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REPÚBLICA PORTUGUESA
ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA
N.º 38 VI LEGISLATURA 1955 28 DE FEVEREIRO
PARECER N.º 16/VI
Projecto de lei n.º 12
A Câmara Corporativa, consultada, nos termos do artigo 103.º da Constituição, acerca do projecto de lei n.º 12, emite, pela sua secção de Interesses de ordem administrativa (subsecções de Defesa nacional e de Justiça), à qual foi agregado o Digno Procurador Afonso de Melo Pinto Veloso, sob a presidência de S. Ex.ª o Presidente da Câmara, o seguinte parecer:
I
Apreciação na generalidade
1. O projecto de lei n.º 12, agora submetido à apreciação da Câmara Corporativa, dispõe que os oficiais do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, em quaisquer situações - de actividade, reserva e reforma - prescritas nos respectivos estatutos que os regem, ficam sujeitos à jurisdição dos tribunais militares, sendo revogada a disposição final do artigo 41.º da Lei do Recrutamento e Serviço Militar, de 1 de Setembro de 1937, no que se refere ao foro militar para oficiais e praças reformados.
Este projecto, de forma tão concisa e de aparência tão simples, tem no entanto um alcance que transcende os limites restritos da sua incidência preceitual.
Torna por isso necessária uma referência, embora sucinta, aos factores de ordem política e social que têm condicionado a evolução daquele foro, paralelamente à difusão de correntes doutrinárias, que ainda hoje suscitam problemas de controversas soluções práticas.
2. A diversidade das circunstâncias, a sucessão das épocas, as influências de natureza doutrinária de origem ou feição política ou filosófica, quando não meros mitos ideológicos ou necessidades ocasionais da política interna, têm induzido a alterações dos sistemas judiciários que nem sempre a posterior experiência mostra terem sido necessárias ou até convenientes.
A jurisdição militar não foge a esta observação. E, no entanto, se há justiça que se deva manter quanto possível em moldes tradicionais, já bem conhecidos e aceites, acessíveis a todas, as mentalidades e adaptáveis a todas as vicissitudes do meio em que ela actua, essa é a justiça militar.
É preciso, por isso, proceder com cautela e não ter pressa em introduzir modificações ou inovações que possam brigar, ou mesmo destoar, com o plano e disposições do Código de Justiça Militar, já sancionados por longa prática sem atritos.
Mas não há dúvida de que, não obstante, chega um momento em que os próprios códigos carecem de revisão.
É o que acontece presentemente com o nosso Código de Justiça Militar, que não só está desactualizado em relação a penas e sistema prisional, que têm de jogar com as sensíveis alterações em tal matéria introduzidas na legislação comum, mas também há-de acompanhar, na medida aplicável, os aperfeiçoamentos conseguidos pelo Código de Processo Penal e legislação complementar para os instrumentos de investigação criminal e trâmites da organização processual até final julgamento.
Ora, temos conhecimento de que foi preparado o considerável trabalho da revisão daquele código, havendo um projecto completo, elaborado por distinto auditor militar, em estudo no Ministério do Exército.
Nestas condições, a Câmara Corporativa não pode deixar de dizer que se lhe não afigura oportuno tomar decisão antecipada sobre um assunto desta natureza, que pode estar em contradição com o plano adoptado
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pelo Governo para o novo código, a menos que a Assembleia Nacional entenda dever estabelecer previamente doutrina que imponha desde já soluções a adoptar.
Feita esta necessária reserva, a atenção que nos merecem os Srs. Deputados proponentes e o dever constitucional de esclarecer as questões sujeitas a debate parlamentar levam-nos a desenrolar, até onde nos for possível, o fio de um assunto que nos parece enriçado por sérias dificuldades.
A Justiça Militar
3. O foro militar tem antiquíssima tradição. Pode dizer-se que é coetâneo do primeiro exército organizado, pois não pode haver organização sem disciplina, disciplina sem autoridade, autoridade sem regra, regra sem um órgão que a interprete e faça observar.
Esse exército -qualquer que fosse a modalidade assumida através dos tempos: voluntário ou coagido, mercenário ou patriota, partidário ou nacional, recrutado na tribo, na casta, no feudo, na classe ou na nação - representou sempre uma força, mais ou menos ordenada e armada, capaz de se impor em combate e, como tal, dotada de privilégios dentro dos povos a que assistia ou em que agia.
Eram esses privilégios constituídos tanto por especiais direitos como por especiais deveres, primeiramente estabelecidos pelos rudimentares pactos firmados entre os chefes e seus homens de armas e depois estratificados em preceitos consuetudinários, cuja veemente força de aplicação se transmitiu de época em época, até que foram reduzidos a normas escritas, lentamente modificadas, ao passo que se iam subindo os degraus da civilização.
Esta é a noção que se pode colher quando se lêem as descrições dos viajantes e etnólogos sobre a vida dos povos primitivos, ou se estudam os clássicos gregos e latinos, ou percorrem os textos da legislação bárbara e das crónicas medievais -e é de assinalar á convenção firmada entre D. Afonso Henriques e os cruzados que o ajudaram na conquista de Lisboa-, pois que, em todos os tempos, o chefe teve necessidade de distribuir aos componentes das suas tropas uma justiça enérgica e expedita, que mantivesse a ordem nas relações deles entre si e também com as populações em que viviam ou mesmo, contra as quais actuavam; mas, simultaneamente, tinham de adequar tanto as normas como as sanções à mentalidade do homem de guerra, de modo a conciliar a rigorosa repressão dos desmandos com a suprema necessidade de manter a coesão da força armada e não quebrantar e antes estimular o espírito guerreiro, que se sublima ate ao sacrifício voluntário da própria vida.
4. O ilustre general L. A. de Carvalho Viegas publicou na Revista Militar 1 um largo estudo sobre as origens e modalidades do nosso foro militar, para chegar a conclusão idêntica à do projecto de lei em apreciação.
O que atrás escrevemos poderia servir apenas de prefácio ao interessante trabalho, se não fosse nosso dever fazer a revisão de suas informações e deduções e completá-las quanto nos fosse possível, sem ter em mente determinada conclusão, visto que a nossa tarefa é oferecer todos os elementos aproveitáveis, com o sentido de contribuir para o esclarecimento de tão discutido assunto.
Parece-nos que, antes do desastre de Alcácer-Quibir, em que foi ceifada a flor da nobreza de Portugal, se sentiu a necessidade de organizar um exército de base popular, para tanto se publicando o Regimento de 10 de Dezembro de 1571, que organizou em todo o País as Ordenanças, com seus capitães-mores, sargentos-mores e oficiais eleitos pelos municípios, excepto onde houvesse senhores das terras ou alcaides-mores, porque ai eram estes de direito os capitães-mores, e regulamentou as esquadras, bandeiras e alardos em que os homens de guerra se agrupavam, com aperfeiçoamentos depois introduzidos pela provisão de 15 de Maio de 1574.
A disciplina era mantida pelos comandos e a justiça era distribuída conforme as ordenações do reino e os forais dos concelhos. Não se pode dizer que houvesse foro privativo, tal como hoje o concebemos, mas a justiça não estava ausente das formações militares.
O Governo de então, enleado pelos acontecimentos que conduziram em 1580 à posse da Coroa por D. Filipe I, não teria tempo de armar e adestrar esta força, que de permanente só tinha os quadros, aliás não remunerados. Cremos que foi, no entanto, esta orgânica extensão da teia militar, juntamente à irritante Carta Régia de Filipe III de 31 de Dezembro de 1639, com rigorosas instruções para a recruta de uma grande leva de gente para ir servir em Espanha, que proporcionou ao nosso D. João IV o rápido levantamento de um exército nacional, a que longa guerra ia impor o carácter de permanente e tornar necessária a outorga de justiça própria.
Instauração e evolução do foro militar no regime absoluto
5. É provável quê durante os Governos filipinos se difundisse entre nós, através dos fidalgos, letrados e mercadores que frequentavam a Corte de Madrid, o conhecimento das Ordenamos de D. João de Áustria e do duque de Alba para os exércitos do seu comando e, sobretudo, as Ordenamos de 1587 para o exército espanhol da Flandres, atribuídas ao príncipe de Parma, e portanto podemos admitir, como o Sr. General Carvalho Viegas, que delas veio a sugestão para os primeiros diplomas judiciais militares publicados por D. João IV, após a Restauração.
Com efeito, em 11 de Dezembro de 1640 foi instituído um conselho de guerra junto da Corte, composto de dez membros, um promotor de justiça e um secretário, tendo um Ministro ou juiz letrado como assessor; mas foi o alvará de 22 de Dezembro de 1643 que definiu as regras de competência e processo desse tribunal, prevendo até que nos casos mais graves a ele assistissem mais dois letrados e prescrevendo a sua reunião em dois dias de cada semana.
Em França só em 1655 foram decretadas por Luís XIV as Ordenanças aperfeiçoadas1, de que todavia não encontramos a influência na nossa posterior legislação do século XVII, pelo que a criação e organização bastante perfeita do nosso primeiro tribunal militar se pode dizer filha do espírito nacional.
A par subsistia larga competência disciplinar dos governadores das armas e dos comandantes dos exércitos em operações, sem prejuízo dos privilégios dos nobres e dos cavaleiros das três ordens militares, que haviam de prolongar-se até ao século XIX.
6. Com a estagnação da guerra e a paz não foi dissolvido o exército.
E como os crimes de furto praticados pelos incorporados irritavam as populações, enodoando as fardas, foi estabelecido em 25 de Janeiro de 1660, e depois esclarecido e renovado em 31 de Julho de 1664, que os réus de crimes de furto, mesmo de pequeno valor, eram excluídos do foro militar e relegados às justiças ordinárias.
1 Pp. 553-575 e 719-740 de 1953 e pp. 95-98 de 1954.
1 Cit. Revista Militar, p. 556.
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Não tardou, porém, o foro militar a voltar á ter competência sobre todos os crimes praticados por militares, o quo ficou definitivamente estabelecido pelo Regimento das Armas de 1 de Julho de 1678, "para acabar com as grandes contendas entre os cabos da milícia, seus auditores e os ministros, da jurisdição ordinária".
É de notar, todavia, que foi estabelecido, quanto aos soldados e graduações não superiores a cabos de esquadra, que "o privilégio do foro militar só pertence aos que estão na fronteira, ainda quando dela se ausentem com licença", e disposição idêntica foi aplicada mais tarde, quando as tropas regressaram a quartéis, apenas aos que ficaram pertencendo aos efectivos permanentes a.
7. Chamado o conde de Lippe a Portugal, procedeu à reorganização do Exército e redigiu o Regulamento de Infantaria 3, que com os seus vinte e nove artigos - conhecidos por artigos de guerra do conde de Lippe - constituiu o primeiro esboço de um código de justiça militar entre nós, em que, assegurando o foro privativo, se estabeleciam regras processuais uniformes.
Confirmando esta orientação, foi publicado o alvará de Outubro seguinte, afirmando que a jurisdição dos tribunais militares é privativa de qualquer outra, por mais privilegiada que seja, e submetendo-lhe os cavaleiros das ordens militares, embora ainda com a regalia de que, aquando os culpados têm hábito de qualquer ordem, intervém nos conselhos um número de cavaleiros igual ao dos oficiais de patente" 4.
Só pode avaliar-se o alcance e a energia desta disposição quando se atente em que as três ordens militares de cavalaria gozavam o privilégio de ter um juiz geral dos cavaleiros e cada uma delas um juiz dos cavaleiros, segundo os seus estatutos, os. quais podiam meter na cadeia os presos, como quaisquer outros juizes, e ser assistidos nas audiências pêlos alcaides e meirinhos da cidade, tendo usufruído de atenções durante os Governos filipinos 5.
Tão forte era a tradição dos seus privilégios que já em 1801 o alvará de 12 de Agosto mandou que no Brasil os cavaleiros de Cristo, Avis e Santiago fossem julgados pêlos desembargadores e ouvidores gerais do crime, disposição esta que a Carta Régia de Novembro de 1808, § 17, tornou extensiva aos cavaleiros da Ordem da Torre e Espada, criada por D. João VI.
8. Em tempo de guerra os tribunais militares funcionavam, nos termos das respectivas Ordenanças, pela forma expedita que as circunstâncias impunham; mas em tempo de paz os réus podiam "nomear advogados que os assistam e aconselhem nos seus interrogatórios e aleguem a sua defesa" (Decreto de 5 de Outubro de 1778).
E, conquanto a Carta Régia de 21 de Outubro de 1757 houvesse qualificado de "crime de lesa-majestade de primeira cabeça" a confederação ou ajuntamento, vozes sediciosas e tumultos, para os amotinados se oporem às leis e ordens ou resistirem aos ministros e oficiais encarregados da execução delas, entregando-os à justiça ordinária, e fosse mantida a disposição do alvará de 21 de Novembro de 1763 que inibia os tribunais militares de se ocuparem de qualquer causa cível, por maior que fosse a graduação do militar nela interessado, marcando assim nitidamente a especialidade do foro militar, certo foi que veio depois a necessidade ou a conveniência de entregar aos tribunais militares o conhecimento e julgamento da "resistência oposta por paisanos aos oficiais das ordenanças, em actos das suas diligências, ou que embaracem as conduções de recrutas ou qualquer outro objecto, porque em todos estes casos serão julgados como forma militar" 1.
Mais longe foi outro diploma 2 ao sujeitar a conselho de guerra os casos de "resistência aos oficiais e oficiais inferiores e soldados da tropa em actos da sua diligência, indo munidos de ordem escrita de seus superiores, que deverão apresentar".
O aviso de 2 de Dezembro de 1815 veio, porém, declarar que tal disposição é só compreensiva das diligências militares do ofício das Ordenanças, "pois, assim como os militares só perdiam o privilégio do seu foro quando resistiam à justiça em matéria ou coisa do seu ofício, assim não deviam os paisanos ficar privados do seu foro civil ou criminal quando resistiam às Ordenanças em objectos que lhes não eram próprios, como prender facínoras ou outras diligências em que entravam como auxiliadores, à excepção de irem prender uni paisano que resistisse às ordens do seu chefe, ou outros casos semelhantes".
9. A este tempo já nos conselhos de guerra da Marinha, organizados nos termos do Decreto de 15 de Novembro de 1783, foram mandadas seguir as normas observadas nos das tropas de terra 3.
E outra ordem 4 estabeleceu que nos regimentos de milícias se fizessem conselhos de guerra em tudo semelhantes aos das tropas regulares.
Mais tarde 5 foi regulamentado que nestes conselhos servisse de auditor o juiz de fora da sede do regimento e que o general nomeasse para vogais os oficiais das milícias ou das tropas de linha que lhe parecessem.
10. Com este desenvolvimento da justiça militar cresceu também a necessidade de compilar e modernizar as disposições legais respectivas.
o sector civil acontecera o mesmo.
Por Decreto de 31 de Março de 1778 fora nomeada uma comissão de quinze jurisconsultos para proceder à revisão das Ordenações e das leis extravagantes e dispersas que nelas devessem ser incorporadas. Nada fez.
Em 23 de Março de 1783 foi nomeado para proceder a esse trabalho o Doutor Pascoal José de Melo Freire, que, quatro anos depois, apresentou um Projecto de Código de Direito Público e Criminal, obra notável para aquela época. Nomeada outra comissão revisora em 3 de Fevereiro de 1789, também dessa vez o código não se publicou.
Só em 21 de Março de 1802 foi criada uma junta encarregada de elaborar um código de justiça militar. Parece que alguma coisa teria feito, pois que em 13 de Janeiro de 1804 a encarregaram de fazer um código militar da Marinha.
Nenhum destes trabalhos, se se concluíram, veio a ser convertido em lei, e não admira. A época era agitada por ideias novas, que se reflectiam no próprio campo do direito; uns as queriam, outros as repudiavam.
E assim aconteceu que, perturbada a nossa paz pelas invasões napoleónicas e germinadas as sementes de dissídios internos que viriam a culminar na guerra civil, pôde ainda publicar-se um Regulamento para a Reorga-
1 Regimentos de 22 de Dezembro de 1643 e do 9 de Outubro de 1645.
2 Decreto de 4 de Março de 1672.
3 Decreto de 18 de Fevereiro de 1763.
4 Alvará de 21 de Outubro de 1763, §§ 2.º e 3.°
5 Alvarás de 9 de Dezembro de 1611, 18 de Janeiro de 1613, 9 de Julho de 1636 e 14 de Setembro de 1637.
1 Alvará de 20 de Dezembro de 1784.
2 Alvará de 10 de Agosto de 1790.
3 Ordenança de 25 de Abril de 1800.
4 Ordenança de 27 de Abril de 1800.
5 Regulamento de 20 de Dezembro de 1808, título 5.°, capítulo 3.º
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nização do Exército Português, de 21 de Fevereiro de 1816, o qual, quanto a foro militar, inseriu apenas o artigo XXX, limitando-se a (...) as excepções (...), posteriormente ao alvará de 25 de Outubro de 1763".
Regressou-se puramente à época pombalina.
O foro militar no regime monárquico constitucional
11. Em Setembro de 1820 eclodiu o primeiro movimento liberal, que impôs um Governo imbuído do espírito novo que já em França produzira as Constituições de 1791 e 1793 e em Espanha a de 1812, chamada de Cádis.
Em semelhantes moldes foi elaborado um projecto de Constituição, em cujo artigo 11.º se estatuía:
A lei é igual para todos. Não se devem, portanto, tolerar nem os privilégios do foro nas causas cíveis ou crimes nem comissões especiais.
Logo se boquejou que este preceito atingiria o foro militar, provocando alarme entre os oficiais das tropas. Talvez por isso ele veio a ser apresentado às Cortes Constituintes com um acrescentamento:
Esta disposição não compreende as causas que por sua natureza pertencerem ajuízes particulares, na conformidade das leis que marcarem essa natureza.
Assim se habilitou o Governo a fazer com que a "Regência do Reino, em nome de El-Rei D. João VI", para atalhar o descontentamento que se procurava alastrar no Exército, publicasse em Ordem do Dia n.º 66, do 8 de Abril de 1821 1, "a declaração de que o foro militar ficava ileso e subsistindo em todas as causas militares e só extinto naqueles dos crimes civis que o militar cometer como cidadão, e que a lei que regular este objecto designar como tais, assim em tempo de guerra como de paz, como mostra o referido undécimo artigo: e que a medida da extinção do foro, já adoptada em todas as nações da Europa, foi agora empregada em todas as classes da Nação Portuguesa, ainda nas que gozavam mais sabidos privilégios e sem as excepções Indicadas para os militares que, apesar da distinta classe a que pertencem, não devem prezar menos a qualidade de cidadão, que nasce com o homem e o faz considerar membro da grande família do Estado".
Nas Cortes Constituintes, em 25 de Maio do mesmo ano, o barão de Molelos, Francisco da Silva Tovar, defendeu com vigor os privilégios dos militares, tanto de primeira como de segunda linha, e os dois períodos do artigo 11.º foram aprovados sem modificação.
Esta Constituição, finalmente promulgada em 23 de Fevereiro de 1822, pouco durou.
Depois do movimento conhecido pela Vilafrancada, D. João VI, que regressara do Brasil, aboliu-a e o País regressou ao regime de Governo absoluto até à morte do monarca.
12. Sobrevieram os conhecidos episódios da luta entre constitucionalistas e tradicionalistas, com D. Pedro e D. Miguel em campos opostos, pois aquele outorgou em 1826 a Carta Constitucional, de molde inglês, com os quatro poderes do Estado: legislativo, executivo, judicial e moderador,- a qual só pôde vigorar de facto após a guerra civil, que terminou com a Convenção de Évora Monte, em 1834.
(...)
E no artigo 145.º:
A inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos portugueses, que tem por base a liberdade, a segurança individual o a propriedade, é garantida pela Constituição do Reino pela maneira seguinte:
............................................................................
. § 15.º Ficam abolidos todos os privilégios que não forem essencial e inteiramente ligados aos cargos públicos.
§ 16.º A excepção das causas que por sua natureza pertencem ajuízas particulares, na conformidade das leis, não haverá foro privilegiado nem comissões especiais nas cíveis ou criminais.
Ninguém duvidou de que estes textos previam a continuação do foro militar e o Exército, na falta de novo diploma regulador, continuou a observar as velhas regras.
13. O que então mais se sentia era a necessidade de expungir a força armada dos elementos contrários ou suspeitos ao novo regime. Mas a feição sentimental e tolerante da nossa gente ergueu-se contra possíveis abusos ou injustiças e levantou-se no Parlamento demorada discussão.
A Câmara dos Pares votou, em 21 de Março de 1835, uma proposta de lei, a cujo artigo 1.º deu a seguinte redacção:
Nenhum oficial do Exército será privado da sua patente em caso algum senão por sentença proferida em conselho de guerra.
A patente era tida como propriedade do oficial, por este adquirida por vezes onerosamente, a ponto de o próprio imperador autorizar no Brasil que em certas condições fosse negociada 1 - o que é um elemento de apreciação do conceito que então havia dos privilégios militares.
Mas a votação da Câmara dos Pares embaraçava de momento o Governo, que precisava de agir mais livremente, e ela não foi adoptada pela Câmara dos Deputados.
Tal fórmula protectora dos direitos dos oficiais à sua patente havia de reaparecer mais tarde e então com força constitucional, embora efémera.
14. Por esse tempo, o duque de Saldanha, Ministro da Guerra, reorganizou o seu departamento, incluindo, em 1 de Junho de 1835, uma Divisão de Justiça e Prisões Militares na 1.ª Repartição, mas pouco se demorou no Poder.
A oposição, guiada pelos idealistas e apoiada pelos homens de acção da Revolução de 1820, fez a chamada Revolução de Setembro (9 de Setembro de 1836), impondo-se à rainha D. Maria II para a organização de um Ministério presidido por Passos Manuel, tendo como Ministro da Guerra o marquês de Sá da Bandeira.
O seu primeiro acto foi revogar a Carta e convocar Cortes Constituintes, as quais aprovaram a nova Constituição de 20 de Março de 1838, jurada pela rainha e por D. Fernando em 4 de Abril seguinte.
1 Cfr. Revista Militar, p. 565, 1953.
1 Relatos parlamentares, Diário do Governo, 1835.
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Nesta Constituição ficou inserto o artigo 20.º, que estatuiu:
Ficam abolidos todos os privilégios que não forem especialmente fundados em utilidade pública.
e em § único:
À excepção das causas que por sua natureza pertencerem a juízos particulares, na conformidade das leis, não haverá foro privilegiado nem comissões especiais.
No artigo 120.º dispôs que:
O Exército e a Armada constituem a força permanente do Estado.
e no § único que:
Os oficiais do Exército e da Armada somente podem ser privados da sua patente por sentença proferida em juízo competente.
Como se vê, o pensamento linear dos revolucionários de 1820 sofrera já os desvios que as circunstâncias sociais impõem aos homens de governo. Admitiram privilégios por utilidade pública e juízos particulares para causas determinadas por leis ordinárias, só omitindo a expressa designação dos conselhos de guerra para a demissão de oficiais, talvez para evitar excessiva especificação, imprópria de texto constitucional.
Contudo, esta Constituição não conseguiu radicar-se. O próprio Ministro da Justiça, Costa Cabral, em Janeiro de 1842, foi ao Porto e deu um golpe de Estado, proclamando a restauração da Carta Constitucional.
Assim, ficou esta a reger ininterruptamente a vida política do País até à proclamação da República.
15. Foi neste período constitucional que a nossa legislação, tanto substantiva como adjectiva, realizou nem sempre rápidos, mas efectivos progressos, tanto no campo civil como no militar, para se colocar no nível geral europeu.
Afigura-se-nos que, se isso foi devido à maior permeabilidade do meio social à entrada das ideias que circulavam no Mundo, não o foi menos à reforma pombalina dos estudos universitários e ao crescente número de escolares que a eles acorreu, porque de outro modo havia a impossibilidade de constituir um corpo geral de magistrados competentes.
Com efeito, é de notar que já tínhamos feito a Restauração de 1640 e ainda em 13 de Novembro de 1642 um alvará prescrevia que «juiz não pode ser quem não souber ler e escrever»; e, passado mais de um século, o alvará de 7 de Dezembro de 1782 advertia de que «os juizes ordinários administravam mal a justiça, por paixões de amor ou ódio».
E também já tínhamos feito a Revolução de 1820 quando Garrett, com ardor juvenil, dizia que «na nossa legislação avultava mais o número das excepções que o das regras gerais; os privilégios eram infinitos, as isenções multiplicadas e, em consequência, não havia direito».
E acrescentava:
A execução da justiça torna-se arbitrária, as opiniões dos chamados doutores são preferidas às leis expressas, as romanas às pátrias, a chicana e a intriga à razão e ao senso comum 1.
E já tínhamos adoptado a Carta Constitucional de 1826, e ainda em 1835 um Deputado dizia na sua Camará, com candente mas ponderada energia, que ao juiz ordinário é um julgador de direito que não sabe direito, uma contradição pura»; e em outro passo: «ainda não temos um código. A codificação é ainda a filipina, há leis extravagantes e leis subsidiárias, isto é, uma jurisprudência só acessível aos esforços da erudição»1.
Eis o que explica a criação já no reinado de D. Afonso IV dos juizes de fora, letrados e estranhos à área da sua jurisdição, os quais foram aumentando no decorrer do século XVIII e nos reinados de D. Maria I e de D. João VI se estenderam à maior parte das comarcas da metrópole e do Brasil e mesmo de Angola, embora com defeituosa divisão territorial.
E explica também, não só o foro militar, mas a existência de uma multiplicidade de juizes especiais, que seria incrível se não fosse fácil verificar as jurisdições variadas e especializadas que ainda hoje existem.
Houve-os de toda a feição, feitos pelo rei ou pelos donatários das terras ou eleitos. O dos «pecados públicos», por exemplo, só foi extinto por alvará de 2 de Junho de 1725, que passou as suas atribuições para os juizes do crime dos bairros de Lisboa, criados em 1608, vindo estes, no entanto, por alvará de 26 de Julho de 1769, a ser proibidos de «tirar devassa dos concubinatos».
O foro militar foi, porém, desde o começo dos mais felizes: os seus tribunais eram constituídos por oficiais de patente não inferior a capitão, conhecedores da vida das casernas e dos acampamentos e da psicologia da tropa e das populações e portanto especialmente aptos para julgarem as questões de facto e pesarem suas agravantes e atenuantes; e obrigatoriamente também por um juiz letrado, o qual intervinha nos julgamentos, não só para aconselhar sobre a interpretação e aplicação das leis e redigir a sentença, mas também para votar em primeiro lugar, para o que se sentava à esquerda do capitão mais moderno2.
Tratava-se, pois, de um tribunal que oferecia garantias de seriedade e acerto, quer se tratasse dê tropas de linha, quer do milicianos, pois a forma era a mesmas.
Tribunal de tal modo acreditado que já em 1812 a sua jurisdição foi mandada aplicar as novas Ordenanças 4; e nos conselhos de guerra do exército britânico aqui destacado foram mandadas adoptar as «mesmas políticas e civilidades que nos nacionais» 5.
Idêntica organização e trâmites se observavam nos conselhos de guerra da Marinha6.
16. Não havia então instituto equiparável ao das reformas actuais. Não se pensava em limites de idade, nem na Caixa de Aposentações.
Os oficiais que se inutilizavam para o serviço recebiam as tenças, que lhes eram dadas, quando não eram distinguidos com prebendas, segundo o espírito de justiça, de clemência ou de favor do rei e seus ministros, e conservavam até à morte as honras e privilégios das suas patentes.
Encontram-se muitos diplomas em que são mesmo concedidas tenças e benesses às viúvas e filhos de oficiais militares, cujo número, é claro, era incomparavelmente menor que o de hoje.
O que se tira do acervo de leis, decretos, alvarás, portarias, ordens e resoluções desde 1640 aplicados ao foro militar é que o âmbito da sua competência, tanto quanto às pessoas como às infracções, não variou substan-
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1 Garrett, O dia 24 de Agosto, 1821.
1 Relatos parlamentares, Diário do Governo, 1835.
2 Alvará de 18 de Fevereiro de 1764.
3 Alvará de 27 do Abril de 1800.
4 Portaria de 30 do Julho de 1812.
5 Portaria de 9 de 1 Julho de 1813.
6 Decreto de 15 de Fevereiro de 1783, Carta Régia de 26 de Outubro de 1796 e alvará de 26 de Novembro do 1800.
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cialmente, apenas se alargando, quanto àquelas, de harmonia com a evolução das forças armadas, mas pragmaticamente, atendendo às circunstâncias da sua estrutura e funções, sem os pruridos ideológicos que haviam de dominar no século XIX.
Para se evitarem abusos e intromissões renovava-se o preceito de que os militares não podiam ser julgados pêlos civis pelos crimes que cometessem, do mesmo passo que se reafirmava que eles não têm privilégio nas causas cíveis i, como já o não tinham nas questões com a Fazenda, quer nos casos de resistência aos cobradores, quer nos de furto e descaminho em detrimento da mesma Fazenda, cuja competência era dos "juizes fiscais ou de comissão" 2.
É, tal como antes se fizera para as Ordenanças, definiu-se em 1808 a situação forense das milícias, estabelecendo-se que os oficiais gozam das mesmas isenções e honras que competem aos de linha, pelo que gozam do foro militar para todos os delitos, nas graduações superiores a cabo-de-esquadra, e desta para baixo não gozam do foro militar nos crimes comuns senão estando reunidos e em efectivo serviço militar 3.
Era, portanto, este o regime de privilégio do foro, que foi mantido e mandado observar pelo Regulamento para a Organização do Exército, de 21 de Fevereiro de 1816, e vigorou ainda por largo tempo, praticamente até à publicação do nosso primeiro Código de Justiça Militar, apesar da coexistência de certo estado de espírito, de formação jacobina, que ainda em 1835 proclamava "parecer mais sensato que os povos escolham os seus juizes, que ninguém lhos imponha, perpétuos ou temporários", embora logo aconselhando "não escolham os leigos, escolham os sábios e letrados" 4, o que não obstou a que os chamados ajuízes eleitos" fossem abolidos em 1840 sob a acusação de que se inclinavam para seus amigos e eleitores.
17. O brilhante período de reforma e codificação das leis - anunciado pêlos notáveis trabalhos de Melo Freire e de Ferreira Borges e cujas primeiras grandes manifestações foram o Código Comercial de 1833, a Novíssima Reforma Judiciária de 1841 e o Código Administrativo de 1842, para refulgir com o Código Penal de 1852, o Código Civil, do 1H67, o Código de Processo Civil de 1876 e o Código Comercial de 1888 - foi secundado pela publicação do Código de Justiça Militar, de 9 de Abril de 1875.
Neste diploma se fixou ao foro militar competência para conhecer dos crimes ou delitos de toda a natureza perpetrados por militares ou outras pessoas pertencentes ao Exército, salvo os de contrabando ou descaminho, de violação das leis sobre caça e pesca, matas nacionais e viação pública, bem como os delitos comuns praticados pêlos desertores durante a deserção.
Os tribunais militares, em cuja composição entrava sempre um juiz saído do quadro da magistratura judicial, exerciam jurisdição sobro todos os indivíduos por qualquer modo inscritos nos serviços militares, sem exceptuar os guardas municipais e os empregados civis do Exército com graduação militar, ainda que estivessem em hospitais, em prisões ou no asilo de Runa, ou fossem, prisioneiros de guerra ou emigrados políticos, militares, civis e internados em depósitos sujeitos ao regime militar.
Não conheciam de todos os crimes, mas sim apenas dos constantes do código, quando se tratasse de militares fora da efectividade do serviço, a receberem soldo, ou à disposição do Ministério da Guerra, ou na inactividade temporária sem vencimento, a seu pedido, ou de licenciados, ou de empregados em comissões não dependentes do Ministério da Guerra, ou ainda de quaisquer militares licenciados na reserva, quando não estivessem em serviço ou nas revistas ou na instrução.
A comissão parlamentar, que sobre ele deu curto parecer, disse a respeito da competência: "É este um dos assuntos mais importantes de toda a jurisprudência excepcional, porque quanto melhor fixar a esfera dos tribunais de privilégio, tanto menos motivos haverá para conflitos e tanto menos dificuldades para que se realize livre e francamente a acção da justiça contra os indiciados por delitos de excepção".
E foi tudo; vê-se que havia a obsessão dos inúmeros empecilhos que a chicana usava levantar a pretexto dos velhos privilégios.
A oposição não tomou parte no debate parlamentar. Este limitou-se a um torneio oratório sobre a pena de morte, em que tomaram parte Júlio de Vilhena, Barros e Cunha e Fontes Pereira de Melo 1.
18. Depois da reforma penal de 1884 sentiu-se a necessidade de lhe adaptar a justiça militar. Em 1886 foi nomeada uma comissão, composta de oficiais e magistrados, que em Dezembro de 1889 apresentou um projecto, acompanhado de relatório 2.
Só, porém, em 1895 o Ministro da Guerra Pimentel Pinto, em Governo presidido por Hintze Ribeiro, fez decretar novo Código de Justiça Militar, precedido de extenso e cuidado relatório justificativo, em que se diz que 30 Governo não pode encarecer o trabalho da comissão de 1889, por estar assinado por um dos seus membros".
Nesse relatório, em matéria de competência, procura-se justificar a extensão da jurisdição militar a indivíduos civis, invocando-se os precedentes da Lei de 25 de Agosto de 1840, dos Decretos de 17 de Abril de 1844 e 2 de Fevereiro do 1891 e dos títulos III e IV do livro m do código de 1875 e disposições das leis suíça, italiana, belga e francesa, e acrescenta-se: "A verdade é que o acto de sujeitar ao foro militar indivíduos da classe civil, em tempos normais e por crimes atentatórios da disciplina militar e da ordem pública, é necessário e portanto legítimo, e é em razão disso mesmo que em Portugal, como em toda a Europa, constitui por assim dizer direito comum".
Não é o velho princípio de que a necessidade não tem lei, mas a afirmação explícita de que é a necessidade que faz estas leis. E de competência nada mais diz que valha nota, porque este novo código reproduz o estabelecido pelo de 1875, apenas com o acrescentamento dos trabalhadores empregados nas fábricas, arsenais, depósitos e secretarias militares, quando cometam crimes previstos no mesmo código.
No caso de acumulação de crimes civis e militares também reproduz - artigo 295.° - a doutrina do artigo 201.° do código de 1875, que prescrevia:
Quando algum indivíduo sujeito à jurisdição dos tribunais militares for acusado ao mesmo tempo por outro crime da competência dos tribunais ordinários, será por ambos os crimes julgado pela justiça militar.
Esta doutrina é a do artigo 367.° do actual código.
O código de 1895 foi em 1896 sancionado pelo Parlamento, sem alteração nem discussão que aconselhe referência acerca do assunto a apreciar, e publicado com a Lei de 13 de Maio de 1896.
1 Carta Régia de 23 do Fevereiro de 1771 e alvará de 20 de Julho de 1797.
2 Alvarás de 14 do Fevereiro de 1772 e de 18 de Setembro de 1774.
3 Alvará de 20 de Dezembro de 1808, título 5, capítulos 1-3.
4 Diário do Governo de 8 do Julho de 1835.
1 Diário das Sessões, 1875, pp. 852-863.
2 Cit. Revista Militar, 1953, p. 562.
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O foro militar no regime republicano
19. Com a proclamação da República, o Governo Provisório, da presidência de Teófilo Braga, sendo Ministro da Guerra o general Correia Barreto, apressou-se a decretar, logo em 11 de Março de 1911, um Código de Processo Criminal Militar, em cujo relatório preliminar se diz que ao Governo teve a orientá-lo critério seguro, o qual é o espirito novo que procura estabelecer as bases e as linhas da evolução de um exército diferenciado para o regime da nação armada", o que o "conduziu a acabar com a barreira funesta da separação das competências e distinção de foros".
Puro jogo de palavras, que não correspondia à realidade e era contraditado por outras passagens do mesmo relatório: "Se é verdade que à justiça parcelar sucedeu a justiça comum, que absorveu as jurisdições múltiplas, sujeitando todos ao mesmo direito, é certo também que em nossos dias se manifesta corrente favorável à criação de tribunais especiais para o julgamento das questões suscitadas dentro do exercício de cada uma das várias e complexas funções do Estado. E, se a competência universal pode ser defendida pelas razões superiores de direito e de justiça, a jurisdição particularizada é preconizada como defesa dos corpos e institutos a que esta jurisdição se aplica", e assim o Governo "relegou para os tribunais comuns o julgamento de todos os crimes que não tenham carácter militar..., deixando para os tribunais militares os crimes previstos nos códigos militares".
A teoria das competências especializadas não parece exposta com perfeição, mas foi traduzida nos artigos 123.° e 124.° deste Código de Processo Criminal Militar, que, mandavam submeter ao tribunal militar os militares, fosse, qual fosse a sua situação, somente pêlos crimes que cometerem contra o disposto no Código de Justiça Militar, devendo, no caso de cúmulo de crimes militares e comuns, aquele tribunal esperar pelo julgamento do tribunal civil para depois, em face da sentença proferida, aplicar a pena de harmonia com a lei para o caso de acumulação de crimes.
Esta solução anquilosava os conselhos de guerra, que, em face da psicologia militar, se têm necessidade de julgar com acerto, não a têm menos de absolver ou condenar com brevidade.
As Leis de 6 e 8 de Maio de 1913 restabeleceram a competência dos tribunais militares para o julgamento dos crimes comuns praticados por militares, do activo ou da reserva, na efectividade do serviço ou em cumprimento de deveres militares, e por prisioneiros e emigrados subordinados à autoridade militar.
Não se fez referência aos reformados.
20. Já então estava em vigor a primeira Constituição Política da República, votada pela Câmara Constituinte em 1911. Diploma excessivamente conciso, revelando a dificuldade de encontrar pontos de vista harmónicos, dentro de uma assembleia já dividida por divergentes correntes de opinião ou sentimento, nem sequer repetiu a disposição do artigo 1.° do Decreto de 10 de Novembro de 1910, que "revogou todas as leis de excepção que submetam quaisquer indivíduos a juizes criminais excepcionais", limitando-se a dizer no artigo 23.°, n.ºs 3.° a 21.°, que ca República Portuguesa não admite privilégios de nascimento nem foros de nobreza" e, nos artigos 56.° e 90.°, que o Poder Judicial terá por órgão um Supremo Tribunal de Justiça e tribunais de 1.ª e 2.ª instâncias, distribuídos pelo País conforme as necessidades do serviço o exigirem, -"continuando em vigor, enquanto não revogadas pelo Poder Legislativo, as leis e os decretos com força de lei até hoje existentes".
A tribunais militares nenhuma referência expressa. Tudo continuou como estava, pois, de facto, não havia o intuito de os suprimir ou reduzir, quer em número, quer em competência.
21. Só em 26 de Novembro de 1925 foi decretado novo Código de Justiça Militar, incluindo a constituição dos conselhos de guerra e as normas do processo, juntamente com as regras de competência e os crimes e penas especificamente militares.
É este o código ainda em vigor na metrópole e no ultramar.
Segundo ele, os tribunais militares conhecem "dos crimes de qualquer natureza, excepto os de contrabando e descaminho e o de abuso de liberdade de imprensa quando não constitua crime essencialmente militar, cometidos por militares ou outras pessoas ao serviço do Exército ou da Armada, com as limitações e distinções expressamente estabelecidas neste código" 1.
Ora, quanto aos militares da reserva e reformados da Armada, do Exército, das Guardas Republicana e Fiscal e da Polícia estabelece-se que em tempo de paz eles respondem perante os tribunais militares por crimes de qualquer natureza, militares ou comuns, se estiverem no desempenho de algum serviço militar 2; e, se não estiverem desempenhando algum serviço militar, só respondem perante os tribunais militares quando cometerem algum crime previsto no Código de Justiça Militar 3, e então ainda que conjuntamente sejam acusados de algum crime previsto nas leis gerais 4.
Porém, o Decreto n.° 14 419, de 13 de Outubro de 1927, modificou estes preceitos, determinando que "os oficiais na situação de reserva e do quadro auxiliar, os militares reformados, os que estiverem com licença ilimitada, em inactividade temporária, e os empregados em comissões não dependentes dos Ministérios da Guerra e da Marinha estão sujeitos à jurisdição dos tribunais nos mesmos casos e nas mesmas condições em que os do activo do Exército ou da Armada estiverem sujeitos a essa jurisdição".
Era a expressão do conceito da igualdade perante o foro militar de todos os que tinham direito a usar uma farda do Exército ou da Armada.
Esta disposição foi justificada com o considerando de "não ser justo que os oficiais, pelo facto de transitarem para a situação de reserva, para o quadro auxiliar ou para a situação de reforma, ou de estarem em determinadas situações, percam o foro militar e fiquem sujeitos em determinados casos à jurisdição dos tribunais comuns, quando indivíduos estranhos ao Exército e à Armada, e até da classe civil, estão sujeitos à jurisdição dos tribunais militares".
22. Com efeito, a extensão da competência dos tribunais militares para julgamento de civis, em certas emergências, foi sempre adoptada em tempo de guerra e também é antiga, bem que mais restrita, em tempo de paz.
A isso são levados os Governos e os próprios Parlamentos, visto que as nações se podem achar em circunstâncias excepcionais, para que é lícito invocar o famoso brocardo Salus populi, suprema lex, e também noutras em que apenas urge assegurar a conservação ou o restabelecimento da ordem pública, e em todo o caso tão previsíveis que no próprio Código de Justiça Militar há para elas formas especiais de processos.
É grande a lista das leis e decretos que entre nós ordenaram aquela extensão, mesmo sem remontar ao regime absoluto. Logo em 1840, em pleno domínio setem-
1 Código de Justiça Militar, artigo 363.°
2 Código de Justiça Militar, artigos 364.° e 365.°, n.° 5.°, alíneas b) e c).
3 Código de Justiça Militar, artigo 366.°, n.ºs 1.° e 2.°
4 Código de Justiça Militar, artigo 367.°
5 Código de Justiça Militar, título II, capítulos I a IV.
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brista -herdeiro da liberalíssima tradição de 1820 -, a Carta de Lei de 14 de Agosto suspendia as garantias de liberdade de imprensa, inviolabilidade do domicilio e captura sem culpa formada e mandava que os acusados pelo crime de rebelião respondessem em tribunal especial, composto de três oficiais do Exército e de três desembargadores, disposição que não chegou a vigorar, pois que nova Carta de Lei, de 25 do mesmo mês, mandava que todos os réus desse crime fossem julgados pelos conselhos de guerra, constituídos nos termos do alvará de 4 de Setembro de 1760, ainda então vigente; e, após a proclamação da República, iniciou-se com os Decretos de 3 de Fevereiro e de 8 de Julho de 1912 a longa série de diplomas que entregaram aos tribunais militares a competência para julgarem civis réus de certos crimes previstos no Código Penal ou em leis especiais, sendo típico um dos últimos, o Decreto n.º 32352, de 2 de Novembro de 1942, que autoriza o Governo a «sujeitar ao foro militar e às disposições do Regulamento de Disciplina Militar, na parte aplicável, o pessoal das empresas concessionárias de serviços públicos».
São factos da vida contemporânea que não é preciso rememorar especificadamente, pois que estão presentes no espírito de quem quer que se ocupe do assunto.
Só pode haver divergências quanto ao seu valor relativo.
23. Estava em pleno vigor o referido Decreto n.º 14 419 quando foi aprovada, por plebiscito nacional, a Constituição Política da República, de 1933.
O professor da Faculdade de Direito de Lisboa Doutor Fezas Vital, que foi presidente desta Câmara e tem sobre a matéria especial autoridade, explicou o alcance das disposições sobre os tribunais de justiça que alunos seus, em apontamentos impressos, traduziram da seguinte maneira1:
Ao lado dos tribunais ordinários, comuns ou judiciais (todas estas terminologias são sinónimas, não para a Constituição mas na doutrina e na legislação), há tribunais especiais: tribunais administrativos (Supremo Tribunal Administrativo e auditorias, isto é, os chamados tribunais do contencioso administrativo), tribunais do contencioso fiscal, tribunais militares, etc. Dispõe-se, porém, no artigo 117.º que não é permitida a criação de tribunais especiais com competência exclusiva para o julgamento de determinada ou determinadas categorias de crimes, excepto sendo estes fiscais, sociais ou contra a segurança do Estado. Pode, portanto, ser conferido à competência de tribunais militares, que são tribunais especiais, o julgamento de crimes praticados por militares, mas não pode ser criado um tribunal especial para conhecer de certas categorias de crimes, salvo tratando-se de crimes fiscais, sociais ou contra a segurança do Estado.
E o professor da Faculdade de Direito de Coimbra Doutor Carlos Moreira, em idênticas circunstâncias, diz :
Segundo os termos do artigo 117.º, não é permitida a criação de tribunais especiais com competência exclusiva para o julgamento de determinada ou determinadas categorias de crimes. Não pode, por isso, criar-se um tribunal especial para julgar homicídios. Podem, porém, segundo os termos do mesmo artigo, criar-se tribunais especiais para os crimes fiscais, sociais ou contra a segurança do Estado. Criar tribunais para outros fins que não sejam os do artigo 137.º é inconstitucional.
1 Lições de Direito Constitucional, p. 427.
2 Lições de Direito Constitucional, p. 195, §74.º
Na prática, como na doutrina, continua, pois, a não se discutir a legalidade constitucional dos tribunais militares, apesar de a Constituição não lhes fazer expressa referência. Devem ser considerados como uma instituição militar tradicional, de entre as exigidas pelas supremas necessidades de defesa da integridade da Pátria e da manutenção da ordem e da paz pública, às quais o Estado assegura a existência e o prestigio, nos termos do artigo 53.º da mesma Constituição.
Na verdade, eles têm sobrevivido desde há séculos, através das revoluções e das mudanças de regime, intactos nas suas estrutura e função fundamentais. E tanto em Portugal como nos outros países.
O que tem variado é a área da sua competência ou da sua jurisdição, no tocante quer às pessoas, quer às infracções.
Porque se tratava de crimes contra a ordem social e a segurança jurídica, é que o Governo, pouco depois da promulgação da Constituição, se julgou autorizado a entregar a um tribunal militar especial, com sede em Lisboa, os actos de rebelião e os atentados contra as comunicações e as instalações destinadas ao abastecimento ou à satisfação de necessidades gerais e impreteríveis, bem como à importação, fabrico, guarda, transporte e uso de armas proibidas e de substâncias explosivas 1.
Nesta medida cabiam civis e militares; mas os tribunais militares comuns ou territoriais continuaram a funcionar, segundo as leis em vigor, para a generalidade dos crimes praticados por militares ou equiparados.
Na determinação da qualidade das pessoas com direito ou sujeição a este foro é que poderiam dar-se variações.
24. Assim foi que a disposição do Decreto n.º 14419 veio a ser revogada por outra disposição inserta na lei dos serviços do recrutamento militar 2, não obstante o Decreto n.º 15 080 3 ter autorizado a nomeação de oficiais da reserva e reformados para a composição dos conselhos de guerra especiais para julgamento do crime de rebelião, determinados pelo Decreto n.º 13 392 4.
Aquela lei dispôs no artigo 41.º:
Os militares licenciados e territoriais, salvo quando em efectivo serviço, não estão sujeitos, seja qual for o crime ou delito cometido, ao foro militar. O mesmo preceito é aplicável aos oficiais separados do serviço e, a não se tratar de crimes essencialmente militares, também aos oficiais e praças reformados.
Note-se, no entanto, que não se trata de acto de mera responsabilidade governativa, mas sim de lei que passou pela fieira parlamentar e foi votada pela Assembleia Nacional. Quais os fundamentos dessa disposição?
O relatório, aliás desenvolvido e notavelmente sistematizado, que informa a apresentação pelo Governo às Camarás da proposta de lei n.º 162, na legislatura de 1937, é inteiramente omisso acerca de tal matéria.
A Câmara Corporativa elaborou o seu parecer, de que foi relator o Digno Procurador José Filipe de Sarros Rodrigues, agora ilustre chefe do Estado-Maior do Exército. Subscreveram-no os Dignos Procuradores generais Eduardo Marques, Daniel de Sousa e João de Almeida Arez, tenente-coronel Velhinho Correia e doutores Fezas Vital, Abel de Andrade e José Gabriel Pinto Coelho.
De notável e admirável foi esse trabalho qualificado na Assembleia Nacional; e, com efeito, nele se fez a
1 Decreto-Lei n.º 23203, de 6 de Novembro de 1933.
2 Lei n.º 1901, de 1 do Setembro de 1937.
3 Decreto n.º 15 080, de 24 de Fevereiro do 1928.
4 Decreto n.º 13 393, de 11 do Março de 1927, artigo 4.º
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história sumária das instituições militares em Portugal e se versaram com elevação importantes e delicados aspectos da defesa nacional, relacionados com os problemas do recrutamento e serviço militar. Nenhuma referência, se fez, porém, ao foro militar; e ao tratar na especialidade dos artigos 39.º e 41.º diz tão-sòmente isto: «devem ser eliminados, visto tratarem de matéria estranha ao objecto das leis de recrutamento militar».
Na outra Gamara intervieram na discussão os Srs. Deputados Schiappa de Azevedo, Abílio de Passos e Sousa, Fernando Borges, Lobo da Costa, Cortês Lobão,- Linhares de Lima e Álvaro Morna, do Exército e da Armada, e ainda os Drs. Vasco Borges, Pinheiro Torres e Correia Pinto.
Na discussão sobre a generalidade ó assunto não foi sequer aflorado; na especialidade, sem prévias justificações, os Srs. Deputados Schiappa de Azevedo, Passos e Sonsa, Álvaro Morna, Alberto Cruz e Pinheiro Torres propuseram que o artigo 41.º ficasse assim redigido:
Os militares licenciados e territoriais, salvo quando em efectivo serviço, apenas estão sujeitos ao foro militar a respeito de crimes essencialmente militares.
Por esta forma se eliminava a referencia aos reformados. Porém, os Srs. Deputados Albino dos Reis, Lopes da Fonseca, João Neves e Rodrigues de Almeida propuseram que o último período da proposta de lei fosse substituído por:
O mesmo preceito é aplicável aos oficiais separados do serviço e, a não se tratar de crimes essencialmente militares, aos oficiais e praças reformados.
A primeira proposta foi rejeitada, a segunda aprovada; e assim, no mesmo sentido da proposta governamental, ficaram de novo os oficiais reformados excluídos do foro militar quanto aos crimes comuns.
25. Não se nos afigura que esta exclusão fosse movida pelo intuito de aliviar os tribunais militares do excesso de trabalho produzido pelo afluxo de reformados.
O peso do trabalho de um tribunal militar territorial é inferior ao de qualquer juízo criminal de uma comarca de 1.ª classe. É-o em regra, porque há circunstancias excepcionais que por vezes exigem dos tribunais militares grande e expedita actividade.
Pois, não obstante alguns oficiais reformados se acharem envolvidos em conjuras ou em actos de rebelião - o que, aliás, colocaria qualquer pessoa, segundo o Decreto-Lei n.º 23 203, de 6 de Novembro de 1933, sob a alçada de um tribunal militar especial, com recurso para o Supremo Tribunal de Justiça Militar-, poucos foram os processos instaurados contra reformados durante os dez anos em que o foro militar lhes foi atribuído.
De estranhar seria que assim não acontecesse, pois não é natural que os reformados cometam frequentemente crimes comuns. Disso os defende não só a idade, mas também a educação recebida.
De entre os» crimes de que eram acusados, os que chamaram mais à atenção foram, além de um ou outro de natureza política, os. casos em que se envolviam em negócios mal-avindos, em busca de actividades que lhes dessem um suplemento de ganhos.
26. Devemos, no entanto, observar que os oficiais reformados não podem desejar o foro militar com o intuito de ali encontrarem maior benevolência para esta espécie de crimes.
O que eles podem encontrar, no julgamento pelos seus pares, é melhor compreensão quanto a actos de desforço e de reacção imediata, provocados por ofensas à própria dignidade pessoal ou à honra do Exército. Em verdade, justo é ponderar as circunstâncias especiais da prática de certos, excessos que a lei comum não pode deixar de punir, mas em que interveio um arreigado conceito do pundonor militar.
É que a psicologia do oficial, adrede formada durante longos anos de estudos e de preparação profissional e sempre condicionada e estimulada pelos próprios regulamentos de disciplina militar, não pode modificar-se subitamente pelo facto de se deixar o serviço activo nas forças armadas.
Podemos dizer, porém e o relator deste parecer pode testemunhar -, que a longanimidade não ia ao ponto de proteger desordeiros e, em contraposição, os actos de desonestidade, os que enodoam a farda e, nos termos do Código de Justiça Militar, podem mesmo importar a demissão são julgados com serena severidade no foro militar, sejam quais forem os assomos de piedade que provoque a perspectiva de uma família lançada na miséria por culpa dó sen chefe.
E certo que os funcionários civis estão também Sujeitos à pena de demissão, quando praticarem actos de infidelidade ou de desonestidade para os quais essa pena estiver cominada. Pode, todavia, haver considerável diferença entre as consequências dos julgamentos no foro civil e no foro militar.
27. Essa diferença estará em que o civil aposentado deixou de ter cargo público. Passa a receber a sua pensão pela Caixa Geral de Aposentações, perde a ligação burocrática com o Ministério a que pertencia e só tem de se lembrar de que o Estado ainda não levantou de todo a mão sobre ele quando, desejando sair para o estrangeiro, tem de se submeter à disposição -talvez anacrónica e só fundada em motivos de ordem policial - que o obriga a pedir licença para se ausentar durante determinado número de dias, os quais o Ministro dás Finanças pode negar ou encurtar.
Desligado do serviço efectivo, os actos desonestos que posteriormente praticar nada têm com a função oficial anterior; não há de que ser dela demitido. O que ele perde é a pensão de aposentação, nos termos do artigo 40.º do Decreto n.º 16 669, de 27 de Março de 1929, se for condenado em pena maior, ou mesmo em pena correccional, por furto, abuso de confiança, burla, falsidade, atentado ao pudor, ou por outro crime que importe perda de direitos políticos. Esta disposição é aplicável tanto aos aposentados como aos reformados -, civis ou militares.
No entanto, para além da perda da pensão subsistirá a possibilidade de ser imposta ao oficial reformado a demissão, nos termos do artigo 40.º do Código de Justiça Militar; que se refere aos casos de falsidade, furto, roubo, prevaricação, corrupção, burla e abuso de confiança, seja qual for a pena decretada, desde que o Ministério Público acuse independentemente de queixa da parte.
Esta disposição - aliás mais restrita do que a do Decreto n.º 16 669 - aplica-se como efeito de condenação proferida por tribunal competente e a demissão resulta imediatamente da lei, sem necessidade de menção na sentença, como determina o artigo 41.º do mesmo código.
Nestes termos, se os oficiais do activo ou da reserva podem ser despojados da sua qualidade por sentença de tribunal militar composto de juiz de direito e dois oficiais, sempre com recurso para o Supremo Tribunal Militar - artigo 527.º do citado código -, os reformados o poderão ser por decisão de um só juiz de direito, em processo de policia correccional e sem alçada para
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recurso, se se tratar de furto de pequeno valor, pois tal será «o tribunal competente».
Não conhecemos disposição que liberte o reformado da imposição do artigo 40.° do Código de Justiça Militar.
Ele, embora passasse a receber a pensão pela Caixa Geral de Aposentações, não perdeu a dependência dos Ministérios militares a que pertence e continua a ter o seu lugar na hierarquia dos graduados, conforme os galões que lhe competem. É este lugar, ou «patente», são os seus deveres de disciplina, as suas honras militares, são os seus galões, que a demissão atingirá.
28. Com efeito, a demissão importa a perda do direito a haver recompensas ou pensões por serviços anteriores, bem como a caducidade do direito de usar a sua farda e condecorações. Enquanto os reformados não forem demitidos, o Ministro continua a ter sobre eles uma acção cuja natureza se pode avaliar por alguns dos diplomas publicados posteriormente à lei que os subtraiu ao foro militar.
Assim, quase logo a seguir, em 12 de Janeiro de 1937, o Decreto-Lei n.° 28 404 estabeleceu no seu artigo 9.° uma disposição permitindo ao Governo separar do serviço os oficiais mesmo na situação de reserva ou reforma, declarando-a de carácter permanente e como tal incorporada no Regulamento de Disciplina Militar. Este decreto permite que ao separado seja fixada uma pensão, inferior à que tinha como oficial reformado, e retira-lhe o benefício da assistência nacional aos tuberculosos do Exército.
Em Ordem do Exército n.° 11, de 31 de Dezembro de 1941, publicou-se:
Os militares reformados, quer ausentes com licença no estrangeiro ou no ultramar português, quer residam no continente, são obrigados a ter sempre ao corrente do seu domicilio a autoridade militar de que dependem ou a correspondente autoridade militar ou consular, às quais comunicarão todas as mudanças de residência, mesmo que se encontrem em trânsito.
Os Decretos-Leis n.ºs 32 329, de 19 de Outubro de 1942, e 32 655, de 5 de Fevereiro de 1943, aquele para o Exército e este para a Armada, determinaram que:
Nos termos da alínea d) do artigo 2.° do Decreto-Lei n.° 30 250, de 30 de Dezembro de 1939, os Ministros respectivos podem, mediante processo disciplinar, impor a separação do serviço ou a demissão aos militares que, independentemente da sua situação na efectividade do serviço, na reserva ou na reforma, estejam sob a alçada do Regulamento de Disciplina Militar.
A função do foro privativo na corporação militar
29. Lançando agora um olhar sobre o conspecto das vicissitudes históricas da jurisdição militar e as oscilações dos preceitos constitucionais ou a ambiguidade de alguns destes acerca da natureza e competência dos tribunais de justiça, em confronto com a permanente realidade da existência daquele foro privativo, temos de tirar a conclusão de que estamos em frente de uma instituição de estrutura quase imutável, que se pode dizer intrinsecamente unida à orgânica militar.
Tanto ou mais que os tribunais das espécies administrativa e fiscal na organização civil, o foro militar é parte integrante do complexo de órgãos que asseguram a feição moral e a consequente disciplina das forças armadas - as quais, por seu turno, se mostram inseparáveis da existência do Estado, seja qual for o seu regime.
O cunho moral, o espirito animador das forças de terra, mar e ar, se tem por base todas as virtudes que exornam um cidadão de bom comportamento, é completado pêlos atributos de energia física e de resignação voluntária, de decisão pronta e de obediência passiva, de valentia e de prudência, de desejo de destaque pessoal e de sentimento de solidariedade colectiva, de valor da vida e de desprezo da morte, que, embora vindos em potência do berço familiar, só pela hierarquia dos meios de instrução e dos comandos podem ser despojados do seu aparente antagonismo e conciliados, afinados e graduados para as várias circunstâncias da vida militar.
Afigura-se-nos que também não podemos pôr de parte o conceito fundamental da hierarquia na solução do problema da atribuição do foro militar aos oficiais reformados.
30. E o foro militar ma privilégio da classe ou uma garantia da eficiência profissional?
Parece-nos que não podemos rigorosamente classificá-lo de privilégio. Esta designação ter-lhe-ia sido algumas vezes aplicada mais por sugestão dos privilégios de que gozaram os nobres, os eclesiásticos e até certos mercadores, do que pela verdadeira função dos tribunais militares.
Com efeito, eles desde o princípio julgaram nobres e plebeus, oficiais, sargentos e soldados. Modificava-se à constituição do júri, tal como hoje ainda se faz, conforme a graduação do réu, mas a forma de processo era essencialmente á mesma e o mesmo o juiz togado. Havia, e há, o respeito pela hierarquia, mas dentro da organização havia um como que fermento de unidade igualitária que foi esbatendo a diferenciação das penas em relação à qualidade das pessoas e ao modo de as cumprir, estabelecida nas próprias Ordenações do Reino, para só atender a escala hierárquica dos postos militares.
Deixou de haver favor à casta, para haver somente respeito à função, enquanto a gravidade do crime não conduzia à degradação ou à expulsão do acusado. For isso o sistema do foro militar se não apresenta como privilégio, segundo os usos esbatidos do passado. É privilégio tão-sòmente no sentido de sancionar a situação dos militares como pertencentes a uma classe diferenciada do comum dos cidadãos e que só pode ser julgada pelos seus pares em tribunais privativos, com preceitos e formulários próprios.
Mas isto não é mais que o aspecto superficial, externo, da jurisdição militar, quando a projectamos sobre a planta da organização forense da Nação, pois que, em rigor, só em sentido lato se pode dizer que o militar é julgado pêlos seus pares. De facto, ele é julgado sempre por seus superiores, visto que só oficiais podem fazer parte dos conselhos de guerra e hão-de ser sempre de graduação ou antiguidade acima da do réu.
31. No fundo - e já que ele abrangeu indistintamente todos os militares, desde o recruta ao general- este foro privativo tem institucionalmente uma função de garantia indispensável à manutenção do espírito de disciplina, com o reconhecimento, que é fundamental, de uma hierarquia inviolável e a segurança da existência constante, pronta, firme e uniforme de acção educativa, correctiva e repressiva, adequada ao meio em que se exerce.
Logo de inicio, garantia para todos os membros do Exército de justiça mais rápida, mais igual, mais adaptada, em melhores condições de apreciar, pelo directo conhecimento do meio, a responsabilidade do acusado em relação à gravidade da infracção.
Logo depois, a garantia da distinção entre o âmbito da acção disciplinar e o da acção forense, permitindo àquela imediata repressão das infracções de menor gra-
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vidade, que, pela natureza e pelo número, poderiam perturbar gravemente o serviço se não fora a intervenção dos comandos, poupando os infractores às delongas e vexames dos julgamentos públicos.
Por fim, aquela outra garantia expressa nos artigos 6.°, § 1.°, e 427.° a 430.° do Código de Justiça Militar, não idêntica, mas análoga à que actualmente desfrutam as autoridades administrativas.
É de notar que esta garantia, nos termos do artigo 282.° do Código Administrativo, se estende até aos regedores, cabos de ordens e cabos de polícia, ao passo que os membros da Guarda Nacional Republicana e da Polícia de Segurança Pública estão integrados na justiça militar. Segundo aqueles artigos - excepto nos casos de violação das leis repressivas do descaminho e contrabando e das reguladoras da liberdade de imprensa -, o general comandante da região ou governo militar têm poderes para, terminado o corpo de delito, apreciar os indícios de culpabilidade e, segundo o juízo formado, mandar que o processo seja enviado ao foro militar ou siga a via disciplinar.
Se o arguido for oficial general, esta competência passa para o Ministro respectivo. Assim se procura evitar que qualquer militar seja retirado da sua função, ou ferido no seu prestígio, por denúncias ou queixas infundadas, ardilosas ou inoportunas.
32. Resta saber se no enquadramento que temos vindo desenhando cabem os militares, ou pelo menos os oficiais, que, por incapacidade fisiológica, por limite de idade ou por disposição legal, passam à situação de reforma.
Nos tribunais militares os oficiais que têm o poder ou atribuição de julgar são os que cá fora teriam o direito ou o dever de, por factos menos graves, aplicar ou promover a aplicação de penas disciplinares, de harmonia com os respectivos regulamentos.
E esses tribunais, apesar da intervenção obrigatória dos auditores, pertencentes ao quadro da magistratura judicia], assumem também poderes disciplinares tão latos como os do Ministro quando, nos termos do artigo 521.° do Código de Justiça Militar, julgarem que o réu é unicamente responsável por factos a que cabe, em vez de pena, mera punição disciplinar - maleabilidade que, se permite graduar as sanções em maior escala, afirma a permanente preocupação de manter a ordem e a disciplina através da hierarquia.
Em verdade, o tribunal privativo - especialmente no tocante aos crimes previstos no Código de Justiça Militar- é o prolongamento solene da acção disciplinar em grau mais elevado.
Assim, por exemplo, os furtos ou os abusos de confiança são punidos disciplinarmente quando o valor não exceda 100$ (artigo 230.° do Código de Justiça Militar), e o militar que desertar é sujeito a graves penas, ainda mais graves em tempo de guerra, no que frisantemente contrasta com o funcionário civil, passível somente de demissão por abandono de lugar.
Há, pois, em todas as manifestações da organização e funcionamento das forças armadas uma consciência do destino militar e um correlativo espírito de corpo, que lhes dão o ânimo e a coesão necessários à sua árdua missão nacional.
Trouxemos isto à colação porque a psicologia do soldado - a mentalidade militar- não pode estar ausente do estudo de qualquer tema que lhe diga respeito; mas não é necessário que tiremos apressadas conclusões quanto à situação especial dos oficiais reformados.
E vai ver-se porquê.
33. Para que se possa estabelecer um termo de comparação e bem avaliar da corrente de ideias predominantes nos países com que temos especiais relações de aliança e probabilidades. de mais estreita cooperação militar convém dar nota da legislação que neles regula a aplicação do foro militar.
Claramente se vê que em todos domina o espírito liberal que, considerando este foro um regime jurisdicional de excepção, o restringe às necessidades imediatas do serviço militar, que dizem respeito só aos militares do activo e equiparados.
Brasil. - De acordo com o capítulo V, artigo 34.°, letra J, do Estatuto dos Militares «são direitos dos militares. .. o julgamento em foro especial nos delitos militares».
A expressão «dos militares», tal como é empregada, abrange tanto os do activo como os da reserva e os reformados.
Espanha. - A jurisdição militar é competente para conhecer das causas relativas a qualquer espécie de delitos, contra os militares em serviço activo ou na reserva, qualquer que seja a sua situação ou colocação. Quer dizer que u ao é competente em relação aos militares reformados,- os quais ficam sujeitos ao foro civil.
Excepcionalmente, os militares no activo ou na reserva são julgados pelo foro comum, tratando-se das seguintes infracções:
1.ª Atentado ou desacato a autoridades não militares.
2.ª Falsificação ou passagem de moeda e notas de banco.
Falsificação de assinatura, selos, marcas, valores selados do Estado, documentos de identificação, passaportes, salvos-condutos, ofícios, telegramas e documentos públicos que não sejam dos usados e expedidos pêlos comandos, autoridades e serviços militares.
4.ª Adultério, estupro, aborto e abandono do família.
5.ª Injúria e calúnia que não constituam delito militar.
6.ª Infracção das leis aduaneiras, de abastecimento, de transportes, de contribuições e impostos ou dívida pública, salvo o caso de a infracção estar punida no Código Militar ou ser especialmente atribuída à jurisdição militar.
7.ª Os cometidos por meio de imprensa que não constituam delito militar.
8.ª Os cometidos pêlos militares no exercício de funções civis ou por motivo delas.
9ª Os delitos comuns cometidos durante a deserção, salvo o caso de a jurisdição militar ser competente por outro motivo.
10.ª Os cometidos antes de o culpado pertencer ou prestar serviço nos exércitos de terra, mar e ar, em qualquer qualidade.
11.ª As contravenções aos regulamentos de polícia e as faltas comuns não previstas especialmente no Código de Justiça Militar e em outras leis ou regulamentos militares ou em ordens de serviço das autoridades militares, salvo o disposto na segunda hipótese do artigo 7.° do citado código (que se refere às faltas comuns cometidas por militares quando afectem a boa ordem dos exércitos ou o decoro dos seus membros).
12.ª Todas as infracções que, não estando incluídas no Código de Justiça Militar, sejam expressamente reservadas pelas leis à jurisdição dos tribunais ordinários ou especiais, seja qual for a condição das pessoas que as cometem.
Reino Unido. - Os oficiais estão sujeitos ao foro civil quando reformados ou passados à reserva.
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384 ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.° 38
O Naval Discipline Act, que regula os tribunais navais e outros processos de legislação naval, apenas se aplica aos oficiais que estão realmente ao serviço com vencimentos por inteiro.
II
Conclusão
34. Em vista do exposto, a Câmara Corporativa, embora reconheça a conveniência de se ter chamado a atenção para a complexidade do assunto, é de parecer, por se tratar de matéria sujeita à divergência de critérios e até diferentemente regulada através da história da nossa legislação criminal, que não será oportuno tomar sobre ela uma decisão, enquanto se não proceder à revisão geral das disposições do Código de Justiça Militar, segundo uma Orientação de conjunto, na qual este pormenor apareça devida e harmònicamente integrado.
Palácio de S. Bento, 11 de Fevereiro de 1955.
Júlio Carlos Alves Dias Botelho Moniz.
Frederico da Conceição Costa.
José Viana Correia Guedes.
Inocência Galvão Teles.
José Augusto Vaz Pinto.
José Gabriel Pinto Coelho.
Adelino da Palma Carlos.
Afonso de Melo Pinto Veloso, relator.
IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA