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REPÚBLICA PORTUGUESA
DIÁRIO DA CÂMARA DOS DEPUTADOS
SESSÃO N.º 19
EM 18 DE JANEIRO DE 1923
Presidência do Ex. mo. Sr. Alfredo Ernesto de Sá Cardoso
Secretários os Ex. mos. Srs.
Baltasar de Almeida Teixeira
João de Ornelas da Silva
Sumário. — Respondem à chamada 37 Srs. Deputados.
É lida a acta, que adiante é aprovada com número regimental.
Dá-se conta do expediente.
Antes da ordem do dia. — O Sr. Brito Camacho expõe a sua acção como Alto Comissário de Moçambique.
São aprovados pareceres de última redacção.
O Sr. Cunha Leal, em negócio urgente, trata de uma nota publicada nos jornais do dia sôbre matéria cambial.
Responde o Sr. Ministro das Finanças (Vitorino Guimarães), voltando a usar da palavra o Sr. Cunha Leal.
Encerra-se a sessão, marcando-se a imediata para o dia seguinte.
Documentos mandados para a Mesa durante a sessão. — Um requerimento.
Abertura da sessão, às 14 horas e 24 minutos.
Presentes à chamada, 37 Srs. Deputados.
Entraram durante a sessão 61 Srs. Deputados.
São os seguintes:
Abílio Correia da Silva Marçal.
Albano Augusto de Portugal Durão.
Alberto Ferreira Vidal.
Alberto de Moura Pinto.
Alfredo Pinto de Azevedo e Sousa.
Amadeu Leite de Vasconcelos.
Américo da Silva Castro.
António Alberto Tôrres Garcia.
António Mendonça.
António Pais da Silva Marques.
António de Paiva Gomes.
António Resende.
Artur de Morais Carvalho.
Artur Rodrigues de Almeida Ribeiro.
Baltasar de Almeida Teixeira.
Carlos Cândido Pereira.
Constâncio de Oliveira.
Francisco Cruz.
Germano José de Amorim.
Hermano José de Medeiros.
Henrique Sátiro Lopes Pires Monteiro.
Jaime Daniel Leote do Rêgo.
Joaquim José de Oliveira.
Joaquim Narciso da Silva Matos.
José Marques Loureiro.
José Mendes Nunes Loureiro.
José Pedro Ferreira.
Júlio Henrique de Abreu.
Manuel de Brito Camacho.
Manuel Eduardo da Costa Fragoso.
Maximino de Matos.
Paulo Cancela de Abreu.
Pedro Augusto Pereira de Castro.
Pedro Januário do Vale Sá Pereira.
Teófilo Maciel Pais Carneiro.
Valentim Guerra.
Viriato Gomes da Fonseca.
Entraram durante a sessão:
Adolfo Augusto de Oliveira Coutinho.
Adriano António Crispiniano da Fonseca.
Aires de Ornelas e Vasconcelos.
Alberto Jordão Marques da Costa.
Alberto da Rocha Saraiva.
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Diário da Câmara dos Deputados
Alberto Xavier.
Albino Pinto da Fonseca.
Alfredo Ernesto de Sá Cardoso.
Alfredo Rodrigues Gaspar.
Álvaro Xavier de Castro.
Amaro Garcia Loureiro.
Américo Olavo Correia de Azevedo.
Aníbal Lúcio de Azevedo.
António Augusto Tavares Ferreira.
António Ginestal Machado.
António Lino Neto.
António Maria da Silva.
Armando Pereira de Castro Agatão Lança.
Artur Brandão.
Artur Virgínio de Brito Carvalho da Silva.
Augusto Pires do Vale.
Bartolomeu dos Mártires de Sousa Severino.
Bernardo Ferreira de Matos.
Carlos Eugénio de Vasconcelos.
Carlos Olavo Correia de Azevedo.
Custódio Maldonado de Freitas.
Custódio Martins de Paiva.
Delfim de Araújo Moreira Lopes.
Delfim Costa.
Domingos Leite Pereira.
Fernando Augusto Freiria.
Francisco Dinis de Carvalho.
Francisco Gonçalves Velhinho Correia.
Francisco Pinto da Cunha Leal.
Jaime Júlio de Sousa.
João Cardoso Moniz Bacelar.
João José da Conceição Camoesas.
João José Luís Damas.
João Luís Ricardo.
João de Ornelas da Silva.
João Pereira Bastos.
João Teixeira de Queiroz Vaz Guedes.
Joaquim António de Melo Castro Ribeiro.
José António de Magalhães.
José de Oliveira da Costa Gonçalves.
Lourenço Correia Gomes.
Lúcio de Campos Martins.
Luís da Costa Amorim.
Manuel Alegre.
Manuel Duarte.
Manuel Ferreira da Rocha.
Manuel de Sousa da Câmara.
Manuel de Sousa Dias Júnior.
Matias Boleto Ferreira de Mira.
Nuno Simões.
Paulo da Costa Menano.
Pedro Góis Pita.
Plínio Octávio de Sant'Ana e Silva.
Tomé José de Barros Queiroz.
Vasco Borges.
Vergílio Saque.
Vitorino Máximo de Carvalho Guimarães.
Faltaram à sessão:
Abílio Marques Mourão.
Afonso Augusto da Costa.
Afonso de Melo Pinto Veloso.
Alberto Carneiro Alves da Cruz.
Alberto Lelo Portela.
Angelo de Sá Couto da Cunha Sampaio Maia.
António Abranches Ferrão.
António Albino Marques de Azevedo.
António Correia.
António Dias.
António Joaquim Ferreira da Fonseca.
António de Sousa Maia.
António Vicente Ferreira.
Artur Alberto Camacho Lopes Cardoso.
Augusto Joaquim Alves dos Santos.
Augusto Pereira Nobre.
Eugénio Rodrigues Aresta.
Fausto Cardoso de Figueiredo.
Feliz de Morais Barreira.
Francisco Coelho do Amaral Reis.
Francisco da Cunha Rêgo Chaves.
Francisco Manuel Homem Cristo.
Jaime Duarte Silva.
Jaime Pires Cansado.
João Baptista da Silva.
João Estêvão Águas.
João Pedro de Almeida Pessanha.
João Pina de Morais Júnior.
João Salema.
João de Sousa Uva.
João Vitorino Mealha.
Joaquim Brandão.
Joaquim Dinis da Fonseca.
Joaquim Ribeiro de Carvalho.
Joaquim Serafim de Barros.
Jorge Barros Capinha.
Jorge de Vasconcelos Nunes.
José Carvalho dos Santos.
José Cortês dos Santos.
José Domingues dos Santos.
José Joaquim Gomes de Vilhena.
José Mendes Ribeiro Norton de Matos.
José Miguel Lamartine Prazeres da Costa.
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José Novais de Carvalho Soares de Medeiros.
José de Oliveira Salvador.
Júlio Gonçalves.
Juvenal Henrique de Araújo.
Leonardo José Coimbra.
Lúcio Alberto Pinheiro dos Santos.
Luís António da Silva Tavares de Carvalho.
Manuel de Sousa Coutinho.
Marcos Cirilo Lopes Leitão.
Mariano Martins.
Mariano Rocha Felgueiras.
Mário de Magalhães Infante.
Mário Moniz Pamplona Ramos.
Paulo Limpo de Lacerda.
Rodrigo José Rodrigues.
Sebastião de Herédia.
Tomás de Sousa Rosa.
Ventura Malheiro Reimão.
Vergílio da Conceição Costa.
Vitorino Henriques Godinho.
Às 14 horas e 5 minutos principia a fazer-se a chamada.
O Sr. Presidente: — Acham-se presentes 37 Srs. Deputados.
Vai ler-se a acta.
É lida a acta.
Dá-se conta do seguinte
Expediente
Ofícios
Do Ministério da Guerra, comunicando o destino dado ao ofício n.º 62, que transmitiu o pedido do Sr. António Maia.
Para a Secretaria.
Do Ministério das Colónias, respondendo ao ofício n.º 74, que transmitiu um pedido do Sr. Nuno Simões.
Para a Secretaria.
Do Ministério da Instrução, acompanhando um relatório da sindicância ao Museu Regional de Aveiro, pedido pelo Sr. Homem Cristo.
Para a Secretaria.
Telegrama
Da junta de freguesia de S. Bartolomeu de Borba, pedindo a aprovação da lei sôbre ensino religioso.
Para a Secretaria.
Antes da ordem do dia
O Sr. Brito Camacho: — Sr. Presidente: sendo esta a primeira vez que uso da palavra nesta legislatura, e tendo vindo encontrar uma situação política bem diversa daquela que deixei, permita-me V. Ex.ª, e consinta-me a Câmara, que eu defina, embora isso pouca importância tenha, a minha situação nesta casa do Parlamento e de uma certa forma na política do País.
Sr. Presidente: eu era um político militante quando retirei para a África há pròximamente dois anos, com filiação partidária, pois estava filiado no Partido Liberal.
Sabe V. Ex.ª que eu trabalhei quanto pude, e o melhor que soube, para que se organizasse um partido conservador, que deveria ser o partido a assumir a responsabilidade do Govêrno logo a seguir ao Govêrno Provisório, feita a legislação revolucionária que tinha de ser, naturalmente, a base jurídica do novo regime.
Contrariedades de toda a ordem, umas porventura da acção dos homens e outras resultantes da fôrça das circunstâncias, impediram que por muito tempo essa minha aspiração se realizasse.
Por fim, fez-se a fusão de unionistas e evolucionistas, ficando constituído um partido que deveria ser, finalmente, o partido conservador dentro da República...
Nesse partido me filiei, e filiei-me a despeito do meu propósito de abandonar a política, desde que um partido conservador estivesse organizado. Não o fiz porque, não tendo os meus amigos e camaradas da União Republicana marcado dentro dêsse partido uma posição que os ligassem a compromissos, eu receei, em nome dos interêsses da República; e por conseqüência em nome dos interêsses do País, porque êstes dois conceitos andam sempre ligados no meu espírito, eu receei, ia dizendo, que alguns dêsses camaradas me acompanhassem no meu afastamento.
Apoiados.
Hoje não há que ter êsse receio; cada um tem a sua posição marcada e a sua orientação difinida.
E, por conseqüência, o momento de realizar o meu propósito de me afastar da política militante.
Senão renunciei como, talvez, pare-
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cesse dever fazê-lo, ao meu lugar de Deputado, foi, em primeiro lugar, porque o não devo ao partido em que militava. Fui eleito pelos meus eleitores, na sua grande maioria meus amigos pessoais, e que me elegeriam qualquer que fôsse a cor política que eu apresentasse.
Apoiados.
De resto, governando quási dois anos a província de Moçambique, tendo praticado actos de administração, actos pelo menos discutíveis, mal pareceria, e eu era incapaz de o fazer, que tendo um lugar no Parlamento, onde me podiam ser pedidas responsabilidades, eu me eximisse a dá-las e a assumi-las.
Entendo que os homens públicos, emquanto o são, e emquanto não liquidam perante o País — e a melhor maneira de o fazer é perante o Parlamento — as suas responsabilidades, não têm direito de retirar-se para as comodidades do seu lar.
Assim o entendo e assim o faço.
Sr. Presidente: dada esta explicação, que à Câmara pouco interessa, e que o ao País pode ser indiferente, mas que eu julgo necessário para bem marcar a minha situação, desejo dar a respeito da província de Moçambique algumas informações, tanto mais que esta Câmara mais de uma vez tem mostrado interêsse por aquela grande e admirável colónia.
Eu sei que o interrompimento das negociações no Cabo, entre os delegados do govêrno de Moçambique, — e digo do govêrno de Moçambique porque a delegação que foi ao Cabo foi representar o govêrno da província e não o da metrópole — alarmou bastante a opinião pública, e interessando-se a opinião, talvez por momentos, por uma colónia onde a metrópole tem tantos e tam consideráveis, interêsses.
Procurarei fazê-lo o mais resumidamente possível, porque desejo circunscrever as minhas considerações adentro do tempo marcado para antes da ordem do dia, e não roubar à Câmara o precioso tempo de que carece para, na ordem do dia, tratar dos assuntos pendentes.
Sr. Presidente: dividirei a minha exposição em duas partes. Na primeira, procurarei informar a Câmara acêrca da vida actual, sob todos os aspectos da província de Moçambique. Na segunda, farei o enunciado dos actos da minha administração, que porventura possam suscitar maiores reparos ou mais severas críticas, muito embora à Câmara não dê nenhuma novidade, porquanto tudo isso consta dos boletins da província.
Nesta casa do Parlamento há muitas pessoas que conhecem melhor a província do que eu; não porque a tivessem visto com mais cuidado, não porque a tivessem estudado com mais atenção, mas simplesmente porque a viram com melhores olhos e com mais preparação para a ver. Por conseguinte, não é a essas pessoas que me dirijo.
Porém, a grande maioria da Câmara conhece aquela província tam pouco e tam mal, como eu a conhecia antes de para lá ir, e é para essa parte que eu dirijo as minhas considerações.
Vagas leituras, informações, nem sempre dignas de fé, é tudo quanto, quem não foi às colónias, pode delas saber.
Mesmo àqueles que por necessidade profissional se têm dedicado a estas questões mas que nunca foram às colónias, quantas surpresas reserva a observação directa!
Suponho não melindrar ninguém reconhecendo, como já fiz, que uma parte da Câmara não tem que aprender cousa nenhuma na exposição que faço, e a outra, daqueles que conhecem a província de leituras mais ou menos cuidadas, e de informações mais ou menos exactas, êsses poderão, porventura, colhêr algum proveito, tirar algum ligeiro ensinamento das minhas informações.
Sr. Presidente: é necessário que o interêsse que a opinião pública, de quando em quando, manifesta pelas colónias, não seja, como tem sido, um fenómeno transitório, uma fulguração de sinceridade, mas sim um acto contínuo, que entre na preocupação de todos quantos se interessam pela sorte do País. O País metropolitano e o País colonial.
Sempre que uma vaga ameaça impende sôbre as colónias, um movimento de protesto aparece na metrópole. Todavia, bastam umas palavras mais ou menos tranquilizadoras para que, imediatamente, a metrópole se desinteresse do seu domínio colonial.
Sr. Presidente: é necessário que assim não seja, e que êste interêsse que, efèmeramente, a metrópole mostra pelas
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colónias, seja uma preocupação mais constante.
Sr. Presidente: se tivermos de avaliar o valor de uma colónia, como Moçambique, pela sua população — e evidentemente é êsse um dos elementos mais importantes para se julgar do valor de uma colónia, — teremos de considerar a província de Moçambique como sendo uma colónia pobre, quási miserável.
A Câmara sabe que a população da província não excede três milhões e quinhentos mil habitantes, incluindo os indígenas, brancos, amarelos, de todas as nuances de cor que vivem em Moçambique.
Considerando esta escassa população e a área enorme de Moçambique, que é cêrca de 800:000 quilómetros quadrados, ou seja aproximadamente a área da metrópole, vemos que a densidade específica é de 4,5 por quilómetro quadrado.
Acontece ainda, Sr. Presidente, que na província de Moçambique, há um grande número de mulheres muito superior ao de homens, de modo que o número de trabalhadores escasseia.
Devo dizer que não é justa a acusação que se tem feito à província de Moçambique, dizendo que não tem feito o seu censo de população, pois eu vi o de 1920, que é feito com todo o cuidado que faz inveja à metrópole, pois está feito por forma que se sabe o número de homens, de mulheres e de crianças.
O número de casal regula entre 3 e 5, mas em geral é de 3.
Como V. Ex.ª vê, escasseia o número de trabalhadores e acresce a emigração que se fazia para S. Tomé, para a Rodésia e para o Transvaal.
A mão de obra na província de Moçambique escasseia, devido não sei se ao solo se à falta de iniciativas.
Logo que fui para a província, sustei e depois proïbi a emigração para S. Tomé, o que foi mal visto em S. Tomé e mesmo na metrópole, mas a província principalmente na parte norte não pode dar gente para fora.
Eu fui alvo de crítica de pessoas que estão sempre dispostas a criticar, e diziam que eu tinha proïbido a emigração para uma terra portuguesa, permitindo-a para a Rodésia, terra estrangeira.
Sr. Presidente: não precisava dizer a V. Ex.ª nem à Câmara que me encontrei diante de um contrato para mandar para a Rodésia trabalhadores, contrato feito em Lisboa em 31 de Março de 1909 e depois renovado na província, até 31 de Março de 1925.
De forma que eu tinha diante de mim um contrato ainda por quatro anos.
Se pudesse, eu revogaria êste contrato, pois o norte da província não pode fornecer trabalhadores seja para onde fôr.
A emigração para a Rodésia representa um importante deficit por ano.
Não tenho a êste respeito nenhuma idea marcada a priori, nenhum pensamento reservado.
Tenho apenas o conhecimento da província e dos benefícios ou malefícios da Convenção.
A propósito do que tenho ouvido que seria mais conveniente realizar, devo dizer — e em suma não quero deixar de dizer tudo quanto possa servir para concluir da minha autoridade como governador da província de Moçambique — devo dizer que logo que fui nomeado quis ouvir o Conselho de Ministros para expor os meus modestos planos de governo em Moçambique, sobretudo para me pôr em todos os pontos fundamentais de acôrdo com o Govêrno da metrópole, porque supunha que havia uma política no Ministério das Colónias, fazendo-se através desta sucessão inumerável de Ministérios, porque compreendo que no Ministério das Colónias, como no dos Negócios Estrangeiros, deva haver só uma política, a do Ministro, porque cada um traz e leva para a casa a sua política.
A política do Ministério seria a orientação mais vantajosa, por ser a mais consentânea com os interêsses permanentes do País.
Procurei, pois, saber qual seria a política do Ministério que estava ou viesse a estar.
A despeito da boa vontade, e já tive ocasião de o dizer nesta tribuna, de todos os Ministros, e êles foram não me recordo quantos, porque não tenho aqui os apontamentos, mas foram muitos no breve espaço de tempo que medeou entre a nomeação e a partida, não consegui comparecer perante o Conselho de Ministros para expor, como já disse, os meus pontos de vista em matéria de governação da
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província, e ouvir os pontos de vista do Govêrno.
Desejava trocar com o Govêrno impressões, não só a respeito da Convenção, porque até certo ponto tinha recebido do Sr. Vieira da Rocha uma exposição comparativa, para a resolução da Convenção, questão fundamental, e sôbre a reforma monetária.
Êstes eram os pontos fundamentais.
Não consegui trocar impressões com o Sr. Ministro das Colónias.
Não pude expor os meus modestíssimos estudos.
Reconhecia a necessidade de denunciar a Convenção, e dotar a província do número de trabalhadores necessários para que a província entrasse em uma nova fase de desenvolvimento.
Aqui têm V. Ex.ªs uma das razões, não a única, mas uma das mais importantes, que me levaram a fazer a denúncia da Convenção com o Tranvaal.
Com a escassa percentagem de homens válidos, não se pode, e com a extensão quási infinita, não se pode prescindir de milhares de homens, que vão trabalhar numa terra estrangeira.
Apoiados.
Acontece ainda que o indígena não é um grande trabalhador. O indígena — e nisso até se parece com o branco — (risos) não morre pelo trabalho; e não é por virtude da sua miséria orgânica.
Tenho ouvido expender ideas na metrópole sôbre o definhamento da raça negra, que não têm o menor fundamento.
Tive ocasião de visitar toda a província, e apenas numa região do norte encontrei gente fisicamente degenerada.
É talvez a raça, se raça se pode chamar, porque o estudo das raças em Moçambique não está feito, como se podia julgar — e emprego aqui a palavra raça na acepção vulgar e não com o significado rigorosamente scientífico — é, repito, com certeza a raça mais fraca, débil e degradante de toda a província.
Resulta isto não de vício ingénito, mas da alimentação, sobre o que incide o excesso.
Sem exame rigoroso, tive ocasião do obter o número total dos trabalhadores que tinham regressado, uns 130, alguns perfeitamente esqueléticos, incapazes dum qualquer trabalho.
A raça preta em Moçambique é uma raça a definhar e a da metrópole é uma raça já definhada.
Permitam-me que lhes diga que chega a fazer impressão ver a província de Moçambique com belos rapazes garbosos, com aprumo, comparando-os com os soldados daqui, que não têm êsse garbo do exterior militar.
Apoiados.
O Sr. Velhinho Correia: — Nunca tiveram.
O Orador: — Sr. Presidente: se a população indígena, como já disse, é realmente insuficiente, a população branca de forma nenhuma supre esta falta.
É necessário dizer-se, porque é absolutamente verdade: tem-se entendido que o indígena precisa trabalhar mais, e êle só trabalhará mais quando tiver necessidades. Mas que ordem de necessidades?
É a necessidade do branco e não a dêle.
Assim, nem é justo nem se consegue levar o indígena a uma maior soma de trabalho. É necessário que o preto trabalhe mais, mas também será razoável que o preto aproveite alguma cousa da sua produção, não sendo esta ùnicamente em benefício do branco.
Apoiados.
Pretender criar necessidades ao preto ùnicamente por meio de aumento de impostos, é uma cousa iníqua, além de ser idiota.
É preciso que êle tenha necessidades suas, necessidades de cuja satisfação tire algum prazer, porque o preto não entende, e nisso é mais inteligente do que o branco, que tenha de trabalhar mais simplesmente para comodidade do branco, e para que êste possa acumular fortuna.
É preciso nunca ter estado numa colónia, por muito pouco observador e mau psicólogo que se seja, para não ver como o indígena, vaidoso e imitador, poderia ser levado a adquirir necessidades de vária ordem, que o obrigassem a dar uma maior soma de trabalho.
Se o indígena não tem hoje necessidades de alimentação e se contenta com o que a natureza lhe dá, raízes ou ervas; se não tem necessidades de vestuários, contentando-se só com os panos, mas até com a casca de árvores, formando uma espécie de serapilheira que muito bem
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serve para o pudor africano, é porque o branco, não querendo dar-lhe maiores salários, não faz com que êle crie essas necessidades, que de resto constituïriam motivo para que o preto renunciasse aos seus hábitos de preguiça. Emquanto isto se fizer, o preto continuará a trabalhar o menos possível para viver o melhor que pode.
Sr. Presidente: não há dúvida que a população indígena é realmente capaz de trabalhar, pois temos a demonstração disso no facto de irem em número de milhares para as minas do Rand.
Tantas vezes eu preguntei na província como se explicaria que o indígena, que em Moçambique não queria trabalhar senão a curtos períodos, fôsse para o Rand empregar a sua actividade durante um, dois e mais anos, ficando alguns por lá constantemente a trabalhar.
Resulta da minha observação que o indígena trabalha onde aufere salários remuneradores e tenha uma suficiente alimentação, e não trabalha onde lhe recusem bom salário e lhe faltem à alimentação.
Dizia eu, Sr. Presidente, que a insuficiência de população indígena, que resulta da enunciação dos números, não é compensada por uma população branca bastante para se fazer sentir no desenvolvimento económico da província.
Nos 3. 600:000 habitantes da província não teremos mais de 15:000 a 20:000 brancos.
Dêstes são funcionários um grande número, e o resto é gente de vários pontos: são ingleses, alemães, italianos, são, sobretudo, asiáticos.
Há pois uma escassa população branca, e composta em grande parte de funcionários.
Eu tive ocasião de mandar dizer para o Ministério das Colónias, durante a minha viagem pela província, que considerava o pequeno agricultor absolutamente incapaz de influir de qualquer forma na vida económica da província, que só podia ser explorada pelas fortes sociedades, pelas grandes companhias, mas que ao mesmo tempo eu considerava que a província não seria bem uma terra portuguesa, não teria bem o carácter nacional, se não tivesse o pequeno agricultor.
Apoiados.
Sr. Presidente: eu recordo-me de ter visto o recorte de uma notícia de jornal, que me mandaram para Lourenço Marques, em que explodia a indignação do jornalista contra o Alto Comissário, porque estando a malbaratar a mão de obra em benefício de grandes emprêsas, se inabilitava para depois fornecer mão de obra a um agricultor devotado e bom patriota, que quisesse cultivar um ou dois hectares de terreno.
É necessário ignorar por completo, da forma mais absurda e lamentável, o que seja uma exploração agrícola na província de Moçambique, para julgar-se que há um agricultor que cultive um ou dois hectares de terreno.
Sr. Presidente: várias tentativas se têm feito para fixar colonos na província de Moçambique, se bem que algumas delas não tenham passado de boas aspirações consignadas no papel.
Era minha intenção, conseguindo dinheiro, destinar 1:500 ou 2:000 contos para fazer a colonização da província, e quando digo fazer a colonização da província, significo que queria fixar nela algumas centenas de famílias. A essas famílias dever-se-ia dar tudo e não pedir nada.
Há muitos pontos da província que se prestam admiràvelmente para a fixação do colono branco.
Há imposições feitas às grandes companhias, e que constam dos seus estatutos, para a fixação de centenas de famílias em cada ano.
O Sr. Portugal Durão rectificará, se eu estou em êrro.
Foi de certo uma cousa urdida no Terreiro do Paço por quem nunca visitou as colónias.
Não há, pode dizer-se, dentro de nenhuma companhia um único colono fixado; entretanto, essa disposição subsiste, e poderia servir para amanhã um Govêrno, menos simpático às companhias, propor, ou, pelo menos, pensar em fazer a revisão dos seus contratos por falta do cumprimento de semelhante cláusula.
Os poucos colonos que a metrópole manda para Moçambique com passagens dadas pelo Ministério das Colónias, arranjadas não sei bem como, mas não o são, de certo, pelos processos que êles dizem, êsses pequenos agricultores, como êles próprios dizem — e por isto se vê
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que de cabedais de ilustração dispõem — são indivíduos que se alojam numa palhota como os pretos, que vivem como os pretos, e aprendem agricultura com os pretos, chegando ao ponto de até aprenderem a ler com os pretos. Um dêsses colonos encontrei eu, que, tendo feito o seu casamento cafreal com uma indígena, teve a boa sorte de ela o ensinar a ler.
Risos.
Veja V. Ex.ª que miserável colonização se poderá fazer com elementos desta ordem!
Na grande maioria, os colonos que para lá vão são desta fôrça.
Não têm capital, não têm preparação. Nem sequer têm noções de higiene.
São criaturas destinadas a dentro em pouco serem vítimas das febres, ficando inutilizadas para qualquer trabalho.
Sr. Presidente: esta chaga branca, somada ao mal que apontei da insuficiência dos trabalhadores indígenas, quanto à sua quantidade, explica bem o atraso relativo em que se encontra ainda a província de Moçambique.
Eu sei, Sr. Presidente, que presentemente, e apesar de todas as dificuldades da vida na metrópole, ninguém para lá vai para viver; quem vai para lá, mesmo nas condições de vida difícil, é para fazer fortuna.
Acho bem que assim seja, mas também para trabalhar e não com pressa de enriquecer.
É desnecessário pensar em ir fazer agricultura para Moçambique levando um capital inferior a 1:000 ou 1:500 libras; e não exagero.
Actualmente em Portugal quem tem 1:000 libras imagina que tem 100 contos, e quem tem 100 contos, em vez de ir para Moçambique, funda um Banco ou faz-se sócio de uma casa bancária.
Risos.
Levar colonos para Moçambique, sem os instalar convenientemente, sem os apetrachar para o trabalho, sem lhes dar capitais suficientes de exploração, não é fazer colonização, é apenas condenar gente que aqui vive na miséria e lá vive misèrrimamente.
Estudou-se em tempo um projecto de colonização de Lourenço Marques, e só agora, ao cabo de tantos anos e das tentativas as mais generosas e as mais bem
intencionadas, só agora há três colónias em que se fizeram casas apropriadas para êsses colonos poderem viver, casas no mato, que valeriam em Lourenço Marques 12 a 15 libras.
Nestas condições se instalaram alguns colonos com os seus alojamentos e competente assistência, que era fornecida todas as semanas, gado indispensável para o seu grangeio e com a segurança que lhe dava a lei, de que os productos teriam uma venda certa e remuneradora.
Só assim se poderia pensar de fixar colonos em Moçambique, escolher local para êles e suas famílias, porque a maior parte dos agricultores que vão para Moçambique são sapateiros, carpinteiros ou guardas republicanos, que aborrecidas das suas profissões vão ali procurar fortuna.
E êles chegam à província sem nenhum capital para viver, e as diligências que fazem é não largarem durante semanas a secretaria do Govêrno, a pedir empregos para os quais não têm nenhuma espécie de preparação.
Sr. Presidente: não há talvez uma maneira fácil ou directa de aumentar a população indígena, e para evitar êsse mal, isto é, a saída do indígena de Moçambique, necessário se torna gastar muito dinheiro, aproveitando-se o que lá existe e fazendo-se mais largas medidas.
Para isso, é absolutamente indispensável dar ao indígena a assistência que êle necessita, principalmente a assistência médica, que êle não tem tido até agora.
Foi justamente para isso que eu alarguei o quadro dos médicos da província de Moçambique, que era de 48 médicos, para 60.
V. Ex.ªs, Sr. Presidente, e a Câmara estão vendo que 48 médicos para uma província como a da Moçambique, muitos dos quais se encontram muitas vezes a caminho da Europa por causa do clima, era muito pouco, sendo mesmo ainda os 60 médicos muito pouco para fornecer a assistência médica de que o indígena carece.
Se é um facto que não há nada que se passe na metrópole que não tenha repercussão na província, não é menos certo que tudo quanto se passa na província deve ter repercussão na metrópole.
Não há nada, Sr. Presidente, desde o mais importante; ou mais mesquinho, que
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exista na metrópole que não exista na província. Nós temos ali, Sr. Presidente, os carbonários, temos ali a maçonaria, temos ali os bons republicanos, isto é, temos tudo o que existe na metrópole.
Assim, Sr. Presidente, como tudo quanto se dá na metrópole tem repercussão na província, tudo quanto se passa na província tem a sua repercussão na metrópole, e tanto assim é que eu sei bem a campanha que se levantou na metrópole quando eu alarguei o quadro dos médicos.
Sr. Presidente: o médico é o único funcionário na província que não tem horas, pois não sabe quando pode almoçar, quando pode jantar e quando pode dormir, tendo de estar disponível para todas as chamadas a qualquer hora e com qualquer tempo, o que não se dá com os outros funcionários que já sabem que têm de entrar às 9 horas e sair às 4.
Há na província de Moçambique funcionários muito mais zelosos que alguns, não digo todos os funcionários da metrópole. Eu conheci funcionários que não podendo ser exactos na hora de entrada da repartição eram muito exactos na hora da saída; uma cousa compensava a outra.
Risos.
Era necessário que tivessem uma maior preparação; temos de facto agora a Escola Tropical, mas os médicos estão lá dois, três e quatro anos e depois por falta de remuneração vão-se embora e a província não pode estar sem médicos.
Eu tive muita vez que nomear médicos para a Escola Tropical bem contra a minha vontade, quando desejava nomear outros funcionários.
Há também um êrro gravíssimo em se dizer que o indígena tem relutância pelo tratamento médico, quando não é assim; o indígena vai a toda a parte onde haja assistência médica e é ver o movimento que tem o hospital Miguel Bombarda. E isto que acontece num ponto acontece nos outros locais.
Sabe V. Ex.ª que o indígena em matéria de assistência médica tem as suas superstições, mas não é preciso ir aos pretos para observar êste facto; pois temos cá a bruxa de Arruda e a costureira dos marcos postais.
Risos.
É indispensável a assistência médica na província.
A despeito de tudo, a província tem-se desenvolvido, mostrando tendências a desenvolver-se ainda muito mais.
Eu tive ocasião de mandar dizer para Lisboa que, também, a Zambézia valia toda a província e a província valia uma pátria.
Tem-se trabalhado muito, sobretudo atendendo a que se começou trabalhando muito tarde.
No distrito de Moçambique, que está, talvez, destinado a ser, no ponto de vista agrícola, o mais rico da província, há 5 ou 6 anos não havia três agricultores; actualmente a sua agricultura e o seu comércio de exportação estão de tal forma desenvolvidos, que já os rendimentos da alfândega de Moçambique chegam para compensar a quebra considerável dos rendimentos alfandegários de Lourenço Marques
Começou, é certo, a trabalhar-se tarde no distrito de Moçambique, mas começou-se a trabalhar bem. Estou, por isso, convencido de que, dentro de poucos anos, Moçambique será o distrito de maior produção de toda a província.
No sul a agricultura, por emquanto, pouco mais é do que uma aspiração, ou uma fantasia. Toda a agricultura do distrito de Gaza e do distrito de Inhambane cabe à vontade dentro duma das muitas herdades do Alentejo.
Tem contribuído para êste atraso agrícola do sul da província a emigração para o Rand, aparentemente mais lucrativa e com certeza mais cómoda que o trabalho da terra.
Agricultores nos distritos de Gaza e Inhambane há, quando muito, três ou quatro, explorando a terra e tirando dela produtos de alimentação.
Os restantes agricultores são simples manchongueiros, denominação esta dada em Moçambique ao agricultor que, possuindo três ou quatro hectares de terreno, nela planta a cana para dela extrair uma bebida alcoólica, conhecida pelo sura, destinada a embebedar os pretos.
Trata-se, pois, duma agricultura verdadeiramente criminosa, que muito e muito tem contribuído para que nesses distritos se não tenha desenvolvido a verdadeira agricultura.
Para que V. Ex.ªs vejam o que rende essa agricultura, basta dizer que tendo eu
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resolvido; com o voto do Conselho Legislativo, acabar com ela, me vieram oferecer uma renda de 200 libras ouro por hectar de terreno cultivado, muito esperançados de que eu não iria longe de aceitar tal proposta mediante uma renda de 300 libras.
Imaginem V. Ex.ªs qual seria a cultura que na metrópole permitiria pagar uma tal renda.
Acabei com essa indústria e por êsse facto levantou-se contra o Alto Comissário uma formidável campanha.
E já que falei em bebidas, permita-me a Câmara que eu afirme que o perigo do alcoolismo na população indígena não é nada aquilo que sustentava António Enes, quando dizia no relatório, que a Câmara certamente conhece, que o preto bebe, bebeu e beberá sempre.
O Sr. Freire de Andrade, que foi governador daquela província, também me disse mais de uma vez que quando saía no seu carro, da cidade para os arredores, o cocheiro se via na necessidade de se apear para tirar da estrada homens, mulheres e crianças que nela jaziam em completo estado de embriaguês.
Eu não vejo porém, que haja uma razão scientífica para se poder sustentar que
0 preto bebeu, bebe e beberá sempre.
O Sr. Presidente: — Deu a hora de se passar à ordem do dia.
Vozes: — Fale, fale.
O Sr. Presidente: — Em vista da manifestação da Câmara, pode V. Ex.ª continuar no uso da palavra.
O Orador: — Agradeço à Câmara a sua generosidade.
Sr. Presidente: posso garantir que na Zambézia, onde o uso da sura ora de tam maléficos resultados, não há já bebedeiras com a sura.
Não sei se o indígena se embebeda com outros produtos alcoólicos, porque êle é fértil de imaginação no fabrico dessas bebidas; porém com sura posso assegurar que não se embebedam.
O que seria realmente para desejar era acabar de vez com o uso das bebidas cafreais que mais profundamente prejudicam a saúde do preto. De facto o seu amor pela bebida é tam grande, que circunscrições há onde o indígena deixa os trabalhos de Lourenço Marques, deixa o trabalho do Transvaal e vem passar dois meses de caju na sua circunscrição. Mas êsse mal, que já hoje se encontra extraordinàriamente debelado, pode, em meu entender, abolir-se por completo. Não me parece, porém, justo que se vá impedir o indígena de usar as suas bebidas predilectas, para o obrigar a usar as bebidas vindas da metrópole.
(Apoiados).
Eu desejo que se dê à viticultura nacional o maior auxílio e julgo que as colónias podem ser, com facilidade mercado bastante para a sua produção.
Lembro-me ainda que em 1908 quando se discutiu a famosa questão dos vinhos, números colhidos na alfândega acusavam uma exportação três vezes superior à sua produção.
Êsses vinhos são todos fabricados no Poço do Bispo.
Como governador da província de Moçambique não consenti, nem podia consentir, que estas mixórdias do Poço do Bispo, que servem apenas para envenenar o preto, se arroguem foros de viticultura nacional.
Se não é lícito deixar que o preto se envenene, porque se entrega à bebedeira com os vinhos da sua terra natal, como é justo consentir que êle se envenene com vinhos idos daqui, fabricados, certamente, por pessoas que são muito respeitáveis...
Risos.
Sr. Presidente: a existência da população indígena deve muito a êste assunto, que julgo capital, e dos mais importantes.
A afirmação de António Enes não era em absoluto verdadeira. O indígena já não faz o mesmo consumo de bebidas que fazia.
Percorri Quelimane, e nas prisões não havia presos.
Preguntei a razão. Disseram-me que o preto não praticava faltas desde que deixara de se embebedar.
Risos.
Sr. Presidente: no momento actual a colónia, a despeito do seu desenvolvimento, precisa que a metrópole ainda a deixe desenvolver muito mais.
Não precisa dos sacrifícios da metro-
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pole. Precisa que a metrópole ali faça fixar algumas centenas de famílias.
Isto suponho não ser muito, para que a colónia entre a valer no período de desenvolvimento por possibilidade das suas sobras. Suponho que não é muito.
É absolutamente indispensável dinheiro. Precisa de 20:000 contos, que sejam 20:000 contos em dinheiro, e não 20:000 histórias, para obras de fomento de que carece.
A província tem, conforme eu já tive ocasião de dizer à Câmara, uma grande porção de terreno sem ser aproveitado, tendo também uma grande quantidade de caminhos de ferro, mas quási todos de penetração, pelo que se vê que todos êles foram feitos com o único intuito de irmos buscar ao estrangeiro o que necessitamos.
O que é preciso acentuar é que a Província de Moçambique tem elementos de vida próprios, podendo muito bem viver com os seus próprios recursos. (Apoiados).
É preciso acentuar isto, visto ser uma verdade incontestável.
Eu tive ocasião da verificar que uma grande parte da província de Moçambique se encontra num estado verdadeiramente deplorável, estando uma grande parte dos terrenos sem agricultura, se bem que uma grande parte dos agricultores, que são funcionários públicos, estejam constantemente a pedir ao Govêrno caminhos de ferro, capitais, etc.
Eu tive ocasião de verificar que há ali uma grande quantidade de terreno onde não há um palmo cultivado, não sendo isto devido à falta de comunicações, pois que existem apeadeiros, estações ou paragens.
Tive a explicação que vou dizer.
Numa paragem era um preto que trazia um pato, noutra paragem era um preto ou um branco que tinha ido caçar.
Ora é fácil ver o que isto pode representar para a exploração dum caminho de ferro. Assim o caminho de ferro da Swazilândia liquidou o ano passado com um deficit de cêrca de 10:000 libras.
Interrupção do Sr. Jaime de Sousa.
O Orador: — Houve, é certo, negociações entre o Govêrno de Moçambique e o do Transvaal para a construção do caminho de ferro.
Se os ilustres Deputados se derem, porém, ao trabalho de compulsar todo o respectivo dossier, terão ensejo de verificar que a construção do caminho de ferro da Swazilândia foi uma das muitas espertezas do portuguesito valente.
Dizia-se que, fazendo-se o caminho de ferro na província até um ponto tal da fronteira, os ingleses não teriam remédio senão construir também o seu.
Então chamaram-se os engenheiros, tomou-se pessoal, adquiriu-se material e deu-se imediato comêço à construção. Chegada a linha ao ponto em que podia tomar uma directriz que se tivesse por mais conveniente, tratou-se do assunto com o Govêrno do Transval. A resposta dêste foi que nunca pensara em construir semelhante caminho de ferro.
Eu suponho que êsse caminho de ferro, para realizar o fim para que foi considerado, teria de atravessar o Zambeze, e êste no ponto mais estreito tem aproximadamente três milhas de largura, sem encontros para uma ponte. Sou levado a supor que dentro da província êste caminho de ferro não teria nenhuma função útil.
Tive ocasião de atravessar o Niassa, e tive a impressão de que a nossa aliada quando do convénio teve apenas o intuito de nos desembaraçar de uma larga facha de terreno, para que nós com a mais pequena parte nos fôsse mais possível colonizar.
Risos.
Mas o que é verdade é que não encontrei senão desolação, e miséria. Nenhuma cultura de que se depreendesse um comêço de riqueza.
Durante a guerra, quando tudo valia muito, ainda o tabaco valeu alguma cousa; mas depois os comerciantes e agricultores, que não saíram a tempo, arruinaram-se.
Êsse caminho de ferro tem garantias de juro, por isso pode viver.
Como disse, eu não sei como se pode pensar em caminho de ferro que necessita de uma ponte com três milhas.
De resto, êsse caminho de ferro atravessa uma região inóspita, árida e flagelada pela mosca tzé-tzé.
Se tivéssemos feito o caminho de ferro do Chile, êle atravessaria uma região riquíssima de minas de carvão.
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Não está estudado na província sob o ponto de vista geológico, pois como V. Ex.ªs sabem a última parte estudada foi Angola.
Nós não temos feito nenhum estudo da província.
Tem-se trabalhado muito com as mãos e quanto a mim também com os pés.
Risos.
Exceptuando alguns homens que por ali têm passado, incluindo a minha pessoa, tem tido altas competências.
Sendo a província rica, tem-se pedido concessões de terreno, mas quando se fazem êsses requerimentos sem os que pedem saibam o que pedem, nem os que concedem saibam o que concedem por falta de elementos. Que eu saiba há apenas estudos muito ligeiros, como o do Sr. Freire Andrade, para uma tese. Mas, se não há uma carta da província, a Câmara preguntará porque é que eu a não mandei fazer.
Foi êsse o meu primeiro cuidado.
Entendi que se devia começar pelo sul da província, porque os homens de sciência diziam que os filões das minas da África do Sul deviam prolongar-se pela província, estando nessa parte, portanto, a sua maior riqueza.
Contratei um geólogo ilustre e sábio e à última hora (o meu sábio) recusou-se a ir, porque tinha a informação de que os leões nas ruas de Lourenço Marques comiam as pessoas.
Risos.
Eis a razão por que não se fez a carta.
Com respeito ao algodão não estou bem assente se a sua cultura se pode fazer ou não na província, porquanto não vi nenhuma plantação que denunciasse riqueza.
Isto é o que tenho visto em relação aos algodões, estando a fazer-se grandes plantações.
Interrupção do Sr. Portugal Durão, que não pôde ser ouvida.
O Orador: — Eu quis arranjar um técnico que fôsse ver se a província era própria para a cultura do algodão, arrumando-se êste ponto, porque já se tem gasto muito dinheiro.
Dirigi-me ao nosso Ministro na América, Sr. Conde de Alte.
Eu já tinha tencionado ir à América à minha custa, note a Câmara, e até tive o passaporte na algibeira, encontrando-me com o Sr. Conde de Alte que me apresentaria às pessoas de finanças, a fim de estudar o problema de irrigação do Alentejo.
S. Ex.ª mandou-me dizer que não podia arranjar o técnico que pedia, e que procurasse fora da América.
Eu devo dizer ao Sr. Portugal Durão que fui procurado por gente de Manchester, que me declarou que estava na resolução de empenhar grandes capitais na fabricação de algodão.
Àparte, não ouvido, do Sr. Portugal Durão.
O Orador: — Essa gente de Manchester só me pedia um monopólio da introdução do fabrico na província.
Mas, Sr. Presidente, eu ia dizendo que a cultura do algodão está mal estudada na província, e, se não tratei do assunto de forma definitiva, foi por não me ser possível, pois não encontrei quem fizesse os estudos necessários.
A riqueza de Moçambique é grande, e bastará dizer que só de carvão, segundo cálculos feitos, numa só região se podem extrair cem mil milhões de toneladas, mas mais ainda, porque também no sul da província foi encontrado carvão de boa qualidade.
Se assim é, e se se continuarem as pesquisas, dando bom resultado teríamos uma riqueza, demonstrando-se ao Sul Africano que não necessitávamos do seu carvão.
As experiências que já se têm feito têm dado bons resultados.
Sr. Presidente: a riqueza da província em certas culturas é grande.
A produção de carvão anda hoje por 50:000 toneladas.
Temos caminhado de vagar, mas a produção deve aumentar muito e em poucos anos exceder as necessidades do consumo.
A companhia do Buzi, pela qual tenho toda a simpatia, tem desenvolvido a sua cultura e produção, estando a produzir 100:000 toneladas, faltando-lhe todavia mão de obra, para se poder desenvolver.
A Companhia de Moçambique, tem uma área vastíssima e uma grande população, tendo mão de obra suficiente.
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Se a Companhia do Buzi tivesse toda a mão de obra precisa, elevaria muito a sua produção.
Temos na província um produto que não custa a cultivar, a mafurra, tendo nós uma cultura que dá uma colheita de 30:000 toneladas.
E até ao momento actual, a cifra mais alta de exportação era de 5:000 toneladas, sendo a produção espontânea de 30. 000 toneladas.
Pois bem.
Além de outros escândalos que o Alto Comissário praticou, conseguiu o de arranjar uma concessão para a Companhia, que permite uma colheita muito mais elevada.
Se não falhei, esta tentativa que eu fiz, devem exportar-se neste ano — Marselha é o principal aquisidor — 8. 000 toneladas de mafurra ou talvez mais, e se continuarem a manter-se os preços remuneradores actuais, e eu tenho a promessa de que podem efectivar-se óptimos negócios, nós teremos estabelecido ali a industrialização daquele produto.
Como a Câmara vê, e isto é um enunciado muito rápido, a província tem elementos de vida próprios, faltando-lhe apenas um pouco de capital e de iniciativa.
Com respeito às madeiras existentes nessa província, é lamentável que muitas dessas espécies não estejam classificadas, havendo apenas a vaga classificação feita por um homem do Transvaal, trabalho que está rectificado por um dos funcionários mais ilustres, actualmente chefe da circunscrição do círculo de Inhambane.
Nós não sabemos o que temos!
Deve estar a chegar a Lisboa uma espécie de mostruário das várias madeiras, preciosas algumas delas, que se criam na nossa África Oriental, e até a êste propósito tenciono fazer uma conferência.
Existem lá madeiras de todas as nuances, apenas com o defeito de serem um pouco pesadas e rijas, e infelizmente, são tam pouco empregadas na província, que as mobílias dos países do norte não são porque o não podem ser legalmente feitas com madeiras da província de Moçambique.
Eu disse há pouco incidentalmente que de vários males enfermava a província, e que de vários defeitos enfermava a minha governação.
Dêsses males um dêles era o da concessão de terras.
A Câmara sabe que sendo a província hoje ainda uma região cuja agricultura é insuficiente, e por conseqüência uma região cuja indústria é ultra-rudimentar, havia necessidade da parte dos indivíduos que a exploravam de se dedicarem à indústria da concessão de terras.
Milhares e milhares de hectares e quilómetros de terras foram requeridos em meia folha de papel selado, que neste tempo custava três vinténs, e foram depois vendidos por muitos milhares de libras, fazendo-se um negócio absolutamente especulativo.
Ora, é um caso demonstrado e reconhecido por todos os coloniais, que nunca a terra gratuita prende o agricultor.
Eu nunca encontrei na Repartição de Agrimensura um mapa da medição de terras na província; a verdade, porém, é que em Moçambique os terrenos estão enormemente concedidos e misèrrimamente explorados.
Foi a êste mal que eu quis obviar, não obstante ter encontrado uma legislação, de 1918, que em nada garantia o aproveitamento das terras concedidas.
Êste facto levou-me a publicar uma legislação sôbre concessão de terrenos, legislação que levantou uma grande celeuma na província e legislação cujo objectivo era obrigar que todas as terras concedidas fossem exploradas.
E efectivamente eu entendo que quem pede para explorar, merece a protecção do Estado, mas que quem pretende traficar, nada merece.
No vale do Limpopo, há imensas concessões há muitos anos, não havendo um único palmo de terra em exploração, porque o único intuito que têm êsses concessionários é de mais tarde alienarem êsses terrenos por milhares de libras, sem nenhum trabalho da sua parte.
Sr. Presidente: mais ou menos, e muito sumàriamente, eu quis dizer a V. Ex.ª segundo o meu critério o que se passou durante o meu Govêrno na província de Moçambique. Acima de tudo procurei conhecer a província e a isso me dispus.
Não tenho senão de me louvar por isso, porque, conhecendo Lourenço Marques e nada mais, o mesmo será que estar no Terreiro do Paço.
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Vi tanto quanto era possível ver, na estreiteza do tempo que podia dispor, e mesmo assim estando em Moçambique recebi notícias alarmantes de uma revolução em Lourenço Marques, para depor o Alto Comissário e assim sendo impossível visitar o Niassa, mal tive tempo de embarcar para Lisboa.
Foi só por isso que eu não fui visitar o Niassa.
Pois muito bem; com a honestidade que V. Ex.ª me fará o favor de reconhecer, eu devo afirmar que Moçambique tem também contra si êste triste dom.
Moçambique tem contra si êste triste dom; quando se fala em alienar uma colónia, logo se diz: vende-se Moçambique!
Eu sou daqueles que entendem que Portugal não tem o direito de vender nada (Apoiados), sem que se tenha primeiro feito tudo quanto se pode fazer!
Apoiados.
Não acredito que alguém assim pense, e, se algum dia isso se tentasse, não seria apenas uma colónia, mas todas, porque a voragem não parava!
Prolongados apoiados.
Quando um dia no Conselho Legislativo um dos seus mais ilustres membros propôs, e foi aprovado, que eu telegrafasse ao Sr. Ministro das Colónias a preguntar se era verdade a atoarda de que o Govêrno estava negociando um empréstimo com base em Moçambique, eu recusei-me a fazê-lo, porque sabia que nenhum Ministro, nenhum Govêrno, nem nenhum Parlamento podia pensar em tal cousa. (Apoiados).
As atribuïções dum Alto Comissário em pouco excedem as dum governador; todavia governar uma província, durante dois anos, não é trabalho que se faça sem incorrer nas maiores censuras.
Eu entendo que um administrador nas minhas condições deve explicações dos seus actos aos representantes do País. Eu já informei o País — suponho que sem incorrecção — por intermédio da imprensa. Informei-o para que êle saiba o que de verdade existe sôbre a administração da província da Moçambique, mas essa informação de forma alguma me dispensa de comparecer perante o Parlamento.
Os actos que pratiquei de administração podem ter sido, nos seus resultados, nocivos à província, mas, em todo o caso, são actos de honestidade. E, se eu tenho em muita conta as qualidades do meu carácter, tenho também um grande desdém pelas qualidades da minha inteligência.
Eu fui, Sr. Presidente, censurado na imprensa de Lourenço Marques por ter feito com uma companhia da Zambézia um contrato de trabalho que, na opinião do escriba que iniciou essa campanha, era mais do que ruïnoso para a província, porque era quási a sua alienação. Refiro-me ao contrato Hommy, contrato pelo qual me comprometi a dar facilidades para o recrutamento de 3:000 indígenas.
Não vale a pena averiguar da capacidade moral da pessoa que iniciou essa campanha, nos termos mais violentos, contra o Alto Comissário, para o colocar mal não apenas perante a província, mas até perante o país vizinho, com o qual eu tive de entrar em negociações.
Êsse contrato está publicado; a Câmara certamente o conhece.
Se há cultura que não possa empreender-se sem a garantia da mão de obra, é exactamente a cultura da cana.
Quere dizer, não bastava sequer para o consumo da metrópole; nessas condições fiz êsse contrato que, na sua redacção primitiva, teve dois erros que são da minha responsabilidade, visto que o assinei, mas que foram prontamente emendados e que passaram, estou convencido, por lapso das pessoas que, tendo nele interferência pela sua competência jurídica, os deixaram passar despercebidos.
Uma dessas cláusulas dizia respeito à arbitragem no caso de conflito, que, nos termos do contrato, devia ser resolvida em Londres, passando a ser resolvida em Lourenço Marques. A outra, cláusula era de se dar preferência sôbre nacionais e estrangeiros; emendou-se, o que era uma redacção de forma, sendo remediado de maneira a deixar do susceptibilizar o sentimento nacional.
Sr. Presidente: em Quelimane, cujos agricultores podiam ser mais directamente afectados pelas disposições dêste contrato, tive ocasião de me informar junto da Associação de Fomento e da Associação Comercial, que, de facto, o contrato não dificultava os agricultores, e o go-
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vernador de Quelimane, Sr. coronel Silva Leal, que é um dos governadores de distrito mais distintos e que melhores serviços tem prestado à província, o Sr. coronel Silva Leal, repito, disse-me que não tinha tido até ali dificuldades para, por seu lado, fornecer a mão de obra exigida pelo contrato e a requisitada pelos agricultores, e o resultado é que, devendo as açucararias da Zambézia fornecer, no ano de 1924, 50:000 toneladas, vêem-se obrigadas a fornecer 70:000 a 75:000 toneladas, porque os seus lucros são muitos reduzidos.
Tanto a Alemanha como a Áustria ainda não conseguiram produzir como antes da guerra. Quem não produzir em grande quantidade não pode deixar de perder dinheiro. Uma produção de 30:000 toneladas é uma produção que dá poucas garantias de lucro.
Sr. Presidente: pareceu-me ter-se dito que eu tinha infringido o regulamento do trabalho indígena; ora nesse contrato há uma disposição que fiz observar, e é exactamente a parte que diz respeito ao trabalho indígena. Mandei observar, por parte do contratante, todas as disposições favoráveis ao indígena, isto é, quanto ao pagamento dos seus salários, alimentação, etc.
Pelo contrato imposto à firma contratante quere-me parecer que não só usei da minha competência, como governador da província, para fazer aquele contrato, mas ainda porque me tinha mantido dentro das disposições vigentes no que respeita ao regulamento do trabalho indígena.
Sr. Presidente: êste facto não sei que efeito fez na metrópole; o que sei é que fez barulho na imprensa de Lourenço Marques.
Em todo o caso o contrato está publicado, é do conhecimento de todos, e eu acharia interessante que, não só a respeito dêsse contrato, mas a respeito de todos os diplomas publicados na província sob a minha responsabilidade, se fizesse uma larga discussão numa sessão que o Sr. Presidente marcaria, e em que qualquer Sr. Deputado poderia apresentar qualquer dúvida que tivesse sôbre a interpretação de qualquer cláusula no contrato feito ou sôbre as disposições de qualquer diploma que eu tenha publicado.
Outra providência que provocou grandes reparos, e foi objecto de acerbas críticas, foi o diploma regulando a questão monetária.
Sr. Presidente: a questão monetária não é uma questão definitivamente resolvida na província de Moçambique; êsse regime era um bocadinho caótico. A desordem monetária na província de Moçambique vem desde há muitos anos. Lembro-me, e V. Ex.ªs decerto conhecem também, a legislação publicada por Mousinho de Albuquerque, no sentido de estabelecer na província a moeda nacional, arredando a moeda estrangeira.
O que é certo é que quando a libra inglesa não valia mais que a libra portuguesa ninguém se importava com o facto; quando a prata circulava ninguém se importava que essa prata fôsse portuguesa ou estrangeira; só depois da desvalorização da moeda se reconheceu a necessidade de existir uma moeda que não fôsse sujeita a estás oscilações da metrópole.
Essa lei pôs um pouco de ordem na «desordem» que havia no facto de a moeda ser inglesa, e mandei que fôsse recolhida.
Levantou-se na primeira hora uma certa celeuma, em conseqüência dos interêsses feridos, mas a situação a breve se normalizou, e como os bancos ingleses haviam pedido umas pequenas concessões, que nada tinham com a essência da questão, consenti.
O que resta agora é fazer o contrato com o Banco Ultramarino, por isso que aquele que foi aprovado no Parlamento em 1919 não foi feito entre a província e o Banco, mas entre o Banco e o Estado. Êsse diploma deve vir ao Congresso. Na discussão que se estabelecer terei ocasião de dizer o que é êsse contrato celebrado entre o Banco Ultramarino e a metrópole.
Muito desejaria ainda expor a respeito de diplomas publicados sob a minha responsabilidade, dando a respeito dêles as explicações que, embora não satisfaçam, servirão para encaminhar uma possível discussão, mas há três horas que estou no uso da palavra, e a Câmara tem dado provas dum heroísmo de que talvez ela própria se julgasse incapaz quando comecei a falar, e como, não na minha situação
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de disponibilidade, mas apenas como homem que tem aqui o seu lugar por ter responsabilidades na administração pública, não deixarei de estar presente no momento em que fôr chamado à autoria, e por isso dou por findas as minhas considerações, agradecendo à Câmara a imerecida atenção com que me escutou.
Vozes: — Muito bem.
O orador foi cumprimentado por toda a Câmara.
O discurso será publicado na íntegra, revisto pelo orador, quando, nestes termos, restituir as notas taquigráficas que lhe foram enviadas.
Foi aprovada a acta.
Foram aprovadas as redacções dos seguintes projectos de lei:
N.º 110, que autoriza o Ministério das Finanças a ceder ao da Agricultura a mata do Lagar do Seminário, concelho de Coimbra.
Dispensada a leitura da última redacção.
Remeta-se ao Senado.
N.º 112, que autoriza o Ministério das Finanças a ceder ao da Justiça o presbitério de Santo António dos Olivais, concelho de Coimbra.
Dispensada a leitura da última redacção.
Remeta-se ao Senado.
N.º 197, que manda aplicar aos militares do exército e da armada que tomaram parte na revolução de 31 de Janeiro as disposições da lei n.º 1:158.
Dispensada a leitura da última redacção.
Remeta-se ao Senado.
N.º 216, que não permite a mistura da amêndoa dôce do Algarve com a amarga, nem com a doutras regiões.
Dispensada a leitura da última redacção.
Remeta-se ao Senado.
N.º 358, que aplica a lei n.º 940 aos serviços da aviação da marinha de guerra.
Dispensada a leitura da última redacção.
Remeta-se ao Senado.
N.º 383, que abre um crédito de 4:000. 000$ a favor do Ministério das Colónias para «Subvenção para o caminho de ferro de Mormugão».
Dispensada a leitura da última redacção.
Remeta-se ao Senado.
O Sr. Presidente: — O Sr. Cunha Leal deseja ocupar-se, em negócio urgente, duma nota oficiosa da inspecção de câmbios, que vem publicada nos jornais de hoje. Por isso consulto a Câmara sôbre se considera urgente o assunto.
Foi considerado urgente.
O Sr. Cunha Leal (para negócio urgente): — Sr. Presidente: não pretendo tomar muito tempo à Câmara, mas não posso deixar de usar da palavra para me ocupar do assunto que vou tratar, visto não desejar sujeitar-me a qualquer censura governamental, se porventura amanhã quiser versar no jornal que dirijo êsse assunto.
Chamo, pois, a atenção da Câmara e do Sr. Ministro das Finanças para uma estranha nota oficiosa que é a conseqüência duma outra, há tempo publicada, e que apareceu nos jornais de hoje, por parte da inspecção dos câmbios.
Concordo plenamente com a inspecção dos câmbios, porquanto entendo que se deve dispensar a intervenção de qualquer outra entidade que não seja o Banco de Portugal, mas preciso saber qual é a disposição ou texto legal em que o Sr. Ministro das Finanças se fundou para estabelecer o pão político, que é expressa e claramente confessado pela inspecção dos câmbios, o que vai de encontro a todo o espírito da lei em vigor que acabou, com êsse pão político, flutuador do preço do trigo e flutuador de câmbios.
Segundo me consta há mais de 90 dias que está em vigor a disposição que manda entregar à moagem cambiais para serem pagas a 90 dias depois, ou restituídas as mesmas cambiais em escudos ao câmbio de 3 7/8, com os enormes prejuízos que de tudo isto resulta.
Pregunto, se, embora não seja obrigação de continuar com a política do pão político, o Sr. Ministro não tenciona pedir ao Parlamento a abertura dum crédito especial para legalmente fazer essa des-
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pesa, visto ter sido excedida a verba para prémios do ouro, em conseqüência de no Orçamento ter sido calculada essa verba a outro câmbio.
Não tomo mais tempo à Câmara. Se me ocupei dêste assunto, foi porque tenciono, como disse, versá-lo na imprensa, e não quero sujeitar-me às censuras do Sr. Presidente do Ministério.
O orador não reviu.
O Sr. Ministro das Finanças (Vitorino Guimarães): — Vou responder às considerações do Sr. Cunha Leal.
A questão do pão político é grave e delicada, e ao Govêrno não desagrada de modo nenhum tratá-la, e tanto que têm sido feitas instâncias pêra que se realize uma interpelação anunciada sôbre êste assunto.
Sôbre esta questão já o Sr. Presidente do Ministério teve ensejo na outra casa do Parlamento de dizer em que se fundava o Govêrno para manter essa política, que nós nem defendemos nem aconselhamos.
Sr. Presidente: na verdade continua o regime do pão político. Mas tal culpa não cabe ao Govêrno, mas sim ao Parlamento, e o que se está fazendo neste ponto é tudo quanto há de mais legal, salvo se eu não sei ler, ou não sei compreender.
É ver o que se prescreve na base 3.ª do n.º 19.º da lei cerealífera.
E o que aí se preceitua é o que se tem feito.
O câmbio piorou como todos sabem, e desde que chegou efectivamente o preço das farinhas a ponto que não correspondia ao que se diz nesse número, o Govêrno viu-se em dificuldades, porque a moagem declarou que estava inibida de importar farinhas, e que as importasse o Estado.
Sabe a Câmara, e sabe o Sr. Cunha Leal especialmente, que as aquisições feitas pelo Estado não são as mais vantajosas, e podia até mostrar que são diferentes os preços que se fazem para o Estado e para as emprêsas particulares; e sabe também S. Ex.ª, que teve a má sorte de passar pela pasta das Finanças, que o Estado tem de pagar à vista emquanto que a moagem pode pagar a 90 dias de vista.
Deixa então a moagem de importar trigo e importa o Estado, e o câmbio foi efectivamente fixado em sete oitavos.
Àpartes.
Eu nesta questão entro apenas como Ministro das Finanças, determinando-se a quantidade de trigo que se tem de pagar.
A moagem é obrigada a entregar os escudos correspondentes a êsse câmbio.
Referiu-se ainda o Sr. Cunha Leal à verba dos 20:000 contos que está fixada no Orçamento. Devo dizer que essa verba ainda não está excedida, o que não quere dizer que o não esteja dentro em breve.
Não há dúvida que logo que seja necessário, e sê-lo há brevemente, essa verba terá de ser reforçada; mas, pregunta S. Ex.ª, porque se não pede já o reforço da verba?
Evidentemente porque está pendente uma interpelação e só depois dela realizada o Parlamento resolverá se quere continuar com êste sistema de pão político ou quere que o pão seja vendido ao público ao preço por que fica ao Estado.
O Sr. Joaquim Ribeiro (interrompendo): — V. Ex.ª dá-me licença?
Eu tenho uma interpelação anunciada, que já teria realizado se o Sr. António Maria da Silva tivesse continuado na pasta da Agricultura, mas, emquanto essa interpelação se não realizar desejo chamar a atenção do Sr. António Maria da Silva para um facto que se está dando, e que é preciso prover de remédio.
O trigo fornecido à moagem, e quando falo em moagem não me refiro à moagem de todo o País mas sim à moagem de Lisboa e Pôrto, o trigo, repito, que o Estado entrega à moagem remete-o ela para a província, onde vende o pão pelo preço que quere.
O Orador: — Creio ter respondido, tanto quanto possível, às considerações feitas pelo ilustre Deputado Sr. Cunha Leal.
Quanto às considerações feitas pelo ilustre Deputado, Sr. Joaquim Ribeiro, devo dizer que é ao meu colega da pasta da Agricultura que pertence responder-lhe, visto que o assunto a S. Ex.ª diz particularmente respeito; no emtanto, devo dizer-lhe que estou em parte de acôrdo com as suas considerações.
O Govêrno tem efectivamente conhecimento dos abusos que se estão come-
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Diário da Câmara dos Deputados
tendo, é tanto assim que já deu ordens terminantes no sentido de que seja feita uma fiscalização rigorosa, tanto mais quanto é certo que se não compreende, nem se pode compreender, que a Moagem que está auferindo lucros fabulosos, se recuse a pagar ao Estado aquilo que lhe é devido.
Esta é que é uma verdade e o que eu posso garantir a V. Ex.ª e à Câmara é que o Govêrno há-de fazer com que entre nos cofres do Estado todo êsse dinheiro que lhe é devido.
Apoiados.
Isto é o que eu posso garantir a V. Ex. a
Sr. Presidente: voltando ao assunto das considerações feitas pelo ilustre Deputado Sr. Joaquim Ribeiro, eu tenho a dizer que estou absolutamente certo de que S. Ex.ª há de desenvolver o assunto quando realizar a sua interpelação ao Sr. Ministro da Agricultura, podendo êste meu colega responder-lhe mais desenvolvidamente.
Pode V. Ex.ª ter a certeza de que eu lhe darei imediatamente conhecimento das considerações que por S. Ex.ª foram feitas, podendo, no emtanto, V. Ex. a estar certo que o Govêrno há-de tomar as providências que são necessárias.
Tenho dito.
O discurso será publicado na íntegra, revisto pelo orador, quando, nestes termos, restituir as notas taquigráficas que lhe foram enviadas.
O Sr. Joaquim Ribeiro não fez a revisão do seu «àparte».
O Sr. Cunha Leal: — Sr. Presidente: pouco tempo tomarei à Câmara, pois desejo apenas dizer duas palavras em resposta ao Sr. Ministro das Finanças.
Lamento, profundamente, Sr. Presidente, que o Sr. Ministro das Finanças me não tivesse compreendido.
Eu não vim discutir se é bom ou mau o estabelecimento do chamado pão político; o que quis frisar foi o facto do Orçamento ter inscrito de um lado a verba de 20:000 contos para despesas com a crise das subsistências, e por outro lado 20:000 contos para as receitas provenientes da crise das subsistências.
V. Ex. a. pode perfeitamente gastar, por exemplo, 4:000 contos; mas se o
fizer, está fora da lei, por isso que não tem no Orçamento verba para isso.
V. Ex.ª portanto, não tem de facto no Orçamento verba para isso, e assim necessário é que venha ao Parlamento pedir que lhe vote a verba que necessita.
Não poderá, a meu ver, proceder de outra forma.
Eu não discuto se o Sr. Ministro das Finanças fez bem ou não em pagar verbas superiores àquelas que o Parlamento tinha votado; o que digo é que S. Ex.ª, vendo que a verba era insuficiente, deveria sem demora vir pedir ao Parlamento que lhe reforçasse essa verba.
E o que afirmo com relação ao funcionalismo digo com respeito ao chamado pão político.
É uma questão de respeito pelas contas do Estado e pela moralidade, e nada mais.
Não acuso a política do Govêrno neste momento, relativamente a êstes assuntos; apenas quero frisar que não é admissível que se continue a dar o espectáculo de gastarmos com o funcionalismo, em subvenções, 160:000 contos sem que o Parlamento reforce a verba de 108:000 contos que votou para êste efeito, como não é lícito estarmos a ter prejuízos com a questão cerealífera, não estando êsses prejuízos autorizados pela lei.
E só contra isto que eu me insurjo.
Tenho dito.
O orador não reviu.
O Sr. Ministro das Finanças (Vitorino Guimarães): — Sr. Presidente: também serei muito breve, visto que muito breve foi o ilustre Deputado Sr. Cunha Leal, nas suas considerações.
Estou perfeitamente de acôrdo com S. Ex. a, e desde o primeiro dia viemos, nós o Govêrno, confessar à Câmara que tínhamos na verdade exorbitado, levados pela fôrça das circunstâncias na verba do pagamento ao funcionalismo, e com o Sr. Presidente da Câmara eu tinha já conversado a êste respeito, pedindo-lhe para marcar para ordem do dia uma proposta do Govêrno no sentido do reforçar esta verba.
Se o Parlamento me viesse dizer que não era possível dar ao funcionalismo nem um centavo sequer além do que estava autorizado, o mesmo seria do que
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Sessão de 18 de Janeiro de 1923
acabar com as subvenções, e eu não posso admitir que o funcionalismo volte a ter os mesmos vencimentos que tinha em 1914.
O Sr. Cunha Leal (interrompendo): — Eu não estou a revoltar-me contra a política de V. Ex.ª, o que desejo é que se reforcem as verbas votadas.
O Orador: — Perfeitamente. Esteja V. Ex.ª tranquilo, que eu vou pedir ao Parlamento para reforçar as verbas votadas.
Porque é que não havemos de concorrer para que os outros géneros sejam vendidos por um preço equitativo?
Tenho dito.
O discurso será publicado na íntegra, revisto pelo orador, quando nestes termos restituir as notas taquigráficas que lhe foram enviadas.
O Sr. Presidente: — A próxima sessão é amanhã, às 14 horas, com a seguinte Ordem do dia:
A de hoje, e mais a interpelação do Sr. Correia Gomes ao Sr. Ministro das Finanças.
Está levantada a sessão.
Eram 17 horas e 40 minutos.
Documentos enviados para a Mesa durante a sessão
Requerimento
Requeiro que, pelo Ministério do Comércio, me seja fornecida cópia do processo respeitante à venda do vapor Lima dos Transportes Marítimos do Estado à Emprêsa Insulana de Navegação.
Sala das Sessões da Câmara dos Deputados, 17 de Janeiro de 1923. — João de Ornelas da Silva.
Expeça-se.
O REDACTOR — Sérgio de Castro.