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REPÚBLICA PORTUGUESA
DIÁRIO DA CÂMARA DOS DEPUTADOS
26.ª SESSÃO ORDINÁRIA DO 3.° PERÍODO DA 1.ª LEGISLATURA
1912-1913
EM 17 DE JANEIRO DE 1913
Presidência do Exmo. Sr. José Augusto de Simas Machado
Secretários os Exmos. Srs.
Jorge Frederico Velez Caroço
Eduardo de Almeida
Sumário. - Abre-se a sessão com a presença de 72 Srs. Deputados. - Leitura e aprovação da acta Expediente. - O Sr. Presidente julga interpretar os sentimentos da Câmara telegrafando ao governador civil do Pôrto manifestar-lhe o seu pesar pela catástrofe do vapor "Veronese" e saudando todas as pessoas e colectividades que prestaram auxilio ao náufragos. - Os Srs. Angelo Vaz, Severiano José da Silva e Ministro da Marinha associam-se às palavras do Sr. Presidente. - A Câmara aprova, a requerimento do Sr. Fernando de Macedo, a urgência, e dispensa do Regimento para que entre imediatamente em discussão o parecer da comissão de petições sôbre um representação dos alunos da Universidade de Coimbra. - O Sr. Presidente do Ministério (Affonso Costa) dá conhecimento à Câmara dum telegrama do governador civil do Pôrto relativo no salvamento dos náufragos do "Veronese". - O Sr. Alexandre de Barros justifica o parecer da comissão de petições que e em seguida aprovado.
Antes da ordem do dia. - O Sr. Brito Camacho refere-se à instalação dum potril na quinta da Mitra, pertencente ao Estado, respondendo-lhe o Sr. Presidente do Ministério. - O Sr. Domingos Pereira combate a idea de transferir para Lisboa os arquivos existentes em vários pontos do pais, mandando para a mesa um projecto de lei, para o qual pede urgência e dispensa do Regimento. - O Sr. Presidente do Ministério não julga necessária a dispensa do Regimento, pois que o "statu quo" manter-se há até que as comissões dêem o seu parecer sôbre o projecto. - O Sr. Domingos Pereira desiste da dispensa requerida. - O Sr. Jorge Nunes refere-se aos acontecimentos de Coimbra. Responde-lhe o Sr. Presidente do Ministério. - O Sr. Alexandre de Barras faz algumas considerações sôbre a nomeação dum oficial do registo em Tomar. Responde-lhe o Sr. Ministro da Justiça (Álvaro de Castro).
Ordem do dia (Pertence n.º 11 ao projecto n.° 74). - Vota-se a segunda parte da moção do Sr. Moura Pinto, sendo rejeitada. - Procede-se à contraprova que dá o mesmo resultado.
Segunda parte da ordem do dia. - É admitida à discussão a moção apresentada pelo Sr. Jacinto Nunes, na sessão anterior, na discussão do projecto n.° 127. - Usam em seguida da palavra, sôbre o projecto em discussão, os Srs. Eduardo de Almeida, Ministro da Justiça, Matos Cid e Caetano Gonçalves. - Responde ao Sr. Caetano Gonçalves o Sr. Ministro da Justiça. - O Sr. Jacinto Atines defende a sua moção, que é combatida, em seguida, pelo Sr. Mesquita de Carvalho. - O Sr. Presidente encerra a sessão, marcando a seguinte com a respectiva ordem do dia.
Abertura da sessão - Às 15 horas.
Presentes - 73 Srs. Deputados.
São os seguintes:
Adriano Gomes Ferreira Pimenta.
Afonso Ferreira.
Alberto de Moura Pinto.
Alberto Souto.
Alexandre Augusto de Barros.
Alfredo Maria Ladeira.
Álvaro Poppe.
Américo Olavo de Azevedo.
Angelo Vaz.
António Alberto Charula Pessanha.
António Albino Carvalho Mourão.
António Amorim de Carvalho.
António Aresta Branco.
António Barroso Pereira Vitorino.
António Cândido de Almeida Leitão.
António Joaquim Granjo.
António José Lourinho.
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2 Diário da Câmara dos Deputados
António Silva Gouveia.
António Valente de Almeida.
Baltasar de Almeida Teixeira.
Caetano Francisco Cláudio Eugénio Gonçalves.
Carlos António Calisto.
Casimiro Rodrigues de Sá.
Domingos Leite Pereira.
Eduardo de Almeida.
Ernesto Carneiro Franco.
Ezequiel de Campos.
Fernando da Cunha Macedo.
Francisco Correia Herédia (Ribeira Brava).
Francisco José Pereira.
Francisco Luís Tavares.
Francisco de Sales Ramos da Costa.
Gaudêncio Pires de Campos.
Henrique José dos Santos Cardoso.
João José Luís Damas.
João Machado Ferreira Brandão.
Joaquim António de Melo Castro Ribeiro.
Joaquim Brandão.
Joaquim José Cerqueira da Rocha.
Joaquim José de Oliveira.
Joaquim Ribeiro de Carvalho.
Jorge Frederico Velez Caroço.
Jorge de Vasconcelos Nunes.
José Augusto Simas Machado.
José de Barros Mendes de Abreu.
José Bernardo Lopes da Silva.
José Botelho de Carvalho Araújo.
José Cordeiro Júnior.
José Francisco Coelho.
José de Freitas Ribeiro.
José Jacinto Nunes.
José Miguel Lamartine Prazeres da Costa.
José Montez.
José Tristão Pais de Figueiredo.
José Vale de Matos Cid.
Jovino Francisco de Gouvêa Pinto.
Luís Augusto Pinto de Mesquita Carvalho.
Luís Inocêncio Ramos Pereira.
Manuel Alegre.
Manuel de Brito Camacho.
Manuel Gregório Pestana Júnior.
Manuel José da Silva.
Manuel Pires Vaz Bravo Júnior.
Pedro Alfredo de Morais Rosa.
Pedro Januário do Vale Sá Pereira.
Philemon da Silveira Duarte de Almeida.
Porfírio Coelho da Fonseca Magalhães.
Rodrigo Fernandes Fontinha.
Severiano José da Silva.
Tomé José de Barros Queiroz.
Vítor José de Deus Macedo Pinto.
Vitorino Henriques Godinho.
Vitorino Máximo de Carvalho Guimarães.
Entraram durante a sessão os Srs.:
Adriano Mendes de Vasconcelos.
Afonso Augusto da Costa.
Alexandre José Botelho de Vasconcelos e Sá.
Alfredo Balduíno de Seabra Júnior.
Alfredo Djalme Martins de Azevedo.
Alfredo Rodrigues Gaspar.
Álvaro Nunes Ribeiro.
Álvaro Xavier de Castro.
Amílcar da Silva Ramada Curto.
António Caetano Celorico Gil.
António Franca Borges.
António José de Almeida.
António Maria da Cunha Marques da Costa.
António Maria da Silva.
António de Paiva Gomes.
António Pires Pereira Júnior.
Artur Augusto Duarte da Luz Almeida.
Augusto José Vieira.
Carlos Olavo Correia de Azevedo.
Emídio Guilherme Garcia Mendes.
Francisco Cruz.
Gastão Rafael Rodrigues.
Germano Lopes Martins.
Helder Armando dos Santos Ribeiro.
Henrique José Caldeira Queiroz.
Inocêncio Camacho Rodrigues.
João Barreira.
João Camilo Rodrigues.
João Carlos Nunes da Palma.
João Gonçalves.
Joaquim Teófilo Braga.
José António Simões Raposo Júnior.
José Carlos da Maia.
José Maria Vilhena Barbosa de Magalhães.
José da Silva Ramos. - José Tomás da Fonseca.
Júlio do Patrocínio Martins.
Tiago Moreira Sales.
Não compareceram à sessão os Srs.:
Albino Pimenta de Aguiar.
Alexandre Braga.
Alfredo Guilherme Howell.
Angelo Rodrigues da Fonseca.
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António Afonso Garcia da Costa.
António Augusto Pereira Cabral.
António Joaquim Ferreira da Fonseca.
António Maria de Azevedo Machado Santos.
António Maria Malva do Vale.
António Pádua Correia.
Aquiles Gonçalves Fernandes.
Aureliano de Mira Fernandes.
Carlos Amaro de Miranda e Silva.
Carlos Henrique da Silva Maia Pinto.
Carlos Maria Pereira.
Fernando Baeta Bissaia Barreto Rosa.
Guilherme Nunes Godinho.
João Duarte de Meneses.
João Fiel Stockler.
João Luís Ricardo.
João Pereira Bastos.
José Barbosa.
José Bessa de Carvalho.
José Dias da Silva.
José Maria Cardoso.
José Mendes Cabeçadas Júnior.
José Perdigão.
José Pereira da Costa Basto.
Miguel de Abreu.
Miguel Augusto Alves Ferreira.
Vítor Hugo de Azevedo Coutinho.
Às 15 horas, estando presentes 72 Srs. Deputados, abre-se a sessão.
É lida e aprovada a acta, e dá-se conta do seguinte
EXPEDIENTE
Ofícios
Do Ministério das Finanças, remetendo 160 exemplares dos orçamentos dos Ministérios da Guerra, Marinha e Negócios Estrangeiros, para o ano económico de 1913-1914, a fim de serem distribuídos pelos Srs. Deputados.
Para a Secretaria.
Do Ministério das Colónias, comunicando, para conhecimento da comissão parlamentar de inquérito aos actos do actual Sr. director geral da Fazenda das Colónias, que êste funcionário se encontra presentemente em Londres, no desempenho duma comissão de serviço; logo que seja possível será mandado apresentar á referida comissão parlamentar.
Para a Secretaria.
Do Ministério das Colónias, e satisfazendo ao requerimento do ST. Deputado
Ezequiel de Camqos, remetendo o orçamento da província de Moçambique, da receita e tabela de despesa para o ano económico de 1912-1913.
Para a Secretaria.
Telegrama
Funchal, 16. - Exmo. Presidente Câmara Deputados. - Abaixo assinados moageiros cidade Funchal, tendo conhecimento pelo Diário do Govêrno n.° 6, de 8 corrente, projecto lei apresentado Parlamento por Exmos. Deputados Carlos Olavo, Manuel Gregório Pestana Júnior, Américo Olavo e Ribeira Brava, tendente modificar regime cerealífero Madeira, vem mui respeitosamente reclamar contra alteração aludido referido projecto, visto que dele resultam gravíssimos prejuízos legítimos interesses e incontestáveis direitos suas fábricas estabelecidas e matriculadas conforme actual regime, cujo valer atinge muitas centenas de contos de réis. = Blandy Brothers & C.° = Carlos José Fino Azevedo Santos & Ca. = Pela Companhia Madeirense de Moagem a Vapor, os Directores, Manuel Jorge Pinto Correia = Coutinho Gorjão = António Giorgi & Ca. = Pela Empresa Funchalense de Moagem, Limitada, o Gerente, Henrique de Freitas.
Para a Secretaria.
Segundas leituras
Projectos de lei
A acção do Estado em matéria de assistência é, como a Câmara sabe. mesquinha e restrita, por virtude da extrema modicidade com que êstes serviços, aliás de altíssimo alcance social, tem sido dotados no orçamento da Nação.
Compreende-se que mais se não tenha até agora feito perante a suprema razão, que as nossas precárias finanças tem imposto, de que mais não seria possível conseguir-se; o que porêm se não justifica nem desculpa, porque chega a constituir um crime atentatório dos mais triviais sentimentos de humanidade, é que o Estado, tam parco em auxílios a favor da assistência pública, e que quási de todo desamparada tem deixado seguir a acção, beneficente e devotada, da assistência privada, se não esqueça desta para duramente a tributar com uma avultada contribuição de registo, quer quando os respectivos insti-
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tutos, para desempenho dos seus fins sociais, se vêem forçados a adquirir propriedade imóvel, quer quando qualquer benemérito cidadão se lembre de consignar uma parte da sua fortuna para nova fundação de instituições de tal natureza.
O critério da Câmara facilmente reconhece, alem da dureza do imposto exigido em qualquer dêstes casos, a inconsequência da lei, que justamente pode levar espíritos, aliás bem dispostos, em favor da causa da miséria, a nada lhe deixar, como protesto às disposições duma lei que tributa, desfalcando-os em grande parte, bens e valores que só á miséria deveriam aproveitar.
O Regulamento de 23 de Dezembro de 1899 preveniu em parte esta iniquidade fiscal isentando no artigo 7.°, n.° 4 do pagamento da contribuição de registo por título gratuito as transmissões de bens mobiliários e imobiliários a favor de estabelecimentos de caridade e beneficência, legalmente constituídos.
A restrição final, porem, se acaso não traiu por incompleto o pensamento do legislador, deixou todavia ilógica a solução do problema e por satisfazer as considerações de alto interesse social, que acima referi.
Nestas circunstâncias e para preencher uma lacuna prejudicial à causa ao mesmo tempo tam simpática e tam trágica da miséria e da dor, tenho a honra de apresentar à vossa consideração o seguinte projecto de lei :
Artigo 1.° As transmissões por título gratuito de bens mobiliários e imobiliários em favor de estabelecimentos de assistência ou beneficência, já legalmente constituídos ou a constituir, são isentas de contribuição de registo.
Art. 2.° São igualmente isentas de contribuição de registo por título oneroso, as aquisições de bens imóveis, que as instituições referidas no artigo 1.° sejam autorizadas a adquirir para desempenho dos seus fins estatuais.
Art. 3.° Fica revogada a legislação em contrário.
Sala das Sessões da Câmara dos Deputados, 15 de Janeiro de 1913. = O Deputado, Luís A. P. de Mesquita Carvalho.
Enviado à comissão de finanças.
Senhores Deputados. - Não sendo considerados empregados públicos os serventes das secretarias de Estado, a cargo de quem está o desempenho dum serviço árduo e aturadíssimo e sendo, por isso, extremamente precária a sua situação, pois que, alem de receberem remuneração mesquinha, não tem estabilidade alguma nos seus lugares, podendo ser livremente despedidos, julgo de toda a humanidade e justiça o seguinte projecto de lei:
Artigo 1.° Todas as vagas de correios de ministros e de contínuos dos Ministérios, que de futuro ocorrerem, serão preenchidas por. promoção entre os serventes mais antigos das secretarias de Estado.
Art. 2.° Fica revogada a legislação em contrário.
Câmara dos Deputados, em 15 de Janeiro de 1913. = O Deputado, Rodrigo Pontinha.
Enviado à comissão de legislação civil.
Artigo 1.° É expressamente proibido, como perigoso para a saúde pública, nas obras de construção ou reparação de edifícios ou estabelecimentos, bem como em todo o trabalho de pintura, o emprego do alvaiade de chumbo.
Art. 2.° A contravenção desta lei será punida com multa de 10 a 50 escudos.
Art. 3.° São competentes para exercer a vigilância na execução desta lei a polícia e as associações de classe, que participarão as transgressões aos tribunais criminais respectivos.
Art. 4.° São considerados responsáveis pelas transgressões a esta lei os proprietários dos edifícios ou estabelecimentos em que o alvaiade de chumbo se empregar.
Art. 5.° O produto das multas será aplicado ás despesas que o Ministério do Fomento fizer com as Bolsas de Trabalho.
Art. 6.° Fica revogada a legislação em contrário.
Enviado à comissão de saúde e assistência pública.
O Sr. Presidente: - Sabe a Câmara, pelo relato dos jornais da tarde de ontem e pelos dos desta manhã, que se deu na costa ao norte de Leixões o naufrágio do paquete Veronese.
Creio interpretar os sentimentos da Câmara, enviando, em nome dela, ao gover-
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nador civil do Pôrto, um telegrama, para que êle manifeste aos sobreviventes daquele desastre, a mágoa que, por tal facto, todos sentimos.
Se a Câmara, porem, me dá licença, eu irei mais longe.
Sabe-se, tambêm, pelas notícias dali vindas que, na emergência daquele sinistro, especialmente se salientaram o Instituto de Socorros a Náufragos, os Voluntários do Pôrto e de Leça e a guarda fiscal, empregando esforços muito para louvar.
Portanto, no telegrama a enviar, eu pedirei ao Sr. governador civil, para interpretar, junto daquelas colectividades, a satisfação da Câmara pelo modo porque procederam.
Vozes: - Muito bem.
O Sr. Angelo Vaz: - Associo-me, inteiramente, às palavras e proposta de V. Exa. e lamento a pavorosa catástrofe que mais uma vez, vem enlutar a cidade do Pôrto, exprimindo toda a minha simpatia pelas vítimas.
Dêste lugar saúdo, tambêm, todos aqueles que, tam nobre e heroicamente, tem cumprido o seu dever, na salvação dos náufragos.
O orador não reviu.
O Sr. Severiano José da Silva:-Lamenta o desastre sucedido em Leixões, mas o que é para lastimar é que êstes casos se venham reproduzindo todos os anos.
Se na costa portuguesa houvesse um aparelho de telegrafia sem fios, certamente se teriam evitado muitos dêsses desastres.
Associando-se aos votos de condolência propostos pela mesa, faz votos para que a Câmara vote o seu projecto sôbre o pôrto de Leixões, a fim de se melhorar a costa norte de Portugal.
O discurso será publicado na íntegra quando o orador restituir as notas taguigráficas.
O Sr. Ministro da Marinha (Freitas Ribeiro): - Em nome do Govêrno associo-me às palavras proferidas pelo Sr. Presidente, em virtude do lamentável acontecimento sucedido em Leixões.
Não tenho notícias oficiais que me habilitem a declarar à Câmara quais as causas dêsse desastre, mas creio que foi devido à cerração do mar e talvez ao engano de faróis.
Se a falta de faróis tiver sido a causa do desastre, prometo interessar-me por êsse assunto de forma a evitar tais acidentes.
Devo, em todo o caso, dizer à Câmara, que as autoridades deram todas as providências necessárias, no que, aliás, foram auxiliadas por todos os marítimos, várias colectividades e pelo povo, manifestando-se por essa forma, e mais uma vez, a boa alma portuguesa.
O orador não reviu.
O Sr. Presidente: - O Sr. Deputado Fernando de Macedo requereu que o parecer da comissão de petições dobre a representação dos alunos da Universidade de Coimbra, dispensando-se o Regimento, entrasse imediatamente em discussão.
Os Srs. Deputados que aprovam a dispensa do Regimento tem a bondade de se levantar.
Foi aprovada a dispensa do Regimento.
O Sr. Presidente do Ministério e Ministro das Finanças (Afonso Costa): - Não estando presente quando se falou do desastre sucedido ao Veronese na costa portuguesa do norte, e como parece que a Câmara não tem conhecimento das últimas notícias, apresso-me a comunicar-lhe o telegrama que acabo de receber do Sr. governador civil do Pôrto.
Telegrama
Matozinhos, 17. - Serviço salvamento tem sido feito com a máxima diligência e altruísmo da parte de todos os funcionários e particulares; tem sido incansáveis todo o dia, e toda a noite debaixo de chuva e com enormes dificuldades salvamento, feito um a um.
Estão salvas já trinta pessoas, e há mais cento e setenta pessoas a bordo com esperanças de salvamento.
Pessoal, capitania, polícia, ambulâncias, bombeiros do Pôrto e Leça, guardas fiscal e republicana, oficiais e alunos da Escola de Marinheiros e povo, todos tem trabalhado afanosamente; população tem acolhido e socorrido náufragos com todo o carinho.
Em nome do Govêrno tenho prestado e prestarei todos os socorros possíveis, e o administrador do concelho tem estado no
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local desde as 11 horas dontem às 10 horas de hoje. = O Governador Civil, Albano de Magalhães.
Estou certo de que a Câmara fica satisfeita e um pouco aliviada da impressão que sôbre todos nós pesava. Se houver novas notícias emquanto a Câmara estiver aberta, terei o maior prazer em lhas comunicar.
O orador não reviu.
O Sr. Alexandre de Barros: - Pedi a palavra para declarar à Câmara, em nome da comissão de petições de que faço parte, que ela considerou justo o parecer que lavrou e que V. Exa. mandou ler na mesa. Esta comissão consultou, antes de lavrar êsse parecer, a comissão de instrução superior e, se bem que a consulta tivesse um carácter meramente particular, dela resultou que essa comissão não via inconveniente de espécie alguma em que a pretensão fôsse deferida; de modo que a comissão de petições, dum certo modo harmonizando a sua maneira de proceder com as opiniões da comissão de instrução superior, lavrou o parecer que eu julgo que deve merecer a aprovação desta Câmara.
O orador não reviu.
Foi aprovado o parecer.
O Sr. Brito Camacho: - Chegando ao seu conhecimento o facto de que se pretende instalar um potril de Alter numa herdade chamada a Quinta da Mitra, pertencente ao Estado, e que êle, orador, visitou no tempo do Govêrno Provisório, para ver se nela se podia instalar uma escola agrária, e ficando convencido, por essa visita, de que efectivamente ela possuía as necessárias condições para uma escola dessa natureza, o que não sucede para um potril, ousa chamar a atenção dos Srs. Ministros da Guerra e do Fomento para êsse assunto.
Como S. Exas. não estão presentes, pede ao Sr. Presidente do Ministério a fineza de transmitir as suas considerações a êsses seus colegas.
Êste discurso será publicado na íntegra quando o orador haja restituído as notas taquigráficas.
O Sr. Presidente do Ministério e Ministro das Finanças (Afonso Costa): - Com todo o cuidado e prazer me apressarei a transmitir aos meus colegas as considerações de S. Exa. O Govêrno está no poder para governar de harmonia com os interesses gerais da Nação, e tenha S. Exa. a certeza de que se dará ao assunto a solução que for mais útil para o país.
O orador não reviu.
O Sr. Domingos Leite Pereira: - Sr. Presidente: pedi a palavra para mandar para a mesa um projecto de lei que tem por fim evitar que sejam retirados para Lisboa os arquivos e bibliotecas pertencentes á Sé, ao Seminário, à Mitra e ao cabido da cidade de Braga. Êsses arquivos tem todos uma importância de carácter regional, mas, sobretudo, o do Cabido, porque interessam à história da região, e parece-me que não é nem de justiça, nem de utilidade, que sejam transportados para Lisboa para dormirem o sono eterno na Torre do Tombo.
Sabe V. Exa. que em Braga se ergueram já enérgicos e gerais protestos contra a ameaça de lhe arrebatarem aqueles arquivos, e eu não hesito em duvidar que êsses protestos chegam a ser violentos se tal ameaça não for definitivamente arredada como cumpre, dando-se à cidade a certeza de que nela permanecerá aquilo que a ela tem pertencido desde sempre.
Acho absolutamente justos os protestos dos cidadãos bracarenses, ainda mesmo porque êles visam a contribuir para que, na República, se não sigam os mesmos processos de mania centralizadora que se adoptavam no tempo da monarquia.
Argumentar-se que nas províncias do país, em geral, não há ninguêm que tenha competência e boa vontade de utilizar os documentos que dizem respeito á história das regiões, é uma acusação injusta. De Braga afirmo eu que há nessa terra eruditos e estudiosos como os há em Lisboa, e os quais, de resto, são bem conhecidos no país como investigadores de merecimento. Que êles são elementos a aproveitar, direi mesmo indispensáveis, para se dar a devida publicidade aos documentos dos arquivos em questão, que a merecem, ninguêm poderá contestar. Basta lembrar que, tratando-se de cousas da sua terra, êles as tratam com o carinho especial que estranhos lhes não dedicam. Ocorre-me, Sr. Presidente, o que aconteceu com o arquivo da colegiada de Guimarães, e que é
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para frisar. Fez-se um dia o transporte duma parte importantíssima dele para o arquivo da Turre do Tombo, onde faz esquecido, emquanto que a parte que dele ficou naquela cidade, e que diz respeito a foros e outros interesses materiais, de acentuado cunho regional, teve, até certo ponto, publicidade, a qual lhe foi dada pelo erudito e habilíssimo paleógrafo, o saudoso abade de Tagilde, no Boletim da benemérita Sociedade Martins Sarmento. Os que diziam respeito á Câmara Municipal tambêm ficaram em Guimarães e a Camara publicou-os à sua custa. Os que vieram para Lisboa, repito, ainda não foram dados a lume. Que enorme vantagem houve em que êles viessem!
Sr. Presidente: para que se não falte ao inadiável cumprimento dum dever de justiça e para determinar o necessário apaziguamento dos ânimos justificadamente exaltados, na cidade de Braga, que se opuzeram e continuarão a opor-se a que os arquivos e bibliotecas pertencentes á Mitra, ao Cabido, à Sé e ao Seminário daquela cidade fôssem transportados para Lisboa, quando ali apareceu o Sr. Júlio Dantas no cumprimento duma obrigação, puramente e estritamente legal, entendo que devo matar a questão apresentando um projecto de lei que revoga a legislação em vigor, e para o qual peço a urgência e dispensa do Regimento. Desta maneira não serão retirados de Braga os documentos que digam respeito â história daquela cidade, ficando para êles absolutamente garantida não só a indispensável segurança que na actual Biblioteca Pública de Braga, sujeita à Inspecção Geral das Bibliotecas, pode e há-de ser perfeita, mas ainda a necessária publicidade que àqueles documentos deve dar-se, e sem a qual êles serão pouco menos que inúteis. Devo, Sr. Presidente, para concluir, declarar que não nos move, neste caso, nenhum espírito de estreito bairrismo, prejudicador do interesse geral da Nação. Sou de opinião de que todas as cousas que digam respeito á história e às tradições duma terra, seja ela qual for, nela devem ser religiosamente conservadas como relíquias sagradas, educando-se o povo no respeito e no culto por elas, para que as ame como a testemunha dos tempos em que os seus antepassados viveram e lutaram. Desperte se e desenvolva-se o amor dos povos às suas terras, e assim se contribuirá tambêm para o renascimento geral da nacionalidade.
Mando para a mesa o projecto, e para êle requeiro a urgência e dispensa do Regimento:
Projecto de lei
Artigo 1.° As bibliotecas da mitra e do seminário e os arquivos da Sé, da mitra e do cabido, da cidade de Braga, são cedidos à respectiva câmara municipal, com a obrigação de os fazer encorporar desde já na biblioteca pública daquela cidade.
Art. 2.° A referida câmara municipal fica obrigada a publicar, no prazo máximo de três anos, os documentos dos arquivos mencionados no artigo precedente, anteriores ao século XVI, excepto os que existirem arquivados na Torre do Tombo.
Art. 3.° Esta publicação será dirigida por um paleógrafo do Arquivo Nacional, a quem a câmara de Braga abonará as despesas de viagem.
Art. 4.° As outras câmaras municipais do distrito de Braga farão face, equitativamente, a metade das despesas a realizar com a publicação a que se refere o artigo 2.°
Art. 5.° Fica revogada a legislação em contrário.
Sala das sessões, em 17 de Janeiro de 1913. = Os Deputados, Domingos Leite Pereira = Joaquim José de Oliveira.
O Sr. Presidente do Ministério e Ministro das Finanças (Afonso Costa): - Declara que nenhuma resolução será tomada que impeça o livre voto acêrca da questão para que S. Exa. solicitou a atenção do Govêrno, mas não lhe parece necessária a urgência, e dispensa, do Regimento para a Câmara resolver sôbre um assunto que, a seu. ver, carece de estudo.
O melhor seria pois esperar que a respectiva comissão dê o seu parecer.
Dará as suas ordens para que se mantenha o statu quo até resolução do Parlamento.
O discurso será publicado na íntegra quando o orador devolver as notas taquigráficas.
O Sr. Domingos Pereira Leite: - Em vista das declarações do Sr. Presidente do Ministério desisto do meu pedido de dispensa do Regimento, mas não da urgência.
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O Sr. Jorge Nunes: - As considerações que tencionava fazer dizem respeito ao Sr. Ministro do Interior; todavia, como se acha presente o Sr. Presidente do Ministério, não quere perder a ocasião de as fazer.
Pelo relato dos jornais, que são contraditórios, não pode apreciar de que lado está a razão nos acontecimentos de Cezimbra, mas não resta dúvida de que naquela vila se deram factos graves dos quais resultaram ferimentos que tem pôsto em perigo de vida alguns cidadãos daquela localidade e ainda que o administrador da mesma vila tem procedido de maneira a afectar as regalias individuais.
for consequência, como representante do circulo de Setúbal, cumpre-lhe o dever de punir pelo respeito de todos os cidadãos e pela garantia da paz e da ordem, indispensáveis para todos.
Espera que o Sr. Presidente do Ministério faca sentir ao Sr. Ministro do Interior a necessidade de mandar proceder a um inquérito, tam rigoroso quanto possível, de forma a restabelecer-se a paz em Cezimbra e a fazer-se justiça a todos.
O discurso será publicado na íntegra quando o orador restituir as notas taquigráficas.
O Sr. Presidente do Ministério e Ministro das Finanças (Afonso Costa): - Não lhe parece que os acontecimentos de Cezimbra tenham uma grande importância.
Relativamente ao desejo manifestado pelo Sr. Jorge Nunes, para que seja feito um inquérito a êsses acontecimentos, pode já dizer que S. Exa. nomeou o Sr. Adelino Furtado, advogado e republicano antigo e pessoa de toda a competência e respeitabilidade, para saber miúdamente quais são as causas próximas e remotas dêsse estado um pouco desordeiro que lavra em Cezimbra.
Logo que o Govêrno receba êsse relatório, dará dele conhecimento à Câmara, podendo desde já afirmar que o Govêrno faz uma glória e uma honra em manter a ordem pública.
O discurso será publicado na íntegra quando o orador restituir as notas taquigráficas.
O Sr. Alexandre de Barros: - Pregunta ao Sr. Ministro da Justiça se S. Exa. tem conhecimento de que a nomeação do oficial do registo civil do concelho de Gondomar foi feita legalmente.
Não pretende que S. Exa. o informe já, porque pode acontecer não estar S. Exa. habilitado para isso, mas na primeira oportunidade.
O discurso será publicado na íntegra quando o orador restituir ás notas taquigráficas.
O Sr. Ministro da Justiça (Álvaro de Castro): - Desde já posso declarar ao Sr. Deputado Alexandre de Barros que julgo que a nomeação está legalmente feita. Não posso, comtudo, responder concretamente â pregunta de S. Exa. porquanto o despacho referente a essa nomeação é anterior à minha entrada no Ministério, e, portanto, não fui eu que a fiz.
Depois de me informar, trarei a resposta a S. Exa.
O orador não reviu.
O Sr. Presidente: - Como não há mais nenhum Sr. Deputado inscrito, vai passar-se à primeira parte da ordem do dia. Os Srs. Deputados que tenham papéis a mandar para a mesa podem fazê-lo.
Documentos mandados para a mesa
Requerimentos
Requeiro que, pelo Ministério do Fomento, me sejam enviados os dois últimos relatórios do fiscal do Govêrno junto da Cooperativa União Vinícola, acêrca da gerência desta sociedade. = Tiago Sales.
Mandou-se expedir.
Requeiro que, pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros, me sejam enviadas cópias autênticas:
1.° Do ofício, pelo Ministério dos Estrangeiros, dirigido ao Ministro em Paris e relativo ao ex-ministro naquela capital, general reformado Tomás de Sousa Rosa, no que diz respeito ao convite que lhe foi feito para prestar a sua declaração de adesão à República.
2.° Dos ofícios trocados sôbre êste assunto entre os Ministérios da Guerra e dos Estrangeiros;
3.° Do ofício dirigido pelo nosso Ministro em Paris ao nosso cônsul geral naquela capital e respeitante ao mesmo caso;
4.° Do ofício dirigido por aquele cônsul
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ao mesmo Tomás de Sousa Rosa e da resposta por êste enviada ao consulado.
Não existindo todos os documentos pedidos no Ministério dos Negócios Estrangeiros, requeiro se requisitem à nossa legação em Paris e ao consulado geral por intermédio daquela legação, a fim de que tudo me seja fornecido com a maior urgência. = José de Abreu.
Mandou-se expedir.
Requeiro que, pelo Ministério do Fomento, me seja enviado o volume "Notas sôbre Portugal", Exposição do Rio de Janeiro. = Aresta Branco.
Mandou-se expedir.
Nota de interpelação
Desejo interpelar o Sr. Ministro das Colónias sôbre a execução que o Govêrno dava ao § único do artigo 87.° da Constituição, quanto às medidas decretadas para o ultramar, no interregno parlamentar, designadamente no que respeita à organização dos serviços de fazenda e à liberdade da imprensa. = Caetano Gonçalves.
Mandou-se expedir.
ORDEM DO DIA
Primeira parte
Continuação da discussão do projecto de lei n.° 74 (Código Administrativo) e pertence n.° 14.
O Sr. Presidente: - Vai ler-se, para ser votada, a segunda parte da moção enviada para a mesa pelo Sr. Deputado Moura Pinto, sôbre a qual já ontem incidiu votação, mas como não havia número, resultou ficar votada simplesmente a primeira parte.
Lê-se na mesa.
É a seguinte:
1.° Que no n.° 7.° do mesmo artigo fique bem expresso que todos os serviços que por leis especiais ou regulamentos incumbiam aos administradores de concelho passarão para os delegados do Ministério do Interior em tudo quanto se não oponha à Constituição, leis da República ou plano do Código Administrativo;
2.° Que as importantes funções respeitantes aos serviços militares, que incumbiam aos administradores de concelho, fiquem a cargo dos antigos secretários das extintas administrações ou das câmaras municipais, quando aquelas não existam; e passa à ordem do dia. = O Deputado, Moura Pinto.
O Sr. José Montez: - Eu, ontem, tencionava apresentar uma moção, alterando um pouco a do Sr. Deputado Moura Pinto.
Se V. Exa. admitisse essa moção e a submetesse à votação da Câmara ; talvez esta concordasse e se conseguisse harmonizar todas as opiniões.
O Sr. Presidente: - O pedido, feito pelo Sr. Deputado, vai de encontro às disposições regulamentares.
O que está em votação é a segunda parte da proposta.
O Sr. Joaquim Brandão: - Eu entrei, nesta sala, com várias modificações que pretendia fazer ao Código Administrativo; e já depois da votação, a mesa, com assentimento da Câmara, aceitou essas modificações, sem restrição alguma.
Entretanto, se agora a Câmara se opõe, eu sujeito-me, porque realmente o regimento não o permite.
O Sr. Pires de Campos: - V. Exa. não se recorda da segunda parte: é que essas propostas foram aceites e remetidas à comissão.
O Orador: - Mas já está votado, por proposta do Sr. Moura Pinto, que o projecto volte para a comissão.
O Sr. Presidente: - Vou pôr à votação a segunda parte da moção.
O Sr. Alexandre de Barros: - Parece-me que a Câmara não conhece o que está votando.
O Sr. Presidente: - Agora já não se volta atrás.
Lida na mesa, a segunda parte da proposta, é rejeitada.
O Sr. Moura Pinto: - Requeiro a contraprova.
Feita a contraprova, é novamente rejeitada.
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O Sr. Presidente: - Vai ler se a moção do Sr. Deputado Jacinto Nunes.
Lido, na mesa é admitido.
O Sr. Eduardo de Almeida: - Sr. Presidente: o artigo da Constituição que impõe a êste primeiro Congresso da República o dever de elaborar, colocando até acima de todas as outras, uma lei sôbre crimes de responsabilidade, não distinguindo entre responsabilidade ministerial e a de qualquer outro órgão da administração pública, obedeceu certamente à acentuada corrente de opinião que se censura de ver justificadas e absolvidas pela razão de Estado as prepotências do poder, e, com tardia prudência, receosa ante a magia infernal do nosso descalabro financeiro.
Não me admiro de que, pela forca poderosa de iguais motivos, o projecto em debate seja acolhido com demonstrações festivas de bela eloquência, manifestamente acrescidas pelo fundamentado orgulho, em que estamos, de que a consciência republicana improvávelmente se sentirá enredada nas malhas de seda e aço dum crime político.
Também me associo ao critério da Câmara, embora não lhe traga fartos entusiasmos idealistas, porque não basta afirmar um princípio - e legalizá-lo é muitas vezes a sua morte - e me penalize o subconsciente furor com que o político moderno anda sempre gritando pelas responsabilidades e exigindo os deveres dos outros, comodamente instalado na cadeira altíssima dos seus direitos.
E, evidentemente, vulgar, em política, a regra de que aos elevados e livres poderes do Estado cumpre exigir pesadas e minuciosas responsabilidades. Será insensatez entregar a gerência dos mais graves interesses nacionais a quem tenha sempre aberta a porta da indemnidade, convindo adoptar uma preventiva medida de defesa contra a apetecível tentação do arbítrio, de que anda sempre carregada a atmosfera em que vivem os Governos. A razão popular invoca ainda outro motivo, por cuja fôrça magnética nós somos involuntáriamente arrastados, qual o de que, se é bom defender os Ministros da tentação, não é pior defender a tentação de ser Ministro.
Impomos, portanto, aos Governos uma salutar restrição dos amplos poderes que usufruem, ponderada nas condições que tomam, por isso qut4 de mais largo e por vezes irremediável efeito, um acto já de si criminoso num facto de reconhecida criminalidade, a êles próprios é directamente exigível em defesa da higiene social. Quebramos nas mãos dos Governos o sceptro de oiro dum privilégio que apenas lhes servira para sacrificar o povo numa hora angustiosa de luta, ou para converter o esquecido trabalho do contribuinte em instrumento de ambições pessoais. Ficamos na certeza de que a vindita popular - são velhos termos expressivos da realidade - não poupará e levará a um banco de réus aquele que, integrando uma aspiração da alma nacional, que a sociedade honrava com a sua confiança, ou representava a independência e a honestidade do povo, se miseravelmente traiu o mandato de que fora investido.
Afinal, esta regra de direito político não é mais do que uma afirmação viva do princípio de justiça. Estendemos a sua acção purificadora a quem se poderia esconder atrás da muralha dum privilégio, que persistia disfarçadamente desde a convulsão doutrinária e política que para sempre os deixara mortos.
Mas não é por certo o último... Da responsabilidade dos Ministros bom é que se definam os termos de indemnização civil e penalidade criminal.
Para onde fica, porêm, a minha (assim não haverá melindre...) responsabilidade de Deputado, se eu assediar os Ministros com o empenho esfomeado dos eleitores e lhe criar aquela circunstância fatal de ameaça que ao mais forte acobarda? Para quando fica a minha responsabilidade de Deputado se, em vez de dedicara inteligência e dispor a vontade ao estudo e decisão dos problemas de interesse geral, me servir apenas do cargo para a satisfação de mesquinhas pretensões pessoais, fazendo um cerco permanente e cerrado a todas as repartições públicas, para manter em adoração a clientela eleitoral a que tornei servil? Para quando fica a responsabilidade da magistratura judicial independente, que em si concentra os maiores poderes de que o homem pode estar investido? Quando se tornou efectiva a responsabilidade do juiz que, por leviandade comprovada ou alteração de humor, aferrolhou na cadeia inocentes, e,
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ajudando a chicana, a pobres órfãos deixa, no fim dum complicado inventário, despidos da esburacada roupa que era toda a sua herança? Responsabilidade de Ministros? estamos de acôrdo em estabelecê-la. Mas não é para despresar a dos funcionários públicos que neste, que é o melhor dos mundos possíveis e imaginários de certa burocracia, tem impune a incúria e premiada a subserviência. Quando tratamos da responsabilidade dos funcionários públicos? (Apoiados). Como assentar em sólidos alicerces a responsabilidade ministerial se os Ministros vivem rodeados por todas estas deliciosas e intangíveis irresponsabilidades?
Se à responsabilidade moral ninguêm se poderá furtar, embora garantido na lei contra a sua efectivação violenta, os Ministros tem, pelo menos de há muito, a responsabilidade política de que apenas os absolve, nos regimes enfraquecidos, o instinto de conservação, o morno prolongamento da agonia. E essa não é ilusória, nem vã.
A vida política, que só a mediocridade pode atravessar contente, é hoje em toda a parte dum sobressalto neurasténico.
Questões sociais, questões financeiras, a luta dos interesses e a luta dos partidos, a agitação vivíssima da idea, a corrente impetuosa do doutrinarismo, a fôrça das massas populares, que é a lei da gravidade na política, não permite tréguas. E, se a toda esta complicada dinâmica se se vem juntar, como entre noa, a adaptação do organismo nacional, combalido por uma tam perigosa e longa enfermidade, a uma nova e salutar ordem de cousas, bem poderemos afirmar que um político é um sacrificado. Deixou em casa a família. Perdeu na rua haveres ... sua portado outro o cliente que aparece a bater. A sua mesa é outra a amizade que o lisonjeia. Para uma pequena tarefa, cujo vigor passa desconhecido, se não malsinado nos centros em que se decreta a imortalidade, tem que sujeitar-se a um trabalho insano, porque a sciência política em construção não permite o atraso duma hora, e porque as condições do meio são instáveis, agravadas pela instabilidade geral. A responsabilidade do poder é uma, a responsabilidade, infelizmente não efectiva das oposições, é outra. E dêste desequilíbrio, em grande parte determinado por uma desrazoável tendência combativa, provêm que os Ministros estão sendo cada vez mais estreitamente fiscalizados, o que é magnífico, mas estão enredados por ataques violentos e embaraçados pela tenacidade das acusações que, sem o concurso duma energia heróica, se tornou altamente difícil, em todos os povos de certa civilização, cumprir e executar estritamente um programa de Govêrno (Apoiados). O principio democrático da responsabilidade civil e criminal dos Ministros vem apenas acrescentar-se a esta melindrosa responsabilidade política, que ficará sendo sempre aquela que mais duramente há-de pesar na consciência do homem público (Apoiados).
Sr. Presidente: a dois pontos certos tinha de obedecer o projecto da nova lei - à Constituição, que determina genericamente quais os crimes de responsabilidade, e ao Código Penal, com as indispensáveis modificações do decreto de 28 de Outubro de 1910, que especifica os mesmos crimes e prevê as penas aplicáveis. E desde que a lei constitucional manda julgar os Ministros, pelos crimes de responsabilidade, nos tribunais ordinários, e torna obrigatória a intervenção do júri nos delitos de origem e carácter político, tínhamos, conseqúentemente, de adoptar as regras gerais do processo. Êste duplo cuidado tiveram, com acentuado escrúpulo mesmo, as duas comissões de legislação civil e comercial e de legislação penal ao lavrarem, sôbre dois projectos, um novo projecto de lei, que, pondo por agora de parte vários defeitos de redacção, que chega a ser deplorávelmente confusa, e às vezes a pouco metódica distribuição dos artigos, é juridicamente, na sua estrutura, o mais harmónico com as bases em que tinha de assentar.
A classificação dos crimes de responsabilidade, ponto fundamental em lei desta natureza, fora prudentemente feita na Constituição e não pode dizer-se que não abranja o tríplice aspecto em que o abuso da função ministerial se pode tornar mais nocivo - os atentados contra a existência política da Nação, sua independência e segurança, os atentados contra os poderes do Estado, livre exercício dos direitos políticos e individuais, e os atentados na administração dos dinheiros públicos. Já quanto à concessão do direito de acusar, nos encontrávamos livres. As comissões atende-
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rara, e por isso eu as felicito, a um critério fundamente democrático, tendo o cuidado de rodeá-lo das cautelas necessárias para que a honra dum homem chamado ao exercício de tam elevados cargos não ficasse u mercê da tempestade das paixões, ou do ódio perseguidor de quem quer. Nesta orientação conferiram o direito de instaurar procedimento judicial aos agentes do Ministério Público e a todo o cidadão português no gozo dos direitos civis e políticos, e o de deduzir querela ou queixa aos agentes do Ministério Público, ao cidadão que tenha sido pessoal e directamente ofendido nos seus direitos pelo acto ou omissão que se reputa criminoso e a qualquer dos membros do Congresso que tenham em juízo participado o crime, ficando assim ampla e perfeitamente assegurada a sociedade não só pelos delegados, que devem ser sensíveis às perturbações que a intranqúilizam, como pelos representantes da Nação que tem o primacial dever de fiscalizar como se administram os seus interesses, e garantida a liberdade e a propriedade individual contra as violências ministeriais.
Tam lato direito não deixaria de suscitar os reparos dum modo egoísta, que logo vem argumentar com a subversão e indisciplina social e traz sempre a ameaça de intoleráveis e acintosas perseguições. Precisa-se que o direito conferido a qualquer cidadão seja a arma com que possa destruir-se o prestigio do poder sujeitando-o a ridículas conspiratas escondidamente tramadas em mal cheirosa mercearia de burgo-pôdre por algum eleiçoeiro destronado e desejoso de reconquistar o mando e a influência.
Mas o direito de acusação apenas existe desde que o cidadão prove haver sido pessoal e directamente ofendido pelo acto ilegal e criminoso. Se proceder caluniosamente terá de indemnizar por perdas e danos o caluniado, o que é uma forma utilitária de reparação directa, devendo ser na sentença condenado a multa não inferior a dois nem superior a três anos calculada à razão de 2$000 réis por dia. Assim ponderadamente se estabeleceu no projecto.
É que nem o Ministério Público, sem uma insistência pessoal deprimente da elevada função que exerce, nem um membro do Congresso obrigado a atender as questões políticas do dia e não às vicissitudes individuais, são aqui competentes, nem moral nem juridicamente, para procurarem reparar o agravo causado por uma lesão concreta mas individual; desde que seja um caso isolado e não represente pelo menos a tentativa demonstrada da generalização da ofensa a certas garantias e direitos individuais.
Ninguém dirá que fora mais honesto fazer mercadejar à porta dum agente do Ministério Público ou dum representante da Nação o pobre e desconhecido eleitor a quem rancorosamente o Ministro perseguira, se, à moda de tempos não tam distantes que o facto esqueça, nele se quisera vingar do voto apetecido que lhe negara.
Queremos uma responsabilidade ministerial efectiva?
Então devemos partir do princípio que o direito de acusar pertence na verdade a quem se reconhece ofendido e lesado pelo crime, sem a necessidade de mediação doutros poderes tam intimamente ligados que, em certas condições, não se reputaria injustiça supor que a impunidade dos Ministros continuava garantida pela solidariedade, pela afeição política ou pelo terror, embora e conseqúentemente, assim como a condenação do culpado implica a perda do cargo e a incapacidade para exercer funções públicas, aos caluniadores tambêm se deve retirar, juntamente à imposição doutras penalidades, e por certo prazo, o uso dos direitos políticos.
A questão da competência para o julgamento é sobremodo interessante, até porque desperta uma controvérsia jurídica relativamente à forma de interpretar um artigo constitucional.
Três sistemas teoricamente são defensíveis o do julgamento dos crimes de responsabilidade ministerial pelas câmaras legislativas; pelo mais alto tribunal, ou por uma organização superior de tribunal e finalmente pelos tribunais comuns.
Convêm fazer, de princípio, uma distinção essencialíssima.
O julgamento da responsabilidade política é da exclusiva competência das câmaras. Designadamente no sistema parlamentar, em que os ministérios se organizam nas assembléas legislativas, porque a sua estabilidade tem como condição essencial a confiança dos representantes do povo e é juntamente com êles, numa colaboração íntima, e eficaz na razão directa dessa mesma intimidade, que exercem a
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sua acção própria, evidentemente ali é tambêm onde devem prestar contas dos seus actos. E a luta corpo a corpo dos partidos, mas é tambêm a luta germinadora das ideas em que a paixão muitas vezes desenvolve a seiva fertilizante.
Deslocar o julgamento político para outro tribunal de qualquer espécie seria o maior atentado contra o Parlamento, não porque êle seja uma aristrocacia, mas porque concentra em si as correntes de opinião e foi investido pelo povo, a que está sempre aberto, dêsse pesadíssimo e elevado encargo.
Mas confiar às Câmaras, não atentando menos contra a magistratura, a quem se passava um diploma solene de incompetência, e ferindo profundamente as garantias populares, de cuja energia se escapavam os culpados dos crimes a que é mais sensível, o julgamento de feitos crimes e de acções de natureza exclusivamente civil, equivaleria a subverter todos os termos do direito, não só - como da construção da frase se viu - porque se retirava ao Poder Judicial uma das suas atribuições furtava à acção popular um direito, mas ainda porque se inquinaria - é sôbre isto que chamo a atenção da Câmara - fatalmente de perigosa paixão, e tanto mais impenitente, dura e terrível, quanto é certo que ela era uma virtude radicada no próprio organismo, aquela imparcialidade a que todo o homem, e sobretudo o que está vergado ao peso duma acusação tremenda, tem o direito de exigir aos seus julgadores.
E eu creio mesmo que a certeza da inflexibilidade das impulsações políticas, nos levaria a êste lógico resultado; é que humanamente, raros casos exceptuados, as câmaras se deixariam adormecer numa premeditada indiferença sôbre a exigência de responsabilidades.
Para os crimes políticos: o tribunal político, que são as Câmaras Legislativas; para a lesão de direitos civis: o tribunal civil; mas, Sr. Presidente, em todos os casos e sempre, para quem quer que seja, até para o mais alto magistrado da Nação e por isso mesmo que o é para os crimes que tecnológicamente se dizem comuns de assassinato e furto: o banco dos réus.
Eu estou ouvindo ainda a feroz eloquência do individualismo declamar: - Pois que! Quando e onde se viu um rei, um imperador ou um presidente sentar-se no mocho a que o rufia anda colado?!
Ai de nós! que funda e ancestral superstição está doirando de enigmáticas desculpas a mão fidalga que, como qualquer mão calosa de obscuro artista, cravou no peito dum homem a faca ou punhal homicida e requere que seja condemnado com a majestade dum supremo tribunal o julgamento do furto cometido por uma altíssima personagem, emquanto todos os dias, num infecto pardieiro, apenas estrelado de nódoas, são julgados e mandados para a cadeia pobres rapazes que roubaram para matar a fome! (Muitos apoiados).
Mas, Sr. Presidente, sob o ponto de vista jurídico a questão está liquidada, como disse, pelos artigos constitucionais. E certo que se déssemos uma lata interpretação ao artigo que torna obrigatória a intervenção do júri, nós poderíamos reservar-nos o direito de tornar especial êsse júri.
Eu devo declarar a V. Exa. e à Câmara que não é com o receio ou terror metafísico de certas excepções que combate essa orientação, mas é pela dificuldade que dificilmente venceríamos da organização dum júri especial para êstes, casos, demais a técnica fica garantida pela intervenção dos peritos, e muitas vezes se confundem as duas funções.
Sr. Presidente, prefiro pois um júri regular, mas inteligente, tanto mais que a nova organização judiciária melhorará a constituição do júri.
Se existem incompatibilidades em certos jurados para êstes julgamentos, elas são tão manifestas que os próprios magistrados não deixarão de as reconhecer.
Era isto que tinha a dizer sôbre o projecto, pedindo desculpa à Câmara do tempo que lhe tomei.
Tenho dito.
O Sr. Ministro da Justiça (Álvaro de Castro): - Vai responder ao Sr. Jacinto Nunes.
Na Assemblea Nacional Constituinte discutiu-se largamente se os Ministros e o Presidente da República deveriam ser julgados pelos seus crimes nos tribunais ordinários ou noutros.
Rejeitaram-se as emendas tendentes a estabelecer o julgamento dêsses crimes em tribunais especiais, bem como uma pro-
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posta em que se determinava que os Ministros seriam pronunciados pelo Supremo Tribunal de Justiça, constituído em tribunal ordinário.
Ficou, portanto, consignado na Constituição que os julgamentos dos crimes praticados pelo Presidente da República e Ministros seriam feitos nos tribunais ordinários.
Mal se compreenderia que crimes que estão sob a alçada do Código Penal, praticados pelos Ministros, não fossem julgados pelos tribunais comuns, ficando estabelecido numa lei de responsabilidade ministerial que êsses crimes seriam julgados em tribunal especial.
Seria contrário aos princípios consignados na Constituição, e à sua letra, a entrega da acusação e julgamento dos Ministros á Câmara dos Deputados ou Senado, Era impróprio do prestígio da República consignar numa lei tal disposição, que implicava a suspeita de que se desejava impedir que os cidadãos formulassem as suas queixas contra os membros dos altos poderes do Estado.
Êste discurso será publicado na íntegra quando o orador haja devolvido as notas taquigráficas.
O Sr. Matos Cid (relator): - Vai responder, como membro das comissões reunidas de legislação civil e comercial e criminal, aos reparos feitos ao projecto de lei em discussão.
Apesar de não se tratar dum projecto de fomento, para desenvolver a vida nacional ou riqueza pública, êle encerra um conjunto de disposições que honrarão o Parlamento que o discutir e votar. É um projecto de alta significação moral e política, e a demonstração completa de que a República, com pouco mais de dois anos, ataca de frente um problema que a monarquia em oitenta anos de constitucionalismo não quis resolver, apesar do princípio da responsabilidade dos Ministros estar consignado na Carta Constitucional. O que o antigo regime não fez em oitenta anos, vai fazer o primeiro Parlamento da República, apesar de na monarquia terem sido apresentados vários projectos de lei neste sentido, como os dos Srs. José de Alpoim e Francisco José de Medeiros, que são documentos que atestam a alta envergadura moral e intelectual dos seus autores.
O Ministro que delapida ou o que, no uso do seu lugar, comete qualquer crime político ou crime abrangido pelo Código Penal, tem de responder como qualquer outro cidadão que transgrediu as leis. O contrário seria uma excepção odiosa, inconveniente e perigosa. Seria rasgar a Constituição, perante a qual todos são iguais.
O projecto contêm disposições que estão consagradas hoje no direito moderno.
Trazer para as Câmaras Legislativas a responsabilidade de julgar o Presidente da República e os Ministros equivalia a praticar uma injustiça, lançando o descrédito sôbre o regime republicano.
Não admira que nas constituições da Prússia, Holanda, Dinamarca, etc., se consigne que o julgamento dos Ministros é feito pelas Câmaras Legislativas, porque essas constituições são antigas,
Hoje a evolução do direito não permitiria que num regime democrático o Presidente da República e os Ministros fossem julgados pelo Parlamento.
Entregar ao Congresso Nacional o julgamento ou a acusação do Presidente da República ou dos Ministros, seria contribuir para rebaixar o Parlamento.
Admira-se de que o Sr. Jacinto Nunes, que tem defendido os direitos individuais, se apresente a defender uma excepção odiosa para os Ministros e Presidente da República e que, de mais a mais, é contrária à Constituição.
Os tribunais comuns são os únicos competentes, em face da Constituição, para julgar os crimes dos Ministros e do Presidente da República.
Se o júri tem defeitos, reforme-se, e êsse assunto será devidamente ponderado na reorganização judiciária, que estabelecerá um júri que de todas as garantias de competência.
Êste discurso será publicado na íntegra quando o orador restituir as notas taquigráficas.
O Sr. Caetano Gonçalves: - Sr. Presidente: uso da palavra quando o assunto está quási exgotado pelos excelentes discursos aqui proferidos por distintos jurisconsultos e notabilíssimos parlamentares.
Pouco tempo tomarei à Câmara, tanto mais que não há vantagem em prolongar
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excessivamente a discussão da generalidade do projecto ; porque a necessidade da efectivação das responsabilidades do Poder Executivo está, creio eu, no espírito de toda a Câmara e de todo o país; e o sistema ou a economia do projecto em discussão, que pode não ser o melhor em face dos princípios, parece ser todavia o mais acomodado ao pensamento da Constituição da República. E eu sou insuspeito nesta afirmação, porque colaborei no parecer que preferiu o projecto do Sr. António Macieira ao que tive a honra de apresentar sôbre o mesmo assunto.
Ora, eu preciso explicar à Câmara o que da minha parte se pode afigurar uma incoerência. Votei na comissão o projecto que se discute, porque eu só ambicionava que se discutisse e votasse algum: e garanto à Câmara que, se tivesse antecipadamente sabido da proposta do Sr. António Macieira, ter me hia poupado ao trabalho a que me obrigou a proposta que apresentei.
Continuo, entretanto, a ter a opinião que aqui manifestou o Sr. Jacinto Nunes. Para mim, um tribunal superior da hierarquia judiciária é do mesmo modo um tribunal comum: não é um tribunal de excepção, como era dantes, na monarquia, a Câmara dos Pares, julgando das culpas dos membros do poder legislativo, e como são ainda hoje os conselhos de guerra que punem as infracções da disciplina militar.
O Sr. Cunha Macedo: - V. Exa. dá-me licença? Os conselhos de guerra julgam os crimes militares e os essencialmente militares.
O Orador: - Mas êsses crimes são do mesmo modo infracções da disciplina militar. Não são crimes comuns, embora alguns se confundam com os previstos no Código Penal ordinário; e porque principalmente ofendem o espírito militar, tem no Código respectivo, que é hoje o de 16 de Março de 1911, designações próprias e especiais; tais são: o extravio de objectos militares, a deserção, a cobardia, a traição, e os crimes contra o dever militar. Não me refiro á disciplina estreita dos quartéis, à disciplina que é sinónimo de subordinação á autoridade e às leis militares, mas à disciplina do corpo militar, como há a disciplina do corpo social. Eu aceitaria mesmo, neste caso, a distinção feita nas leis da República para os delinquentes militares, isto é, responderem os membros do Poder Executivo nos tribunais ordinários de primeira instância pelos crimes comuns e em tribunal superior por crimes políticos, que são inegavelmente delitos de natureza especial; porque assim como os conselhos de guerra julgam, conforme expus, as infracções da disciplina militar, os delitos políticos não são outra cousa senão meras infracções da disciplina política, que é alguma cousa mais que a disciplina dos partidos. E êsse tribunal superior, a que me referi, só podia ser o Supremo Tribunal com jurisdição em todo o país, porque a área das Relações, assim como a das comarcas, é restrita e os actos do Poder Executivo afectam, de ordinário, os interesses gerais da Nação.
De resto, a comissão quis fugir à jurisdição especial, ao tribunal especial, mas estabeleceu para a acusação sem marcar o lugar ou o foro para o julgamento um processo especial, quando a coerência mandava, aliás, observar a lei geral a todos os respeitos.
O Sr. Matos Cid (relator): - Mas é a Constituição que o diz.
O Orador: - A Constituição manda, no artigo 72.°, definir os crimes.
O Sr. Matos Cid: - E nos artigos 64.º e 65.° estabelece regras ou disposições de processo.
O Orador: - Só quanto aos termos posteriores a pronúncia, sem restringir o direito da acusação, nem estatuir o mais que se encontra no projecto quanto à forma dos julgamentos e à publicidade das sentenças.
E tambêm certo que, pelo artigo 59.° da Constituição, é obrigatória em matéria criminal a intervenção do júri quando, sendo o crime punível com pena maior, simultaneamente êle for de carácter político, segundo a interpretação que já vi dar a êsse artigo. É fácil de imaginar o que poderão ser os julgamentos com um júri de iletrados; e o parecer da comissão tanto reconhece a gravidade dêste ponto, que
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expressamente se refere à necessidade urgente de reformar o júri.
O meu receio é que a lei que se votar fique inexequível, pelo menos emquanto doutro modo se não fizer o recrutamento do júri.
Em tese, pois, eu concordaria com o Sr. Jacinto Nunes e rejeitaria o parecer em discussão, mas assinei-o sem declarações, porque era forçoso respeitar a Constituição, e o meu único interesse era e é que sem demora se vote uma lei que defina e torne efectiva a responsabilidade do Poder Executivo.
Tenho dito.
O Sr. Ministro da Justiça (Álvaro de Castro): - Diz que, se ainda existem os conselhos de guerra, que são um tribunal especial, é devido a circunstâncias de que só quem vive nos quartéis está em condições de avaliar as necessidades na aplicação dos preceitos para manter a disciplina militar. Portanto, os tribunais militares representam uma necessidade, não se podendo invocar a sua existência, como justificação, para se criar qualquer outro tribunal especial.
Êste discurso será publicado na íntegra quando o orador devolver as notas taquigráficas.
O Sr. Jacinto Nunes: - Todos se tem pronunciado pela constitucionalidade do projecto de lei sôbre responsabilidade ministerial.
Invoca-se a Constituição para defender a doutrina de que os tribunais comuns devem julgar os Ministros e o Chefe de Estado com a intervenção do júri. Mas o Supremo Tribunal de Justiça não será um tribunal ordinário? Se o Supremo Tribunal faz parte da jurisdição ordinária, é um tribunal comum; o julgamento dos crimes políticos pode ser entregue ao Supremo Tribunal. Estamos, pois, dentro da Constituição, estabelecendo que o julgamento do Presidente da República e dos Ministros seja feito no Supremo Tribunal.
Quando um Ministro autoriza um pagamento que não esteja ordenado no Orçamento, comete um crime político ou um abuso do poder?
Evidentemente comete um abuso do poder.
Uma voz: - Na opinião de V. Exa.
O Orador: - Os crimes de responsabilidade, não conseguem convencê-lo, nem todos são de carácter político.
Todos estão de acôrdo em que o Supremo Tribunal é um tribunal ordinário e, por consequência, a questão versa apenas em saber-se o que se entende por crimes de responsabilidade ministerial, e se todos tem ou não o carácter político.
Em seu entender, como vem sustentando, nem todos tem êsse carácter, e, por consequência, não devem, indiferentemente, ser sujeitos ao julgamento do júri.
Ao júri, constituído como está, falta-lhe a competência para apreciar com exactidão os actos do Poder Executivo, porque é preciso conhecer a fundo a Constituição e toda a legislação, pois há diferentes Ministérios, e por todos êles se podem cometer abusos do poder. Se lhe provarem o contrário, submete-se.
Se alguém, lá fora, considerasse o júri com competência para apreciar dos abusos ou excesso do poder, com certeza que em alguma nação da Europa isso estaria estabelecido, mas talvez não suceda, nem no país modelo de democracia, a Suíssa.
O Sr. Ministro da Justiça invocou o que se passou na Constituinte, a intenção com que foi feita a Constituição, e notou até contradição entre o procedimento dele, orador, nessa ocasião, com o que tem agora. A isso deve responder que esta Câmara não tem competência para interpretar a Constituição, e que não fica mal a ninguêm mudar de opinião.
Não se trata, neste momento, de saber como é que êle, orador, votou a Constituição, mas se está ou não dentro da razão.
O que sustenta é que, se presistirem em manter o que está no projecto, a lei de responsabilidade ministerial nunca se cumprirá. A sua opinião fica exarada, a sua previsão lavrada; o futuro dirá quem tem razão.
O discurso será publicado na íntegra quando o orador restituir as notas taquigráficas.
O Sr. Mesquita de Carvalho: - Sr. Presidente: coube-me a mim a honra, na qualidade de presidente das comissões que intervieram no estudo dêste parecer e dêste
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projecto, iniciar na Câmara a discussão dêles; e não voltaria decerto a fazer pela segunda vez uso da palavra, se não fôsse a muita consideração que me merecem os reparos apresentados aqui por alguns ilustres Deputados e, designadamente, pelo Sr. Dr. Jacinto Nunes, consideração que foi muito alem de mim, estendendo-se a toda a Câmara, que teve a amável generosidade de admitir à discussão uma moção por S. Exa. apresentada e que só por especial consideração a Câmara podia admitir, visto ser fundamentalmente anti-constitucional.
Mas, se a Câmara teve para com S. Exa. essa merecida consideração, eu não serei menos atento, em respeito aos seus anos, ao seu carácter e ao seu passado de republicano, respondendo muito resumidamente às largas considerações por S. Exa. feitas, parece-me que na sessão de ontem e repetido hoje, trabalho que está já muito simplificado, visto que a grande parte delas, com a sua proficiência e muita competência, respondeu o ilustre relator; no entanto, eu não devia ficar calado, tanto mais que, quando da primeira vez falei, procurei justificar perante a Câmara as considerações meditadas, profundamente meditadas, que determinaram as comissões a apresentar o projecto tal como êle é.
O Sr. Jacinto Nunes, permita-me a franqueza de lho dizer abertamente, nos seus longos e sempre interessantes e vigorosos discursos, afastou-se completamente da questão.
S. Exa. começando por fazer à Câmara, uma proveitosa prelecção acêrca do que por êsse mundo fora existe em leis de responsabilidade ministerial, do que eu muito intencionalmente me tinha afastado da primeira vez que falei, discutindo as vantagens, conveniência e inconvenientes das disposições constitucionais que regulam o tema, afastou-se do assunto e da matéria restrita ora em debate.
Deve reservá-las com todo o seu vigor, com toda a sua energia, com toda a sua lógica, com todos os seus copiosos argumentos, para a Câmara de que ainda há-de fazer parte, que tenha de rever a Constituição; fora disso, repito, só a muita generosidade, a muita consideração da Câmara, podiam consentir em que a sua moção fôsse admitida, porque ela é absolutamente contrária ao texto da Constituição.
A questão está hoje muito restrita; a questão é hoje um tema puramente jurídico; constitucional não o pode ser, porque esta Câmara não tem competência para por qualquer forma alterar, modificar ou sofismar as disposições que estão expressamente consignadas na Constituição.
Os reparos do Sr. Jacinto Nunes assentaram principalmente sôbre um ponto, que estranho fôsse S. Exa., incontestavelmente um estrénuo paladino das disposições constitucionais e das garantias individuais, quem o houvesse de levantar nesta Câmara: querer atribuir jurisdição e competência ao Supremo Tribunal de Justiça para julgar e conhecer dos crimes de responsabilidade ministerial.
Êste ponto, eu já o disse da primeira vez que falei, é hoje uma questão morta; êle está expresso, terminante e iniludívelmente resolvido na Constituição, que tanto aos Ministros, como ao chefe de Estado, os manda responder perante os tribunais comuns ou ordinários; e, note-se, com uma especificação que não é para despresar e que poderá, ou não, considerar-se um lapso ou imperfeição: quando trata dos Ministros, a Constituição refere-se expressamente aos crimes de responsabilidade, sujeitando-os por êsses crimes aos tribunais comuns; quando trata do Presidente da República, é ampla, porque não faz distinção ou restrição alguma e sujeita-o aos tribunais ordinários na instrução e ao júri comum no julgamento por todos os crimes que praticar.
Os membros, portanto, do poder executivo, ou seja o primeiro magistrado da Nação, ou os Ministros, estão sujeitos à jurisdição ordinária e comum.
O que é certo é que por mais engenhosa que seja a argumentação do Sr. Jacinto Nunes, não pode convencer a Câmara...
Interrupção do Sr. Jacinto Nunes.
O Orador: - Não há dúvida, pois, que no artigo constitucional já citado se determina que a intervenção do júri seja obrigatória em todos os delitos de origem ou carácter político.
Para evitar qualquer dúvida no espírito da Câmara, eu vou ler o que diz a Constituição a êste respeito:
Leu.
Portanto, é em qualquer dos casos.
O Sr. Jacinto Nunes quis convencer a
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18 Diário da Câmara dos Deputados
Câmara de que os crimes de responsabilidade ministerial não são crimes comuns, designando-os por crimes de abuso do poder.
Não sei o que queira significar essa casuística distinção. Seja qual for a designação, a menos que se não julguem actos meritórios por serem praticados pelos membros do poder executivo, são na sua grande maioria crimes previstos e punidos pelo Código Penal e, portanto, comum a todos os cidadãos.
Interrupção do Sr. Jacinto Nunes.
O Orador: - Diz S. Exa. que são actos ilegais.
Ora vamos a ver ao que S. Exa. chama actos ilegais:
Leu.
Isto não serão crimes? Então que nome podem ter?
Diz S. Exa. que são infrações constitucionais!
O Ministro que, por exemplo, manda entregar dos cofres públicos quantias cujo pagamento não esteja legalmente autorisado, pregunto: não pratica um crime na mais rigorosa acepção da palavra?
S. Exa. tem de penitenciar-se, a menos que não queira sustentar e defender a estranha doutrina de que os actos delituosos do poder executivo, por terem originariamente uma remota causa política, hajam de ficar impunes e tenham de ser levados em conta dum dever profissional do cargo.
Mas eu dou de barato que êsses crimes sejam caracterizadamente políticos. Políticos ou... impolíticos, o artigo 59.° da Constituição, que contêm um preceito expresso, faz com que não deixem por isso de ser criminosos e de ficar sujeitos à jurisdição crime; ora, como na maioria dos casos são punidos com pena maior, como quere S. Exa. excluir...
O Sr. Jacinto Nunes: - É preciso que sejam crimes políticos!
O Orador: - Basta ler o artigo:
Leu.
Não é preciso que simultaneamente seja de carácter político, porque então dava-se o absurdo em que S. Exa. cai os crimes de pena maior não seriam julgados pelo júri!
O Sr. Jacinto Nunes: - Eu proporei a eliminação do parecer, porque a legislação actual basta.
O Orador: - Tem ainda o artigo 72.°, que reza assim:
Leu.
Pelo princípio de S. Exa. toda e qualquer lei ordinária é uma esfinge! O que S. Exa. quere e anticonstitucional e inadmissível: se o Parlamento pudesse aceitar que amanhã fôsse promulgada uma lei nas condições em que S. Exa. quere, entregando a jurisdição ao Supremo Tribunal de Justiça - esse Tribunal seria o primeiro a julgar que tal diploma era anticonstitucional!
Afigura-se-me na verdade que no estado actual da nossa educação cívica e do nosso nível moral é realmente perigoso, é efectivamente pouco coerente entregar-se a solução crime de factos de responsabilidade profissional dos Ministros, de factos que tem, mais ou menos, origem e carácter político, ao júri extraordinário.
Mas êsse tema interessante devia ter sido debatido na Assemblea Constituinte. Êsse tema interessante tem de ser e não pode deixar de ser assunto de cuidadoso estudo na próxima revisão de Constituição, tanto mais que as condições políticas e sociais de momento se deverão ter já modificado considerávelmente.
Agora, porêm, é inteiramente descabido; temos de respeitar o que ali está, que é esmagador e não dá margem a que se possa ilaquear sem manifesta violação da Constituição (Apoiados).
Ora, pregunta-se: não há maneira alguma com que possam o bom senso, a prudência da Câmara e do Congresso, acudir um pouco a êstes inconvenientes teóricos, doutrinários, que a todos se impõem? Parece-me que sim; e, nessa parte, as comissões merecem que. pelo menos, se faça a devida justiça á circunspecção com que elaboraram o projecto.
O remédio, que a êsse mal se pode dar, está precisamente na restrição que se ponha à faculdade de acusar em juízo.
Não tema S. Exa. entregar um Ministro do Estado aos tribunais ordinários, porque, como já ontem disse em áparte, o Ministro deveria ser o primeiro a sentir-se humilhado, deprimido, se, para êle, se constituísse um tribunal de excepção.
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E nós tambêm não devemos recear o entregar à sentença do povo aqueles que não trepidem em colocar-se pelos seus actos na situação de merecer essa sentença de pública exautoração.
Aqui tem V. Exa. como, pensadamente, cautelosamente, prudentemente - e seja--me permitido aplicar ainda o advérbio sensatamente, embora tambêm eu faça parte dessas comissões - aqui tem V. Exa. como nós, com reflexão e cuidado, pensamos em estabelecer e consignar no projecto a única garantia de defesa que era de facto compatível com a letra da Constituição, com um rigoroso critério jurídico e sobretudo com o respeito que todos devemos aos princípios democráticos a que tem de atender-se em diploma de tal natureza.
O Sr. Presidente: - A hora está adiantada, e estão inscritos vários Srs. Deputados, para antes de se encerrar a sessão.
Como, porêm, nenhum se acha presente, levanto a sessão, marcando para segunda-feira a seguinte ordem do dia:
1.° Projecto n.° 7, relativo à concessão de licença para ocupação de terrenos em Cabo Verde.
2.° Projecto de lei n.° 127, sôbre responsabilidade ministerial.
3.° Projecto n.° 113, utilização de terrenos incultos.
4.° Projecto n.° 13, quadro dos empregados de fiscalização de fábricas.
5.° Projecto n.° 118, sôbre o estabelecimento dum pôrto franco em Lisboa.
Está levantada a sessão.
Eram 18 horas e 25 minutos.
Papéis mandados para a mesa durante a sessão
Orçamento
Foi presente o Orçamento Geral e proposta de lei das receitas e das despesas ordinárias e extraordinárias do Estado na metrópole, para o ano económico de 1913- 1914.
Para a comissão de finanças.
Projecto de lei
Dos Srs. Domingos Leite Pereira e Joaquim José de Oliveira:
As bibliotecas da Mitra e do Seminário e os arquivos da Sé, da Mitra e do Cabido, da cidade de Braga, são cedidos respectivamente à Câmara Municipal, com a obrigação de as fazer incorporar já na Biblioteca Pública daquela cidade.
A publicar no "Diário do Governo".
Parecer
Da comissão de petições, que, por equidade e justiça relativa, entende a mesma comissão dever ser deferida a pretensão dos alunos da Faculdade de Direito, na Universidade de Coimbra, para concluírem a sua formatura no corrente ano lectivo.
Aprovada a urgência e votada a dispensa do Regimento, foi aprovada.
O REDACTOR = João Saraiva.