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REPÚBLICA PORTUGUESA
ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA
N.º 49 VI LEGISLATURA 1955 20 DE ABRIL
PARECER N.º 23/VI
Convenção entre os Estados Partes no Tratado do Atlântico Norte relativa ao Estatuto das Suas Forças
A Câmara Corporativa, consultada, nos termos do artigo 103.º da Constituição, acerca da Convenção entre os Estados Partes no Tratado do Atlântico Norte relativa ao Estatuto das Suas Forças Armadas, emite, pela sua secção de Interesses de ordem administrativa (subsecções de Defesa nacional e de Relações internacionais), à qual foram agregados os Dignos Procuradores José Cueiro da Mata e Vasco Lopes Alves, sob a presidência de S. Ex.ª o Presidente da Câmara, o seguinte parecer:
1. Afigurou-se conveniente traçar, em breves palavras, no início deste parecer sobre a ratificação de uma Convenção que constitui lógico e necessário complemento de outras já aprovadas e ratificadas, o quadro da situação internacional, no que mais estreitamente se liga com a matéria em apreciação.
Destina-se esta Convenção, como as duas outras agora submetidas ao exame desta Câmara, a criar as condições que levem à solução do mais grave problema da hora actual - o problema da paz, que interessa, não só o próximo futuro de quaisquer agrupamentos de nações, mas n de todos os povos. Para uma paz, viva e duradoura, que permita o livre desenvolvimento da actividade humana, sob uma autoridade orientada pelos princípios de justiça, convergem os esforços dos Estados que, depois de duas grandes guerras, procuram organizar uma nova ordem mundial. A Convenção que vamos analisar não visa outro objectivo.
I Antecedentes do Tratado do Atlântico Norte
2. Pela terceira vez, em menos de século e meio, e sempre a seguir a profundos abalos causados pela guerra, o Mundo se esforça por assegurar a paz organizando as relações entre os Estados: em 1815, no Congresso de Viena, que fez repousar a sua construção sobre o princípio do equilíbrio europeu e sobre a ideia do governo das Grandes Potências; em 1919, na Conferência de Paris, democrática e igualitária, que à teoria do equilíbrio europeu substituía a concepção do direito de livre disposição dos povos e que na Sociedade das Nações, então criada e à qual ficou para sempre ligado o grande nome de Wilson, colocava em pé de perfeita igualdade, à parte a composição do Conselho, os grandes e pequenos Estados; em 1945 na Conferência de São Francisco, donde saiu a Carta das Nações Unidas, assinada em 26 de Junho daquele ano, e que deveria constituir um poderoso instrumento para a manutenção da paz: a sua utilidade e a1 sua eficácia .ficavam simplesmente dependentes do uso que dela fizessem as nações.
3. Não se torna necessário lembrar as várias fases da organização da Carta das Nações Unidas, preliminar do Tratado do Atlântico Norte, desde que, em 14 de Agosto de 1941, Roosevelt e Churchill concluíram um acordo contendo um conjunto de princípios que deveriam constituir a base da paz futura e que ficou conhecido sob a designação de Carta do Atlântico. Os oito pontos definidos nesse acordo haviam de informar a Declaração conjunta das Nações Unida, assinada por vinte e seis Estados, em Washington, em l de Janeiro de 1942. Em virtude de adesões ulteriores, o número de Estados signatários elevava-se, em 1945, a cinquenta e um. A Declaração referia-se expressamente à Carta do Atlântico, que nela era incorporada: uma das uma mais importantes estipulações era, precisamente, a da adesão à Carta.
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4. Até à Conferência de São Francisco numerosas haviam sido as conferências interaliadas. Deixando de parte as que tiveram como principal objectivo o de assegurar a conduta política e militar da guerra (Casa Branca, Quebeque, Moscovo, Teerão, em 1943; pela segunda vez Moscovo, em 1944; Itália, em 1945), muitas foram aquelas que se propuseram lançar as bases da futura organização internacional: as de Hot Springs e Atlantic City, em 1943, e a de Montreal, em 1944, que criaram a Organização Internacional d Socorro e Reconstituição; ainda em 1944, a Conferência Monetária e Económica de Brettou Woods, a Conferência da Aviação Civil de Chicago, a Conferência de Rye para o estudo dos problemas industriais e comerciais, a segunda Conferência de Hot Springs para o estudo dos problemas do Pacífico e a Conferência Pan-Árabe de Alexandria (seguida pela do Cairo no ano seguinte); a Conferência Fan-Ámericana do México, em 1940; e, finalmente, no mesmo ano, a Conferência de Washington, encarregada de redigir o estatuto do novo Tribunal Internacional de Justiça. Mas a mais importante fora a reunida em Washington de 21 de Agosto a 7 de Outubro de 1944, onde foi discutido e aprovado um anteprojecto de Carta Internacional, conhecido pela designação 'de Plano de Dumbarton Oaks, que, deve dizer-se, em pouca conta teve a experiência da Sociedade das Nações e os erros cometidos nesta primeira tentativa. E as decisões da Conferência de Ialta, de Fevereiro de 1945 - a que alguém já chamou, a Magna Carta da miséria europeia - não viriam senão agravar esses erros.
Seria curioso notar que todas estas conferências, que marcam um momento decisivo na história das reuniões diplomáticas, tiveram a sua sede fora da Europa.
5. As esperanças que a Carta do Atlântico havia suscitado em breve se volveram em decepção. A determinação por parte da Rússia de contrariar os esforços dos seus antigos aliados (malograra-se a tão oportuna proposta de apaziguamento de Byrnes, em 30 de Abril de 1946), tendo em vista prosseguir a realização dos seus fins do guerra, fora posta em plena luz já) a partir de 1945. A intransigência do Governo de Moscovo, traduzida a cada passa no uso e abuso do direito de veto, que deu desde logo a medida dos seus métodos e das puas ambições, fez abortar todos os esforços dos organismos internacionais - Nações Unidas, Conselho dos Ministros dos Negociou Estrangeiros (cuja criação fora acordada em Postdam, em 2 de Agosto de 1946), Conferências dos Suplentes, organismos quadripartidos exercendo a sua acção na Alemanha -, ao mesmo tempo que procurava abalar a situação na Europa Central e Oriental, criando Estados satélites (de uma superfície total de l 400 000 km2 e de cerca de 87 milhões de habitantes, não russos), neles instalando governos de modelo soviético, inteiramente dóceis às suas directrizes políticas, e com eles celebrando vinte e três pactos de assistência mútua.
A criação do Kotminform, na reunião de Varsóvia, de Outubro de 1947, tinha como principal fim o de preparar o advento do comunismo em todos os países , europeus. Ao enorme incremento do poder russo, reflectindo-se no ampliação territorial das suas fronteiras e nas suas possibilidades de dominação, vinha juntar-se um factor diplomático, novo nu política dos modernos Estados: a acção de aliados ideológicos, revestindo a forma de partido firmemente organizado e disciplinado, vivendo e actuando adentro das fronteiras daqueles países quê constituem OH pontos nevrálgicos do Ocidente. A Rússia fazia assim o bloqueio da paz.
O ponto morto u que havia chegado a Organização das Nações Unidas, que deixou de existir, de facto, no domínio das realidades, mostrou a necessidade de se recorrer a outros meios para assegurar a paz e evitar a guerra. Viu-se bem que estávamos em face de dois mundos, que, sendo política e moralmente inconciliáveis, não podiam colaborar no seio das Nações Unidas. Vara Marshall, cujo Plano representou o primeiro ensaio de organização coerente, no domínio económico, ponto de partida do programa de recuperação europeia, o Velho Mundo aparecia já como um continente potencialmente comunista.
II O Tratado do Atlântico Norte
6. A assinatura do Tratado do Atlântico Norte, em Washington, em 4 de Abril de 1949, representou, como escreve Lorde Ismay, o princípio de uma experiência revolucionária e construtiva em matéria de relações internacionais. Um novo período se abria na política externa do Mundo Ocidental. Era a lógica consequência de uma série de medidas precedentes, dentre as quais se devem destacai1 o. Tratado de Bruxelas, de 17 de Março de 1948, que constitui um sistema de defesa colectiva, semelhante ao Pacto do Rio (Tratado interamericano de assistência recíproca, de 2 de Setembro de 1947) e, como este, enquadrado na Carta das Nações Unidas, e a denominada, Resolução Vandenberg, votada em 11 de Junho seguinte pelo Congresso de Washington. Doze Estados independentes e soberanos - aos quais outros viriam juntar-se mais tarde- subscreveram compromissos que reclamavam uma acção colectiva imediata e contínua, não só no domínio militar, mas também no domínio político, económico e social: O Tratado do Atlântico Norte tornava-se assim o quadro da defesa comum de mais de 380 milhões de homens que vivem dos dois lados do Atlântico, em países cujo território excede 20 milhões de quilómetros quadrados. Apreciando a importância do Tratado do Atlântico Norte, tanto no plano da política, europeia como no campo mais particular dos interesses portugueses, dizia o Sr. Presidente do Conselho, no discurso proferido em 26 de Julho de 1949, na Assembleia Nacional, a propósito da ratificação daquele Tratado: «Grande número de países, ameaçados na sua vida e liberdade, contam desde agora com o auxílio dos Estados Unidos, e uns com o auxílio dos outros, para a defesa do seu património de civilização. Pareceu difícil em tais circunstâncias estarmos ausentes». Em 28 de Julho era o Tratado ratificado pelo Chefe do Estado.
7. O fim específico do Tratado do Atlântico Norte (que, como se sabe, veio depois a abranger países que não são bainhados pelo Atlântico Norte nem dele são vizinhos), pode ser considerado numa dupla direcção: a de mostrar ao presumível agressor o perigo que para ele envolveria qualquer ataque e dissuadindo, por este meio, de intenções exipansionistas; e a de colocar os Estados Partes no Tratado em condições de repelir qualquer ataque armado, desenvolvendo cada um dos Estados a sua defesa nacional, coordenando as suas forças militares em tempo de paz, para um mais adequado emprego na táctica, estratégica e económica, e recorrendo ao auxílio militar que alguns países - principalmente os Estados Unidos- possam prestar às nações da Europa Ocidental para aumentar os seus meios defensivos. O Programa de Assistência Militar constitui, sem dúvida, a melhor arma do Tratado do Atlântico: punha-o bem em relevo o Peace Paper do Departamento do Estado em 14 de Maio de 1949.
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O Tratado do Atlântico, já o havia dito Redel Smith, no seu discurso de 9 de Março daquele ano, é o antídoto da política soviética de dividir para vencer e será tanto mais poderoso quanto de mais lagos meios disponha para se tornar efectivo. E Bradley afirmava, de maneira bem incisiva, que os Estados Unidos, cujas fronteiros estão hoje no coração da Europa, tinham o dever de ajudar os seus aliados a mobilizarem os seus recursos, integrando-os num programa de defesa comum. O objectivo do Tratado do Atlântico Norte vai mesmo além da defesa: o seu fim último é o do restaurar o equilíbrio de forças no mundo.
III
Convenções entre os Estados Fartes no Tratado do Atlântico Norte: o Estatuto das Forças Armadas
8. A Organização do Tratado do Atlântico Norte (O. T. A. N., na abreviatura latina; N. A. T. O., na anglo-saxónica) entra agora, mima fase nova. Decorridos quase seis anos depois da conclusão do Tratado, é possível, analisando os resultados obtidos, olhar para o futuro talvez com um pouco menos de desconfiança. Existe um Conselho Permanente com poder afectivo de decisão, servido (por um Secretariado Internacional e por numerosas comissões e grupos de trabalho, encarregados de resolver problemas da maior diversidade. A organização militar, concebida para defender todos os territórios da Aliança Atlântica contra um ataque armado, compreende uma rede de comandos que cobre o oceano Atlântico Norte e o continente europeu desde o cabo Norte desde a África do Norte e desde a Mancha, até às montanhas do Cáucaso.
Mas o que se afigura mais importante é o notável grau de coesão e de unidade que caracteriza todos os organismos militares e civis dia Organização do Tratado do Atlântico Norte. As decisões tomadas em Londres pela, Conferência das Nove Potências, visando o acréscimo de segurança da Europa e reforçando s ampliando o Tratado de Bruxelas e a acessão ao Tratado do Atlântico Norte da República Federal da Alemanha (novo países já aprovaram e ratificaram o respectivo protocolo adicional), permitirá, porventura, considerar o futuro como manos sombrio. Como já dizia Rafael, um n situação geográfica central, como a da Alemanha, é tão formidável na força como ameaçada na debilidade.
9. Para assegurar um melhor funcionamento da complexa organização civil e militar e definir os preceitos que devem regular situações novas, mantendo em pé de igualdade a posição doa Países Membros, foram assinadas pelos representantes dos Governos da Organização do Tratado do Atlântico Norte três convenções:
a) Convenção entre os Estados Partes no Tratado do Atlântico Norte Relativa ao Estatuto das Suas Forças Armadas, assinada em Londres em 19 de Junho de 1951;
b) Convenção sobre o Estatuto da Organização do Tratado do Atlântico Norte, doa Representantes Nacionais e do Pessoal Internacional, assinada em Otava em 20 de Setembro de 1951;
c) Protocolo sobre os Estatutos dos Quartéis-Generais Internacionais Criados em Consequência do Tratado do Atlântico Norte, assinado em Paria em 28 de Agosto de 1953.
E do primeiro destes acordos que se ocupa o presente parecer.
10. Não vamos fazer a análise pormenorizada dos disposições contidas neste instrumento diplomático, já assinado pelo Governo Português, com a reserva da limitação da sua aplicação ao território continental de Portugal, excluindo expressamente as ilhas adjacentes e as províncias ultramarinas. Também o artigo 20.º da Convenção declara que «sem prejuízo das disposições dos §§ 2.º e 3.º deste artigo, a presente Convenção aplicar-se-á unicamente ao território metropolitano de coda Parte Contratante». E destina-se ela a definir o regime jurídico aplicável às forças armadas de um País Membro chamadas a prestar serviço no território de outro País Membro. Tudo o que nela não tenha sido (previsto quanto à decisão de deslocar essas forças e às condições em que se verificam a sua deslocação constituirá objecto de acordos particulares entre os Estados interessados. Houve a preocupação de se chegar à solução mais judiciosa e equilibrada dos problemas tratados e houve também a de acautelar devidamente e respeitar u soberania dos Embaídos locais, preocupando manter intactos os princípios basilares do direito internacional. E sabemos bem, como já notava Charles do Visscher, quanto isso é difícil em instrumentos diplomáticos desta natureza. Diremos ainda que, no coso de hostilidades, previsto no artigo 15.º da Convenção, cada uma das Partes Contratantes tem o direito de se desobrigar, nos termos do seu § 2.º, da aplicação do qualquer das disposições da Convenção.
11. Porque se tornava necessário assegurar o mais eficiente funcionamento do complexo mecanismo da Aliança Atlântica, numerosas facilidades foram consignadas no Estatuto das Forças Armadas. Merecem ser referidas, entre outros:
a) As regras a observar acerca da entrada e saída de uma força ou dos seus membros ou de elementos civis ou de pessoas a seu cargo. Foi-lhes dispensado o cumprimento da maior parte dos formalidades prescritas nesta matéria pelo Estudo local, reduzindo-se ao mínimo os documentos a exigir. Ficou estabelecido que a dispensa de formalidades não implica a adquisição do direito de residência permanente. Previram-se os casos de saída do serviço, de ausência ilegal, de pedido de saída do território e ainda o de expulsão de ex-membros das forças armadas ou de elementos civis, quando, neste caso, se trate de indivíduos não nacionais do Estado local;
b) As disposições relativas ao exercício da jurisdição penal e disciplinar, que definem claramente a linha de demarcação entre os poderes concedidos ao Estado de origem e o domínio da competência nacional ou interna do Estudo local, indicando-se taxativamente as infracções que devem ser consideradas como atentatórias da segurança do Estado, estabelecendo-se as regras a aplicar no caso de conflitos de jurisdição, bem como as regras de prioridade no exercício de jurisdição, e atribuindo competência exclusiva às autoridades do Estado local para conhecer das infracções cometidas pelos seus nacionais. Prescreveu-se a obrigação de mútua assistência das autoridades do Estado local e do Estado de origem em tudo o que respeita à repressão de infracções (condução das investigações, obtenção de provas, acusação, julgamento, execução de penas), adoptando-se o princípio, geralmente admitido pela doutrina e expresso em numerosas conveu-
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coes, da não execução da pena de morte nos casos em que, como sucede com a legislação portuguesa, a pena de morte não faz parte do sistema penal do Estado em que se encontra o criminoso. Trata-se de uma das mais características manifestações de entendimento internacional no domínio do direito penal;
c) Os preceitos respeitantes a indemnizações por danos causados ao Estado local quando se trate de actos ou omissões praticados pelas forças do Estado de origem ou por um elemento civil, no exercício das suas funções ou fora delas, ou causados por veículos, navios ou aeronaves; ao processo a seguir; à determinação da importância da indemnização; à designação de árbitros na falta de acordo; à liquidação da indemnização, ao rateio, à renúncia da indemnização;
d) As estipulações acerca cie mercadorias e serviços de que no Estudo local careçam as forças armadas ou elementos civis a elas adstritos, da ocupação ou utilização de imóveis, de alojamentos, do recurso à mão-de-obra civil, de salários e condições de protecção aos trabalhadores, de serviços médicos e outros, de facilidades de circulação, de redução de tarifas;
e) As disposições relativas a impostos e emolumentos, determinando-se os casos em que os membros de unia força ou de um elemento civil gozarão de isenção; a casos de dispensa do pagamento de direitos aduaneiros devidos (por importação, exportação, reexportação ou trânsito de mercadorias; a facilidades alfandegárias ou fiscais; à mútua assistência na repressão das infracções às leis e regulamentos alfandegário e fiscais; ao regime de transacções cambiais.
Não alongaremos a lista das facilidades previstas na Convenção. Aplicando a este Estatuto palavras do Sr. Ministro dos Negócios Estrangeiros, podemos dizer que ele representa o melhor equilíbrio que era possível conseguir-se entre os múltiplos interesses, necessidades e posições que estavam em confronto.
12. Como se declara no artigo 18.º da Convenção sobre o Estatuto das Torças Armadas, este instrumento diplomático carece de ser ratificado. E, atendendo a que um dos Estados Membros faz acompanhar o instrumento de ratificação desta Convenção de determinadas interpretações e declarações e tendo em consideração que a Aliança Atlântica se baseia no princípio da igualdade entre os seus membros, entende o Governo Português que no instrumento de ratificação por parte de Portugal da Convenção relativa àquele Estatuto deverá ser incluída a declaração seguinte:
O Governo Português declara que, com relação nos Estados membros que tenham oposto ou venham a apor reservas ou declarações aos seus actos de ratificação desta Convenção, se reserva, por sua parte, o direito de proceder com reciprocidade no entendimento e aplicação das respectivas disposições.
reserva que esta Cumaru não pode deixar de apoiar o aplaudir.
13. A Câmara Corporativa é, pois, de parecer que a referida Convenção deve ser aprovada pela Assembleia Nacional, para ratificação pelo Chefe do Estado, na forma, da Constituição.
Palácio de S. Bento, 19 de Abril de 1956.
Fernando Qnintanilha e Mendonça Dias.
Frederico da Conceição Conta.
José Viana Correia Guedes.
Manuel António Fernandes.
Vasco Lopes Alves.
José Caciro da Matta, relator.
PARECER N.º 24/VI
Convenção sobre o Estatuto da Organização do Tratado do Atlântico Norte, dos Representantes Nacionais e do Pessoal Internacional
A Câmara Corporativa, consultada, nos termos do artigo 103.º da Constituição, acerca da Convenção sobre o Estatuto da Organização do Tratado do Atlântico Norte, dos Representantes Nacionais e do Pessoal Internacional, emite, pela sua secção de Interesses de ordem administrativa (subsecções de Defesa nacional e de Relações internacionais), à qual foram agregados os Dignos Procuradores José Cueiro da Afaria e Vasco Lopes Alves, sob a presidência de S. Ex.ª o Presidente da Câmara, o seguinte parecer:
1. O Governo submeteu à apreciação da Assembleia Nacional, para efeitos de subsequente ratificação, a Convenção - a que por abreviatura se chama o «Estatuto Civil» - assinada em Otava, a 20 de Setembro de 1951, pelos membros que então faziam parte da Comunidade Atlântica.
Como vem expresso no preâmbulo da Convenção, foi considerado necessário que a O. T. A. N., o seu pessoal internacional e os representantes dos Estados Membros que assistem às suas reuniões beneficiem do presente Estatuto para exercerem as suas funções o desempenharem a sua missão.
2. Desde a primeira sessão do Conselho do Atlântico, realizada em Washington em 17 de Setembro de 1949, até ao presente, têm sido introduzidas muitas e profundas alterações na Organização Atlântica, com o
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objectivo de a tornar mais apta a enfrentar eficazmente quaisquer propósitos perturbadores da paz e da segurança das Nações Aliadas.
Como é natural, tem sido longo e espinhoso o caminho percorrido, já pelas dificuldades que inevitavelmente se deparam quando se pretende conciliar interesses por vezes opostos e harmonizar mentalidades, tradições e sentimentos que não são comuns, já pelas situações novas que a ameaça sempre crescente do Oriente tem criado e a que é necessário fazer face.
Pendidas as esperanças de entendimento com a U. R. S. S. para uma cooperação internacional baseada nos sagrados princípios da Moral, da Justiça e do Direito, não restava às nações do Ocidente outra solução que não fosse o fortalecimento dos laços que as unem para a defesa comum, através de uma estrutura adequada dos organismos necessários para a aplicação dos princípios estabelecidos no Pacto.
3. Se é certo que a ideia de um benefício comum e a confiança baseada em identidade de sentimentos dão origem às alianças, também não deixa de ser verdade que as diferentes formas de encarar as vias e os meios para atingir o objectivo que com elas se tem em vista dão lugar por vezes a profundas divisões. Geralmente, cada nação vê as coisas debaixo de um ponto de vista particular, e o acordo torna-se nalguns casos difícil.
A força das alianças assenta precisamente na sua disciplina moral, e os exemplos do passado ilustram sobremaneira os pontos fracos de que elas enfermam.
Mais do que a eventual imprecisão dos termos dos tratados, são, sem dúvida, a falta de coesão e a ausência de um sentimento que conduza à solidariedade total, quaisquer que sejam as dificuldades encontradas, que dão lugar aos insucessos.
O interesse comum sobrepõe-se aos interesses particulares de cada nação. Daí, a necessidade da uniformização das normas e procedimentos a seguir, e ainda de a tornar extensiva a um campo mais vasto, onde se espraia o princípio da homogeneidade no seu sentido mais lato, abrangendo os meios, os métodos, os órgãos de execução e de comando.
Tem sido esse o escopo da Organização Atlântica nos seis anos da sua existência, através das várias fases da sua evolução e mediante um trabalho exaustivo e paciente, não só no campo político e militar, como também no domínio económico, financeiro, social e cultural.
A Convenção agora em apreciação é mais um instrumento necessário, que vem preencher uma lacuna existente.
4. Portugal, que sempre tem contribuído com o seu melhor esforço e colaboração para a resolução dos diversos problemas que interessam à Comunidade Atlântica, não pode ficar alheio ao Estatuto em causa e que interessa igualmente a todos os Estados Membros.
As suas disposições versam, de uma maneira geral, sobre as imunidades e privilégios a conceder à Organização, aos representantes dos Estados e ao pessoal internacional ao serviço da Organização, de harmonia com o que se vem praticando com os representantes e agentes diplomáticos, e está mais ou menos consagrado pelo uso ou ajustado por consentimento mútuo na base de reciprocidade.
Como não podia deixar de ser, todas as Partes se encontram em perfeita igualdade e com os mesmos direitos, e o estabelecimento do Estatuto visa precisamente a assegurá-los, através de normas reguladoras por todos aceitas.
De resto, como vera claramente expresso, é no interesse da Organização que são concedidos os privilégios e imunidades, não para vantagem pessoal de quem quer que seja, mas sim para assegurar a cada um, com toda a independência, o exercício das suas funções relacionadas com o Tratado.
Prevê ainda o Estatuto certas restrições com o objectivo de evitar abusos, vincando não só o direito mas também o dever que tem um Estado Membro ou o Presidente dos Suplentes do Conselho, hoje Secretário-Geral, conforme o caso, de suspender a imunidade concedida sempre que tal imunidade possa impedir a administração da justiça e daí não resulte prejuízo para os interesses da Organização. Por sua vez, pode ainda a o Gastado Membro exigir a retirada do seu território de qualquer pessoa, quando entenda que ela abusou de algum privilégio ou imunidade conferidos.
Merece referência especial a reserva feita pelo Governo Português de não aplicar as imunidades constantes do artigo 6.º, no caso de expropriação.
Esta Câmara tem a convicção de que o Governo só utilizará essa faculdade em casos de comprovada necessidade e quando razões fortes o justifiquem, motivo por que entende dever ser mantida a reserva feita, exactamente pura ressalvar esses casos.
5. As restantes disposições estabelecidas não requerem quaisquer considerações explanatórias, pois o relatório do Sr. Ministro dos Negócios Estrangeiros é suficientemente elucidativo sobre a contribuição que os delegados portugueses deram à elaboração do Estatuto e, bem assim, sobre a forma como a prestaram.
A sua actuação foi baseada em resoluções tomadas por técnicos de vários organismos da nossa administração pública e devidamente sancionadas nos diferentes departamentos ministeriais interessados.
Resta frisar a urgência que há de se proceder à ratificação pela nossa parte desta Convenção, pois, além de dez países o terem já feito, é necessário que os nossos representantes na O. T. A. N. e demais pessoal dos diversos organismos da mesma possam gozar quanto antes das imunidades e privilégios acordados.
6. Em vista do exposto, a Câmara Corporativa é de parecer que a presente Convenção, com a reserva de não aplicação do artigo 6.º, em caso de expropriação, deve ser aprovada pela Assembleia Nacional, para ratificação pelo Chefe do Estado, na forma da Constituição.
Palácio de S. Bento, 19 de Abril de 1905.
Frederico da Conceição Coita.
José Viana Correia Guedes.
Manuel António Fernandes.
José Caeiro da Matta.
Vasco Lopes Alves.
Fernando Qnintanilha e Mendonça Dias, relator.
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PARERCER N.º 25/VI
Protocolo sobre o Estatuto dos Quartéis-Generais Militares Internacionais criados por força do Tratado do Atlântico Norte
À Câmara Corporativa, consultada, nos termos do artigo 103.º da Constituição, acerca do Protocolo sobre o Estatuto dos Quartéis-Generais Militares Internacionais, mais criados por força do Tratado do Atlântico Norte, emite, pela sua secção de Interesses de ordem administrativa (subsecções de Defesa nacional e de Relações internacionais), à qual foram agregados os Dignos - Procuradores José Caeiro da Mata e Vasco Lopes Alves, sob a presidência de S. Ex.ª o Presidente da Câmara, o seguinte parecer:
1. O Protocolo submetido u apreciação dá Câmara foi assinado pelos países signatários do Tratado do Atlântico Norte, em Paris, em 23 de Agosto de 1952, e já foi ratificado por nove países, sem reservas.
O Protocolo faz aplicação aos quartéis-generais militares internacionais os princípios estabelecidos na Convenção entre os Estados Partes no Tratado do Atlântico Norte relativa ao Estatuto das Suas Forças, estabelecendo o estatuto daqueles.
2. No relatório do Governo que acompanha o instrumento do Protocolo a submeter à aprovação da Assembleia Nacional afirma-se que o Estatuto representa o melhor equilíbrio que era possível conseguir-se, tendo certos pontos exigidos por nós, designadamente, obtido satisfação.
Entende o Governo que se deverá incluir a declaração de que:
O Governo Português declara que, com relação aos Estudos Membros que tenham aposto ou venham a apor reservas ou declarações aos seus actos de ratificação desta Convenção, se reserva, por sua vez, o direito de proceder com reciprocidade no entendimento e aplicação das respectivas disposições.
A Guinara entende que esta declaração também deve ser feita quanto ao Protocolo era apreciação.
3. A Câmara Corporativa é, pois, de perecer que o Protocolo deve ser aprovado péla Assembleia Nacional, para ratificação pelo Chefe do Estado, na forma da Constituição.
Palácio de S. Bento, 19 de Abril de 1955.
Fernando Qnintanilha e Mendonça Dias.
Frederico da Conceição Costa.
Manuel António Fernandes.
José Caeiro da- Matta.
Vasco Lopes Alves.
José Viana Correia Guedes, relator.
PARECER N.º 26/VI
Projecto de lei n.º 18
A Câmara Corporativa, consultada, nos termos do artigo 103.º da Constituição, acerca do projecto de lei n.º 18, emite, pela sua secção de Interesses de ordem administrativa (subsecções de Política e administração geral e Finanças e economia geral), sob a presidência ao Digno Procurador assessor Afonso de Melo Pinto Veloso, o seguinte parecei:
I
Apreciação na generalidade
1. O projecto de lei n.º 18, acerca do qual à Câmara é chamada a dar o seu parecer, visa a alteração do regime estabelecido no artigo 27.º do Decreto-Lei n.º 26 115, de 23 de Novembro de 1935, diploma fundamental, que veio disciplinar um importante sector da vida administrativa do Estado.
2. Esse diploma, que costuma designar-se por «Reforma de vencimentos do funcionalismo civil», excede em muito - como é sabido - o âmbito suposto por aquela restrita designação, pois interfere em tantos outros aspectos relevantes, desde a rectificação e fixação de quadros e categorias de funcionários, habilitações mínimas para ingresso nos quadros e .promoção, até às acumulações e aposentação dos funcionários, bem como a limites de vencimentos para o funcionalismo e corpos gerentes de certas empresas privadas.
Pode dizer-se que, ressalvadas pequenas modificações, a estrutura da reforma de 1930 se mantém através duma já longa existência de quase vinte anos. Obviamente que, neste largo período onde se enxertou a. conjuntura da guerra de 1939-1945, houve necessidade de ajustamentos, ocasionados pela diminuição do valor aquisitivo da moeda, mas foi na base da escala de vencimentos fixada pelo Decreto n.º 26 115 que tais correcções gradualmente se azaram; e foi, ainda, respeitando as premissas ali consignadas que se levou a efeito o recente reajustamento de remunerações aos servidores do Estado, elevando-se ao dobro a tabela de
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vencimentos-base vigente desde 1935 (Decreto-Lei n.º 39 842, de 7 de Outubro de 1954).
A estrutura da reforma operada pelo Decreto-Lei n.º 26115 permanece, pois, quase intacta; e a razão primordial do facto é que nela se consubstancia um conjunto de princípios do administração cuja validade se tem julgado conveniente manter.
Na economia do sistema então criado se integra o citado artigo 27.º, que está em causa perante o projecto de lei sujeito à apreciação da Câmara.
3. A aludida disposição legal refere-se a limite de vencimentos e está redigida nos seguintes termos:
Fica expressamente proibida a atribuição de vencimentos superiores aos dos Ministros aos directores, e administradores de estabelecimentos do Estado, de sociedades, companhias ou empresas concessionárias ou arrendatárias em que o Estado tem direito a participação nos lucros ou é accionista por força do diploma legal a que a constituição das mesmas entidades está sujeita.
Por outro lado, o artigo 1.º do projecto em análise começa por estas palavras:
Nas empresas em cujo lucro o Estado tenha comparticipação ou em que possua acções por efeito da lei especial da sua constituição ...,
o que denota duramente o desígnio do seu autor em intervir na matéria do artigo 27.º do Decreto-Lei • n.º 26 115. Isto, além da referência expressa que ião relatório do projecto se faz a essa mesma prescrição legal, salientando-se o facto de ela «ter fixado um limito demasiadamente baixo de retribuição».
Regista-se tal circunstância apenas com o fim de deixar suficientemente esclarecida a intenção quase confessada de alterar, em parte, a regra do artigo 27.º, e arredar desde já quaisquer possíveis interpretações baseadas exclusivamente na letra do artigo 1.º do projecto e que pudessem conduzir a resultado diferente. E que se não faz no projecto uma revogação expressa, mas a ates uma revogação tácita, embora parcial.
E parcial - talvez escusado dizê-lo - porque permaneceria em vigor o limite máximo de vencimentos estatuído no artigo 27.º para os «directores e administradores de estabelecimentos do Estado», apenas se aumentando extraordinariamente tal limite quanto às empresas por aquele artigo abrangidas, ou, mais rigorosamente, deixando-as mesmo sem qualquer limitação.
4. Por uma evidente razão de ordem, não deve deixar de assinalar-se, desde já, uma relativa disparidade entre o articulado no projecto e a fórmula usada no artigo 27.º do Decreto-Lei n.º 26 115.
Enquanto por este último diploma entram na esfera da limitação apenas as «sociedades, companhias ou empresas concessionárias ou arrendatárias em que o Estado tem direito a participação nos lucros ou é accionista ...», o projecto parece, à primeira vista, ter um alcance muito mais amplo, por compreender todos as «empresais em cujo lucro o Estado tenha comparticipação ou em que possua acções ...»
Sem embargo de certa diferença de amplitude, há-de reconhecer-se, no entanto, o seu carácter mais aparente do que real, por isso que não será corrente ter o Estado participação nos lucros duma empresa, ou ser seu accionista por força do diploma legal da constituição, sem que ela tenha a natureza de concessionária ou arrendatária.
Adoptar-se, pois e simplesmente, a designação de «empresa» ou acrescentar-se-lhe o atributo de «concessionária ou arrendatária», suo coisas que no fundo se equivalem, para os efeitos práticos da incidência da limitação, desde que se figure a hipótese de o Estado ser accionista ou participante nos lucros.
Sendo assim, supõe-se não ter havido no projecto o propósito de ampliar o campo de aplicação do preceito consignado no Decreto-Lei n.º 26 115, mas apenas, e talvez, o moro intuito de reduzir o articulado à sua expressão mais simples. Realmente, linda autorizaria a partir de um pressuposto contrário, nem nos considerandos do projecto se descortina qualquer indício a tal respeito.
Em última análise, pois, há todas as razões para acreditar que o projecto de lei em estudo se situa precisamente no campo definido pela reforma de 1935, quanto às empresas vinculadas ao Estado, e tem como objectivo essencial -para não dizer único- o alargamento em proporções consideráveis do limite de remuneração ali arbitrado.
E desta premissa se parte para o exame Subsequente.
5. E este aumento substancial um dos dois pontos fundamentais em que se concretiza o presente projecto de lei e que se impõe examinar.
Nos considerandos declara-se fundamento da inovação, como já anteriormente se apontou, o facto de o Decreto-Lei n.º 26115 «ter fixado um limite demasiadamente baixo de retribuição, muito aquém da usada para os corpos gerentes de empresas privadas».
Ora o legislador da reforma de 1935 não ignorava que, em muitos casos, as remunerações percebidas pelos administradores das grandes empresas particulares, sem ligações directas com o Estado, se situavam muito acima do estalão ministerial. E, ao arbitrar o limite do artigo 27.º, fê-lo, portanto, intencionalmente.
Os motivou determinantes do critério seguido não aparecem desenvolvidos no relatório do Decreto-Lei n.º 26 115, que os filia resumidamente num «princípio de hierarquia social». (Vide suplemento ao Diário Ao Governo de 23 de Novembro de 1935, 1.º série, p. 1764). Mas pode conjecturar-se um pouco mais sobre eles.
Uma consideração acorre logo ao pensamento. As empresas compreendidas no artigo 27.º - «concessionárias ou arrendatárias, em que o Estado tem direito a participação nos lucros ou é accionista ...» - têm posição especial perante a coisa pública, estuo de algum modo vinculadas ao Estado, não constituem rigorosamente empresas privadas, no sentido estrito da expressão.
E, porque assim é, o Estado não pode desprender-se das bases em que essas empresas assentam e deixar de subordiná-las a certas normas que, embora não tolhendo a iniciativa económica ou a necessária elasticidade de acção, se conformem com a sua ética. Ali se encontram representantes seus, administradores ou delegados do Governo; se, quanto a eles, não pode pôr-se em dúvida a legitimidade do Estado para impor fórmulas de remuneração, logicamente relacionadas e harmónicas com os níveis do serviço público, também, quanto aos outros, nem seria justa uma desigualdade, nem esses -só por serem representantes do capital privado- deixam de participar em organismos de índole peculiar e, se não com carácter tipicamente público, pelo menos em relação directa com o Estudo.
Objectar-se-á que, assim, pode suscitar-se uma flagrante disparidade de remunerações entre estas empresas, que o Estado subordina aos seus princípios éticos, e quaisquer outras desfrutando de maior independência para com ele, em regime de inteira liberdade no tocante aos réditos dos seus carpos gerentes. E essa é,- exactamente, a objecção sublinhada no relatório do projecto em causa.
Contudo, esta razão de possível injustiça, se quer significar que alguma coisa está mal, não implica ne-
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cessàriamente a culpa por culpa rio Estudo, quando esta actua -em sector que lhe está afecto-, limitando e moralizando, em ordem a [...] a tendência natural para exageros ou abusos, nu sua alta função riu supremo fiscal e garante do bem comum.
Mas, tratando-se do campo puramente privado - cuja autonomia o Estado respeita e deve promover, na sequência de uma ideologia política nitidamente marcada -, já os governantes responsáveis, não podendo desinteressar-se do problema pelos seus evidentes reflexos de ordem pública, estão todavia inibidos, em regra, de disciplinar por meios directos aqueles casos excepcionais um que se verifiquem anomalias mais salientes.
Restam-lhes, no entanto, os meios indirectos - e esses, entre os quais figura primacialmente o imposto, devem utilizá-la pelo modo mais inteligente e profícuo, sempre que a oportunidade se apresente para tanto.
6. Mas o autor do projecto de lei não se contenta com afirmar ser baixo o limite estipulado para as remunerações doa corpos gerentes das empresas submetidas ao Decreto-Lei n.º 26 511, nem se queda em preconizar a sua elevação em termos proporcionados - o que ainda poderia admitir-se. Ao contrário, no artigo 1.º do projecto fixa-se implicitamente, para tais remunerações, um novo limite, que as pode fazer subir verti vertiginosamente para nada mais, nada menos, do que o triplo.
Com um salto brusco, galga-se do «escalão-Ministro» para o «escalão-Chef e do Estado», em matéria de vencimentos, ou seja um aumento aproximado de um para três. E, com maior exactidão, deveremos dizer, mesmo, que cessa qualquer limitação nessas remunerações, visto prever-se a hipótese de serem excedidos os honorários do Chefe do Estado e só para o excedente se criar uma pesada tributação.
Tem de concordar-se em que se não cuida já de um vulgar aumento, mas de uma completa mutação de situações, envolvendo até a subversão do princípio em que se apoia o aludido artigo 27.º, harmònicamento integrado na economia do Decreto-Lei n.º 26 115.
E o mais estranho ainda é que o espírito informador do projecto em apreciação, segundo se depreende dos considerandos preliminares, contende com esta elevação maciça dê remunerações.
Assim, começa logo por se escrever ali que «a opinião pública vê som legítimo desagrado receberem por um só lugar, como directores ou administradores de companhias concessionárias, mais do que na sua totalidade percebe o Presidente da República; e acrescenta-se, mais adiante, serem «perfeitamente actuais as afirmações do magistral relatório do Decreto-Lei n.º 26 115», onde o autor do projecto foi recortar duas frases, bem expressivas do Presidente do Conselho e que realmente condensam, no aspecto agora focado, o pensamento orientador da reforma de 1935.
A primeira frase, escolhida com feliz acerto porque aí se formula um conceito modelar, diz assim:
É doloroso que alguns se vejam constrangidos a perder o supérfluo; mais doloroso é, porém, que muitos não tenham o necessário.
E a segunda afirmação, que respeita concretamente ao caso; aparece ditada nestes termos:
Este mesmo princípio de hierarquia social e limitação de honorários se achou razoável aplicar-se aos corpos gerentes do empresas em cujos lucros o Estado participa ou de que possui acções por efeito da lei especial da sua constituição.
A simples transcrição destes passos parece suficientemente elucidativa para demonstrar que o espírito determinante do projecto, de manifesta inclinação restritiva, não se coaduna logicamente com o seu articulado, o qual se revela largamente ampliativo quanto ao limite fixada no Decreto-Lei n.º 26 115.
7. Por certo que o articulado proposto no projecto oferece também uma faceta de limitação, como, em presença do seu relatório, não poderia deixar de ser: e é esse o segundo ponto fundamental que encerra o diploma posto à consideração da Câmara.
Reporta-se ele à imposição de tributar com n taxa de 75 por cento - a título de «imposto especial de salvação pública» - tudo quanto na remuneração dos corpos gerentes das empresas ligadas ao Estado exceda a totalidade dos honorários que aufere o Presidente da República.
Pondo de parte o epíteto de «salvação pública » -manifestamente inadequado pura o sobredito imposto -, sublinhe-se, mais uma vez, que o projecto, começando por dar a impressão de que tem uma índole essencialmente limitativa, acaba ou realidade por se concretizar quase exclusivamente num alargamento brusco do limite fixado no Decreto-Lei n.º 26 115.
Assim, o que aconteceria triunfando a doutrina exarada no projecto era que os administradores de todas as empresas actualmente submetidas ao regime daquele decreto-lei, ou que de futuro o viessem a estar, poderiam ver as suas remunerações substancialmente acrescidas, como por encanto. E, em contrapartida, a forte tributação, proposta adquire um significado prático muito pouco visível ou convincente.
Em primeiro lugar, porque serio escasso o número dessas empresas vinculadas ao Estado e em condições de ultrapassarem o limite de remuneração alinhado pelos honorários do Chefe do Estado. Depois, e supondo-se existirem empresas nessa particular situação, porque o duro imposto alvitrado, de 75 por cento, apresentando-se com índole proibitiva, bem poderia, conduzir ao resultado, diametralmente oposto, de fazer subir ainda mais as remunerações dos administradores atingidos, para que os 25 por cento sobrantes, e deixados livres, alcançassem as cifras pretendidas.
8. Em rigor, nenhuma dessas empresas satisfazendo às características fixadas pelo Decreto-Lei n.º 26 115 pode exceder o limite consignado no seu artigo 27.º, que é lei do Pais.
Mas a firma-se no relatório do projecto que a mencionada prescrição legal «viu, por despachos interpretativos, alterada a sua fisionomia e restrito o seu alcance legal, e, por consequência, não teve, na prática, a aplicação generalizada que era de esperar».
Ora, como despacho interpretativo genérico, acerca da matéria condensada no artigo 27.º da reforma de 1935, salvo erro, existe apenas uma resolução do Conselho de Ministros, datados de 23 de Junho de 1948, que considera incluídos na expressão «vencimentos», não só os ordenados e gratificações, mas também as participações em lucros e remunerações de qualquer outra espécie que os administradores das empresas abrangidas percebem pelo exercício das suas funções.
A citada resolução interpreta também o artigo 27.º no sentido de que a palavra «Estado», nele inserta, abrange as autarquias locais e as províncias ultramarinas.
A não existirem, como se julga, outros despachos interpretativos genéricos -e o indicado acima- nada contém que «altere a fisionomia» do artigo 27.º, antes a reforça-, ficamos em crer que o autor do projecto leria em mente um de dois factos: ou despachos in-
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terpretativos singulares - com mais propriedade, simples despachos de aplicação -, respeitando isoladamente u alguma empresa sobre a qual se tenham levantado dúvidas quanto à sua inclusão no âmbito do Decreto-Lei n.º 26 115, ou porventura quaisquer possíveis displomas legais que contemplem, nu especialidade, o eu só particular de uma ou outra empresa que deveria normalmente integrar-se no sistema da reforma da 1935 e, por essa via legislativa, deixasse de o ser.
Consideremos ambas as hipóteses perante ti nova doutrina do projecto de lei, a fim de averiguar se, com ele, a situação passaria a apresentar-se por forma diferente da actual.
Relativamente aos despachos singulares, eles só podem dizer respeito à simples decisão, por parte do Governo, sobre ao uma determinada empresa deve ou não ser abrangida pelo limite do artigo 27.º, consoante reúna os requisitos consignados neste preceito legal ou a eles não satisfaça inteiramente. Trata-se de despachos que, tecnicamente, não poderão chamar-se «interpretativos», porque revestem a natureza de simples aplicação, e muito embora a tarefa de aplicar a lei seja sempre precedida do trabalho preliminar da sua interpretação; mas, de qualquer maneira, nada do que se articula no projecto de lei colidiria com eles. As características eleitas pelo legislador do Decreto-Lei n.º 26 115, para determinação das empresas sob o regime limitativo do artigo 27.º, são - como se viu já - exactamente as mesmas, que figuram no projecto, sem o acrescentamento de outros pormenores restritivos que pudessem atingir algumas novas empresas, hoje libertas. Isto é, quer pela reforma de 1935, quer pelo projecto de lei, as empresas sujeitas ao regime especial de limitação não seriam mau nem menos. E porque o condicionalismo limitativo era idêntico, tanto monta a dizer que, lavrado despacho sobre o caso especial duma certa empresa, desde que através dele se houvesse concluído pela sua não inclusão no regime do artigo 27.º, do mesmo modo continuaria a concluir-se quando colocado o intérprete perante o projecto de lei proposto à consideração da Câmara.
E resta examinar a possibilidade de existir diploma especial para regular o caso particular de uma qualquer empresa, com desvio do regime-regra estatuído no Decreto-Lei n.º 26 115.
Mas aqui também a situação presente não se modificaria, quando encarada à luz do projecto de lei.
Assim -e tendo presentes os princípios jurídicos consagrados em matéria de revogação -, o projecto em causa, admitindo que vingava e como lei geral que seria, não revogava normalmente as leis especiais anteriores, as quais permaneceriam válidas para o seu campo de aplicação peculiar. E isto equivale a dizer que tais empresas de excepção, com estatuto legal próprio, também não cairiam na alçada do projecto de lei que se está analisando.
Em resumo, para qualquer das duas hipóteses aventadas, o projecto de lei, se é que tinha o objectivo de melhor disciplinar o sector privado abrangido pelo Decreto-Lei n.º 26 115, em nada modificaria o seu estado actual.
9. Da análise feita fica ainda um ponto em aberto, que pode originar uma possível r objecção.
Dir-se-á que o autor do projecto foi demasiado longe no ânimo de exceder o limite de vencimentos fixado no artigo 27.º do Decreto-Lei n.º 26 115, que é o estalão ministerial; mas que, se tivesse sido mais comedido, situando-se em plano bastante inferior ao do Chefe do Estado, u sua posição já seria aceitável.
Quer dizer: a dificuldade reduzia-se, então, ao simples arbitramento de um limite equilibrado, em função de certo número de factores. Meritória era a substância do projecto, construído sobre um fundamento válido, e só acatável o pormenor do quantitativo escolhido. Tudo se resumiria, assim, a um mero problema de cifras, mais ou menos arbitrário.
A questão, no entanto, parece não poder apresentar-se em moldes tão elementares. E vejamos porquê.
Mesmo quando se admitisse a tese, sustentada aios considerandos do projecto, de ser baixo o limite estatuído para as empresas ligadas ao Estado e, consequentemente, se demonstrasse a conveniência em o fazer subir - mas moderadamente! - deparar-se-nos-ia logo um. óbice fundamental.
É que, ao aceitar-se o facto como bom, implicitamente se havia de reconhecer que, então, o problema a pôr já não era o de alterar, mesmo parcialmente, o aludido artigo 27.º, antes seria o de considerar a hipótese de elevar de algum modo o vencimento-padrão que nele se contém.
Realmente, não faria sentido que o Estado fosse atribuir aos administradores das empresas em que intervém ou participa uma remuneração superior à dos seus mais altos servidores, os membros do Governo. Só com absoluta quebra daquele «princípio de hierarquia social» que norteou o legislador da reforma de 1935, segundo confissão expressa no relatório que a precedeu.
O problema ganhava, assim, maior acuidade, porque poderia ultrapassar o restrito compartimento das empresas submetidas à disciplina do Decreto-Lei n.º 26 115, para se erguer ao plano duma reforma de vencimentos no sector do Estado. E acuidade, não porque a hipótese de um aumento, neste limitado domínio, se reputasse injustificada ou censurável -mesmo observada pelo ângulo da reconhecida modéstia dos nossos costumes -, mas sim porque semelhante atitude implicaria porventura uma revisão geral do problema de vencimentos do funcionalismo.
II Conclusão
10. As considerações aduzidas aconselha a rejeição do projecto de lei n.º 18/V, embora a Câmara faça justiça às intenções que ditaram a sua apresentação e reconheça que possa haver vantagem na revisão do artigo 27.ª do Decreto-Lei n.º 26 115.
Palácio de S. Bento, 15 de Abril de 1955.
Afonso de Melo Pinto Veloso.
Afonso Rodrigues Queiró.
Guilherme Braga da Cruz.
Luís Supico Pinto.
Manuel Gomes da Silva.
António Carlos de Sousa.
Ezequiel de Campos.
José Gonçalves Correia de Oliveira.
José Tires Cardoso, relator.
IPRENSA NACIONAL DE LISBOA