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REPÚBLICA PORTUGUESA
DIÁRIO DA CÂMARA DOS DEPUTADOS
SESSÃO N.º 42
EM 5 DE MARÇO DE 1923
Presidência do Exmo. Sr. Alfredo Ernesto de Sá Cardoso
Secretários os Exmos. Srs.
Baltasar de Almeida Teixeira
João de Ornelas da Silva
Sumário. — Aberta a sessão coma presença de 37 Srs. Deputados.
Lê-se a acta da sessão anterior e dá-se conta do expediente.
Antes da ordem do dia. — O Sr. Homem Cristo ocupa-se de ocorrências sucedidas na 3.ª divisão do exército.
Responde-lhe o Sr. Ministro da Guerra (Fernando Freiria).
O Sr. Ministro do Comércio (Vaz Guedes) requere, e é aprovado, que entre em discussão o parecer n.º 391.
Usam da palavra es Srs. Francisco Cruz, Paulo Cancela de Abreu e Dinis da Fonseca.
O Sr. Presidente comunica a noticia do falecimento do grande brasileiro Dr. Rui Barbosa e propõe que se lance na acta um voto de sentimento. Associam-se à proposta os Srs. Viriato da Fonseca, Lino Neto, Morais Carvalho, Almeida Ribeiro, Afonso de Melo e Ministro dos Negócios Estrangeiros (Domingos Pereira).
São feitas admissões.
O Sr. Alfredo de Sousa requere que, na primeira parte da ordem do dia, se. discuta a proposta do empréstimo interno.
O Sr. Ministro do Comércio (Queiroz V az Guedes) acentua a urgência que há em se discutir o projecto relativo aos Transportes Marítimos.
Usam da palavra sôbre o modo de votar os Srs. Carvalho da Silva e Paulo Cancela de Abreu.
E aproado o requerimento do Sr. Alfredo de Sousa.
Ordem do dia (Primeira parte). — Entra em discussão a proposta do Sr. Ministro das Finanças sôbre um empréstimo interno.
É dispensada a leitura.
Usa da palavra o Sr. Barros Queiroz.
Segunda parte. — Prossegue a discussão do Orçamento na generalidade, usando da palavra o Sr. Alberto Xavier que fica com ela reservada.
O Sr. Presidente encerra a sessão, marcando, a imediata com a respectiva ordem
Abertura da sessão às 14 horas e 10 minutos.
Presentes 37 Srs. Deputados.
São os seguintes:
Adolfo Augusto de Oliveira Coutinho.
Alfredo Ernesto de Sá Cardoso.
Alfredo Pinto de Azevedo e Sousa.
Angelo de Sá Couto da Cunha Sampaio Maia.
António Alberto Tôrres Garcia.
António Augusto Tavares Ferreira.
Artur Rodrigues de Almeida Ribeiro.
Augusto Pereira Nobre.
Baltasar de Almeida Teixeira.
Carlos Cândido Pereira.
Delfim de Araújo Moreira Lopes.
Fernando Augusto Freiria.
Francisco Cruz.
Francisco Dinis de Carvalho.
Francisco Gonçalves Velhinho Correia.
Francisco Manuel Homem Cristo.
Henrique Sátiro Lopes Pires Monteiro.
Jaime Daniel Leote do Rêgo.
João Estêvão Águas.
João Teixeira de Queiroz Vaz Guedes.
Joaquim Brandão.
Joaquim Narciso da Silva Matos.
Joaquim Serafim de Barros.
José Carvalho dos Santos.
José Mendes Nunes Loureiro.
José Pedro Ferreira.
Júlio Henrique de Abreu.
Juvenal Henrique de Araújo.
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Diário da Câmara aos Deputados
Lúcio de Campos Martins.
Manuel Eduardo da Costa Fragoso.
Manuel de Sousa da Câmara.
Marcos Cirilo Lopes Leitão.
Mário Moniz Pamploha Ramos.
Paulo Cancela de Abreu.
Pedro Augusto Pereira de Castro.
Pedro Januário do Vale Sá Pereira.
Viriato Gomes da Fonseca.
Entraram durante a sessão os Srs.:
Afonso de Melo Pinto Veloso.
Albano Augusto de Portugal Durão.
Alberto Ferreira Vidal.
Alberto de Moura Pinto.
Alberto da Rocha Saraiva.
Alberto Xavier.
Alfredo Rodrigues Gaspar.
Álvaro Xavier de Castro.
Américo Olavo Correia de Azevedo.
Aníbal Lúcio de Azevedo.
António Lino Neto.
António de Mendonça.
António de Paiva Gomes.
António de Sousa Maia.
Armando Pereira de Castro Agatão Lança.
Artur Alberto Camacho Lopes Cardoso.
Artur Brandão.
Artur de Morais Carvalho.
Artur Virgínio de Brito Carvalho da Silva.
Augusto Pires do Vale.
Bartolomeu dos Mártires de Sousa Severino.
Carlos Eugénio de Vasconcelos.
Constâncio de Oliveira.
Delfim Costa.
Domingos Leite Pereira.
Hermano José de Medeiros.
Jaime Júlio de Sousa.
João José da Conceição Camoesas.
João Luís Ricardo.
João de Ornelas da Silva.
João Pereira Bastos.
João Pina de Morais Júnior.
Joaquim António de Melo Castro Ribeiro.
Joaquim Dinis da Fonseca.
Joaquim Ribeiro de Carvalho.
José António de Magalhães.
José Domingues dos Santos.
Lourenço Correia Gomes.
Luís da Costa Amorim.
Manuel Alegre.
Manuel de Brito Camacho.
Manuel de Sousa Coutinho.
Mário de Magalhães Infante.
Matias Boleto Ferreira de Mira.
Paulo da Costa Menano.
Pedro Góis Pita.
Plínio Octávio de Sant'Ana e Silva.
Tomé José de Barros Queiroz.
Vasco Borges.
Vitorino Henriques Godinho.
Vitorino Máximo de Carvalho Guimarães.
Não compareceram à sessão os Srs.:
Abílio Correia da Silva Marçal.
Abílio Marques Mourão.
Adriano António Crispiniano da Fonseca.
Afonso Augusto da Costa.
Aires de Ornelas e Vasconcelos.
Alberto Carneiro Alves da Cruz.
Alberto Jordão Marques da Costa.
Alberto Lelo Portela.
Albino Pinto da Fonseca.
Amadeu Leite de Vasconcelos.
Amaro Garcia Loureiro.
Américo da Silva Castro.
António Abranches Ferrão.
António Albino Marques de Azevedo.
António Correia.
António Dias.
António Ginestal Machado.
António Joaquim Ferreira da Fonseca.
António Maria da Silva.
António Pais da Silva Marques.
António Resende.
António Vicente Ferreira.
Augusto Joaquim Alves dos Santos.
Bernardo Ferreira de Matos.
Carlos Olavo Correia de Azevedo.
Custódio Maldonado de Freitas.
Custódio Martins de Paiva.
Eugénio Rodrigues Aresta.
Fausto Cardoso de Figueiredo.
Feliz de Morais Barreira.
Francisco Coelho do Amaral Reis.
Francisco da Cunha Rêgo Chaves.
Francisco Pinto da Cunha Leal.
Germano José de Amorim.
Jaime Duarte Silva.
Jaime Pires Cansado.
João Baptista da Silva.
João Cardoso Moniz Bacelar.
João José Luís Damas.
João Salema.
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Sessão de 5 de Março de 1923
João de Sousa Uva.
João Vitorino Mealha.
Joaquim José de Oliveira.
Jorge Barros Capinha.
Jorge de Vasconcelos Nunes.
José Cortês dos Santos.
José Joaquim Gomes de Vilhena.
José Marques Loureiro.
José Mendes Ribeiro Norton de Matos.
José Miguel Lamartine Prazeres da Costa.
José Novais de Carvalho Soares de Medeiros.
José de Oliveira da Costa Gonçalves.
José de Oliveira Salvador.
Júlio Gonçalves.
Leonardo José Coimbra.
Lúcio Alberto Pinheiro dos Santos.
Luís António da Silva Tavares de Carvalho.
Manuel Duarte.
Manuel Ferreira da Rocha.
Manuel de Sousa Dias Júnior.
Mariano Martins.
Mariano Rocha Felgueiras.
Maximino de Matos.
Nuno Simões.
Paulo Limpo de Lacerda.
Rodrigo José Rodrigues.
Sebastião de Herédia.
Teófilo Maciel Pais Carneiro.
Tomás de Sousa Rosa.
Valentim Guerra.
Ventura Malheiro Reimão.
Vergílio da Conceição Costa.
Vergílio Saque.
Às 14 horas principiou a fazer-se a chamada.
O Sr. Presidente: — Estão presentes 37 Srs. Deputados. Está aberta a sessão. Vai ler-se a acta. Eram 14 horas e 40 minutos. Leu-se a acta. Deu-se conta do seguinte
Expediente
Telegramas
Dos representantes das linhas de navegação do Pôrto, comunicando que terão de suspender toda a navegação por Leis, se não fôr autorizada a junta autónoma, a proceder a obras e dragagens imediatas.
Para a Secretaria.
Da Câmara Municipal de Matosinhos, pedindo para serem facultados à Junta Autónoma de Leixões elementos para tomar providências, para que êsse porto não se feche à navegação.
Para a Secretaria.
Da Câmara Municipal de Mangualde, protestando contra o facto de a Câmara Municipal de Lisboa ter mudado o nome da Rua das Trinas para Rua Sara de Matos.
Para a Secretaria.
Da Associação dos Empregados Menores do Estado, pedindo o urgente cumprimento da lei n.º 1:355.
Para a Secretaria.
Das Câmaras Municipais de S. Vicente e Sant'Ana (Madeira) protestando contra o projecto aplicando-lhes o § 3.º do artigo 1.º da lei n.º 999.
Para a Secretaria.
Ofícios
Do presidente da comissão geral da cultura do tabaco do Douro, enviando cópia da acta da sua sessão de 26 de Fevereiro findo, relativa ao projectado acordo entre o Estado e a Companhia dos Tabacos.
Para a Secretaria.
Do antigo Senador, Sr. José Maria Pereira, agradecendo o voto de sentimento pelo falecimento de sua esposa.
Para a Secretaria.
Do Ministério das Finanças, enviando cópias de documentos para o Sr. António M aia.
Para a Secretaria.
Do mesmo, satisfazendo ao pedindo feito no ofício n.º 198, para o Sr. Joaquim Brandão.
Para a Secretaria.
Do mesmo, respondendo ao assunto do requerimento do Sr. Joaquim Brandão, comunicado no ofício n.º 199.
Para a Secretaria.
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Do mesmo, com a cópia dum documento pedido para o Sr. Joaquim Brandão, no ofício n.º 200.
Para a Secretaria.
Do mesmo, com um requerimento do primeiro sargento Luís Duarte Laureano, pedindo para ser chamado à segunda frequência da Escola Preparatória de Oficiais do Secretariado Militar.
Para a comissão de guerra.
O Sr. Presidente: — Vai entrar-se no período de
Antes da ordem do dia
O Sr. Homem Cristo: — Sr. Presidente: pedi a palavra não só para tratar de uma maneira mais geral aquilo sôbre que falei, particularmente, nesta Câmara, ao Sr. Ministro da Guerra, mas para que conste, dos anais desta casa do Parlamento, o meu protesto contra os abusos e arbitrariedades, que se vêm de há muito cometendo na área da 3.ª divisão do exército.
O ponto restrito, sôbre que falei ao Sr. Ministro da Guerra, diz respeito à perseguição sistemática feita a dois oficiais do exército, que não podem, nem sequer para prestar homenagem aos seus parentes mortos ou visitar os filhos moribundos, entrar na área da 3.ª divisão, porque o Sr. general comandante o não consente.
Eu vou historiar pormenorizadamente.
Em domingo gordo, do ano passado, subia a Rua de Santo António, ou antes a Rua 31 de Janeiro, o tenente Alberto Joaquim Correia, em companhia de duas senhoras, suas filhas, quando repentinamente se sentiu agarrado por um braço, ouvindo preguntar:
«— Porque não me tirou o chapéu?».
Olhou e viu que era um capitão com o qual havia mantido sempre as melhores relações de amizade.
«— Naturalmente, respondeu, porque o não vi».
«Tire o chapéu, disse o capitão».
E o tenente tirou o chapéu respeitosamente.
O capitão increpou-o em seguida, na presença das duas senhoras, suas filhas, e cada qual seguiu o seu caminho.
No dia imediato, o tenente teve conhecimento de que o capitão havia dado parte dele, e para contrabalançar essa participação fez uma queixa pela forma inconveniente como tinha sido tratado numa rua tam concorrida, como é a de 31 de Janeiro, em domingo gordo.
A queixa não foi atendida, e, dias depois, o tenente foi castigado com cinco dias de prisão disciplinar.
Ora, Sr. Ministro da Guerra, fôsse qual fôsse o oficial, cinco dias de prisão disciplinar, por tal motivo, é uma iniquidade, manifestamente.
A cada passo encontramos na rua, todos nós, pessoas das nossas relações, a quem deixamos de cumprimentar por irmos distraídos.
Como se pode provar que se deixa de Cumprimentar alguém, propositadamente?
Depois, quem era o tenente Alberto Joaquim Correia?
Era um homem que tinha, até êsse momento, 21 anos de serviço sem mácula nenhuma; era um homem que tinha três louvores como primeiro sargento, durante o tempo em que serviu em África, e dois outros, em França, por serviços em campanha, um por ter mantido e fortalecido com a maior coragem o ânimo dos seus soldados durante um bombardeamento intenso a que esteve sujeita a sua bataria, sem que as ordens do comandante dessa bataria deixassem um só momento de ser cumpridas, outro por ter, debaixo de um fogo da mesma forma intenso, ido buscar vários feridos, salvando-os, a outra bataria.
Êste homem, meus senhores, tem sete condecorações, uma das quais é a Cruz de Guerra e outra a medalha de prata de bons serviços em campanha.
Ora, Sr. Presidente, êste castigo, à face do Regulamento Disciplinar, é manifestamente iníquo, porque êle diz no artigo 72.º:
«Os superiores devem ser zelosos em prevenir as faltas dos seus subordinados, evitando qualquer auto que as possa provocar, não dando, em regra, qualquer ordem sem primeiro se certificarem de que ela pode ser inteiramente cumprida, e,
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quando houverem de recorrer aos meios de repressão autorizados neste Regulamento, devem usar dêles com prudência, apreciando com inteira justiça e a máxima imparcialidade as faltas cometidas e os motivos destas faltas, se forem conhecidos, abstendo-se sempre de rigores excessivos que, longe de excitarem, enfraquecem o sentimento do dever, base da subordinação e da disciplina».
Diz o artigo 74.º:
«O superior deve, sempre que fôr possível, ouvir o inferior antes de lhe aplicar qualquer punição».
Diz o artigo 78.º:
«As punições devem ser proporcionadas às infracções, tendo sempre em consideração:
A natureza da falta;
As circunstâncias que a acompanharam;
O comportamento anterior;
O tempo de serviço;
O grau de inteligência;
O carácter e o conhecimento mais ou menos perfeito que o infractor devia ter dos deveres e das regras de disciplina».
Ora, como V. Ex.ªs vêem, tendo êste oficial 21 anos de comportamento exemplar, sete condecorações, duas das quais são muitíssimo importantes, não podia ser castigado com cinco dias de prisão disciplinar por falta tam simples.
Quem cometeu a iniquidade?
Foi o Sr. general da divisão.
Mas há mais alguma cousa. O general comandante não podia castigar o tenente, nem qualquer seu subordinado, sem previamente o ouvir.
Todavia, assim se não fez, e o Regulamento Disciplinar diz que a maneira de manter a disciplina é o prestígio do chefe, e êsse prestígio só se adquire pelo cumprimento rigoroso da lei, pelo respeito dos deveres de todos e pela forma moderada como se exerce o comando. Isto está escrito no Regulamento.
Sr. Presidente e Sr. Ministro da Guerra: tanto eu estou a dentro da verdade, que o comandante do grupo de metralhadoras a que o tenente pertencia, ao ter conhecimento do castigo, não o fez publicar desde logo na ordem regimental, como lhe competia, e foi ter com o general para lhe dizer que aquele homem não podia ser castigado com cinco dias de prisão disciplinar.
Porém, o general nem sequer quis ler a folha de matrícula do tenente, e despediu muito mal humorado o comandante do grupo de metralhadoras.
Publicado o castigo e cumprido, quando o tenente saía do regimento, à parada da guarda, com a sua guia, todo? os oficiais presentes vieram acompanhá-lo até à porta, o que representa, tacitamente, um protesto do 3.º grupo de metralhadoras contra a iniquidade cometida pelo general da divisão.
A informação que acompanhou o tenente, dada pelo comandante do 3.º grupo de metralhadoras, é do teor seguinte:
«Este oficial foi durante o tempo que serviu neste grupo muito correcto, leal e dedicado pelo serviço. Conquistou sempre a estima de todos os camaradas. Formo dele o melhor conceito».
O comandante de infantaria n.º 21, para onde o tenente foi transferido como consequência do castigo, diz:
«Durante o pouco tempo que serviu nesta unidade mostrou grande dedicação pelo serviço e grande conhecimento dos vários serviços de que foi incumbido. E um modelar chefe. de família, formando dele o melhor conceito, confirmando a informação dada pelo Sr. comandante do 3.º grupo de metralhadoras».
O comandante de artilharia n.º 5, para onde depois foi transferido o tenente Correia, diz:
«Durante o pouco tempo que serviu no regimento mostrou-se dedicado pelo serviço, não tendo desmerecido o conceito em que o tiveram os comandantes das unidades com quem serviu antes da sua colocação neste regimento».
E o comandante de cavalaria n.º 8 diz, finalmente:
«Durante o tempo que tem servido neste regimento tem mantido senão aumenta-
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do a boa conta em que é tido pelos comandantes das unidades em que tem servido e mostrou muita aptidão e dedicação pelo serviço. E muito correcto e disciplinado e julgo-o nas condições de ser promovido ao pôsto imediato quando lhe pertencer».
São, portanto, quatro coronéis comandantes de regimentos, que, embora dum modo indirecto, vêm dizer que ao general da divisão não era permitido castigar tam brutalmente um homem que tendo uma brilhante folha de serviços antes do castigo, continuou a merecer depois dele, as melhores informações.
E por estas e outras que a disciplina do exército anda há muito tempo pela lama.
Mas como se compreende que tendo ò tenente as melhores relações com o capitão, êste o tratasse na rua, e por um motivo fútil, tam incivilmente? Alguma cousa havia de extraordinário.
Parece que era uma provocação, o que vem agravar o procedimento do general.
O Sr. Presidente: — Tenho a prevenir V. Ex.ª de que já está muito excedido o tempo
O Orador: — Está muito bem. Então não direi mais uma palavra. Tenho visto aqui gastar tanto tempo com cousas inúteis!...Não digo mais uma palavra, nem volto à Câmara.
O Sr. Presidente: — Eu chamei a atenção de V. Ex.ª, para que V. Ex.ª pudesse terminar as suas considerações em dois ou três minutos, ou ficasse com a palavra reservada. Agora, se V. Ex.ª quere desistir da palavra...
O Orador: — Eu não desisto da palavra. V. Ex.ª é que ma tira.
O Sr. Presidente: — É que o Regimento só permite que se use da palavra, antes da ordem do dia, pelo espaço de dez minutos, e V. Ex.ª já está a falar há dezoito minutos.
O Orador: — Então não digo mais nada.
Vozes: — Fale, fale,
O Orador: — Se V. Ex.ª s quisesse, consultava a Câmara.
O Sr. Presidente: — Só o posso fazer a requerimento de V. Ex.ª
O Orador: — Então requeiro que V. Ex.ª consulte a Câmara.
Vozes: — Fale, fale.
O Sr. Presidente: — Não é preciso, em vista da manifestação da Câmara.
O Orador: — Agradeço a V. Ex.ª e à Câmara.
Reatando o fio das minhas considerações, devo dizer que o Sr. tenente Correia soube que o filho do Sr. general havia dito algures que êle, Correia, tinha assistido a uma reunião revolucionária contra o Govêrno, e em virtude disso escreveu a carta, que eu vou ler a V. Ex.ª,
«Exmo. Sr. alferes António de Sousa Rosa. — Constando-me que V. Ex.ª foi informado de que eu tinha reuniões secretas com elementos outubristas, populares e bolchevistas na Rua do Almada, rogo-lhe a fineza de me dizer, por escrito, quem foram as pessoas que lhe deram tal informação, a fim de as poder chamar à responsabilidade por falsas declarações.
Peço-lhe o favor de me autorizar a fazer uso da sua resposta, caso disso necessite. — De V. Ex.ª, etc. «.
A resposta do Sr. alferes Rosa foi a seguinte:
«Exmo. Sr. Alberto Joaquim Correia. — Em resposta à carta de V. Ex.ª tenho a dizer-lhe que tendo sido, como ajudante do Exmo. general, encarregado de vários serviços confidenciais, que. como a palavra indica, não são de molde a poder-se dar dêles informações a alguém, soube aquilo mesmo que V. Ex.ª diz constar-lhe de que eu fui informado. E, mesmo que assim não fôsse, V. Ex.ª não tem o direito de esperar de mim qualquer denúncia ou nomeação de terceiro para tomar responsabilidades, pois é cousa que eu nunca deleguei em ninguém. É isto que lhe posso comunicar. As ordens de S. Ex.ª se subscreve, etc. «.
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Por conseguinte, temos aqui o Sr. alferes Rosa, filho do Sr. general, encarregado dum serviço de espionagem contra os seus camaradas. É êle, publicamente, que o confessa! Ora êste serviço é contrário à dignidade da profissão das armas. A espionagem contra o inimigo está autorizada em todo o mundo, porque tem um carácter moral inteiramente diverso, mas a espionagem contra os próprios amigos, contra aqueles que militam até na mesma causa, no mesmo campo político, como aqui se dava, é manifestamente contrária à dignidade da profissão das armas.
Mas há ainda outro ponto a atender. E que o Sr. alferes Rosa dizia na carta que o seu serviço era de natureza confidencia], e que, assim, não podia dizer ao Sr. tenente Correia quem haviam sido as pessoas que o tinham informado; mas, se êsse serviço ora de natureza confidencial, como é que foi coutá-lo a outras pessoas?
Se o podia contar a outras pessoas, quebrando o sigilo imposto pelo n.º 45.º do artigo 4.º do Regulamento, e assim incorrendo numa infracção disciplinar, também o podia contar ao tenente Correia.
Diz o n.º 45.º do citado artigo:
«Não revelar quaisquer ordens de serviço de carácter confidencial que haja de cumprir ou de que tenha simples conhecimento, nem o santo, senha ou contra-senha, e observar o mais rigoroso sigilo sôbre todos os assuntos de natureza secreta».
Ora o alferes Rosa quebrou êsse sigilo indo contar a terceiros, que por sua vez o contaram ao tenente Correia, aquilo a que dizia ter chegado nas averiguações a que procedera por ordem de seu pai.
Como pretendia depois entrincheirar-se atrás do segredo profissional?
O tenente Sr. Correia, em vista disto, requereu ao Ministério da Guerra que procedesse a um inquérito, castigando-o se, porventura, se provasse que êle tinha conspirado contra o Govêrno, ou, concluindo-se que estava inocento, que se procedesse energicamente contra o alferes Sr. Rosa por infracção de várias disposições do regulamento disciplinar. Êste requerimento nem sequer resposta teve.
O referido tenente continuou a andar transferido de regimento para regimento, até que lhe foi concedida licença para, aos domingos, ir visitar a família ao Pôrto. Foi àquela cidade, mas à quarta ou quinta vez é chamado ao quartel general, e ali dizem-lhe que não pode continuar a ir ao Pôrto, porque o acusam de ser chefe dum movimento revolucionário.
Tornou o tenente Sr. Correia a pedir um inquérito aos seus actos, mas, como anteriormente, até hoje não obteve nenhuma resposta.
Morre-lhe a sogra em Vila Nova de Gaia e êle não pode ir ver o seu cadáver.
Teve uma filha extremamente doente, e êle não a podia ir ver senão furtivamente, como um ladrão. Como um ladrão, êle, que tem o peito coberto de medalhas! E devidas, não ao favoritismo com que tantas são adquiridas, mas a autênticos actos de valor no campo da batalha.
E assim se mata, Sr. Presidente, todo o estímulo ao cumprimento do dever no coração dos homens capazes de bem servir a sua Pátria.
E assim se vai arraigando, Sr. Presidente, a velha convicção, que já penetrou fundo em todos os espíritos, de que neste país só são acarinhados e premiados todos os ladrões e todos os bandalhos, e perseguidos ou esquecidos todos os homens honestos e prestimosos.
Sabe-se o culto, Sr. Presidente, que têm os velhos militares pela sua folha limpa, que é para elos um título de honra, que veneram como quem venera uma relíquia dentro dum sacrário. Manchar a sua folha de matrícula, quando ela se conserva muitos anos sem mácula, é levar o mais profundo desgosto à sua alma. Imagine-se, pois, o estado moral em que ficaria o tenente Correia ao receber, ao fim, de vinte e um anos de serviço com comportamento exemplar, cinco dias de prisão disciplinar por uma futilidade, sem atenção alguma pelos serviços que prestara.
Como êle havia de preguntar a si próprio para que servia ser honesto e brioso nesta Pátria. Para que servia sacrificar-se alguém por ela sendo escravo do dever, como êle o fora, e arriscando a vida, como êle a arriscara, e no momento em que os acomodatícios e traidores eram tantos no campo da batalha.
Êste é um caso.
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Se eu fôsse a contar os casos todos que eu conheço, estaria aqui a falar até amanhã. Mas couto ainda outro; êste dizendo respeito ao capitão Francisco Ramos, e em que houve intervenção do Ministério da Guerra.
Êste oficial foi transferido um dia do Pôrto. Tendo lá família, pediu, e foi-lhe concedida, licença disciplinar, que declarou querer gozar na área da 3.ª divisão. Chegado ao Pôrto, apresentou-se no quartel general. Mas ali lhe dizem logo, primeiro o chefe de estado maior, depois, em pessoa, o próprio general:
«Ponha-se fora, que não pode permanecer nesta cidade».
Isto é extraordinário, pois que a licença disciplinar pode gozar-se em qualquer ponto do território nacional.
Contudo, êle não se retira sem que lhe averbem na guia o motivo por que entendem que não pode' permanecer no Pôrto, e sem que lhe dêem guia de caminho de ferro.
O capitão Ramos queixou-se, mas debalde. Queixou-se dizendo na sua queixa que o único motivo por que o general o tratava agora assim, depois de o ter enchido de considerações, era êle ter-se recusado a ensinar um cavalo do alferes Rosa.
Mais tarde, tendo precisão de voltar ao Pôrto, requereu ao Ministério da Guerra licença para ir àquela cidade. Mas o antecessor de V. Ex.ª, Sr. Ministro, diz-lhe que só o comandante da 3. a divisão é juiz das razões que imperam para que não seja permitida a sua permanência no Pôrto.
Só o comandante da 3. a divisão é juiz, Sr. Ministro da Guerra, como se houvesse algum juiz capaz de julgar fora da lei e sem apelo das sentenças que pronunciar. Superiores aos juizes, quando julgam individualmente, há os juizes da Relação e do Supremo, que julgam colectivamente.
Há mesmo um tribunal especial para os julgar e condenar pelas suas imoralidades e arbitrariedades.
O Ministro da Guerra não teve pejo de fazer uma tal afirmativa, de se pôr de cócoras perante o comandante duma divisão qae tem cometido toda a casta de arbitrariedades, que no exercício do seu cargo se tem incompatibilizado com quási todos os comandantes de unidade.
O capitão Ramos declarou publicamente, como acabo de dizer, que o comandante da divisão se incompatibilizara com êle, por êle se ter negado a ensinar um cavalo do filho, o alferes Rosa.
O comandante de um regimento de cavalaria fez também a declaração pública de que o general se havia incompatibilizado com êle, porque o mesmo comandante se opôs a que o filho do general se utilizasse do picadeiro do regimento para ensinar a andar a cavalo uma bailarina sua conhecida.
Devo acrescentar, a título de curiosidade, que tendo a bailarina partido uma perna, no picadeiro, o comandante da divisão se apressou a ir ao referido regimento, acompanhado do chefe de estado maior, dando ordens para que os soldados a transportassem ao hospital na maca do próprio regimento.
Foi a única vez que, e por tal motivo, entrou no quartel, segundo o declara em documento oficial, o comandante do regimento.
De quem é a responsabilidade de todos, êstes factos?
É do filho? Não.
É do pai, que além de obrigar o filho a praticai serviços de espionagem contra os seus camaradas, o deixa cometer todos os abusos, pôr em prática quanto de pior lhe vem à fantasia.
Emquanto a bailarina aprendia equitação nos cavalos do Estado, chamava à ordem o comandante do regimento, porque dois oficiais, nos seus cavalos, davam num colégio particular lições de equitação.
O comandante que até aí fechava os olhos ao caso da bailarina, fingindo que não sabia, reprimiu o abuso, indignado com a arbitrariedade do general e o seu escandaloso favoritismo.
Então o general, chamando, de novo o comandante do regimento, disse-lhe que fizesse vista grossa e que deixasse que os dois oficiais governassem a sua vida.
Isto é manifesto, para que êle também deixasse continuar o abuso da bailarina.
Mas as arbitrariedades do general não têm conto.
São inúmeras.
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Chamou por outra vez o comandante do regimento de que se trata, cavalaria 9, para lhe dizer que no esquadrão de determinado capitão se cometiam irregularidades contra as quais era necessário proceder.
Que nomeasse um major para averiguar do que havia.
O comandante do regimento respondeu-lhe que não podia ordenar a averiguação ou a sindicância sem usar do nome dele, general, ou sem que êste lhe dissesse o nome da pessoa que levara as referidas irregularidades ao seu conhecimento.
O general negou-se a isto.
A pessoa, está de ver, era o filho.
E acrescentou: «O melhor é você mandar uma confidencial ao chefe de estado maior, dizendo que constando pelo rumor público que no 3.º esquadrão há várias irregularidades, pedia que para averiguações se nomeasse um major estranho ao regimento».
O comandante, que já sabia com quem lidava, fez-se «lorpa», pedindo ao general que lhe dêsse então um rascunho para a confidencial, mesmo porque êle nada sabia nem ouvira.
O general assim fez, dando-lhe o rascunho, que o outro guardou cuidadosamente.
Tornada pública a sindicância, um outro capitão, das relações do general, disse a êste que a sindicância era uma vergonha, pois o que se estava fazendo no esquadrão do capitão sindicado era o que se fazia nos restantes esquadrões do regimento e nos esquadrões de todos os outros regimentos.
Ao que o general respondeu: «Também sou dessa opinião. Mas que quere, se o Raul Vidal mandou uma confidencial a participar o caso, e se eu não posso tirar a fôrça aos comandantes dos regimentos"?
O capitão, da conversa, no intuito de salvar o seu camarada, foi transmitir o que ouvira ao general, ao comandante do regimento.
«Ai êle é isso? — replicou êste. — Então espere lá. Veja se conhece esta letra — mostrando ao capitão o rascunho que tirara de uma gaveta. — Fique sabendo que foi o general que me chamou, que foi êle que me revelou as supostas irregularidades do seu colega no comando do esquadrão, e que foi êle próprio quem redigiu a confidencial, como se vê dêsse rascunho».
O capitão, atónito, preguntou ao comandante se lhe cedia o rascunho até o dia seguinte.
Tendo êste acedido, foi otografá-lo^ mostrando a fotografia e contando tudo no dia em que o seu colega foi julgado no Conselho Superior de Disciplina do Exército, onde depôs como testemunha;
O resultado foi aquele ser imediatamente absolvido.
Pudera não!
Mas o que lamento, é que o Conselho Superior de Disciplina do Exército, ouvindo êsses e outros depoimentos, todos denunciadores dos abusos, das arbitrariedades e dos crimes do comandante da 3.ª divisão do exército, ainda não haja, até hoje, procedido contra êle.
Isto assim não pode continuar, Sr. Presidente! Isto é uma orgia!
Há um ditado que diz que não há. bem que não acabe nem mal que sempre dure. Estou certo de que êste mal também há de acabar, e brevemente.
Eis, pois, o lindo estado em que se encontra à 3.ª divisão do exército! Sem contar com as despesas que isto acarreta para a Nação! Não sei se terei pachorra para discutir o orçamento do Ministério da Guerra. Perdi inteiramente a fé em tudo isto. Mas, se tiver, mostrarei vários escândalos em que se consomem torrentes de dinheiro.
Um dêles é êste. Castiga-se arbitrariamente, iniquamente, com cinco dias de prisão disciplinar, um oficial com uma magnífica folha de serviços. O ponto de vista moral já o analisámos nas suas revoltantes consequências.
Mas, quere V. Ex.ª ver, Sr. Presidente, o que daí resultou finalmente?
Resultou isto: essa arbitrariedade, essa iniquidade, custou até agora ao País, 1. 316$.
Antecipo-me à resposta que me poderia dar o Sr. Ministro da Guerra, dizendo que os oficiais transferidos por motivo disciplinar não têm direito a ajuda de custo. Eu sei. Mas também. sei que, sendo quási todos êles, senão todos, transferidos para as guarnições da fronteira, todos êles se vão aproximando da torra em que serviços por transferências sucessivas. Foi
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assim que o tenente Alberto Joaquim Correia, transferido por motivo disciplinar para a Covilhã, teve depois disso mais três transferências que se eleva à importante soma de 1. 316$! Isto por um único oficiai. Mas os oficiais e sargentos transferidos por ódio,, vingança ou perseguição política contam-se por centenas anualmente.
Cada oficial recebe guia de caminho de ferro para si e para a família. Tem direito ao transporte de dois cavalos, se é de cavalaria, e a um cavalo, se é de qualquer outra arma montada. Tem direito ao frete de um vagão para transporte da sua mobília. Tem direito a ajuda de custo por efeito de marcha e a ajuda de custo por efeito de mudança de residência, sendo esta de 300$ para sargentos, de 420$ para alferes e tenentes, de 480$ para capitães, e de 540$ para oficiais superiores. Na maioria dos casos esta despesa é duplicada, porque o oficial e o sargento transferidos têm de ser substituídos.
A quanto monta isto, sabendo todo o mundo que as transferências são constantes e que a cada passo vêm tropas da província para manter êstes, Governos dissolutos?
Protesto e protestarei sem cessar contra estas iniquidades e estas dissipações sem nome. E tenha V. Ex.ª a certeza, Sr. Ministro da Guerra, de que não largarei de mão as violências e os atentados à lei e ao bom nome do exército que o comandante da 3.ª divisão do exército está cometendo no Porto.
Tenho dito.
O Sr. Ministro da Guerra (Fernando Freiria): — Sr. Presidente: pedi a palavra para responder às considerações apresentadas pelo Sr. Deputado Homem Cristo, que ouvi com a máxima atenção.
S. Ex.ª citou vários casos, censurando asperamente o procedimento do Sr. comandante da 3.ª divisão do exército, que é também um ilustre Deputado, e pelo que respeita à crítica pessoal do Sr. Homem Cristo, certamente que o Sr. comandante da 3.ª divisão, nesta mesma sala onde foi acusado, saberá defender-se.
Começou o Sr. Homem Cristo por fazer referência ao caso do tenente Sr. Correia, que, como S. Ex.ª declarou no final do seu discurso, é efectivamente um caso antigo, em que eu não tenho qualquer responsabilidade. S. Ex.ª, tendo tido a amabilidade de me avisar de que ia referir-se a êste assunto, aludiu apenas ao requerimento feito por êste oficial para que fôsse feita uma sindicância aos seus actos.
Procurei estudar o assunto nestes dois dias últimos, e assim chamei a mim o processo respeitante ao tenente Correia e vi então que realmente êste oficial tinha sido castigado, reclamou, e sôbre esta reclamação levou um recurso. Esgotaram-se, portanto, todos os meios legais de reclamação.
O Sr. Homem Cristo: — Há pouco esqueceu-me de dizer a V. Ex.ª que o Sr. comandante da 3.ª divisão não nomeou um oficial com graduação superior à do tenente Correia, como determina o regulamento disciplinar.
O Orador: — V. Ex.ª compreende que eu não pude estudar o processo a fundo.
O que sei é que as reclamações só podem ser atendidas por dois motivos: ou pôr não cometimento da falta, ou por excesso de competência, e, em rigor não havia nenhum dêstes casos. Mas o que me impressionou sobretudo foi o pedido feito nesse requerimento para que. se averiguasse a sua situação a fim de êle, requerente, poder ou não residir no Pôrto. Não dei despacho nenhum, mas perante um novo requerimento far-se há a sindicância que determinará o despacho a fazer para a resolução do caso conforme fôr de justiça.
Creio ter dado à Câmara explicações suficientes relativamente ao caso do Sr. tenente Correia.
Passou S. Ex.ª depois a referir-se ao caso do capitão picador Sr. Ramos, e disse que eu já tinha tido nele uma interferência.
É verdade; mas não é de molde a servir de base às acusações que me foram dirigidas.
É realmente duro privar um oficial da faculdade de poder residir em determinado ponto do território português, no gozo de licença disciplinar, mas isso em condições normais.
Trata-se, porém dum caso anormal, que ê a alteração da ordem pública, e eu
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mandei pregnntar ao Sr. comandante da divisão se realmente a permanência dêsse oficial no Pôrto podia perturbar a ordem, tendo obtido uma resposta afirmativa.
Em face disto lancei no despacho a seguinte deliberação: «por emquanto não posso deferir o requerimento».
Devo fazer justiça ao Sr. comandante da divisão, que continua merecendo a minha inteira confiança.
Conseqúentemente, desde que S. Ex.ª me dizia que não era oportuna, neste momento, por questões de ordem pública, a ida dêsse oficial ao Pôrto, eu, que tenho por dever defender à outrance a ordem pública, não podia senão lançar o despacho que lancei.
Com respeito ao caso do Sr. capitão Morais, confesso à Câmara que desconhecia êsse assunto. Vou averiguar o caso e procederei como fôr de justiça, seja contra quem fôr.
O Sr. Homem Cristo terminou as suas considerações por protestar contra os desperdícios que acarretam as transferências de oficiais e sargentos.
Devo dizer a S. Ex.ª que, se quiser dar-se ao incómodo de consultar as Ordens do Exército desde que sou Ministro, só encontrará transferências por, promoções ou a pedido, e quando são feitas a pedido dos próprios não dão direito a ajudas de custo.
Sr. Presidente: dadas estas explicações, eu afirmo à Câmara que continuarei a fazer justiça e que até êste momento continuo a considerar o Sr. general Sousa Rosa, pelo que respeita, às suas qualidades de disciplinado e de disciplinador, como um valioso auxiliar da manutenção da disciplina e da ordem pública. Apoiados.
Tenho dito.
O orador não reviu.
O Sr. Ministro do Comércio e Comunicações (Queiroz Vaz Guedes) — Sr. Presidente: peço a V. Ex.ª a fineza de consultar a Câmara sôbre se permite que se faça imediatamente a discussão, por ser urgente a aprovação da respectiva proposta, do parecer n.º 391, sôbre os Transportes Marítimos do Estado.
Foi aprovado.
O Sr. Presidente: — Vai ler-se o parecer n.º 391.
O Sr. Carlos Pereira: — Requeiro a dispensa da leitura.
Foi aprovado.
O Sr. Presidente: — Está em discussão na generalidade.
É o seguinte:
Parecer n.º 391
Senhores Deputados. — A proposta de liei n.º 383-B, do Ministro do Comércio e Comunicações, Sr. Queiroz Vaz Guedes, que baixou à apreciação da vossa comissão de comércio e indústria, traduz não só uma legítima aspiração da opinião pública republicana, mas ainda a de todos os portugueses honestos que sentem todos os males da Pátria e se interessam pelo bom nome e crédito do país.
O seu objectivo, continuação da sindicância a todos os serviços dos Transportes Marítimos do Estado, ordenada pelo decreto n.º 7:814. de 17 de Novembro de 1921, dando-lhe ainda uma maior latitude pela disposição do § 1.º do seu artigo 1.º, corresponde a uma imperiosa necessidade de momento, apurar e responsabilizar os agentes e causadores do descalabro da administração da frota mercante do Estado, de cujas faltas, erros e crimes resultou o descrédito dentro e fora do país com o seu consequente desastre financeiro.
Dependente, porventura, — de qualquer alteração que em. matéria jurídica possa vir a ser introduzida pela respectiva comissão da especialidade, a de legislação civil e criminal, de forma a não alterar a sua essência, a vossa comissão de comércio e indústria julga de urgência e recomenda à vossa aprovação a citada proposta de lei n.º 383-B.
Sala das sessões da comissão de comércio e indústria, 23 de Janeiro de 1923. — Aníbal Lúcio de Azevedo, presidente e relator — F. G. Velhinho Correia — Carlos Pereira — José Domingues dos Santos — António Fonseca.
Senhores Deputados. — Os considerandos que precedem a- proposta de lei n.º 383-B, e o parecer que sôbre ela elaborou a vossa comissão de comércio e indústria, justificam-na cabalmente.
A vossa comissão de legislação criminal, concordando assim com a doutrina
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da proposta, entende que, para sua melhor eficácia, deve introduzir na sua técnica algumas alterações.
É necessário que todas as diligências praticadas e a praticar na sindicância em curso tenham fôrça de corpo de delito, porque assim se evita a inútil repetição de actos que, por terem sido presididos por um magistrado judicial, nos dão todas as garantias de legalidade.
Deve efectivamente fixar-se um prazo para termo da sindicância, e como convém ao prestígio da justiça e até das próprias instituições republicanas que ràpidamente se apliquem sanções que aos diferentes casos couberem, a vossa comissão entende que o prazo da proposta deve ser reduzido a sessenta dias para a remessa dos processos criminais ajuízo, deixando-se ao Sr. Ministro do Comércio a faculdade de o prorrogar por mais trinta dias, unicamente para efeitos da conclusão do respectivo relatório.
Nestas condições, a vossa comissão de legislação criminal entende que a proposta deve ser aprovada, com pequenas alterações.
Quanto à parte financeira da proposta, a respectiva comissão dirá o que fôr de justiça.
Alterações à proposta:
O § 2.º do artigo 1.º deverá ser redigido da forma seguinte:
§ 2.º A sindicância será concluída no prazo de sessenta dias, devendo nesse prazo ser remetidos a juízo os processos criminais que estiverem devidamente preparados, e podendo o Ministro do Comércio prorrogar êste prazo por trinta dias, unicamente para efeitos da conclusão do respectivo relatório.
A êste artigo 1.º deve acrescentar-se o seguinte parágrafo novo:
§ 3.º Findo o prazo de sessenta dias a que se refere o parágrafo anterior, entrará imediatamente em vigor o disposto no artigo 20.º da lei n.º 1:346.
Ao artigo 2.º da proposta deve fazer-se o seguinte aditamento:
«...e todps os actos e diligências praticados pelo juiz sindicante e seu auxiliar ou adjunto terão fôrça de corpo de delito».
Sala das sessões da comissão de legislação criminal, 6 de Fevereiro de 1923. — Adolfo Continha — A. Crispiniano — João Bacelar — Pedro de Castro — Amadeu de Vasconcelos, relator.
Senhores Deputados. — A vossa comissão de finanças fez o estudo da proposta de lei n.º 383-B — parecer n.º 391 — e bem assim dos pareceres das vossas comissões de comércio e indústria e de legislação criminal, que se pronunciaram na esfera das suas atribuïções.
Semelhantemente a vossa comissão de finanças dentro das suas atribuïções entende que, no que se refere à gratificação a atribuir ao juiz sindicante, que ela deverá ser a mesma que lhe era atribuído pela portaria de 22 de Novembro de 1921, não vendo razões para que seja alterada, entendendo no emtanto que as palavras «passará a ser diária», que se lêem no artigo 6.º da proposta, devem ser eliminadas por naquela portaria se estabelecer que a gratificação 6 «por dia útil de serviço», com o que concorda a vossa comissão, por virtude de tal eliminação, a redacção do artigo 6.º deverá ser:
Artigo 6.º O juiz sindicante terá a gratificação que lhe é atribuída pela portaria de 22 de Novembro de 1921, livre de quaisquer encargos e excluída do limite fixado pelo artigo 22.º da lei n.º 1:355, de 15 de Setembro de 1922.
A vossa comissão de finanças propõe que ao artigo 9.º da proposta se adite o seguinte:
§ único. Ao juiz sindicante e ao pessoal que o tem auxiliado na conclusão dos trabalhos realizados posteriormente ao prazo em que, nos termos do § 2.º do artigo 20.º da lei n.º 1:346, de 9 de Setembro de 1922, terminaram as investigações criminais, ser-lhes hão pagos todos os vencimentos anteriormente fixados, a contar do referido prazo.
A razão dêste aditamento está em que posteriormente àquele prazo para conclusão das sindicâncias, o juiz sindicante e o pessoal auxiliar se manteve ao serviço concluindo os trabalhos referentes às sindicâncias por determinação ministerial constante de uma portaria, acrescendo que, se tal aditamento não fôsse votado, o juiz sindicante e demais pessoal, nos precisos termos do artigo 27,º da lei de 14 de Junho de 1913, não perceberiam vencimentos alguns, quer pelos seus quadros, quer pelos serviços prestados, o que
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se afigura menos justo à vossa comissão.
É êste o parecer da vossa comissão de finanças.
Sala das sessões da comissão de finanças, 22 de Fevereiro de 1923. — Tomé J. de Barros Queiroz — Alfredo de Sousa — Lourenço Correia Gomes — Joaquim Ribeiro — Aníbal Lúcio de Azevedo — A. A. de Portugal Durão — F. O. Velhinho Correia (com declarações) — Carlos Pereira, relator — Alberto Xavier (vencido com declarações). Declaro que assinei vencido porque a comissão não foi devidamente informada sôbre os trabalhos realizados pela comissão liquidatária, ignorando-se ainda qual a situação exacta dos débitos e dos créditos dos serviços dos Transportes Marítimos.
Proposta de lei n.º 383-B
Senhores Deputados. — Tenho a honra de submeter à vossa apreciação uma proposta de lei pela qual a sindicância aos serviços dos Transportes Marítimos do Estado continua a ser feita por um sindicante e seu adjunto, magistrados judiciais.
Pelo árduo trabalho já feito pelos actuais magistrados, de especialização técnica, por vezes, e demandando um aturado esfôrço, reconhece-se que o serviço de apuramento de responsabilidade nos múltiplos e variados serviços dos Transportes Marítimos do Estado, não se coaduna cora a organização dos tribunais comuns, acrescendo que êstes se acham actualmente assoberbados com os serviços da sua competência.
Impõe-se, pois, que magistrados judiciais sejam exclusivamente encarregados de tal sindicância, que deve ser ampla, reservando-"e para os tribunais comuns. a pronúncia e julgamento dos culpados, ingressando assim os processos na função do Poder Judicial.
Não pôde a segunda sub-comissão da comissão liquidatária dos mesmos Transportes, por circunstâncias estranhas à sua vontade, concluir os seus trabalhos no prazo fixado na última parte do artigo 3.º da lei n.º 1:346, de 9 de Setembro último. Por igual motivo, também a primeiro sub-comissão da mesma comissão liquidatária não poderá desempenhar-se da missão de que foi incumbida até 1 de Abril próximo.
Em vista do exposto, tenho a honra de submeter à vossa esclarecida apreciação a seguinte proposta de lei:
Artigo 1.º É mantida a sindicância a todos os serviços dos Transportes Marítimos do Estado, ordenada pelo decreto n.º 7:814, de 17 de Novembro de 1921, o qual continuará em pleno vigor com as alterações constantes da presente lei.
§ 1.º A sindicância será extensiva a todos os serviços de qualquer natureza, quer anteriores, quer posteriores à publicação do mencionado decreto.
§ 2.º A sindicância será concluída no prazo de seis meses, podendo o Govêrno prorrogar êste prazo, caso o julgue conveniente.
Art. 2.º Os poderes e atribuïções a que se refere o artigo 1.º do mesmo decreto são os que o decreto n.º 8:435, de 21 de Outubro de 1922, confere ao director da polícia de investigação criminal.
Art. 3.º O Govêrno poderá, por proposta do juiz sindicante, afastar do exercício das suas funções todos os empregados e funcionários, quaisquer que êles sejam, em serviço nos mesmos Transportes, e bem assim quaisquer outros funcionários públicos, que sejam atingidos pela mesma sindicância.
Art. 4.º Preparados os processos e presos os arguidos, se o puderem ser, serão imediatamente remetidos aos competentes tribunais.
Art. 5.º Como adjunto do juiz sindicante, funcionará, com as atribuïções dos adjuntos do director da polícia de investigação criminal, um juiz de 1.ª instância, por êle escolhido, ao qual será aplicável o disposto no artigo 3.º do referido decreto n.º 7:814.
§ único. Terão plena validade todos os actos praticados pelo juiz que tem servido de auxiliar do juiz sindicante, como se fôsse seu adjunto.
Art. 6.º A gratificação atribuída ao juiz sindicante por portaria de 22 de Novembro de 1921 passará a ser diária, livre de quaisquer encargos e excluída do limite fixado pelo artigo 22.º da lei n.º 1:355, de 15 de Setembro de 1922.
§ único. A gratificação do juiz adjunto será igual a dois terços da, do juiz sindicante.
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Art. 7.º Os funcionários que intervierem como secretários na sindicância terão nessa qualidade, a mesma fé dos escrivães de direito.
§ único. Terão plena validade, em harmonia com o disposto neste artigo, todos os actos praticados pelos funcionários que têm intervindo nos processos já instaurados.
Art. 8.º As intimações serão feitas nos termos do artigo 20.º da lei n.º 300, de 3 de Fevereiro de 1915.
§ único. Verificada a hipótese do § 5.º do mesmo artigo, competirão as intimações aos funcionários que, estando ao serviço da sindicância, forem designados pelo juiz sindicante ou seu adjunto.
Art. 9.º Ao juiz sindicante e ao magistrado que o tem auxiliado ser-lhes há contado, para todos os efeitos, como serviço judicial, todo o tempo que durar à sindicância, a contar do seu início.
Ari. 10.º São prorrogados por mais seis meses os prazos fixados no artigo 3.º da lei n.º 1:346, de 9 de Setembro de 1922.
Art. 11.º Fica revogada a legislação em contrário.
Sala das Sessões da Câmara dos Deputados, 17 de Janeiro de 1922. — O Ministro do Comércio e Comunicações, João Teixeira de Queiroz Vaz Guedes.
O Sr. Francisco Cruz: — Sr. Presidente: pedi a palavra, simplesmente para lamentar que êste parecer tenha a assinatura de todos os membros da maioria que fazem parte da comissão de comércio e indústria, atenta a forma como essa comissão funcionou.
Eu faço parte da comissão e nunca fui convidado para reunir a fim de apreciar esta e outras propostas.
Protesto contra uma tal forma de proceder, e, se isto. as sim continuar, faço o meu pedido de demissão.
Apoiados.
Já tencionava chamar a atenção de V. Ex.ª, Sr. Presidente, para êste assunto, visto que se trata dum verdadeiro atentado contra os direitos dos Deputados que fazem parte das comissões da Câmara.
Foi sempre praxe comunicar na véspera, aos Deputados que ao outro, dia tinham reunião de comissões.
Nada disso se fez e aparece aqui agora um parecer sem que ninguém, nem os' membros da comissão, dele tenha conhecimento.
Mas, Sr. Presidente, antes de terminar, lavrando o meu protesto, tenho a dizer a V. Ex.ª que pedirei a minha demissão das comissões, mas antes disso, exigir e seja a quem fôr a responsabilidade do postergamento dos meus direitos.
Tenho dito.
O orador não reviu.
O Sr. Paulo Cancela de Abreu: — O que disse o Sr. Francisco Cruz em nada altera o meu modo de sentir acerca dêste projecto de lei. Em todo o caso não levantarei maiores reparos, porquanto se conheço que há necessidade urgente na sua aprovação, a fim de continuar a sindicância à famosa odisseia republicana, que se chama Transportes Marítimos do Estado.
Do que diz a comissão de comércio é indústria — e diz muito bem — vê-se que alguma cousa se avançou, porque hoje já se reconhece em documentos oficiais quê há portugueses honestos que não são republicanos. Realmente êsses portugueses honestos, monárquicos ou republicanos, têm um acendrado desejo, têm a viva aspiração de que as responsabilizados relativas aos Transportes Marítimos se apressem com toda a brevidade, para que desapareçam acusações e arguições graves que se fazem por toda a parte, e dêem finalmente entrada nas cadeias os criminosos e se apurem os grandes escândalos que há doze anos a esta parte se vêm cometendo.
É de lamentar que dificuldades de ordem burocrática, cousas mínimas, em assuntos desta natureza, andem há muito tempo servindo de entrave ao prosseguimento da sindicância, de modo a manietar quási por completo as mãos dos magistrados a quem ela foi confiada.
Ouviu-se dizer ao princípio, e disso tive conhecimento por informações seguras, que criaturas determinadas procuravam criar embaraços de toda a ordem aos juizes sindicantes, que não puderam continuar os seus trabalhos. Mais tarde êstes trabalhos puderam prosseguir; mas porque se levantou a questão do hissope entre os Ministérios da Justiça
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e do Comércio, sôbre a situação dêsses funcionários, a sindicância, a bem dizer, não prosseguiu, e tem estado parada com desprestígio para ã justiça e para o crédito do país, que não consegue de nenhum modo ver apuradas as responsabilidades e punidos os responsáveis.
Apoiados.
Tive a honra de mandar para a Mesa há bastantes meses dois extensos requerimentos em que pedia me fôssem fornecidas, pelos Ministério s do Comércio e dos Negócios Estrangeiros, cópias de documentos relativos à viagem presidencial ao Rio de Janeiro e à Exposição Internacional.
Escusado será dizer que ainda não apareceu qualquer dêstes documentos, nem houve a deferência de me dizerem o motivo por que demoravam.
És sés documentos referem-se especialmente a fornecimentos e obras feitos nos vapores Pôrto e Lourenço Marques, e tudo aquilo que se relaciona com a famosa Exposição dó Rio de Janeiro e a não menos célebre missão intelectual que acompanhou o Chefe do Estado àquela cidade.
Aproveito a ocasião de estar no uso da palavra para pedir aos Srs. Ministros dos Negócios Estrangeiros e do Comércio que me autorizem a pessoalmente, se me fôr possível, ir aos seus Ministérios examinar os documentos que pedi, e que por certo nunca me serão enviados.
Evidentemente que não posso deixar de aprovar o parecer que se discute, embora não acredite piamente no resultado que êle vai dar.
Tenho informações de que os magistrados encarregados dêsse serviço são pessoas honestas, animadas do melhor propósito de prosseguir nos seus trabalhos, e realmente se êles até aqui caminharam, apesar de todas as dificuldades que se têm levantado, é porque estão animados dum espírito de justiça e do melhor desejo de chegar ao fim da espinhosa missão.
Consta-me que depende do prosseguimento da sindicância o pagamento aos credores dos Transportes Marítimos. Evidentemente que nos credores dos Transportes Marítimos há que distinguir entre os que têm direito a receber porque os seus fornecimentos são legais, fundamentados e em preços, equitativos, e aqueles
que não têm direito a receber ou a receber tudo, porque não provaram a dívida ou pediram exorbitâncias.
Entendo que devem ser amplos os poderes do sindicante e que êsses poderes devem ir até o apuramento das responsabilidades em tudo que se relacione não só com a administração dos Transportes Marítimos do Estado, mas também com o contrato Furness, que está por. esclarecer, sendo indispensável que as contas, relativas a êste assunto sejam devidamente apreciadas e liquidadas.
O Estado português pagou do seu bôlso, por reparações em navios, dezenas de milhares de contos, que têm de ser pagos em face do contrato pela casa Furness ou pelo Govêrno Inglês, como responsável, ou, por assim dizer, abonados da casa Furness.
V. Ex.ª não ignora que muitos dos navios dos Transportes Marítimos vieram para Portugal quási, convertidos em sucata, quando a Inglaterra, segundo o contrato, tinha obrigação de os reparar, pondo-os nas condições em que os entregámos.
Há dois vapores que nem sequer rebocados puderam vir para Portugal.
Tivemos de pagar em França mais de 900 contos em reparações, a fim de êles poderem regressar a Portugal.
Há muito que fazer e creio que são precisos bem mais de sessenta dias para os sindicantes cumprirem a sua missão.
E preciso. apurar todas as responsabilidades e não haver contemplação para ninguém.
Disse.
O Sr. Dinis da Fonseca: — Devo dizer a V. Ex.ª que me parece oportuno e conveniente que se apurem todos os escândalos dos Transportes Marítimos.
Esta proposta revela boas intenções, mas direi o que diz a filosofia popular: de boas intenções está o inferno cheio.
Apoiados do Sr. Sá Pereira.
O Orador: — Eu direi com toda a franqueza que para castigar os culpados terá o Govêrno todo o meu apoio, até com poderes ditatoriais se isso fôr preciso para punir os culpados, mas direi que embora reconheça as boas intenções, não tenho fé.
As leis são como as rêdes, só apanham
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os peixes pequenos; os grandes, os tubarões, êsses rompem as redes e fogem.
É preso um homeia que tem fome e rouba umas couves, mas os que muito roubam são tomados como financeiros e não há nada que os faça punir.
A minoria católica vota essa proposta.
Foi aprovada a generalidade.
O Sr. Presidente: — De acordo com o Sr. Ministro do Comércio suspendo a discussão do parecer n.º 321 para aprovar a acta e fazer uma comunicação à Câmara.
É aprovada a acta.
O Sr. Presidente: — Como V. Ex.ªs sabem, faleceu no Brasil Rui Barbosa, homem público eminente, jurisconsulto notável, um dos mais ilustres filhos do Brasil o que foi Ministro no tempo do Govêrno Provisório.
Além dêstes altos serviços prestados à nação irmã. Fui Barbosa, era muito dedicado a esta pátria, de forma que prestando neste momento á nação brasileira, ao seu filho ilustre, honras de Chefe de Estado, a nação portuguesa não pode deixar de a acompanhar na sua tristeza, na desolação em que se encontra aquele país, e que a Câmara dos Deputados não poderá deixar de, naturalmente, se associar ao voto de sentimento que proponho, pelo falecimento do glorioso brasileiro, propondo igualmente que seja lançado na acta êste voto de sentimento, e que por telegrama êle seja transmitido não só à família do ilustre extinto, como ao Senado brasileiro, a que pertenceu.
Vozes: — Muito bem.
S. Ex.ª não. reviu.
O Sr. Viriato da Fonseca: — Sr. Presidente: morreu o grande brasileiro Bui Barbosa!
O telégrafo na sua terrível concisão e laconismo trouxe até nós essa trágica notícia!
Morreu Rui Barbosa, êsse prestigioso orador, êsse sublime jurisconsulto, êsse notável publicista que todo o mundo culto tanto respeitava e estremecia!
Morreu Rui Barbosa, êsse homem de tam extraordinárias qualidades, êsse grande e ilustre brasileiro, o maior entre todos êles, brilhante como um sol, fulgente como uma estrela, imenso como um Deus.
E com essa infausta morte, Sr. Presidente, não é só o Brasil que está de luto pesado, é o mundo inteiro que nesta hora se cobre de negros crepes, porque Rui Barbosa não pertencia só ao Brasil, mas sim a toda a humanidade.
Êle tinha conquistado êste supremo título de cidadão cosmopolita, pela sua grande e lúcida inteligência, aliada a um saber profundo, a uma envergadura de carácter de primeira grandeza, que tudo isso êle pôs em acção, para defender em todos os campos, onde quer que fôsse, no Parlamento, na tribuna, na imprensa, nos congressos e no livro, o direito dos pequenos, dos fracos e humildes, entre as prepotências e ambições dos grandes e dos tiranos.
Ainda me lembro com grande comoção dessa pequena e aparente apagada figura, ao entrar na grande Conferência de Maia, onde os mais ilustres e sabedores diplomatas do mundo, reünidos, iam tratar e discutir o direito das gentes.
Ali, em meio dêsse areópago de homens ilustres, de tal maneira se comportou Rui Barbosa, tantos foram os fulgores da sua inteligência e saber, tantos foram os extraordinários primores da sua dialéctica, que as aclamações, as mais vibrantes, frementes e entusiásticas, rebentaram, se manifestaram com tal grandiosidade, com tal espontaneidade, com tal convicção, que essa consagração, ao depois, tornando-se universal, fez de Rui Barbosa, um ínclito cidadão de todas as pátrias, e sobretudo, das pátrias pequenas, cujos sagrados direitos êle ia ali defender tam sabiamente com o seu verbo eloquente, com a sua erudição sugestiva e convincente.
Recordo também, com estremecimentos de entusiasmo, êsse fenomenal, estupendo e maravilhoso discurso, pronunciado perante a mocidade académica, de Buenos Aires, a quando da Grande Guerra e no qual, êle, o misterioso herói da palavra, tam causticantemente, tam apropriadamente, verberou os célebres doutores dessa Alemanha militarista, os quais em um não menos célebre panfleto e apoiando-se nas arrevesadas e inadmissíveis doutrinas dum Vonder-Goltz, pretenderam justificar a negra acção do seu Kaiser
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apocalíptico, ao desencadear a tremenda hecatombe mundial, que foi isso a que se chamou u Grande Guerra.
Que tremenda, que justa acusação, Sr. Presidente, não ficou registada para todo o sempre nesse maravilhoso documento, onde se nota a elegância e a propriedade do um padre António Vieira, a catadupa fogosa e pujante de um Vítor Hugo, a sabedoria de Humboldt, a vernaculidade e erudição de um Alexandre Herculano e finalmente a inspirada previsão de um Deus.
Sim, êle, aí o disse que a Alemanha tinha do baquear, pois que assim não acontecesse, isso colidiria profundamente com as máximas da razão, com as verdades da sciência e com a religião do Direito.
E a Alemanha baqueou.
E, por certo, êsse seu histórico discurso, tendo sido, porventura, um dos poderosos factores para que os Estados Unidos da América do Norte entrassem na guerra, foi também uma das armas mais terríveis e mais mortíferas, que a Alemanha viu apontada contra si.
Longe de mim, Sr. Presidente, pretender traçar, neste momento, a portentosa biografia dêsse grande, dêsse ilustre morto.
Seria utopia, seria descabelado arrojo da minha parte, dada a minha inferioridade e insuficiência, o querer fazê-lo, além de que tal pretensão seria pleonástica e intempestiva, visto que, entre os meus ilustres colegas, nesta Câmara, como homens cultos que são, nenhum há que não conheça e venere a inconfundível figura do grande Rui Barbosa.
Eu acostumado a venerar, a admirar, a respeitar os grandes homens, astros de primeira grandeza, que perpassam pela terra, eu simplesmente quis com as minhas palavras o tal como já outras vezes o fiz, por exemplo, quando do falecimento do grande sábio, contra-almirante Campos Rodrigues, prestar uma modesta, mas sentida, mas respeitosa homenagem a quem, como Rui Barbosa, não cabendo já a dentro do Brasil, se espalhou, se estendeu por toda a terra, e agora, sentindo-se grande de mais para na terra ser contido, voou para os espaços infinitos, para as esferas do não ser, onde o seu rutilante espírito brilhará ao lado de tantos outros, seus pares, que já lá estão!
E é por tudo isto, Sr. Presidente, que eu. com a máxima unção, de joelhos e lágrimas nos olhos, me associo comovidamente ao voto de sentimento proposto por V. Ex.ª
Tenho dito.
Vozes: — Muito bem.
O Sr. Lino Neto: — Sr. Presidente: a minoria católica associa-se, como não pode deixar de ser, ao voto de sentimento proposto por V. Ex.ª pela morte de Rui Barbosa, êsse grande brasileiro, filho duma nação que tem seguido as nossas tradições, a nossa raça e a nossa história.
A minoria católica, Sr. Presidente, via nesse grande homem, principalmente, um. dos mais enérgicos paladinos das garantias fundamentais da liberdade humana, e assim é ver o que foi a sua acção nessa grande obra das relações entre a Igreja e o Estado, realizada com verdadeiro espírito de liberdade e a que o Brasil deve hoje a sua tranquilidade e os seus progressos.
Da sua vida temos todos muito que aprender para amar e praticar a liberdade.
Perante o seu cadáver descubro-me com o maior respeito, em homenagem não só à sua personalidade, que foi das mais prestimosas, mas também em homenagem ao Brasil de que foi filho ilustre e prestigioso, e ainda em homenagem à raça latina que honrou notavelmente.
Tenho dito.
O orador não reviu.
O Sr. Morais Carvalho: — Sr. Presidente: está de luto o Brasil!
Rui Barbosa, o homem de Estado eminente, o orador fulgurante, o académico prestigioso, o jurisconsulto distintíssimo acaba de morrer.
Está de luto o Brasil!
As notícias dos jornais dizem que é funda a dor na grande nação irmã e que são verdadeiramente excepcionais as homenagens prestadas à sua memória.
Telegramas de toda a parte chegam ao Rio de Janeiro com as condolências dos mais altos representantes dos povos.
E que a glória do Rui Barbosa, gran-
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de de mais para um país, mesmo quando êsse país é o Brasil, galgou por cima das fronteiras nacionais e espalhou-se pelo mundo.
Que admira, se êle, a quem Clemenceau outorgara o título de «idealista humanitário», trabalhou por todos os povos na memorável segunda conferência internacional de Maia, em 1907, procurando lançar as bases de uma era de paz duradoura, permanente, eterna, sonho êsse generoso, engano êsse de alma, ledo e cego, que a grande conflagração de 1914 não deixou durar muito.
Tam notável foi a sua intervenção nessa conferência, que lhe valeu de Gabriel Hannotaux o cognome de «o grande teórico do direito internacional» e que Robert Bacon qualificou a sua acção então de «trabalho esplêndido que ficará na. História» e «de que o mundo inteiro aproveitará para sempre».
Assim como António Cândido recebera ainda em vida a consagração nacional que foi a tocante romaria de Março de há dois anos à sua moradia recatada da Rua da Emenda, assim também Rui Barbosa, em 13 de Agosto de 1918, cinquenta anos depois do ter iniciado a sua carreira pública, proferindo, em 1868, a oração de saudação a José Bonifácio pelo regresso dêste à regência da sua cadeira da Faculdade de Letras de S. Paulo, também Rui Barbosa, dizia eu,- assistiu à. grandiosa comemoração do seu jubileu literário, por cuja ocasião se organizou um cortejo em que tomaram parte mais de 100:000 pessoas, tendo-se fechado os Bancos e suspendido toda a vida comercial, como só sucede nos grandes acontecimentos nacionais!
Tudo merecia Rui Barbosa, porque era efectivamente uma personagem de inconfundível relevo.
Luís Barthou, o eminente político francês, que é também um homem de letras notável, disse algures que «há em Rui Barbosa a fôrça de vários homens, cada um dos quais é um homem de primeira grandeza. O pensamento, a palavra e a acção, casam-se nele numa harmonia perante a qual, acrescenta Barthou, a minha admiração inclina-se com respeito».
Tal é o homem, em torno de cujo corpo frio se juntam agora as homenagens mundiais.
Para nós, portugueses, acresce uma circunstância, que no-lo impõe tanto à nossa admiração como ao nosso reconhecimento.
E que Rui Barbosa, grande amigo dos portugueses, era um cultor apaixonado e competentíssimo da nossa língua, que foi também a sua.
E é ver com que disvêlo, com que ardor, eu estou em dizer, com que ciúme ólo a defendia do contacto impuro das línguas estrangeiras.
A Câmara sabe que o actual Código Civil Brasileiro de 1916 se baseia no projecto dêsse outro notável jurisconsulto brasileiro que se chama Clovis Bevilácqua.
Mas a redacção definitiva tem muito de aturado labor de Rui Barbosa, que foi o presidente da comissão de Senado encarregada do estudo do projecto de Bevilácqua.
Para Rui Barbosa, a forma por que se traduz a idea, mormente num código, é de suma e de primacial importância.
São dele os conceitos seguintes, verdadeiramente lapidares:
«Nas obras do espírito e da palavra, em cujo número não se poderão deixar de incluir as grandes codificações antigas e modernas, são íntimas as relações entro a sciência e a arte, entre a essência e a forma.
São as codificações monumentos destinados à longevidade secular; e só um fluxo da arte comunica durabilidade à escrita humana, só êle marmoriza o papel e transforma a pena em escopro. Necessário é, portanto, que nessas grandes formações jurídicas, a cristalização legislativa apresente a simplicidade, a limpidez e a transparência das mais puras formas da linguagem,, das expressões mais clássicas do pensamento».
E depois fazendo- a apologia da língua portuguesa:
«Tem o nosso idioma belezas de concisão e vigor inestimáveis, especialmente na redacção das leis, onde a majestade da soberania se revê na brevidade da palavra».
Na interessante e erudita oração que o Sr. Visconde de Carnaxide proferiu na
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Academia das Sciências em homenagem a Rui Barbosa, por ocasião do seu jubileu literário, encontra-se a demonstração pormenorizada do trabalho ingente de Rui Barbosa na correcção da redacção do projecto do Código Civil Brasileiro, pondo-se em evidência aí como cada emenda que propunha era documentada prodigamente com palavras ou passagens dos mais vernáculos autores portugueses, antigos e modernos, de tal forma que aquele ilustre académico português considera a obra de Rui Barbosa, em alguns pontos, o livro de consulta mais largamente fundamentado, sôbre variadíssimos assuntos e controvérsias da nossa riquíssima língua.
Ao grande brasileiro, que começou agora, a dormir o seu último sono, prestemos nós portugueses, além do preito de admiração que lhe é devido como uma grande figura hoje já da história, a homenagem magoada do nosso reconhecimento e funda saudade pelo muito que êle amou o nosso País e defendeu a nossa língua.
E assim é com grande dor que, eu, em nome da minoria monárquica, me associo comovidamente ao voto de sentimento lembrado por V. Ex.ª e à proposta de se comunicar êsse voto, por telegrama, à Nação Brasileira.
Tenho dito.
Vozes: — Muito bem.
O Sr. Almeida Ribeiro: — Sr. Presidente: Rui Barbosa é realmente credor da nossa comemoração carinhosa, porque soube ser um jurisconsulto da elite, foi um respeitador intransigente da lei.
Para nós, portugueses, tem o grande predicado de ter sido um grande amigo da nossa língua.
Os seus trabalhos sôbre a Constituïção Brasileira, os seus trabalhos de combate às ditaduras, os seus trabalhos sôbre o estado de sítio, são, no campo de direito constitucional, alguma cousa de notável.
A sua acção na política internacional foi brilhante, aturada, persistente, enchendo de brilho a nação a que pertencia, e, como agora mesmo foi salientado pelo Sr. Morais de Carvalho, a acção que teve na elaboração do Código Civil foi alguma cousa que a nós, portugueses, nos cativa profundamente. O projecto do Código Civil Brasileiro tinha sido redigido duma maneira tal que a sua linguagem não era puramente portuguesa. Foi Rui Barbosa quem conseguiu, interessado nisso vivamente, modificar essa redacção de forma a que o Código ficasse redigido na linguagem portuguesa, pura e correcta.
Foi realmente um grande homem. Foi um grande jurisconsulto. As nossas homenagens, portanto, são absolutamente devidas à sua memória.
Êste lado da Câmara associa-se ao voto de sentimento proposto por V. Ex.ª
Tenho dito.
Vozes: — Muito bem.
O orador não reviu.
O Sr. Afonso de Melo: — Em nome do Partido Republicano Nacionalista venho apresentar também o testemunho da alta consideração de todos nós pela memória dêsse grande homem que se chamou Rui Barbosa.
Os oradores que me antecederam no uso da palavra fizeram já, a largos traços, a descrição dessa grande personalidade que foi honra não só da sua Pátria Brasileira, como de todos aqueles que no mundo falam a nossa bela e harmoniosa língua.
Rui Barbosa foi um grande homem de Estado; foi um grande jurisconsulto, foi um grande político e um grande diplomata, foi uma das mais formosas glórias da raça latina no primeiro quartel dêste século.
Rui Barbosa, como jurisconsulto, marcou o seu lugar entre os cultores de direito, da América do Sul, por maneira que o sou nome, atravessando o Atlântico, é hoje pronunciado em todos os países cultos da Europa, como o de uma das maiores mentalidades jurídicas dês tempos modernos.
Quando Rui Barbosa, figura pequenina quási não se lobrigando como homem, parecendo que o sol dos trópicos, incidindo sôbre êle, o havia ressequido e mumificado, apareceu na Conferência da Maia discutindo, tema por tema, os problemas ali levantados, mostrou logo pela amplitude dos seus conhecimentos de direito internacional e pelo grande sonho do desenvolvimento de todas as liberdades à sombra dos símbolos augustos, duma Paz
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universal, que estava ali o homem necessário à obra dó confraternização e de justiça internacional, que espíritos generosos supunham então de imediata realização.
Ainda não tinha decorrido três sessões e já Rui Barbosa havia ocupado o primeiro lugar.
Desde então, Rui Barbosa, que já era um dos maiores nomes do Brasil, tornou-se um nome mundial.
E quando, depois da guerra, se tratou de organizar êsse Tribunal Supremo destinado a julgar todas as questões que possam surgir entre as nações do mundo, Rui Barbosa foi um dos citados para lazer parte dêsse Tribunal, e não lhe valeram nem os achaques, nem a idade, nem o morar longe, para o eximirem á uma escolha que tanto tinha de honrosa. Basta êste simples feito para definir em toda â grandeza o vulto dêste homem emidente.
As desenvolvidas referencias que à sua figura como jurisconsulto aqui foram feitas, sobretudo pelos Deputados Srs. Morais de Carvalho e Almeida Ribeiro, obrigam-me a não entrar em novos pormenores, não obstante isso ser da minha devoção como magistrado, modesto observador das normas eternas do Direito e da Justiça! Remato pois as minhas considerações associando-me em nome do Partido Nacionalista ao voto proposto por V. Ex.ª Fazendo-o, pago a nossa dívida de gratidão à memória de Rui Barbosa, o qual, com as suas maravilhosas faculdades de orador e pensador magnífico, entoou um verdadeiro hino de glória à raça portuguesa!
Disse.
O Sr. Ministro dos Negócios Estrangeiros (Domingos Pereira): — Sr. Presidente: em nome do Govêrno, compungidamente me associo ao voto de sentimento proposto por V. Ex.ª
Não é numa ligeira referência que se pode traçar o perfil da alta complexidade mental de Rui Barbosa.
Foi com profunda mágoa que Portugal recebeu a notícia do falecimento dêsse ilustre brasileiro.
Já aqui se disso que Portugal sente as mágoas e alegrias do Brasil, pois neste momento Portugal, em todos os corações dos portugueses, sente a dor que sofre a nação irmã.
Em Portugal, entre os homens que têm tempo pari ler, são conhecidas as Cartas de Inglaterra, em que Rui Barbosa revelou mais uma facetado seu luminoso espírito.
Ficou célebre o discurso de Rui Barbosa, pronunciado em Buenos Aires, quando tomou parte no centenário daquela República, no qual disse a bela frase; «hão é lícito a nenhuma nação cruzar os braços perante um crime».
Assim atirou com a. sua nacionalidade para a guerra, colocando o Brasil ao lado das nações aliadas.
Ainda há pouco, quando da visita do Presidente da República de Portugal ao Brasil, depois por ocasião do incidente que ficou conhecido como a questão dos poveiros Rui Barbosa, solicitado para dar parecer de carácter jurídico sôbre a aspiração dos poveiros e a situação dentro da nacionalidade brasileira, fez um parecer que foi tudo quanto há de mais defensivo dos direitos legais, e um hino à nacionalidade portuguesa.
Êsse sentimento manifestou-o sempre que podia, e, por ocasião da visita do Sr. Presidente da República ao Brasil, Rui Barbosa recebeu o Sr. António José de Almeida.
Ainda então teve ocasião de se não confinar nos limites dum cumprimento de admiração pelo nosso povo, pela nossa história e pela nossa gratidão, e já na sua poltrona de doente, cheio de dores físicas, cheio de sofrimento, cheio de mágoas morais, teve um gesto que ao ser conhecido por nós foi comovente, e não podia deixar de ser recordado neste momento em que prestamos homenagem à sua memória.
O Sr. Presidente da República Portuguesa foi visitar Rui Barbosa no seu quarto de doente. O grande brasileiro, erguendo-se da sua poltrona de enfermo, quis acompanhar o ilustre hóspede, mas não pôde. As fôrças traíram-no.
Sr. Presidente: cumpre o Parlamento um dever sagrado, prestando homenagem à memória do insigne orador e ilustre escritor, do grande jurisconsulto, do grande publicista, do grande ideólogo que foi Rui Barbosa.
Em nome do Govêrno me associo de
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todo o coração à homenagem proposta por V. Ex.ª
Tenho dito.
Vozes: — Muito bem, muito bem.
Foi aprovado o voto de sentimento, proposto pelo Sr. Presidente, à memória de Rui Barbosa.
O Sr. Tavares Ferreira: — Mando para a Mesa um parecer.
Admissões
Projectos de lei
Dos Deputados Srs. Moura Pinto, António Dias e Paulo Menano, regulando a promoção de sub-inspector ou oficial de finanças.
Para a comissão de administração pública.
Dos Srs. Garcia Loureiro e Sousa da Câmara, sôbre contagem de tempo de serviço aos professores de ensino primário geral, que servem ou serviram em estabelecimentos de ensino dependentes do Ministério da Justiça.
Para a comissão de instrução primária.
Dos Srs. Campos Martins, Jaime Cansado, Carlos de Vasconcelos, Bartolomeu Severino, Júlio de Abreu e Pires Monteiro, contando ao major de infantaria, João Maria Ferreira do Amaral, a antiguidade no pôsto de major, desde a sua graduação no mesmo pôsto.
Para a comissão de guerra.
Dos Srs. João Luís Ricardo, Almeida Ribeiro, Nunes Loureiro e Portugal Durão, tornando extensivos os benefícios das leis n.ºs 1:311 e 1:350 aos pensionistas civis e militares, das revoluções de 5 de Outubro de 1910 e 14 de Maio de 1910.
Para a comissão de finanças.
O Sr. Presidente: — Vai continuar a discussão do projecto relativo aos Transportes Marítimos.
O Sr. Alfredo de Sousa: — Sr. Presidente: peço a V. Ex.ª que consulte a Câmara, sôbre se entende que na primeira parte da ordem, do dia seja discutida a proposta de empréstimo.
O Sr. Ministro do Comércio e Comunicações (Queiroz Vaz Guedes): — Sr. Presidente: pedi a palavra para lembrar a V. Ex.ª e à Câmara a urgência que há em se votar o projecto que diz respeito aos Transportes Marítimos.
O Sr. Carvalho da Silva (sôbre o modo de votar): — Sr. Presidente: pedi a palavra para dizer a V. Ex.ª à e à Câmara que ainda não há três quartos de hora que a Câmara deliberou que com prejuízo da ordem do dia, se discutisse o projecto relativo aos Transportes Marítimos; não me parece, portanto, regular que a Câmara vote agora uma cousa, e, passados três quartos de hora delibere em sentido contrário.
O Sr. Paulo Cancela de Abreu (sôbre o modo de votar): — Sr. Presidente: pedi a palavra por estranhar que tendo a Câmara reconhecido a urgência da discussão do projecto relativo aos Transportes Marítimos, se vá agora deliberar em sentido contrário.
Como muito bem disse, há dias, o Sr. Pedro Pita, parece que, a maioria está brincando com a Câmara.
Efectivamente isto parece uma brincadeira.
Como é que, depois de se ter votado uma cousa, se vai votar em sentido contrário, só porque passou meia hora depois dessa votação?
Pôsto à votação o requerimento do Sr. Alfredo de Sousa foi aprovado.
O Sr. Cancela de Abreu: — Requeiro a contraprova.
Feita a contraprova, verificou-se o mesmo resultado.
ORDEM DO DIA
Primeira parte
Discussão da proposta do empréstimo interno
O Sr. Presidente: — Vai ler-se, para entrar em discussão, a proposta do Sr. Ministro das Finanças relativa ao empréstimo interno.
O Sr. Nunes Loureiro: — Requeiro a dispensa da leitura.
Foi dispensada a leitura.
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O Sr. Presidente: — Está em discussão na generalidade.
O Sr. Barros Queiroz: — Sr. Presidente: a proposta apresentada ao Parlamento pelo Sr. Ministro das Finanças, qualificada por toda a gente de proposta para um empréstimo é de facto uma proposta para um empréstimo, mas encerra matéria de outra ordem não menos importante que o próprio empréstimo. Ao lado do empréstimo existe o alargamento de circulação para uso do Estado e um alargamento de circulação para uso do Banco de Portugal, e ainda a criação de uma nova circulação fiduciária de responsabilidade do Estado ao lado da circulação fiduciária do Banco dê Portugal. São êstes os pontos essenciais da proposta que deve ser considerada por esta Câmara e deve ser considerada com muita atenção porque todos êsses pontos têm uma altíssima importância para a vida económica e financeira do País.
Sr. Presidente: antes de apreciar a proposta apresentada ao Parlamento pelo Sr. Ministro das Finanças, convém-me esclarecer a Câmara sôbre o meu modo de ver acerca de alguns assuntos de que a proposta trata.
Eu sou partidário do lançamento de um empréstimo interno e, se possível fôsse, externo; neste ponto, na sua base, na sua essência, estou de acordo com o Sr. Ministro das Finanças e não só estou de acordo hoje como venho fazendo propaganda desta orientação desde o início da guerra, porque entendi sempre, e por mais de uma vez o tenho repetido, que se devia ter feito face às despesas da guerra, recorrendo-se ao imposto e ao empréstimo e nunca recorrendo-se à inflação fiduciária fácil e barata na aparência mas caríssima na realidade.
Para se poupar alguns milhares de contos de juros que seriam distribuídos pelos empréstimos recorreu-se ao Banco de Portuga], alargando-se enormemente a sua circulação e permitindo assim a desvalorização do nosso escudo que tem custado muitas centenas de milhares de contos ao País e ao próprio Tesouro. Ora se eu entendi sempre assim não posso entender neste momento de forma contrária.
A política do Sr. Ministro das Finanças tentando lançar o empréstimo é, a meu ver, a política necessária e conveniente.
O Sr. Ministro das Finanças pretende alargar a circulação fiduciária em 140:000 contos para uso do Estado; é esta política condenada por mim, condenada por S. Ex.ª e por quási todos os homens públicos do nosso País, circulação que se tem vindo alargando por não se terem tomado a tempo as providências necessárias para evitar uma inflação constante.
Sou absolutamente contrário ao alargamento da circulação fiduciária; entendo que o Estado deve lançar mão de todos os recursos de que puder dispor para evitar essa inflação e que só numa situação crítica deveria lançar mão de uma providência de tal natureza.
Está assim, pois, esclarecido o que eu penso acerca dos pontos em discussão.
Irei ver agora como é que o Sr. Ministro das Finanças pretende dar execução a êste ponto de vista.
Pela proposta inicialmente apresentada ao Parlamento e remetida à comissão de finanças trata-se de um empréstimo liberado em ouro com o juro de 6,5 por cento e com o encargo máximo de 9 por cento em esterlino.
Nenhuma outra restrição, nenhuma outra indicação a não ser uma frase sibilina que me obrigou a pedir a S. Ex.ª uns esclarecimentos necessários e concretos.
Se o que se lê no artigo 5.º não estivesse muito habilmente introduzido no artigo 1.º, tratava-se pura e simplesmente de um empréstimo em ouro para ser pago em ouro e com juro em ouro; trata-se, porém, de uma autorização implícita para converter as libras em escudos sem determinar nenhuma das condições em que essa conversão se fará.
O Sr. Ministro das Finanças, na respectiva comissão, declarou qual era o seu pensamento, que consistia em converter as libras resultantes do empréstimo ao câmbio de 6, isto é, a 40$, e assim aparecem, já dentro da mesma proposta duas operações, uma de lançamento do empréstimo em ouro o a outra da venda das libras resultante dêsse empréstimo em escudos, com um câmbio de circunstância, e não com um câmbio resultante de qualquer função económica ou financeira.
Daqui resulta que, segundo a proposta apresentada pelo Sr. Ministro das Finan-
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ças, o empréstimo seria um empréstimo de libras, com a venda dessas libras a 72,2 por cento, quere dizer que cada título de cem libras o Estado receberia 72,2 em ouro, o que daria um encargo real de 9 por cento.
Assim, Sr. Presidente, o Sr. Ministro, pela forma como apresentou à comissão de finanças o seu empréstimo em libras, títulos de 28$88 cada libra, obteria 115:552 contos.
O Estado assume uma responsabilidade de 4 milhões de libras, recebendo em troca escudos.
O facto é que a operação, feita como o Sr. Ministro a apresentou, representa uma situação crítica e vergonhosa para o Estado, fazendo lembrar, um filho que saca libras na esperança de que o progenitor as pague. Um Estado que quere ter em apreço o seu nome e o quere honrar tem de proceder com correcção e não pode realizar um empréstimo nestas condições.
Apoiados.
Se o Sr. Ministro das Finanças tivesse trazido ao Parlamento autorização para realizar um empréstimo ouro com encargos de 7, 8, 10 ou 12 por cento, mas com o correspondente em ouro, S. Ex.ª tinha-me a seu lado e prestava um grande serviço do país.
Apoiados.
O Sr. Ministro das Finanças ouviu com a atenção costumada as observações que lhe fizemos na comissão de finanças, entendendo que devia propor a redução do encargo efectivo.
V. Ex.ª sabe o que representa esta pequena alteração.
Isto, Sr. Presidente, segundo as condições propostas pelo Sr. Ministro das Finanças, representa mais 465:000 libras, ou sejam mais 17:600 contos.
A política anti-patriótica anunciada por alguns jornais da maioria não foi feita poios, homens da comissão de finanças, conforme acabo de demonstrar à Câmara.
Ainda em outra altura da discussão foi o próprio Sr. Ministro das Finanças que me encarregou a mim de transmitir à comissão os seus desejos, isto ó, que o encargo máximo em escudos fôsse de 15 por cento.
Não foi a comissão que apresentou essa modificação, mas sim, o Sr. Ministro das Finanças, que me encarregou a mim de transmitir à própria comissão os seus desejos, e, assim, a emenda que hoje se apresenta em nome da comissão é ainda indicada pelo Sr. Ministro das Finanças, a qual não traz nenhumas vantagens sôbre a proposta anterior; antes, pelo contrário, traz desvantagens e encargos bastante elevados.
Mas, Sr. Presidente, o mal não está exclusivamente na elevação da taxa, a meu ver; está na especulação que, à sombra dessa disposição, se pode vir a fazer.
Sr. Presidente: para o Sr. Ministro determinar o encargo e a percentagem em escudos, tem necessàriamente de o fazer em relação ao câmbio do dia, e, assim, o valor a fixar em escudos para cada título terá de ser ao câmbio do dia pela divisa ouro, o que poderá dar o seguinte resultado:
Se o câmbio estiver a 2/8, o empréstimo, para render 15 por cento efectivamente, deve produzir 195:000 contos; porém, se êle descer a 2, deve produzir 208:000 contos; se descer a 1 1/2 deve render 277:000 contos, e, finalmente, se descer alo empréstimo deverá render 416:000 contos; mas não será difícil, conforme se tem verificado, que certas criaturas especuladoras possam, até certo ponto, actuar no câmbio de modo a modificá-lo conforme convenha aos seus interêsses.
Mas o produto do empréstimo, na sua nova fase, daria, qualquer que fôsse o câmbio, uma importância em escudos correspondente a £ 733:000, visto que o preço em escudos terá sempre de ser fixado em função do juro efectivo que tem de ser determinado.
Isto quere dizer que, mesmo com esta modificação, o empréstimo, além dos inconvenientes da especulação, não produzirá mais do que isso.
Eu sei que países com o seu orçamento desequilibrado e que não deram provas de que saibam administrar-se, costumam pagar caro o seu desleixo e a sua imprevidência. Mas, apesar disso, eu não posso admitir que vamos até o ponto de contrair um empréstimo ruïnoso para o Estado.
O empréstimo a realizar nas condições propostas pelo Sr. ministro das Finanças,
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incontestàvelmente superiores às primitivas, seria ainda assim um empréstimo que nos colocaria na situação de não podermos realizar qualquer operação de crédito externo, pelo menos em condições que não fossem vergonhosas.
O empréstimo interno tem de ser realizado com muita prudência, com muito cuidado, com muita habilidade, de forma a permitir a abertura de operações externas, que são sem dúvida muito mais necessárias e convenientes do que as internas.
As considerações que acabo de fazer determinam-me a declarar que votarei um empréstimo em ouro porque, na situação financeira que atravessamos, só em ouro os empréstimos podem e devem ser contraídos.
Nenhum país de moeda desvalorizada, que queira, porém, assumir a responsabilidade dos seus actos e não queira falir, poderá contrair outro empréstimo que não seja em ouro.
Outros países com mais recursos do que o nosso o têm feito sem perderem o seu conceito perante o mundo.
Pela mesma ordem de considerações que acabei de fazer acerca da possível especulação de interessados no empréstimo, eu julgo que sendo o empréstimo exclusivamente em ouro o pagamento se poderá, todavia, fazer em escudos, tomando como média o câmbio dos últimos três ou quatro meses.
Se o Sr. Ministro das Finanças está disposto a fazer o empréstimo nestas condições, tem S. Ex.ª o meu apoio e o do meu Partido.
Mas para a realização dum empréstimo nominalmente em ouro, e na verdade em escudos pagos a um câmbio arbitrário, longe de ter o nossa apoio, S. Ex.ª terá o nosso mais intransigente combate.
Muitos apoiados.
A par desta providência, pretende-se pelo artigo 4.º substituir os títulos que se encontram no Banco de Portugal por títulos do novo fundo.
Confesso que não vejo nenhum inconveniente em que efectivamente sejam retirados da caixa do Banco de Portugal títulos que representam para lios uma vergonha, porque neles está estampada a falência do País...
Mas — e há sempre um mas — o Ministro mantêm êsses títulos para todos os efeitos dos contratos de 1918 e entre êles um há, que é o Banco vender êsses títulos para resgate de notas que lhe são devidas pelo Estado.
E nestes títulos que os juízes convertem as heranças dos menores para as acautelar.
Se fizermos a venda dêsses títulos remediámos um mal, mas vamos criar uma grande dívida, com a qual não podemos.
Não é possível determinar o preço de venda, porque êle depende das circunstâncias do mercado.
Já vêem, portanto, que vamos dar ao Ministro uma arma perigosa e altamente inconveniente.
A propósito dêste facto o Sr. Ministro das Finanças no seu relatório do Orçamento afirma que a circulação do Banco de Portugal por conta do Estado é de 800:000 contos, e até no jornal O Mundo se afirma também a mesma cousa.
E bom ser optimista, mas para o ser não é necessário alterar os números. A circulação do Banco de Portugal por conta do Estado é de 977:000 contos até Dezembro último.
Não posso deixar de aplaudir aquela providência do Sr. Ministro das Finanças pela qual S. Ex.ª procura reentregar ao Estado a prata existente nos cofres do Banco de Portugal, pois não se compreende que tendo lá 14:000 contos em moeda prata, que hoje vale muito mais, se fôsse dar aos accionistas do Banco um lucro em que nada tiveram.
Com respeito à conversão eu compreendo que se deve fazer, mas vem logo uma proposta do Sr. relator que condiciona duma forma impraticável a existência dêsse ouro.
Em 1915 negociei um convénio com o Banco de Portugal que constituía um fundo de reserva, que alguém dizia que não merecia a pena por ser pouco, mas hoje representa algumas dezenas de milhares de contos.
Pois foi S. Ex.ª que fez seu êsse contrato e o fez votar; praticou S. Ex.ª uma boa acção, pois já hoje a circulação do Estado tem títulos ouro que rendem juro para o Estado.
Nós estamos numa época em que são precisas todas as migalhas.
Mas, lá vem o tal «mas», o Sr. relator traz uma emenda pela qual fica depen-
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dente da resolução do Legislativo o depósito ouro que lá deve ficar.
Isto é impossível!
Se se retira o ouro em depósito, não há contrato, porque não há base; ficando, não se deve retirar sem que a circulação do Estado esteja coberta.
O Sr. Presidente: — Já deu a hora para se passar à segunda parte da ordem do dia.
Vozes: — Fale, fale.
O Orador: — Agradeço à Câmara a sua gentileza.
Há no artigo 3.º uma redacção que pode prestar-se a duas interpretações, mas eu não creio que fôsse êsse o pensamento do Sr. Ministro. Por êste artigo autorizam-se o Govêrno e o Banco a criar uma conta especial no Banco de Portugal, retirando dos 140:000 contos do novo aumento de circulação que o Govêrno nos pede a quantia necessária para constituir um maneio da conta das exportações.
Eu não sei se a Câmara sabe, porque isso teve pouca ou nenhuma publicidade, que houve uma convenção entro o Govêrno e o Banco.
O Sr. Ministro das Finanças (Vitorino Guimarães): — O documento da convenção foi publicado TIO Diário do Govêrno há três dias, a pedido da Câmara, e já tinha sido publicado também no Diário do Govêrno o relatório do Banco, onde da convenção se falava.
O Orador: — Agradeço a V. Ex.ª a elucidação. Mas V. Ex.ª, baseando-se numa alínea do contrato de 1918, determinou que se emitissem as notas que fossem necessárias além das autorizadas pelo Parlamento, pára que o Govêrno pudesse pagar aquelas cambiais que lhe fossem entregues pelos exportadores. De forma que o Sr. Ministro das Finanças criou, ao lado da circulação autorizada pelas leis do país, uma circulação especial destinada a fazer face ao pagamento das cambiais que ao Govêrno fossem entregues por virtude do decreto das exportações.
S. Ex.ª tomou esta providência porque era indispensável que ela se tomasse, mas eu disse a S. Ex.ª, antes disso, que, se reconhecia a necessidade da sua publicação, tinha muitas dúvidas sôbre o direito de a fazer. De facto, a alínea a que se alude nesse contrato permite ao Banco alargar a sua circulação própria, mas aumentando a reserva de ouro do Banco, e no caso presente não se dá isso. De resto, a conta pode dar saldos positivos ou negativos, muito grandes, e eu não sei como o Sr. Ministro ou o Banco podem tapá-los ou retirá-los.
Mas isto vinha a propósito para dizer que o Sr. Ministro pretende também agora criar uma conta especial à custa do maneio da couta das exportações. Mas como outra disposição da proposta de lei diz que ficam subsistindo todas as disposições do anterior contrato que não forem revogadas, se não fôr modificada a redacção do artigo pode ser que fique de pé um convénio leito pela União e mais uma conta para maneio de cambiais, servindo-se indiferentemente o Govêrno duma ou doutra, e como estamos num país de apertos conviria mais ao Govêrno servir-se do convénio do que dos 140:000 contos, de que pode dispor livremente para outro assunto.
Chegamos, Sr. Presidente, ao ponto em que o Sr. Ministro das Finanças pretende criar cupões de moeda subsidiária. Êste termo «cupões de moeda subsidiária» é o substituto dum substituto. A moeda subsidiária é já de si uma cousa própria para trocos, e só para trocos serve; é uma moeda que hoje em parte alguma do mundo tem o valor interno que lhe é atribuído; mas o Sr. Ministro das Finanças não se contenta em ter essa moeda trôco, essa moeda de uso corrente, e pretende arranjar um substituto. A êsse substituto, propositadamente, não lhe chama nota, e arranjou êste palavrão: «cupões subsidiários de moeda», que de facto são as notas de $50 e 1$ do Banco de Portugal; isto quere dizer, por palavras simples, que o Banco de Portugal retira da circulação 20:000 ou 40:000 contos, porque a autorização é para poder ir até o dôbro, e vai com certeza, 40:000 contos de notas pequenas, daquelas que lhe dão prejuízo certo e real, porque a sua estampagem custa mais de 20
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por cento do seu valor nominal; recebe do Estado uma indemnização por dar êsse papel e substitui essas notas por notas de 1. 0000, 5000 e 100$, com um dispêndio muito menor para o Banco de Portugal, obtendo os mesmos lucros.
O Sr. Ministro das Finanças faz com esta operação dois favores ao Banco de Portugal, mas pagando-lhe notas que êle já pagou, que já figuram nas contas de gastos gerais, que já foram pagas, em parte, pelo próprio Estado, e ao mesmo tempo facilita-lhe a sua circulação, retirando êsse papel, que é incómodo, e substituindo-o por notas grandes. Êste é apenas o aspecto em relação ao dinheiro, mas tem outro aspecto, e para êsse não posso deixar de chamar a atenção da Câmara, porque tem uma altíssima importância; é que o Sr. Ministro das Finanças reivindica assim, duma maneira hábil e cautelosa, o direito de emitir notas do Estado ao lado dó Banco de Portugal. É que o Sr. Ministro das Finanças, sabendo que o Banco de Portugal lhe contesta o direito de fazer uma nova emissão ao lado da circulação do Banco, se serve dêste termo bónus, e de facto põe em circulação 40:000 contos de notas que não têm a mesma responsabilidade, que não têm as mesmas garantias que têm as notas do Banco de Portugal.
Se tal doutrina vigorar, correremos o risco de termos duas circulações; uma com um certo valor em relação ao ouro, outra com outro valor em relação ao ouro.
Em dado momento serão as notas do Estado Português que valem mais do que as do Banco, noutro momento será o contrário.
Sim, quem por êsse País fora tiver de fazer pagamentos terá sempre de declarar em que notas paga, se em notas do Estado, se em notas do Banco.
Ora isto é muito perigoso. Como expediente de ocasião seria desculpável, mas como princípio a adoptar seria perigosíssimo.
Em caso nenhum o País, com a má administração que tem tido, tem direito a conservar na sua mão o instrumento do fabrico de notas, pois, se o tiver, não há volante que trave a máquina de estampagem de notas.
O Parlamento não pode deixar de tomar uma orientação definida acerca da sua atitude financeira; optar por uma circulação do Estado ou por uma circulação do Banco emissor.
A situação dupla que o Govêrno pretende criar levaria, em pouco tempo, a um grande alargamento da circulação do Estado a par da circulação do Banco.
Não defendo interêsses de qualquer instituição que tenha negócios com o Estado, mas o que defendo são os bons princípios e eu reputo bom princípio aquele que estabelece exclusivamente a circulação do Banco emissor.
Sr. Presidente: eu creio que a Câmara não votará a proposta do Sr. Ministro das Finanças, nem as emendas introduzidas pelo Sr. relator, sem lhes fazer profundas emendas de forma que ela possa sair do Parlamento como uma lei de utilidade para o País, e estou certo o convencido de que o Sr. Ministro das Finanças, vendo os inconvenientes que resultariam da sua proposta, votará as emendas que tornem a sua proposta viável. S. Ex.ª viu nas reuniões a que assistiu que não atacamos a sua proposta no sentido de a atacar, mas sim, com o fim de a analisar e com o desejo de a melhorar, mas nunca com o sentido de a combater, e confesso que estranhei não ver neste parecer a minha assinatura, pois, tendo eu assistido a todas as reuniões e procedido com correcção, só faltando a uma por motivo do falecimento de pessoa de família, estranhei que o Sr. relator fôsse tam apressado que não pudesse esperar pela minha assinatura.
Interrupção do Sr. Velhinho Correia que se não ouviu.
O Orador: — Estranhei que houvesse tanta pressa em mandar êsse parecer para a Mesa sem a minha assinatura.
Eu já tinha feito a declaração que assinava vencido, mas depois de ler o parecer do Sr. Velhinho Correia assinaria duplamente vencido, tanto mais que S. Ex.ª foi para os jornais com artigos atacando os seus adversários.
Apoiados.
Sr. Presidente: depois das considerações que fiz, eu não quero deixar de declarar à Câmara da maneira mais categórica e terminante, que, se esta proposta fôr votada sem as correcções essenciais,
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pelo que diz respeito à conversão das libras em escudos, se essa operação não fôr efectuada ao câmbio do dia ou ao câmbio médio dum certo período, a Câmara consentirá numa operação ruinosa e prejudicial para o País metendo nas mãos do Govêrno uma arma que nos pode a todos custar muito cara.
Sr. Presidente: devo declarar que nem uma nota política, nem uma nota partidária eu tive nas minhas palavras; apenas me animou a falar o sentimento de que preciso de prestar um serviço ao meu País, contribuindo para evitar que se pratique mais um acto que é absolutamente contrário à boa administração pública.
Tenho dito.
O discurso será publicado na íntegra, revisto pelo orador, guando, nestes termos, restituir as notas taquigráficas que lhe foram enviadas.
O Sr. Ministro das Colónias (Rodrigues Gaspar): — Sr. Presidente: tendo recebido uma nota de interpelação do Sr. Álvaro de Castro, sôbre o modus vivendi com Moçambique, venho declarar a V. Ex.ª que me encontro habilitado para responder a essa interpelação, quando a Mesa entender conveniente marcá-la.
Tenho dito.
Segunda parte
Discussão do Orçamento na generalidade
O Sr. Presidente: — Vai passar-se á segunda parte da ordem do dia: discussão sôbre o Orçamento Geral do Estado.
Continua no uso da palavra o Sr. Alberto Xavier.
O Sr. Alberto Xavier: — Sr. Presidente: eu tinha interrompido as minhas considerações, em relação à questão prévia que suscitei, sustentando que efectivamente, nada lucravam, nem a República, nem o Parlamento, elaborando uma obra feita de artifício e sujeita, como tem sido, a contestações.
Eu disse que o deficit que o Sr. Ministro das Finanças apresentava na sua proposta orçamental tinha sido contestado por uns, que afirmavam ser de 300:000 contos, e por outros, que diziam que podia ser de 700:000 contos, e ainda por várias pessoas, que falaram em números verdadeiramente exagerados e mesmo talvez absurdos.
Eu também tenho dúvidas sôbre o quantitativo do deficit orçamental, não podendo precisar qual êle seja de facto, porquanto não possuo, bom membro desta casa do Parlamento, aqueles elementos e documentos indispensáveis em que se baseou o Sr. Ministro das Finanças para ter feito os seus cálculos e estabelecido os seus números.
Compreende V. Ex.ª, Sr. Presidente, que os representantes da nação não possuem os elementos necessários para efectuar a sua função fiscalizadora.
Quando há opiniões divergentes em assuntos desta natureza, como é que podemos dizer que é o Sr. Ministro das Finanças que fala verdade? Vêem portanto V. Ex.ªs a conveniência que há em que sejam publicados êsses cálculos, a fim de que todos os cidadãos possam conhecê-los.
V. Ex.ª, Sr. Presidente, sabe que o grande princípio da unidade orçamental torna o Orçamento 'Geral do Estado um documento simples e claro.
Assim quando se estabelecem de um lado as receitas e do outro as despesas, pode no Orçamento saber-se qual o montante do activo.
O Sr. Velhinho Correia (interrompendo): — O montante do activo nunca vem nos Orçamentos.
O Orçamento é uma conta de caixa, e para haver activo é preciso haver uma conta de património.
O Orador: — Quando digo activo, não me refiro ao activo nacional, mas sim ao activo que está representado pelo conjunto geral das receitas.
O Sr. Velhinho Correia (interrompendo): — Confundir activo com receitas é ignorância.
O Orador: — Sr. Presidente: não estou disposto a um debate de carácter pessoal, com diálogos, em que me encontro numa desigualdade absoluta de educação técnica.
Àparte do Sr. Velhinho Carreia, que não se ouviu.
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O Orador: — Mas, Sr. Presidente: a unidade orçamental caracteriza-se pelo facto de se organizar um documento onde de um lado se conheça qual é o produto exacto das receitas, e do outro se saiba metodicamente as despesas a efectuar no exercício competente.
A nossa legislação, mesmo a que vigorou durante o tempo da monarquia, não deixava, Sr. Presidente, de estabelecer as regras mais aproximadas possível para a chamada unidade orçamental.
Durante a vigência da República, essa regra da unidade orçamental não foi desrespeitada, como podia ter sido, pois é bom fazer-se justiça aos homens da República, e assim devo dizer em abono da verdade que até 1919 essa regra da unidade orçamental foi mais ou menos respeitada; porém, Sr. Presidente, em 1919, uma ditadura que se seguiu à revolta de Monsanto publicou um decreto modificando essa unidade orçamental que existia na legislação anterior.
Refiro-me, Sr. Presidente, ao decreto n.º 5:519, de 8 de Maio de 1919, e ao que no seu artigo 14.º, relativamente á regra sôbre a unidade orçamental, nele se diz.
Comparem V. Ex.ªs isso com o que se diz aqui no mapa n.º 3.
Não compreendo, pois. Sr. Presidente, como é que a Manutenção Militar, que toda a gente sabe que é um serviço autónomo, não está incluída no mapa n.º 2, e figure no mapa n.º 1, assim como o Instituto de Seguros Sociais Obrigatórios, que também é autónomo, que tem um tesoureiro privativo, não esteja incluído igualmente no mapa n.º 2 e figuro no mapa n.º 1.
Já vêem V. Ex.ªs que não é possível fazer-se um exame exacto com um regime de organização desta natureza.
Isto francamente não se compreende, limito principalmente com o Instituto de Seguros Obrigatórios, cuja administração é autónoma, como já disse, em que há um tesoureiro privativo, cujas ordens de pagamento não têm de ser submetidas ao tesoureiro do Estado, nem ao Banco de Portugal, nem mesmo estão subordinadas à fiscalização do Estado.
É um privilégio de primeira grandeza porque lhe dá uma latitude financeira que nenhum dos serviços autónomos possui.
Emquanto todos os serviços autónomos têm de depositar as suas receitas e as suas sobras na Caixa Geral de Depósitos, êste não!
Os serviços autónomos não constituem organismos separados e instintos do Estado.
Eu não concebo uma organização orçamental que tenha por fim incluir receitas de serviços autónomos em separado, como se fossem pequeninos estados dentro do próprio Estado.
As receitas dos serviços autónomos devem em boa regra orçamental constituir receita do Estado, porque, embora separados pela sua vida autónoma, constituem serviços dentro do Estado.
Não são apenas as receitas dos serviços autónomos que devem figurar no Orçamento; são também as suas despesas e até os seus deficits. Tudo deve ser junto, quer seja superavit quer deficit, tudo deve entrar no global.
Esta forma de processar as contas faz com que nos encontremos em dificuldades para saber e fiscalizar as contas do Estado.
Se isto acontece com os parlamentares o que não sucederá com, qualquer cidadão no pleno direito e até dever de fiscalizar as contas do Pais?
Urge restabelecer quanto antes a chamada unidade orçamental, porque sem essa simplicidade não há possibilidade de exercer uma fiscalização eficaz.
A nossa legislação, para coïbir abusos — e isto já vem desde 1907 — estabelece princípios para as previsões orçamentais. Elas não podem ser arbitrárias, porque têm de ser relativas em grande parte à produtividade do ano anterior.
É certo que o Govêrno poderá dizer que neste ano se encontra em faço da execução do leis tributárias a respeito das quais não se sabe ainda qual a sua produtividade.
Neste ponto pode a fixação ser arbitrária, mas não podemos, contudo, aproveitar-nos do facto de as leis tributárias recentes não terem ainda entrado em execução para fazer cálculos que não correspondam às previsões feitas. Assim, o imposto sôbre transacções está calculado de certa maneira no Orçamento, mas sabe-se que a precipitada fixação das chamadas avenças escangalhou por completo a idea,
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do legislador e virá demonstrar como são exagerados os cálculos orçamentais.
Êsse imposto nós poderemos considerá-lo de tesouraria, mas se nós não fizermos aquilo que temos feito invariavelmente, que é considerar o Estado como qualquer cousa separada da nação, como se o Estado não fôsse um organismo politicamente realizado para dirigir os serviços da Nação; se o princípio da soberania do Estado, base da soberania da Nação, não preocupar os nossos homens de Estado, nós veremos que o imposto de transações, embora podendo dar bons resultados de tesouraria, não podia ser, contudo, calorosamente defendido por nós, representantes da Nação, e a razão é simples: é que o imposto de transacções é um imposto que recai sôbre a despesa, é um imposto da vida cara. Êle produz quási os mesmos efeitos que produzem os instrumentos de inflação, do crédito.
A forma lenta como se paga ininterruptamente, porque o imposto de transacções paga-se desde a hora em que se começa a praticar o primeiro acto de actividade social até o momento em que vamos descansar, isto é, um imposto que se paga todo o dia, demonstra suficientemente que êsse imposto não era aquele que convinha aos interêsses nacionais, convindo apenas àqueles que concebem o Estado como organismo separado da Nação.
Se o Tesouro é considerado como uma caixa àparte da caixa nacional, se considerarmos o Tesouro como um lugar onde devem entrar aquelas receitas o aqueles produtos financeiros que hão-de dar vida; aos Governos, então bem está, o imposto de transacções serve de facto maravilhosamente para essa obra, mas êsse mesmo aspecto pelo qual se está a encarar o imposto de transacções foi atenuado pela demorada prática das avenças que em toda a parte onde foi adoptado, mesmo entre nós, porque já em tempo tivemos qualquer cousa semelhante ao actual imposto de transacções e não deu os resultados desejados.
O imposto de transacções vigora hoje em França, mas também a sua produtividade foi perturbada propositadamente por meio de avença, porque se estabeleceram avenças sem se saber de facto, durante um período certo, qual seria a produtividade bruta dêsse imposto, porque só depois de se estabelecer um período mais ou menos largo, pelo menos de seis meses, sôbre a verdadeira cobrança do imposto de transacções, então é que poderíamos verificar até que ponto chegaria o limite da produtividade dêsse imposto, para só depois se estabelecerem as avenças, não para deminuir o valor dessa produtividade, mas para aplicarmos dentro do regime de injustiça que é o imposto de transacções alguma justiça e equidade.
Porque se calcula para o imposto de: transacções 120:000 contos e não 150:00 contos?
Que razões há para não se poder calcular que êsse imposto dará 150:000 contos?
A minha impressão é de que êsse imposto não chegará a dar um produto aproximado a 50:000 contos.
Julgo haver aqui uma previsão exagerada.
Quanto ao imposto sôbre rendimentos é também um imposto que todos imaginavam que ia ser duma produtividade larga.
Há, em todo o caso, na nossa legislação tributária moderna um princípio que a honra e marca bem, de facto, um novo momento na sua evolução: o princípio da personalidade do imposto, que é o que, na verdade, representa d imposto pessoal sôbre o rendimento.
Êste princípio era necessário introduzir-se na nossa legislação, mas se é digno de nota o facto de se ter adoptado, é certo, também, que se não devia aplicar isoladamente, sem haver cumulativamente estabelecido uma outra organização dós demais impostos, de modo que êsse imposto sôbre o rendimento fôsse um complemento da organização dos outros impostos globalmente considerados.
Dada a circunstância de estarmos em face de novas leis tributárias, cujos resultados na sua execução ainda não se apreciaram, haveria toda a vantagem em fazer as mais baixas previsões, exactamente para que depois, na realidade, os resultados fossem maiores, porque o equilíbrio orçamental não se produz à nossa vontade, sendo uma consequência de factos congregados, mas factos naturais.
Seria, pois, preferível apresentar um maior deficit de previsão, que nunca deve-
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ria assustar, visto que durante a discussão teríamos todo o campo para visar o equilíbrio.
Isto é que prestigiava o Parlamento e o Govêrno, porque, quando se souber qual é a produtividade dos novos impostos, quando a realidade aparecer em todo a sua nudez, o futuro nos dirá que fizemos uma obra leviana, uma obra sôbre o joelho.
Sr. Presidente: os cálculos feitos para as chamadas desposas resultantes das diferenças cambiais são, também, cálculos partindo de hipóteses sôbre as quais não podemos formular um juízo seguro.
O Orçamento que se está a discutir é para o ano económico de 1923-1924, principiando, portanto, a executar-se em 1 de Julho.
Parece-me que o ágio do ouro para os efeitos da contagem das diferenças de cambiais foi calculado muito por baixo.
As previsões devem ser sempre pessimistas devemos deixar sempre aos resultados económicos o encargo de mostrarem — e então com agrado para todos nós — que elas eram pessimistas em demasia.
Para que serve estarmos hoje a afirmar que o deficit é de x, se amanhã no fim do ano económico temos de constatar que o deficit não é êsse, dando assim ao País a impressão do que procedemos levianamente, infantilmente?
O Sr. Velhinho Correia: — Ha três anos que estamos a inventar deficits e a fazer uma política verdadeiramente derrotista.
O Orador: — Eu não quero levar a minha afirmação tam longe, porque então teria de admitir que a proposta orçamental que se discute e que o deficit nela apontado não passam duma simples invenção.
Creio que haveria toda a vantagem, ou que diz respeito à previsão dos rendimentos prováveis da legislação moderna, em fazê-lo o mais baixo possível, de modo que no fim do ano económico não tivéssemos que sofrer um desmentido, mas sim a satisfação de verificar que o deficit previsto o fora exageradamente. Mas se para as diferenças cambiais se estabelece uma margem um pouco arbitrária, mais arbitrário ainda é o princípio em que assenta o Orçamento: despesas normais e despesas transitórias.
E para êsse efeito toma-se por base um câmbio do antes da guerra, câmbio de 24, que não corresponde nada ao câmbio que nos encontrávamos ao tempo da guerra que deveria ser de 35 ou 37.
Admitida, como. boa a classificação adrede feita de despesas normais e transitórias, o câmbio 26, repito, não corresponde à validade. A diferença devia ser feita no último mês do ano de 1914.
O câmbio então não era de 26. Chegámos a essa situação depois da guerra.
Então como é que fizemos êsse cálculo, tomando por base o câmbio 24 que não era exacto?
Se quisessem tomar por base o verdadeiro câmbio, as receitas não podiam ser computadas como foram, deviam sofrer uma deminuïção.
Como V. Ex.ª vê, o câmbio foi mal tomado; chegamos à seguinte conclusão que tanto dum lado como do outro se fundamentam em elementos de informação que não correspondem à validade.
Por esta forma nós estamos a trabalhar, a fazer uma obra sôbre uma fantasia, para mo servir da expressão do Sr. Velhinho Correia.
O Sr. Velhinho Correia (interrompendo): — Perdão! Eu não disse tal cousa.
O que eu afirmei é que há três anos que estamos a fantasiar deficits que se não realizam.
O Sr. Carvalho da Silva (aparte): — A aumentar os deficits e não a fantasiá-los.
O Orador: — Sr. Presidente: o Sr. Ministro, das Finanças tem para fundamentar os seus cálculos os elementos e os documentos que lhe forem fornecidos pelas repartições competentes, mas como pode o Parlamento exercer a sua acção fiscalizadora se, não dispondo dêsses elementos, tem de cingir-se aos números apresentados pelo Sr. Ministro?
Como é que nós, Deputados da Nação, que somos uma espécie de conselho fiscal do conselho de administração, que é o Poder Executivo, havemos de poder dizer que êsse orçamento corresponde à realidade?
Não o podemos fazer, evidentemente.
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Se apenas, por uma questão de deferência pessoal ou política, temos de nos pronunciar sôbre o orçamento, não há dúvida de que podemos dizer que o orçamento está bem elaborado, visto que as pessoas que constituem o Govêrno são de absoluta probidade.
Só assim nos é lícito dar uma sanção ao orçamento apresentado.
Sr. Presidente: a hora vai adiantada e por isso eu pregunto a V. Ex.ª qual é o tempo de que ainda posso dispor, na sessão de hoje, para fazer as minhas considerações.
O Sr. Presidente: — V. Ex.ª pode ainda dispor de 10 minutos na sessão de hoje.
O Orador: — Na minha questão prévia eu sustento a conveniência de se acabar com a conta especial de despesas do guerra, que figura nas propostas orçamentais.
Eu tive ensejo de no ano passado enviar para a Mesa um documento para o Sr. Presidente do Ministério tomar dele conhecimento, a propósito da liquidação das chamadas despesas da guerra.
Essas despesas escapam a toda a fiscalização.
A direcção geral da contabilidade não tem no tocante a despesas da guerra nenhuma interferência.
Do mesmo modo não tem o Conselho Superior de Finanças.
Compreende-se que assim fôsse no período das hostilidades.
De maneira que havia necessidade de tomar uma medida urgente de defesa nacional, visto que, segundo as leis de contabilidade, são egualmente responsáveis, quer o funcionário que ordena o pagamento, quer o que o efectua.
Na verdade, Sr. Presidente, esta lei não é de contestar, porque se ela não existisse daria margem a que os Ministros, por virtude das suas atribuïções, ordenassem o aos funcionários não competia senão obedecer.
Eu bem sei que as desposas da guerra não podiam estar sujeitas à fiscalização directa da contabilidade, porque, se assim fôsse, muitos dos actos de soberania que interessavam à autonomia portuguesa e ao prestígio nacional não podiam ser realizados com aquela prontidão que os nossos interêsses Declamavam tanto em França como em África.
Nestes termos, estabeleceu-se que certas despesas de guerra seriam efectuadas por decisão do Conselho de Ministros.
Mas, uma vez finda a guerra, não se concebe nem se justifica que haja despesas de guerra e que se mantenha ainda aquele segredo de fiscalização.
Desde 1919, que em todas as propostas que vêm à Câmara dos Deputados aparece uma verba global para despesas de guerra. Não compreendo, Sr. Presidente.
Isto, Sr. Presidente, não se compreende na verdade, pois estou absolutamente certo que o Parlamento não seria capaz de rejeitar uma despesa que fôsse indispensável para a defesa do nosso prestígio no estrangeiro.
O Sr. Presidente: — Devo prevenir V. Ex.ª que já são horas de se passar ao período destinado aos oradores inscritos para usarem das palavra, antes de se encerrar a sessão, e assim, se V. Ex.ª quiser, poderá ficar com a palavra reservada para a sessão de amanhã.
O Orador: — Devo dizer a V. Ex.ª que pouco me falta para concluir as minhas considerações, no emtanto, peço a V. Ex.ª para me reservar a palavra para a sessão de amanhã, podendo-lhe garantir que por pouco tempo mais ocuparei a atenção de V. Ex.ª
O discurso será publicado na íntegra, quando o orador haja devolvido, revistas, as notas taquigráficas que lhe foram enviadas.
O ST. Presidente: — Tem, a palavra o Sr. Álvaro de Castro.
O Sr. Álvaro de Castro: — Desisto da palavra.
O Sr. Presidente: — A próxima sessão é amanhã à hora regimental sendo a ordem de trabalhos a seguinte:
Antes da ordem do dia:
Parecer n.º 391, sindicância aos Transportes Marítimos do Estado (sem prejuízo dos oradores que se inscreveram).
Pareceres n.ºs 390, 378 e 353 que estavam dados.
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Ordem do dia — 1.ª parte:
Parecer n.º 424, que estava dado.
2.ª parte:
Discussão e votação na generalidade dos orçamentos.
Pareceres n.ºs 411-A; 302, 380, 385, 225, 409, que estavam dados.
O Sr. Presidente: — Devo prevenir a Câmara do que amanhã deve haver sessão noturna, a qual deverá começar às 21 horas e 30 minutos com a seguinte ordem de trabalhos:
Discussão e votação na generalidade dos orçamentos.
411-A. Orçamento do Ministério do Interior.
Está encerrada a sessão.
Eram 19 horas e 15 minutos.
Documentos mandados para a mesa durante a sessão
Projecto de lei
Do Sr. João E. Águas, aplicando a doutrina do decreto de 8 de Julho de 1913 e respectivo regulamento, referente aos alunos do Colégio Militar, aos alunos externos do mesmo colégio.
Para o «Diário do Governo».
Pareceres
Da comissão de finanças, sôbre o n.º 363-D que dá uma nova redacção à alínea b) do § 2.º do artigo 75.º do decreto n.º 5:847-A sôbre limite de idade dos funcionários do Ministério do Comércio.
Imprima-se.
Da comissão do Orçamento, sôbre o orçamento 5o Ministério do Comércio.
Imprima-se com urgência.
Da comissão de guerra, sôbre o n.º 64-A que dá nova redacção ao § 2.º do artigo 14.º da lei orçamental do Ministério da Guerra de 31 de Agosto de 1515.
Para à comissão de finanças.
Da mesma, sôbre um requerimento dê tenente de cavalaria, Carlos da Cunha Pinto Balsemão em que pede a revisão dum processo do Conselho Disciplinar do Exército a que foi submetido.
Para o «Diário das Sessões» nos termos do artigo 38.º do Regimento.
Requerimentos
Requeiro que, pelo Ministério das Colónias me seja concedida autorização para consultar todos os documentos referentes ao Convénio com o Transval, com a possível urgência. — António de Paiva Gomes.
Expeça-se.
Requeiro que, pelo Ministério da Instrução me seja fornecida, com urgência, uma nota de todos os subsídios concedidos pelas verbas inscritas no orçamento de 1922-1923 sob as rubricas «Construções e reparações dos edifícios dos liceus» e «Material didático e trabalhos manuais», as datas dos respectivos despachos e do seu cumprimento. — Augusto Nobre.
Expeça-se.
Requeiro que, pelo Ministério da Guerra, me sejam fornecidas cópias de toda a correspondência oficial, confidencial, reservada ou não, respeitante à colocação de oficiais não especializados na Direcção de Aeronáutica Militar, à colocação como alunos observadores na Escola Militar de Aviação de vários oficiais, à reclamação do capitão Jardim da Costa por não ter sido mandado apresentar na Escola Militar de Aviação para tirar o curso de observador aeronáutico, à nomeação em Ordem do Exército de dois oficiais como pilotos aeronáuticos (balão cativo). Requeiro para estas cópias a máxima urgência. — António Maia.
Expeça-se.
Do segundo oficial do Ministério das Finanças, Joaquim Mendes Correia Negrão, protestando contra o facto de ser o n.º 1 na antiguidade e ter sido o n.º 2 o promovido a primeiro oficial.
Para a comissão de administração pública.
Do Reitor do Liceu de Vila Real, pedindo em nome dos seus professores que sejam suprimidos todos os impostos sô-
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bre vencimentos dos funcionários civis e militares do Estado.
Para a comissão de finanças.
Nota de interpelação
Desejo interpelar, com a máxima urgência, o Sr. Ministro da Agricultura sôbre os seguintes pontos:
1.º Adiamento da proposta de lei, alterando temporariamente algumas disposições do regime cerealífero em vigor;
2.º Concessão de trigo exótico às fábricas de moagem, paralizadas por motivo de fôrça maior. — Manuel de Sousa da Câmara.
Documentos publicados nos termos do artigo 38.º do Regimento
Parecer n.º 487
Senhores Deputados. — Pede o tenente de cavalaria, Carlos da Cunha Pinto Balsemão, a revisão do processo do Conselho Discipliuar do Exército a que foi submetido e por virtude do qual foi punido com quinze dias de prisão correccional.
Por um dos vogais desta comissão foi verificado o processo. Dele consta que, por virtude duma queixa e acusações a oficiais do regimento de cavalaria n.º 7, se procedeu a averiguações e sôbre elas a auto de corpo de delito.
Resultou de tudo uma tremenda acusação ao tenente Balsemão, ficando os demais oficiais ilibados, conforme o despacho ministerial de 23 de Janeiro de 1917, pelo que foi mandado responder a conselho de disciplina.
Decorreu o processo; e no julgamento foram aprovados, por unanimidade, quási todos os quesitos propostos, de que resultou o conselho propor ao Ministro que o oficial fôsse castigado disciplinarmente.
Em 4 de Março de 1919 pediu para ser trancado o castigo ao abrigo do decreto n.º 5:172 de 24 de Fevereiro do mesmo ano.
A comissão respectiva não o julgou nos termos do decreto, por as faltas cometidas não serem de carácter político, pelo que o Conselho de Ministros indeferiu, considerando graves as faltas Acometidas.
Em 27 de Maio de 1920 pediu a revisão. Foi indeferido êste pedido em 24 de Novembro de 1921, por não haver disposição legal que tal autorize e por o pedido de anulação ter sido indeferido pelo Conselho de Ministros que, como se diz, considerou graves as faltas cometida;».
Em 24 de Junho de 1919 foi punido com três dias de prisão disciplinar porque acusou o comandante do regimento de o haver agredido, tendo-se provado ser falsa esta acusação.
O processo disciplinar, de que pede a revisão, correu normalmente e bem assim o julgamento.
As conclusões foram tiradas por unanimidade, sendo a redacção do castigo precisamente a letra dos quesitos aprovados.
Não há lei que autorize a revisão; e, parecendo-nos que o Parlamento não deve arvorar-se em julgador e dar por mal feito o que decorreu com toda a regularidade, julga a comissão não haver motivo de deferir.
Sala das sessões da comissão, 5 de Março de 1923. — Feliz de Morais Barreira — António Maia (com declarações) — Viriato Gomes da Fonseca — António Mendonça — João Pereira Bastos — João E. Águas, relator.
O REDACTOR — Avelino de Almeida.