a Carta francesa de 1814, que a nossa teve por modelo.

Essa dotação ha de pois definir não só a quantia em dinheiro, mas os bens moveis e immoveis, com excepção apenas dos terrenos e palacios reaes de que trata o artigo 85.° da Carta Constitucional, que eram possuidos pelo Rei ao tempo da sua publicação, porque esta ultima dotação é permanente, inauferivel, independente de qualquer lei e passa de Rei a Rei, sem a menor intervenção do Parlamento.

Mas todos os outros immoveis, como são os da extincta Casa do Infantado, e bem assim os moveis teem de figurar na dotação que se fixa ao novo Rei, e isso explica a lei de 16 de julho de 1850 para D. Pedro V; a de 11 de fevereiro de 1862 para D. Luiz; a de 28 de junho de 1890 para D. Carlos; e até a de 1908 para D. Manuel, porque lá está no artigo 6.° a renovação da lei de 1855.

O principio da caducidade vae tão longe, que até, como muito bem observou o Digno Par Sr. Luciano Monteiro, a lei de 28 de junho de 1890 restringiu ao reinado de D. Carlos a disposição da já citada lei de 25 de junho de 1889 pela qual se quis assegurar perpetuamente á Coroa o usufruto do Palacio da Pena.

Ora o que eu sustento, Sr. Presidente, é que tendo nós agora de definir quaes ao os palacios, que, alem dos da Carta Constitucional, devem ficar no usufruto do Rei, durante o actual reinado, não podemos, nem devemos simular que d'entre elles entregamos de facto os que estão occupados por diversos serviços publicos, só para justificar a renda que por elles havemos de pagar.

Muito mais correcto seria que se considerassem esses palacios como sendo de plena propriedade do Estado e se aumentasse proporcionalmente a lista civil.

Mas se a lei tem de ser votada, tal como nos foi apresentada, por uma necessidade constitucional, ao menos que se inscrevam no Orçamento Geral do Estado, como propôs o Digno Par Sr. Alpoim, as rendas pagas á Casa Real, não as deixando, como estão actualmente, ao arbitrio do Governo, para se não repetir o facto, que se deu de 1902 a 1905, de se elevarem arbitrariamente essas rendas de 28:904$000 réis a 83:504$000 réis por anno.

O Sr. relator, insistindo na restricção da parte final do artigo 1.° da lei de 16 de julho de 1855, a que eu não quis muito propositadamente referir-me, veio levantar uma grave questão, que ficará para resolver no futuro.

É que essa lei excluiu effectivamente da Coroa o Palacio da Bemposta, que já então se achava, applicado aos serviços da Escola do Exercito.

E essa exclusão manteve-se por igual nas leis de 11 de fevereiro de 1862 e 28 de junho de 1890, que fixaram as dotações de El-Rei D. Luiz e de El-Rei D. Carlos.

Nestes termos como se explica que a commissão de 1894 reconhecesse como justo o pagamento de mais de 431 contos de réis pelas rendas vencidas por esse palacio desde a morte de D. Maria II até o primeiro semestre de 1894 inclusive, e como é que depois de 1894 se abonaram ainda as rendas d'esse palacio?

Considero muito mais grave, que a questão chamada dos adeantamentos, a das rendas que este projecto deixa de pé.

E a proposito vem o agradecer ao Digno Par Sr. Dias Costa o ensejo que me deu de declarar que, como Ministro da Fazenda, não assinei nunca despacho algum autorizando taes rendas, nem decretei credito algum especial para o seu pagamento.

Ao contrario, publiquei o decreto de 25 de fevereiro de 1897, que logo no seu artigo 1.° diz o seguinte:

«Artigo 1.° Nenhuma despesa de qualquer ordem ou natureza, ordinaria ou extraordinaria, quer se refira á metropole, quer ás provincias ultramarinas, seja ou não autorizada por lei especial, poderá ser ordenada ou por qualquer forma paga pelos cofres publicos sem que esteja incluida na lei annual das receitas e despesas do Estado, ou, não o estando, sem a preliminar abertura

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16 ANNAES DA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO

de credito especial ordinario ou extraordinario, expedido nos expressos termos do artigo 16.° e mais disposições parallelas da lei de 13 de maio de 1896, ficando responsavel, nos termos do artigo 95.° do regulamento geral de contabilidade publica, quem ordenar taes despesas ou as satisfizer com preterição das solemnidades marcadas neste artigo».

Em conclusão, Sr. Presidente, esta lei que inicia, por assim dizer, um novo reinado, pois que estabelece a dotação do Monarcha, devia por isso mesmo, rompendo com as condemnadas habilidades de outros tempos, apresentar-se como um modelo de limpidez e correcção, que servisse de exemplo a todas as leis subsequentes; em vez d'isso, porem, confunde no mesmo diploma a fixação da lista civil e a liquidação dos chamados adeantamentos e encontra-se eivada de subterfugios e alçapões que hão de trazer graves difficuldades aos Governos que se seguirem ao actual, porque a questão não fica morta. (Apoiados).

Pela minha parte, porque a consciencia se me revolta, não voto o artigo 2.°, nem o artigo 5.°, nem o artigo 6.°, afastando-me assim do partido progressista nesta questão, como já me afastei quando este resolveu apoiar o Governo do Sr. João Franco. {Vozes: - Muito bem).

(O Digno Par foi muito cumprimentado).

O Sr. João Arroyo: - Sr. Presidente: a sessão está prorogada, e eu, ao contrario de muitos dos meus collegas, gosto muito de falar em sessões que vão alem da hora regimental. E isto por dois motivos: primeiro, porque uma prorogação de sessão traz para os nervos dos meus illustres collegas uma certa excitação, resultante da alteração dos seus habitos, e neste estado de atmosfera um pouco tensa é mais facil conseguir qualquer emoção: segundo, porque, falando em sessão prorogada, vejo aqui, nesta casa, aquelles que só apparecem em occasiões solemnissimas, sendo portanto natural que eu me sinta alegre por ter o prazer de os ver, e queira prolongar o mais possivel essa agradavel sensação, que talvez não torne a repetir-se, porque decerto não voltarei a collaborar em outra lista civil, attenta a juventude do actual monarcha.

Vou fazer leves considerações sobre o discurso proferido pelo Digno Par o Sr. Francisco Beirão, orador que ouço sempre com particular respeito, devido aos seus talentos e altos merecimentos de homem de Estado.

S. Exa., resolvendo tornar a palavra no final d'esta discussão, quis a si proprio fazer uma surpresa.

S. Exa. disse lá para si: a discussão está esgotada, o assunto está cansado, a Camara dos Pares deseja terminar esta discussão; eu não vou á Camara convencer os meus collegas, vou encantá-los; não vou raciocinar com elles, vou deslumbrá los; não vou levar o convencimento ao seu animo vou, como uma especie de prestidigitador da palavra, exhibir deante d'elles uma tal quantidade de paradoxos e com tal cunho de verdade, que, se elles não sairem convencidos, hão de sair, pelo menos, encantados e divertidos.

Fez S. Exa. este programma oratorio, no qual pôs todos os recursos da sua intelligencia e saber, que muitos são, e convenceu-se de que a Camara ficava deslumbrada e encantada.

S. Exa. emittiu varias proposições. A primeira foi esta: vota a lista civil, porque ha um seculo que Portugal vota 1 conto de réis diarios ao seu Rei!

Pois eu, Sr. Presidente, direi: este projecto que vae votar-se, encerra a mesma dotação de 1 conto do rés, mas encerra tambem a passagem para o Estado do total de 160 contos de réis já inventariados no decreto de 30 de agosto de 1907; e esses 160 contos de réis eram até hoje encargo da Casa Real.

É isto o que o Sr. Beirão chama a mesma lista civil?

É isto que o Sr. Beirão chama a lista civil inalteravel que diz já ter votado em 1890?

A segunda proposição do Digno Par foi esta: vota o artigo 5.° do projecto, porque é absolutamente impossivel que se ataquem com justiça e boa fé as qualidades moraes do funccionalismo português.

Eu, volto-me para os meus collegas e pergunto-lhes: mas quem foi, dentro d'esta casa, que dirigiu a menor censura aos burocratas portugueses?

Criticou-se aqui, sim, a ideia da commissão burocratica e o procedimento do Governo na elaboração d'este projecto: mas, relativamente ao funccionalismo português, houve alguem que dissesse a menor palavra contra elle?

Tudo isto para invenção do Digno Par.

A terceira proposição de S. Exa. foi a seguinte:

Quem é que pode censurar o artigo 5.°, porque o resultado da liquidação de contas a cargo da commissão burocratica ha de vir á Camara para a sancção parlamentar? Não tem a Camara ingerencia sobre as resoluções do Tribunal de Contas? As proprias resoluções do Tribunal Administrativo não carecem da approvação, já não de todo o poder executivo, mas apenas de um dos seus membros?

Ora convença-se a Camara: Foi precisamente para sair de uma tal difficuldade que o Sr. Presidente do Conselho concordei: em que as contas viessem á Camara, unico ponto do projecto que não foi discutido.

O Sr. Beirão, sempre com o proposito de fazer um discurso com que de algum modo defendesse o projecto em discussão, disse o seguinte:

(Leu).

E perguntava S. Exa. inflammado: pois ha nada mais pessoal do que a dotação real?

Mas pergunto a S. Exa.: quem foi, dos illustres oppositores ao projecto, que declarou ou disse que a herança abrangia a dotação real?

Onde é que o Digno Par foi buscar essa confusão do seu espirito?

E S. Exa. fez até a descoberta d'esta proposição singular: o artigo 5.° só encerra ou significa o facto da acceitação, pelo Parlamento, da proposta real. Por isso o voto.

Proposta real?!

Esta proposta real relativamente ao pagamento das dividas deixadas pelo fallecido Rei, lembra-me um pouco a madame Benoiton da comedia.

Que me conste, tal proposta existe acaso na imaginação do Sr. Presidente do Conselho e na do Sr. Beirão, mas nunca foi sujeita ao Parlamento Português.

O discurso do Digno Par nada mais contem do que uma serie de affirmações em absoluta contradição com a verdade dos factos.

Mas o discurso de S. Exa. não foi para o que muitos julgam.

O seu fim capital, substancial, era a resposta, por parte do illustre chefe do partido progressista, relativamente á sua situação pessoal e politica na questão dos adeantamentos.

Tudo mais foram franjas, foram incidentes do assunto.

O motivo do discurso do Digno Par, o verdadeiro aspecto de pontifical que S. Exa. assumiu, tanto se dirigia principalmente á defesa das declarações do Sr. José Luciano de Castro que o Sr. Beirão não podia deixar de empregar, de vez em quando, a frase: legitima defesa, legitima defesa, porque essa era a preoccupação do seu espirito, a necessidade da sua palavra e o verdadeiro motivo que o tinha posto em pé.

O Digno Par Sr. Beirão tinha declararado aqui, ha tempo, que o chefe do partido progressista se reservava a opportunidade de apresentar a sua defesa.

S. Exa. havia dito que o Sr. José Luciano de Castro mantinha tudo quanto dissera em pleno Parlamento.

Logo, a occasião hoje foi escolhida pelo illustre chefe progressista; logo o momento foi aquelle que o Sr.

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SESSÃO N.° 46 DE 22 DE AGOSTO DE 1908 17

José Luciano e o Sr. Beirão entenderam apropriado para dar as suas explicações ao país.

Eu nunca dei forma de intimativa ás minhas palavras; nunca usei d'essa linguagem propria para se esquecer no dia seguinte, sem consciencia das responsabilidades da vespera.

Mas vejamos qual foi a defesa empregada pelas palavras do Sr. José Luciano.

S. Exa., convidado por mim ha dois annos a explicar-se nesta casa, relativamente ás declarações que o Presidente do Conselho no Ministerio transacto fizera na outra casa do Parlamento, disse textualmente estas palavras:

Tem a declarar que nunca, como Presidente do Conselho, lhe foi pedido qualquer adeantamento sobre a dotação do Augusto Chefe do Estado. Nunca lhe fizeram tal pedido, nem a nenhum dos Ministros das situações de que fez parte.

Sr. Presidente: V. Exa. viu, desde o começo do debate aberto nesta casa do Parlamento, a altura a que mantive sempre, durante toda esta questão dos adeantamentos, uma maneira de proceder absolutamente impessoal, uma maneira de proceder superior ao mais pequeno ataque que pudesse collidir com qualquer dos meus collegas. A essa altura me manterei hoje na resposta ao Sr. Beirão, não descendo, por isso, a especializar nomes, nem factos.

Sr. Presidente: o Sr. Beirão, como correctivo á explicação da frase do Sr. José Luciano de Castro, e querendo sustentar que não havia contradição nas palavras do seu chefe politico, referiu se tambem á declaração feita pelo Sr. Ministro da Fazenda, relativa a supprimentos á Casa Real.

Eu que não desejo aggravar pessoalmente ninguem, não cito nomes nem vou envolver me no assunto respeitante á carta do Sr. Luciano de Castro dirigida ao Sr. Espregueira, direi simplesmente que a verdade dos factos é esta:

O Sr. José Luciano declarou, em 21 de novembro de 1906, que nunca lhe fôra feita qualquer solicitação para adeantamentos á Casa Real, nem a nenhum dos Ministros das situações progressistas. Mas o illustre e eminente orador Sr. general Dantas Baracho recebeu ha pouco uma lista elaborada no Ministerio da Fazenda, lista que se divide em duas partes: adeantamentos liquidados - 276 contos de réis; adeantamentos por liquidar - 771 contos de réis. Pois nesta lista de adeantamentos encontram-se os nomes de Ministros progressistas que, sob a presidencia do Sr. José Luciano, serviram.

Sr. Presidente: quando a verdade se exhibe por esta forma, os partidos podem salvar-se, mas não pelos processos empregados pelos Srs. Luciano de Castro e Beirão.

A primeira obrigação dos partidos é não se acobardarem, não se esconderem atrás de sofisterias, atrás de trocadilhos de palavras que podem fazer escola, mas que não encobrem a verdade pura e nitida.

Não aggravo pessoalmente ninguem, mas em nome da dignidade politica não posso deixar de censurar a funestissima acção dos ultimos Presidentes de Conselho, de quem foram victimas tantos homens de incontestavel merecimento, acção que, avigorando o regime pessoal do Rei, teve por epilogo a catastrophe de 1 de fevereiro.

Pode o Digno Par do Reino Sr. Beirão entoar de novo os seus louvores aos dois partidos rotativos, que não conseguirá deter a impressão de desanimo, de verdadeira e profundissima tristeza, que o procedimento d'elles causou no animo publico.

Olhando para os partidos, não deploro que elles assim evidenciem as suas faltas, e a sua incompetencia, visto que não souberam defrontar-se com as difficuldades que se lhe depararam; mas tenho pena do Rei, que ha de ver a sua vida ligada a corpos que são organizações que agonizam.

Esses partidos, na inauguração de um reinado, com a apresentação do projecto que vae votar-se, prestam um mau serviço ao novo monarcha.

Não é no momento em que a opinião publica portuguesa se preoccupa com uma situação financeira, em que a divida fluctuante se eleva a 80:000 contos de réis, que se deveria aumentar a lista civil.

Creiam os partidos que fazem um mau serviço á Coroa, exactamente na occasião em que a podiam cercar dos respeitos e das sympathias geraes.

Servir a monarchia seria collocá la numa alta posição inatacavel, pela aura de opiniões que derivaria de uma resolução austera sobre este assunto.

O que pelo contrario se faz é deixar soterrada a Coroa, cuja defesa é atraiçoada pelos partidos, sob o peso de uma indefensavel situação.

(S. Exa. não reviu).

(O Digno Par foi cumprimentado por alguns Dignos Pares).

O Sr. Presidente: - Está esgotada a inscrição, vae votar-se.

Antes de submetter á votação o projecto de lei, vão ler-se na mesa para serem votadas as conclusões da proposta do Sr. Baracho.

(Leram-se na mesa e postas á votação, foram rejeitadas).

Vae ler-se o projecto, para ser votado.

(Leu-se na mesa).

O Sr. Sebastião Baracho: - Requeiro a V. Exa. que consulte a camara sobre se quer que haja votação nominal sobre a generalidade do projecto de lei.

O Sr. Presidente: - Os Dignos Pares que approvam o requerimento que acaba de fazer o Sr. Baracho tenham a bondade de se levantar.

Pausa, e depois de verificar a votação:

O Sr. Presidente: - Está approvado.

Feita a chamada disseram approvo os Dignos Pares Srs.: Antonio de Azevedo Castello Branco, Eduardo de Serpa Pimentel, Patriarcha de Lisboa, Marquez Barão de Alvito; Marquezes: de Avila e Bolama de Gouveia, de Penafiel, de Pombal, de Sousa Holstein; Arcebispo de Calcedonia; Condes: das Alcaçovas, de Avillez, do Bomfim, do Cartaxo, de Castello de Paiva, de Castro, de Figueiró, de Lagoaça, de Mártens Ferrão, de Monsaraz, de Sabugosa, de Tarouca, de Villar Secco; Viscondes: de Athouguia de Balsemão, de Monte-São; Alberto Antonio de Moraes Carvalho, Alexandre Cabral Paes do Amaral, Antonio Augusto Pereira de Miranda, Antonio Eduardo Villaça, Antonio de Sousa Silva Costa Lobo, Antonio Teixeira de Sousa, Arthur Alberto de Campos Henriques, Augusto Alexandre Barjona de Freitas, Bernardo de Aguilar Teixeira Cardoso, Carlos Roma du Bocage, Eduardo Montufar Barreiros, Fernando Mattozo Santos, Francisco Antonio da Veiga Beirão, Francisco Felisberto Dias Costa, Francisco Joaquim Ferreira do Amaral, Francisco José Machado, Francisco José de Medeiros, Francisco Maria da Cunha, Francisco de Serpa Machado Pimentel, Francisco Simões de Almeida Margiochi, Frederico Ressano Garcia, Gonçalo Xavier de Almeida Garrett, Henrique da Gama Barros, D. João de Alarcão Velasques Sarmento Osorio, Joaquim de Vasconcellos Gusmão, José da Silveira Vianna, José Vaz Correia Seabra de Lacerda, Julio Marques de Vilhena, Luiz de Mello Bandeira Coelho, Manuel Affonso de Espregueira, Manuel Raphael Gorjão, Pedro Maria da Fonseca Araujo, Sebastião Custodio de Sousa Telles e Wenceslau de Sousa Pereira Lima.

Disseram rejeito os Dignos Pares Srs.: João Marcellino Arroyo, José Maria de Alpoim de Cerqueira Borges Cabral e Sebastião de Sousa Dantas Baracho.

O Sr. Presidente: - Está approvada a generalidade do projecto por sessenta votos contra tres.

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18 ANNAES DA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO

O Sr. Presidente: - Vae ler-se o artigo 1.°, para ser votado.

Leu-se na mesa e foi approvado.

O Sr. Presidente: - Em conformidade com as disposições do regimento as propostas de additamento teem de ser votadas depois da votação dos artigos.

Vae ler-se a proposta do Digno Par Frederico Ressano Garcia.

Leu-se na mesa.

O Sr. Presidente: - Os Dignos Pares que approvam esta proposta de additamento que acaba de ser lida tenham a bondade de se levantar.

(Pausa).

O Sr. Presidente: - Está rejeitada.

Vae ler-se o artigo 2.°

Leu-se na mesa e foi approvado.

Em seguida foi lida na mesa e rejeitada a proposta de emenda ao artigo 2.°, apresentada pelo Sr. Ressano Garcia.

O Sr. Presidente: - Vae ler se o artigo 3.°

Leu-se na mesa e foi approvado.

O Sr. Presidente: - Vae ler-se o artigo 4.°

Leu-se na mesa e foi approvado.

O Sr. Presidente: - Vae ler-se o artigo 5.°

Leu-se na mesa.

O Sr. Sebastião Baracho: - Requeiro a V. Exa. que consulte a Camara sobre se quer votação nominal sobre este artigo.

O Sr. Presidente: - Os Dignos Pares que approvam o requerimento do Sr. Baracho, tenham a bondade de se levantar.

Está approvado.

(Pausa).

Vae proceder-se á chamada.

Feita a chamada, disseram approvo os Dignos Pares:

Antonio de Azevedo Castello Branco, Eduardo de Serpa Pimentel, Patriarcha de Lisboa, Marquez Barão de Alvito; Marquezes: de Avila e de Bolama, de Gouveia, de Penafiel de Pombal, de Sousa Holstein; Arcebispo de Calcedonia; Condes: das Alcaçovas, de Avillez, do Bomfim, do Cartaxo, de Castello de Paiva, de Castro, de Figueiró, de Lagoaça, de Mártens Ferrão, de Monsaraz, de Sabugosa, de Tarouca, de Villar Secco; Viscondes de Athouguia, de Balsemão; Alberto Antonio de Moraes Carvalho, Alexandre Cabral Paes do Amaral, Antonio Eduardo Villaça, Antonio Teixeira de Sousa, Arthur Alberto de Campos Henriques, Augusto Alexandre Barjona de Freitas, Bernardo de Aguilar Teixeira Cardoso, Carlos Roma du Bocage, Eduardo Montufar Barreiros, Fernando Mattoso Santos, Francisco Antonio da Veiga Beirão, Francisco Felisberto Dias Costa, Francisco Joaquim Ferreira do Amaral, Francisco José Machado, Francisco Maria da Cunha, Francisco de Serpa Machado Pimentel, Francisco Simões de Almeida Margiochi, Gonçalo Xavier de Almeida Garrett, Henrique da Gama Barros, D. João de Alarcão Velasques Sarmento Osorio, Joaquim de Vasconcellos Gusmão, José da Silveira Vianna, José Vaz Correia Seabra de Lacerda, Julio Marques de Vilhena, Luiz de Mello Bandeira Coelho, Manuel Affonso de Espregueira, Manuel Raphael Gorjão, Pedro Maria da Fonseca Araujo, Sebastião Custodio de Sousa Telles, Wenceslau de Sousa Pereira Lima.

E disseram rejeito os seguintes Dignos Pares: Visconde de Monte São, Antonio de Sousa Silva Costa Lobo, Francisco José de Medeiros, Frederico Ressano Garcia, Henrique Baptista de Andrade, João Marcellino Arroyo, José de Alpoim de Cerqueira Borges Cabral e Sebastião de Sousa Dantas Baracho.

O Sr. Medeiros: - Peço a V. Exa. que consulte a Camara sobre se permitte que eu retire a minha proposta.

O Sr. Presidente: - Os Dignos Pares que approvam que o Sr. Medeiros retire a sua proposta tenham a bondade de se levantar.

Está approvado.

Em seguida foram approvados os artigos 6.° e 7° do projecto.

O Sr. Presidente: - Vae ler-se uma proposta de additamento apresentada pelo Sr. Ressano Garcia.

Posta á votação, foi rejeitada.

O Sr. Presidente: - A proximo sessão é segunda feira. Ordem do dia a continuação da que estava dada para hoje.

Está levantada a sessão.

Eram 7 horas e 10 minutos da tarde.

Dignos Pares presentes na sessão de 22 de julho de 1908

Exmos. Srs. Antonio de Azevedo Castello Branco; Eduardo de Serpa Pimentel: Patriarcha de Lisboa; Marquez Barão de Alvito; Marquezes: de Avila e de Bolama, de Gouveia, de Penafiel, de Pombal, de Sousa Holstein; Arcebispo de Calcedonia; Condes: das Alcaçovas, de Avillez, de Bomfim, do Cartaxo, de Castello de Paiva, de Castro, de Figueiró, de Lagoaça, de Mártens Ferrão, de Monsaraz, de Sabugosa, de Tarouca, de Villar Secco; Viscondes: de Athouguia, de Balsemão, de Monte-São; Moraes Carvalho, Alexandre Cabral, Pereira de Miranda, Eduardo Villaça, Sousa Costa Lobo, Teixeira de Sousa, Campos Henriques, Barjona de Freitas, Bernardo de Aguilar, Carlos du Bocage, Montufar Barreiros, Mattozo Santos, Veiga Beirão, Dias Costa, Ferreira do Amaral, Francisco José Machado, Francisco José de Medeiros, Francisco Maria da Cunha, Francisco de Serpa Machado, Simões Margiochi, Ressano Garcia, Almeida Garrett, Baptista de Andrade, Gama Barros, D. João de Alarcão, João Arroyo, Vasconcellos Gusmão, José de Alpoim, Silveira Vianna, Luciano Monteiro, Bandeira Coelho, Affonso de Espregueira, Raphael Gorjão, Pedro de Araujo, Sebastião Telles, Sebastião Dantas Baracho e Wenceslau de Lima.

O Redactor,

ALBERTO BRAMÃO.

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