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REPÚBLICA PORTUGUESA
ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA
N.º35 VI LEGISLATURA 1955 19 DE FEVEREIRO
PARECER N.º 14/VI
Convenção Cultural Luso-Britânica
A Câmara Corporativa, consultada, nos termos do artigo 103.º da Constituição, acerca da Convenção Cultural entre Portugal e o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, emite, pelas suas secções de Interesses de ordem cultural e de Interesses de ordem administrativa (subsecção de Relações internacionais), sob a presidência do Digno Procurador, assessor, Afonso de Melo Pinto Veloso, o seguinte parecer:
1. A Convenção Cultural entoe Portugal e o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, assinada em Lisboa, a 19 de Novembro do ano findo, pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros do Governo Português e pelo Embaixador britânico Sir Nigel Ronald, como plenipotenciários, é, tecnicamente, um acordo intelectual bilateral, cujo aparato diplomático justifica o nome de «tratado» ou «convenção», e cujo conteúdo e forma permitem agrupá-lo entre os acordos denominados «culturais». Os especialistas do direito internacional não se têm demorado na análise e classificação destes diplomas, que não oferecem interesse propriamente político, embora constituam instrumentos de uma política especial, particularmente delicada, que é a «política da culturas. O estudo, porém, dos trinta e seis acordos intelectuais celebrados entre Estados no período áureo da «política internacional do espírito«, como lhe chamou Paul Valéry, isto é, entre 1919 e 1938 - estudo feito in extremis pela Sociedade das Nações -, oferece-nos alguns esclarecimentos sobre a matéria, em geral entregue pelas chancelarias ao arbítrio dos negociadores: Quanto ao conteúdo, é possível distinguir no acervo destes diplomas, e dos que se negociaram mais tarde, quatro grupos de acordos intelectuais: I, acordos «universitários» ou «escolares», destinados a regular as relações universitárias ou certos problemas de ensino entre as Altas Partes Contratantes (criação de leitorados e de cátedras, permuta de professores e de estudantes, bolsas de estudo, cursos de férias, etc.); II, acordos «linguísticos» (de interesse, aliás, não apenas intelectual, mas também político e económico), concluídos entre Estados em condomínio linguístico ou entre nações de língua diferente, em geral no propósito de consolidar uma aliança ou de assegurar a maior extensão de influência de um idioma imperial; III, acordos parciais sobre outros assuntos (criação de institutos, exposições de arte, troca internacional de publicações, propaganda do livro, etc.); IV, acordos que cobrem todo ou quase todo o domínio dos interesses intelectuais das Potências signatárias, únicos a que é legítimo atribuir a designação de «acordos culturais». Quanto à forma, é corrente distinguir entre os acordos anteriores a 1985, atípicos, divergentes, não subordinadas na generalidade a qualquer modelo ou padrão, e os diplomas ulteriores, que possuem já um certo ar de família, uma certa unidade de técnica, obedecendo a um cânone comum - texto de perfeito equilíbrio e de luminosa ciarem - que foi o Acordo intelectual ítalo-húngaro de 16 de Fevereiro de 1&35, assinado por Benito Mussolini e pelo Ministro da Educação e dos Cultos da Hungria, Valentim Hóman. A Convenção entre Portugal e a Grã-Gretanha, sobre a qual recaiu o nosso exame, é, com efeito, um acordo cultural bilateral, que não se afasta sensivelmente do tipo clássico desta, espécie de instrumentos diplomáticos.
2. Tornava-se realmente necessário um acordo desta natureza entre as duas Nações? A iniciativa - digamo-lo desde já - pertenceu no Governo de Sua Majestade Britânica e foi naturalmente acolhida com satisfação pelo Governo Português, que considerou desejável
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activar e coordenar a intercultura luso-britânica, oferecendo aos dois Países novas oportunidades de colaboração e de convivência. Quando, hà cerca de vinte e cinco anos, a Liga de Genebra, na convicção de que os acordos políticos e económicos não bastavam como instrumentos da segurança colectiva, instaurou a sua política de cooperação intelectual - deslumbrante movimento de iniciativas e de ideias a que não se prestou ainda inteira justiça -, produziram-se algumas objecções, mais brilhantes do que sólidas, respectivamente a eficácia dos métodos adoptados. «Os acordos intelectuais entre os povos - disse-se - são inúteis porque os povos não são intelectuais». Houve quem acrescentasse: «A inteligência nunca serviu para unir os homens; dividiu-os sempre». E Julien Benda, o mestre de paradoxos da Trahison des Cleres, lançou sobre as primeiras actividades, um pouco bizantinas, do Instituto do Falais Royal o seu terrível balde de água fria: «Para quê aproximar os povos, se eles se odeiam, tanto mais quanto melhor se conhecem?» Hoje, estas atitudes negativistas e críticas deram lugar no mundo ocidental - único actualmente permeável & política da cultura - a uma relativa confiança nos princípios e nos métodos da cooperação intelectual, de que se tornou instrumento magnífico, sob a égide da O. N. U., a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura - a Universidade da Rua Kleber -, herdeira rica da antiga Comissão Internacional de Cooperação. Intelectual de Genebra, a que outrora presidiram Bergson e Einstein. Essa confiança justifica-se. A cultura, por definição «o culto dos grandes valores humanos», não se realiza plenamente como facto nacional restrito, mas como fenómeno ecuménico, como expressão da consciência, não apenas de um povo, mas - já o dissera em 1612 o grande Francisco Suarez no seu tratado De Legibus - da «comunidade jurídica e humana dos povos, como unidade universal». Desenvolver internacionalmente a cultura é fortalecer essa consciência. Deixá-la confinada em nacionalismos fechados, irredutíveis e hostis é, inevitàvelmente, favorecer e apressar as graves crises de depressão geral que os filósofos - o americano Gettel e especialmente o russo Berdiaeff no seu livro A Nova Idade Média - interpretam como expressões de involução e de regresso da Humanidade à barbárie e ao caos. Não se pede, evidentemente, às massas que colaborem, mas que colaborem as élites, minoria condutora das nações. Mais do que os tratados que regulam os interesses políticos e económicos - fórmulas jurídicas de equilíbrio, cristalizações instáveis -, os acordos intelectuais (e, designadamente, os acordos culturais, de mais vasta projecção) destinam-se a trabalhar profundamente a alma dos povos livres. São instrumentos, de informação, de compreensão, de benevolência, de convívio - e, portanto, instrumentos de paz. Com fundadas razões a, U. N. E. S. C. O. observa, nas palavras em que definiu o seu objectivo essencial: «Tratemos dos espíritos, porque é no espírito dos homens que as guerras começam». Compreende-se que certas potências procurem, por meio de acordos intelectuais, bilaterais ou multipartidos, cimentar a obra da segurança colectiva. Precisarão, porém, de o fazer duas nações como Portugal e a Grã-Bretanha, que desde 1386 permanecem inalteràvelmente fiéis ao primeiro tratado de amizade e auxílio que assinaram e que, unidas perante as dramáticas vicissitudes de seis séculos de história, com justificado orgulho se proclamam os mais antigos aliados do Mundo? Cremos que sim. E vamos ver porquê.
3. Aos observadores políticos sempre pareceu dificilmente explicável que dois povos, ligados por uma aliança ininterrupta de 570 anos, convivam tão pouco
e se interessem tão limitadamente um pelo outro. Não obstante, os eruditos e os estudiosos têm-se referido às relações existentes, ao decorrer do tempo, entre homens cultos dos dois países e às obras literárias e científicas de mutuo interesse por eles publicadas. Veremos adiante o mérito dessas referências. Como quer que seja, porém, temos de reconhecer - e ninguém o contesta - que, devido a razões de ordem étnica, psicológica, (religiosa e linguística, de sua natureza irremovíveis, e a erros de educação que chegaram até nós (negligência no ensino das duas línguas), a capacidade de compreensão e de comunicação entre ambos os povos não é, infelizmente, aquela que poderia esperar-se de uma tão longa e gloriosa amizade. A aliança inglesa, como abreviadamente lhe chamamos, constitui facto - pode afirmar-se único - na história política e diplomática das nações. Como tal tem sido largamente discutida nos países interessados e fora deles. Discutida pelos historiadores; discutida pelos homens de Estado; discutida pelos economistas (quanta tinta se gastou a comentar o tratado de Methwen de 1703, maus vantajoso para nós do que pretendeu fazer-nos acreditar a política francesa!); discutida pelos mestres do direito internacional, alguns dos quais, cá e lá, consideram inactual e demasiado fluida a armadura jurídica da aliança. Debilidade dos textos; pouco conhecimento mútuo dos povos. E, entretanto, nunca em qualquer tempo a aliança foi invocada por uma das partes, que a outra não acudisse, sem sombra ide hesitações, ao seu apelo. Porquê? Porque a aliança luso-britânica não está apenas na letra dos tentados; está no instinto profundo das nações. E uma tradição que mergulha as suas raízes em seis séculos de história. Não será indispensável, como já se pretendeu, actualizar a sua expressão jurídica. É, porém, necessário fortalecer a aliança como sentimento; tornar mais viva a consciência desse «dogma histórico» (como lhe chamou o marquês de Soveral) na alma colectiva dos dois povos. O Prof. Huizinga, reitor da Universidade de Leiden, presidente da Academia Neerlandesa, consagrou uma verdade quando afirmou há vinte anos em Genebra: «Há velhas nações amigos que não têm pressa de se conhecer».
Esta observação subtil ajusta-se como uma luva ao caso da Grã-Bretanha e de Portugal. O fortalecimento moral da aliança : exige entre os dois povos um convívio mais íntimo, uma comunicação maus fácil, uma riqueza maior de informações recíprocas, um contacto mais frequente e mais directo, uma mais perfeita comunhão das juventudes universitárias e escolares. Noutro tempo, o pouco que conhecíamos um do outro nos bastava: Encontrávamo-nos de século a século nos campos de batalha; combatíamos lado a lado; quando passava o perigo apertávamos (fraternalmente as mãos e despedíamo-nos até à próxima guerra, deixando aos netos - quando Deus quisesse- o encargo de recomeçar a epopeia interrompida dos avós. Agora, os tempos mudaram. As condições do Mundo são diferentes. Ê em volta do gigantesco bloco anglo-saxão que se organiza, pela força do Pacto do Atlântico Norte, a defesa do Ocidente. A guerra tem de pensar-se em inglês. Não basta, como nos prélios medievais, vestir as armas no momento próprio. É preciso forjá-las em comum, trabalhar em comum longos anos, àsperamente, incansàvelmente - não já para vencer uma guerra, mas para uma empresa mais difícil ainda: para a evitar. A colaboração das espadas não é suficiente; temos de assegurar a colaboração dos espíritos. A Convenção Cultural entre, Portugal e o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, agora submetida ao nosso exame, é necessária e vem na hora própria.
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4. Como acima se disse, houve no decurso do tempo homens cultos - portugueses na Inglaterra, ingleses em Portugal - que, mercê das oportunidades oferecidas pelas actividades comerciais, pelas perseguições religiosas (movimento irradiante dos judeus portugueses para os países nórdicos nos séculos XVI e XVII), pelas expedições militares, pelas emigrações políticas, puderam estabelecer contactos directos, mais ou menos longos, com os acontecimentos, as instituições e os homens do país aliado, adquirindo experiência que lhes permitiu publicar, não apenas livros de viagens, mas obras científicas e literárias de relevante interesse para ambos os povos. Houve também letrados e sábios, em qualquer das nações, que exerceram a função docente nas Universidades da outra (desde Buchanan, aliás escocês, até Prestage), ou pertenceram a claustros académicos do país irmão, como ar Sociedade Real de Londres e a Academia das Ciências de Lisboa. A isso se referem, em trabalhos ricos de informação, Henry Thomas (English translations of portuguese books); Saavedra Machado (O pensamento inglês em Portugal na Idade Média); Fran Paxeco (The intellectual relations be-tween Portugal and Great Britain); Felix Walter (La litterature portugaise en Angleterre à l'époque romantique); Chapman e Shillington (The commercial relations of England and Portugal); Prof. Amorim Ferreira (Relações cientificas entre Portugal e a Grã-Bretanha); e muitos outros. Estes factos, porém, não alteram de maneira sensível a posição do problema. Não se tratou, propriamente, pelo menos até certa data, de relações culturais regulares entre Portugal e a Grã-Bretanha, mas - o que é diferente - de casos isolados, mais ou menos frequentes e mais ou menos brilhantes, que se produziam, não como expressão do entendimento das duas nações, mas perante a sua quase total indiferença. Actividades individuais de homens cultos, e não uma intercultura organizada. Essa, só depois veio, estabelecendo-se lentamente a partir de 1929-1930 - época heróica da nossa política intelectual de cooperação -, em que fundámos a Junta da Educação Nacional (a que sucedeu o Instituto para a Alta Cultura) e em que os primeiros bolseiros modernos portugueses, com o seu Baedecker e as suas ilusões, partiram a caminho das Universidades estrangeiras. Foi então especialmente considerada a colaboração com a Grã-Bretanha. Aí criámos cátedras e leitorados de língua e literatura portuguesa, em Londres (King's College), em Oxford, em Liverpul; depois em Glasgow, em Cardife, em Manchéster; por fim em Leeds. Em
1933, em plena lua-de-mel dos acordos intelectuais - «les mots dorés», como lhe chamava o Embaixador conde de Saint-Aulaire -, um inglês insigne, Gilbert Murray, professor de Filologia Grega na Universidade de Oxford, assume em Genebra a presidência do mais alto organismo intelectual da Sociedade das Nações. Em 1934 a Grã-Bretanha cria o British Council - central imperial da política de cultura inglesa. Em 1938 inaugura-se em Lisboa o Instituto Britânico, para cuja fundação contribuiu a sugestão oportuna de um português, o Prof. Moses Amzalak, junto de Lord Tyrrell. Tinham começado pouco antes a funcionar o Instituto Inglês da Universidade de Coimbra, a Sala Inglesa da Universidade do Porto, o Gabinete Britânico de Documentação Económica e Financeira da Universidade Técnica de Lisboa. Então, sim, podia já afirmar-se a existência de relações culturais, não apenas entre indivíduos, mas entre Estados; não apenas entre alguns ingleses e portugueses ilustres, mas entre Portugal e a Grã-Bretanha. Faltava, porém, a autoridade de um estatuto, de um instrumento diplomático que a um tempo definisse o sistema de cooperação, estabelecesse as suas bases jurídicas e políticas, assegurasse os meios, os métodos e os limites da obra de organização e de coordenação internacional que se impunha. Para isso os dois Governos negociaram e assinaram a presente Convenção, remetida para preparação de ratificação a Assembleia Nacional e agora submetida ao estudo da Câmara Corporativa. Corresponde, de facto, este instrumento diplomático ao alto pensamento que anima os dois Governos?
5. O projecto de Convenção Cultural entre Portugal e a Grã-Bretanha, de iniciativa, como se disse, do Governo de Sua Majestade Britânica, foi enviado à nossa Secretaria de Estado no dia 36 de Novembro de 1948, acompanhando ofício do embaixador cessante, Sir Nigel Ronald. A grande nação acabava de celebrar acordos intelectuais semelhantes com a França e o Brasil e propunha-se concluir connosco uma convenção do mesmo tipo. Era um diploma de linhas clássicas, com um breve preâmbulo em que se definiam os objectivos das Altas Partes Contratantes («promover, mediante intercâmbio e cooperação amigáveis, o mais perfeito conhecimento e compreensão recíprocos das respectivas actividades intelectuais, artísticas e científicas, bem como dos seus modos de viver»), e um corpo de dezanove artigos, nos últimos dos quais se continham as disposições escatocolares habituais (ratificação, troca dos instrumentos, prazos). Remetido o projecto à Secretaria de Estado da Educação Nacional, foram pelo Instituto de Alta Cultura, com exemplar clarividência e zelo, suscitadas algumas dúvidas. Não pareceu, em primeiro lugar, aceitável o princípio do acordo-standard, quer dizer, a adopção de um tipo de acordo uniforme para países diferentes, cada um dos quais possui, naturalmente, o seu condicionalismo próprio, o seu volume de interesses, o seu conceito de cultura, as suas reacções psicológicas, o seu índice de civilização. «Estes acordos - observou o Instituto - não podem ser planeados numa dimensão única nem estruturados segundo o mesmo padrão». Semelhante observação - convém esclarecer - referia-se especialmente ao conteúdo, não à forma, porquanto é sabido que a evolução formal, exterior ou diplomática destes instrumentos se tem feito, a partir de 1935, quanto possível no sentido da unidade. Pareceu ao Instituto, também, que o projecto confundia a «noção humanista de cultura, única de que aquele organismo se considera tributário», com o «conjunto das actividades e manifestações da vida dos povos modernos», incluindo nos objectivos definidos no preâmbulo o mais perfeito conhecimento das «maneiras de viver» («ways of life») das duas nações, e considerando no artigo III o intercâmbio do «academic personnel» (professores, estudantes, investigadores científicos) extensivo a outras profissões e ocupações («other professions and occupations»). A confusão do «cultural» com o «social» e com o «económico» repugna a esta espécie de acordos, de âmbito restrito aos interesses intelectuais. O alto organismo consultado chamou ainda a atenção do Governo para dois pontos a que atribuiu especial importância: não considerava necessária a nomeação de uma Comissão Mista (Mixed Commission) para a execução do Acordo, porque essa função, por definição legal, pertencia no nosso país ao Instituto de Alta Cultura; reputava inconveniente a aplicação imediata da Convenção aos territórios ultramarinos das duas Potências contratantes, dispersos pelas cinco partes do Mundo (§ 2.º e alíneas do artigo XVI do projecto inglês), porquanto, dado o desnível das civilizações e dos culturas, não era por enquanto possível negociar acordos intelectuais de tão vasta extensão geopolítica. O Instituto fez acompanhar o seu relatório de um contraprojecto da Convenção remetido ao Governo em 17 de Janeiro de 1949.
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As negociações das chancelarias protelaram-se, e só em Março de 1951 a Embaixada britânica enviou ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, e este ao Instituto, o contraprojecto inglês, que suscitou ainda dúvidas. Novas conversações; terceiro contraprojecto, recebido em 31 de Novembro de 1953. O Instituto procurou, uma vez mais, esclarecer determinados pontos; não julgou oportuno insistir noutros; e o texto da Convenção, considerado definitivo depois das últimas revisões das duas Secretarias de Estado, foi assinado em Lisboa pelos plenipotenciários no dia 19 de Novembro de 1904. Não pode esta Câmara deixar de reconhecer o meticuloso cuidado, o acendrado patriotismo, o perfeito espírito de conciliação com que, por parte da Administração portuguesa, foram conduzidas as negociações. A Administração britânica não se mostrou também, nem menos primorosa, nem menos conciliadora.
6. O texto definitivo da Convenção é constituído por dezoito artigos - menos um, portanto, do que no projecto inicial britânico. Alterou-se a redacção do preâmbulo. A expressão «ways of life» encontrou nova equivalência, o costumes e vida social», que continua a dar a impressão, aliás não confirmada no texto, de que os limites do acordo intelectual se ultrapassaram. O membro de frase «actividades intelectuais, artísticas e científicas», também contido no preâmbulo, presta-se á confusões. As actividades artísticas e científicas não serão intelectuais? As actividades intelectuais excluem, porventura, a arte e a ciência? E as actividades literárias? Se estão incluídas nas intelectuais, porque o não estão também as outras? Evidentemente, um instrumento diplomático apresentado a uma assembleia legislativa para ratificação não é susceptível de emendas. Aprova-se ou não se aprova, mas não se altera. A Câmara julga, porém, dever chamar a atenção para este e outros pequenos lapsos, não - inútil acentuá-lo - para que eles sejam corrigidos pela Assembleia Nacional, mas para que possam, como convém, esclarecer-se na respectiva regulamentação a cargo da Comissão Mista (artigo XII). Vejamos, rapidamente, o articulado. O artigo I diz respeito u criação de cátedras e leitorados nas Universidades e escolas superiores. O artigo n, à fundação de institutos. Declara-se neste artigo que o termo «instituto» abrange escolas, bibliotecas, colecções de fitas cinematográficas, etc. É óbvio que uma colecção de filmes ou de discos não é um instituto. A expressão «film library» figura no texto inglês com a significação, não de colecção de fitas de cinema, mas de estabelecimento ou serviço em que se encontram instaladas, organizadas, catalogadas, conservadas por técnicos e afectas ao uso público colecções de filmes de interesse geralmente documental ou didáctico (por exemplo, as filmotecas das Universidades inglesas e americanas, ou as filmotecas livres organizadas pelo antigo Instituto Internacional do Cinema Educativo, de Roma). A palavra «filmoteca», aliás irregular, etimològicamente híbrida, é hoje corrente, por analogia com «discoteca», que os dicionários portugueses registam já. Os artigos III e IV referem-se ao intercâmbio de professores, estudantes, investigadores científicos, e à concessão de subsídios e bolsas de estudo. O artigo V deixa a cada, uma das Partes Contratantes a liberdade de determinar até que ponto, no seu território, poderá ser concedida a equiparação de títulos, graus ou exames académicos obtidos ou feitos no território da outra, «inclusivamente quanto aos relacionados com o exercício da, actividade profissional». Este aspecto - exercício de profissões liberais por diplomados de Universidades estrangeiras - é delicado e tem-se considerado prudente excluí-lo dos acordos intelectuais, propriamente ditos.
Pela maneira por que está redigido, porém, o artigo V não envolve qualquer compromisso, abrindo, quando muito, as portas a futuras negociações. Os artigos VI e VII ocupam-se dos cursos de férias e dos convites, subsidiados ou não, para visitas recíprocas de grupos de «cientistas, artistas e figuras representativas de outras profissões e actividades». Nos artigos viu e IX as Partes Contratantes obrigam-se a prestar assistência mútua às iniciativas tendentes a melhorar em cada uma delas o conhecimento da cultura da outra (propaganda do livro, concertos, conferências, exposições de arte, espectáculos teatrais, rádio, cinema, fonogramas), autorizando, com as reservas estabelecidas no artigo XVI, a entrada dos funcionários e técnicos encarregados da execução dessas operações. Nos artigos X a XIV é mantida a Comissão Mista a que se referia o projecto inicial britânico e que o contraprojecto português suprimira, regulando-se a sua constituição e funcionamento. Encontrou-se uma fórmula elegante de conciliação, a que nada há que opor: os três membros britânicos são nomeados pelo British Council e os três membros portugueses pelo Instituto de Alta Cultura; às reuniões, alternadamente realizadas em Lisboa e em Londres, presidirão membros daqueles dois organismos; o Instituto e o British Council consideram-se, para todos os efeitos, os responsáveis precípuos da execução da Convenção. Em satisfação ainda do ponto de vista português, o artigo XV esclarece que a expressão «território» usada neste instrumento designa, para uma das partes, o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte e, para a outra, Portugal continental e ilhas adjacentes. O artigo XVI estabelece reservas quanto à entrada, permanência e saída dos funcionários e técnicos cuja intervenção é prevista no artigo IX. Finalmente, os dois artigos últimos (XVII e XVIII) ocupam-se da ratificação, da troca dos respectivos instrumentos, que se efectuará em Londres, e do p nexo de vigência (mínimo de cinco anos); declarado prorrogado se, decorrido ele, nenhuma das Partes Contratantes houver denunciado a Convenção.
7. Eis, nas suas linhas mestras, o diploma. Esta (rápida sinopse dá-nos a medida ido rigoroso ajustamento dos meios e idos métodos nele preconizados ao alto pensamento dos dois Governos mo sentido de fortalecer e enriquecer a aliança, tornando mais perfeita a compreensão entre os dois povos, mais fácil a sua comunicação intelectual, mais eficaz e mais proveitosa a sua colaboração futura. Nada neste diploma existe que constitua novidade no domínio ida política internacional da cultura; nada, porém, lhe falta para que o possamos considerar um documento notável. Tudo o que é possível prever está nele «previsto, mormente no que respeita à cooperação interuniversitária para a intensificação do ensino das línguas, sua propaganda e difusão. Portugal e a Grã-Bretanha, pertencentes a famílias linguísticas diferentes, encontraram no, inacessibilidade dos idiomas -dos seus belos idiomas imperiais do século XVI - um obstáculo grave ao entendimento recíproco e ao labor comum. A (presente Convenção tem sobretudo em vista remover esse obstáculo. A política internacional da cultura -disse o Prof. Meillet (Langues dans l'Europe Nouvelle)- é hoje fundamentalmente a política das línguas. Quando a língua de duas nações é a mesma, a acção política das chancelarias tem ide exercer-se no sentido de regular o seu condomínio e de íissegura-r internacionalmente a sua unidade (caso de Portugal e do Brasil); quando é diferente, o problema torna-se particularmente delicado sempre que se trata de evitar que a incompreensão linguística prejudique ou dificulte o estreitamento das relações internacionais e a cooperação útil dos povos (caso de Portugal e da Grã-Bretanha).
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Com o Brasil concluímos, além do Acordo Intelectual de 6 de Dezembro de 1948, a Convenção, de 29 de Dezembro de 1943, para a unidade, expansão e prestígio da língua portuguesa, instrumento sui generis, único na história do direito internacional público, que é lei no nosso país e que o Estado brasileiro ainda não ratificou. Com a Grã-Bretanha, acabamos de celebrar agora esta Convenção, destinada a assegurar o melhor conhecimento e compreensão das duas Pátrias, das duas culturas e das duas línguas. A língua inglesa comandará amanhã metade da Humanidade. A língua portuguesa - esperamo-lo bem - continuará a derramar no Mundo o clarão imortal da alma latina.
8. Esta Câmara, reconhecendo, pelo que ficou exposto, que a Convenção, de 19 de Novembro de 1954, entre Portugal e o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte serve os altos interesses nacionais, nada tem a opor à sua aprovação para ratificação pelo Chefe do Estado, nos termos da Constituição Política, da República Portuguesa.
Palácio de S. Bento, 7 de Fevereiro de 1955.
Amândio Joaquim Tomares,
José Caeiro da Matta.
Adriano Gonçalves da Cunha.
Reinaldo das Santos.
Mário Luís de Sampaio Ribeiro.
Samuel Dinis.
Celestino Marques Pereira.
Carlos Afonso de Azevedo Cruz de Chaby.
Quirino dos Santos Mealha.
José da Silva Murteira Corado.
Augusto de Castro.
Manuel António Fernandes.
Júlio Dantas, relator.
IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA