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REPÚBLICA PORTUGUESA
ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 47
VII LEGISLATURA
ANO 1959 4 DE ABRIL
PARECER N.º 9/VII
Projecto de lei n.º 16
Alterações a alguns artigos do Código de Processo Penal
A Câmara Corporativa, consultada, nos termos do artigo 103.º da Constituição, acerba do projecto de lei n.º 16, emite, pela sua secção de Interesses de ordem administrativa (subsecção de Justiça), à qual foram agregados os Dignos Procuradores Afonso de Melo Finto Veloso e Augusto Cancella de Abreu, sob a presidência de S. Ex.ª Presidente da Câmara, o seguinte parecer:
I
Apreciação na generalidade
1. A matéria do projecto de lei sobre que este parecer recai refere-se às condições do exercício da advocacia no foro criminal e as alterações que nele se sugerem vêm ao encontro do que tem sido reclamado, com uma persistência inabalável, pela Ordem dos Advogados e por cada um dos seus, membros desde a publicação do Decreto-Lei n.º 36 387, de l de Julho de 1947.
Bastaria a continuidade dessas reclamações da Ordem, que tem preenchido os seus fins legais com uma nobreza, uma isenção e uma lealdade por todos reconhecidas, para logo se verificar que os preceitos referidos no projecto não satisfazem as necessidades da boa administração da justiça nem asseguram aos advogados a independência e a liberdade de que carecem para poderem útil e dignamente exercer a sua função.
Prescreve-se no artigo 518.º do Estatuto Judiciário que à Ordem compete contribuir .para o aperfeiçoamento da legislação, e em especial da concernente às instituições judiciárias e (forenses; diz-se no relatório do mesmo estatuto, citando-se Appleton, que o advogado concorre, de uma maneira muito importante, para a administração da justiça.
Exige-se do advogado que possua a uma cultura jurídica susceptível de lhe permitir penetrar nos segredos dos mais intrincados e variados problemas que ao seu patrocínio judiciário e ao seu conselho possam vir a ser submetidos».
Esta formação do advogado e a atribuição daquela competência à Ordem aconselhariam que não se legislasse sobre assuntos respeitantes à profissão de advogado sem audiência da respectiva corporação.
Assim fez sempre o grande legislador que foi Manuel Rodrigues. Depois a tradição perdeu-se; e da circunstância de ela se haver perdido não pode dizer-se que se tenham colhido bons resultados..
Os preceitos considerados no projecto aí estão a ilustrar o asserto: foram precisamente dos promulgados sem que se ouvisse a Ordem, que facilmente haveria mostrado os seus inconvenientes.
O projecto não põe problemas que devam ser tratados com mais extensão na generalidade, e por isso a Câmara passa à apreciação do articulado pela forma seguinte.
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II
Exame na especialidade
2. No artigo 1.º do projecto estabelece-se que so artigo 411.º do Código de Processo Penal não é aplicável aos advogados no exercício das suas funções, devendo proceder-se quanto a eles, pelas infracções cometidas em audiência, de harmonia com o disposto no artigo 412.º do mesmo diploma».
Visa-se, essencialmente, a interpretação do citado artigo 411.º, em torno do qual recentemente surgiram dúvidas, a que o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Novembro de 1958 aliás tirado apenas por maioria, deu uma solução que ao problema atribuiu particular acuidade.
A questão expõe-se assim:.
Na primitiva redacção dos artigos 411.º, 412.º e 413.º do Código de Processo Penal, as pessoas que assistissem à audiência sem guardarem, o maior acatamento e respeito ou manifestando aprovação ou reprovação por sinais públicos, excitando tumultos ou violências e perturbando, por qualquer outra forma, o seu regular funcionamento, ficariam sujeitas às sanções do- artigo 93.º prisão até três aias, imposta sem outra forma de processo anais que a nota ao facto na acta da audiência. Se a falta cometida constituísse crime, seriam autuadas e presas (artigo 411.º).
Nos termos do artigo 412.º, se os advogados ou defensores nas suas alegações ou requerimentos se afastassem do respeito devido ao tribunal ou, manifesta e abusivamente, procurassem protelar ou embaraçar o regular andamento da causa, usassem de expressões injuriosas, violentas ou agressivas contra a autoridade pública ou quaisquer outras pessoas ou fizessem explanações ou comentários sobre assuntos alheios ao processo e que de modo algum servissem para esclarecê-lo, seriam advertidos com urbanidade pelo presidente do tribunal; se, depois de advertidos, continuassem, poderia ser-lhes retirada a palavra e a defesa ser confiada a outro advogado ou pessoa idónea, sem prejuízo de procedimento criminal e disciplinar, se houvesse lugar a ele.
E, nos termos do artigo 413.º e seu § único, se o réu faltasse ao respeito devido ao tribunal, seria advertido, e, se reincidisse, poderia ser mandado recolher, sob custódia, a qualquer dependência do tribunal ou à cadeia. O tribunal poderia fazê-lo comparecer de novo na sala da audiência para ouvir ler a decisão final ou mandar-lha comunicar à prisão. Se fosse indispensável que o réu voltasse ao tribunal antes da decisão, viria sob custódia. Se a falta cometida pelo réu constituísse infracção penal, ser-lhe-ia levantado o competente auto, nos termos dos artigos 166.º e 169.º
3. Publicado o Decreto-Lei n.º 36 387, manteve-se em absoluto a redacção do artigo 412.º, mas o artigo 411.º ficou com o seguinte texto:
Se for cometida qualquer infracção em audiência, será levantado auto de notícia e ordenada a prisão do infractor.
§ 1.º Se a infracção for punível com pena correccional e o infractor não tiver foro especial, o Ministério Público requererá que se proceda a julgamento sumário do arguido.
§ 2.º O julgamento será feito pelo tribunal perante o qual se cometeu a infracção e imediatamente depois de terminar a audiência em curso.
§ 3.º Só haverá recurso da decisão final nos termos gerais de direito e não se escreverão os depoimentos se o julgamento for efectuado por tribunal colectivo.
Ora, porque neste artigo se alude à prática de qualquer infracção em audiência, daí se concluiu ser ele aplicável também aos advogados, podendo estes, quando acusados de infractores, passar a réus e vir a ser julgados sumariamente pelo tribunal que assim os considerou, imediatamente depois de terminar a audiência em curso.
4. O desprestígio, o risco e o alarme a que este entendimento deu origem escusam de ser realçados.
A vida do advogado é uma vida de combate.
Ser advogado é ter o direito de profligar todos os abusos, da afrontar todas as violências, de denunciar todos os crimes, dá defender os oprimidos, os perseguidos e os fracos, de dar apoio aos que dele carecem, de propugnar pelo direito - em cuja existência assenta, a própria vida da humanidade; é, afinal, manter aceso o facho da legalidade, sem a qual o Mundo se subverte na mais atroz confusão; é empunhar um gládio e lutar com ele pela ordem jurídica.
Só homens livres podem, por isso, exercer com honra a profissão. E a liberdade é coarctada pelo facto simples;
-mas trágico - de cada advogado se ver sob a ameaça, de passar a réu, ficando à mercê do critério puramente»; subjectivo dos juizes, às vezes perturbado pelo calor da discussão da causa, pelo choque das opiniões que nela. se defrontam, pela própria paixão inerente à defesa de que se julga ser o direito.
Um advogado colocado no temor de sanções drástica» como as que o artigo 411.º impõe fica totalmente diminuído para exercer a profissão; ou se acomoda, aceita, o que se lhe afigura injusto renuncia a conduzir a luta viril, e por vezes heróica, que é o patrocínio de uma causa, e então não é digno da honra de ser advogado; ou corre todos os riscos e coloca-se na situação e chocante (para empregarmos as expressões do conselheiro Eduardo Coimbra no voto de vencido com que subscreveu o já referido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Novembro de 1958) «de poder ser forçado a descer, acto contínuo, da sua bancada para o banco dos réus», a pretexto de que se desmandou na defesa.
Daí que muitos fujam dos tribunais criminais para; não ficarem reduzidos à situação de espectadores acomodatícios e pacíficos de verdadeiros dramas judiciários.
O panorama é perturbador.
5. Decerto não está no propósito de ninguém (e já o escreveu o actual presidente da Ordem) e sustentar o direito de qualquer advogado ofender um tribunal, ou os juizes que o componham»; mas, para evitar que isso aconteça ou para impor sanções aos que lamentavelmente o façam, não há necessidade de aplicar o artigo 411.º, visto que para esse efeito existe uma disposição própria, que é o artigo 412.º do Código de Processo Penal.
Este problema, aliás, já fora considerado, discutido e resolvido antes da publicação do Decreto-Lei n.º 36 387.
Efectivamente, na vigência dos anteriores artigos 411.º, 412.º e 413.º do Código de Processo Penal, discutira-se se ao advogado podiam ser aplicadas as sanções do artigo 411.º quando perturbasse o regular funcionamento da audiência; e o Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão de 11 de Novembro de 1930, na Revista de Legislação e de Jurisprudência, vol. 64, p. 13, pronunciara-se sem hesitações pela negativa, com o fundamento exactíssimo de que o legislador quisera «sujeitar os advogados a uma disposição especial, que; é a do artigo 412.º
Em anotação a este acórdão, a Revista (decerto pela pena do Prof. Beleza dos Santos, autor do código, que
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viria a defender a mesma opinião em artigo doutrinário, a p. 49 do referido volume) escreveu que:
.... a regra do artigo 411.º é uma disposição especial para a audiência de julgamento, mas que se aplica, em geral, às pessoas que a ela assistirem.
No artigo 412.º, porém, o código tem uma regra especial para os advogados ou defensores, que lhes proíbe certos actos e atitudes: isto é, que em suas alegações e requerimentos se afastem do respeito devido ao tribunal ou, manifesta e abusivamente, procurem protelar ou embaraçar o regular andamento da causa ou usar de expressões violentas ou agressivas contra a autoridade pública ou quaisquer outras pessoas ou fazer explanações e comentários sobre assuntos alheios ao processo e que de modo algum sirvam para esclarecê-lo.
Se o advogado ou defensor ofende esta norma proibitiva, o presidente do tribunal primeiro adverti-lo-á, e se depois de advertido continuar, poderá retirar-lhe a palavra e confiar a outrem a defesa, sem prejuízo de procedimento criminal ou disciplinar, se houver lugar a ele (artigo 412.º).
É manifesto que código distinguiu entre actos de perturbação de ordem ou desrespeito ao tribunal praticados na audiência, do julgamento por qualquer pessoa que a ela assista e os que forem cometidos pelo advogado ou defensor oficioso no exercício das suas funções.
É ao passo que para os primeiros o juiz dispõe dos poderes do artigo 93.º, para oa segundos só pode usar dos que lhe são cometidos pelo artigo 412.º, enquanto o advogado ou defensor estiverem no exercício das suas funções.
Por forma idêntica se pronunciou a Revista dos Tribunais (vol. 48, p.164):
Mesmo que o artigo 411.º não se interprete como restrito aos assistentes propriamente ditos, ele não pode abranger os advogados que intervenham no julgamento.
É que, quanto aos advogados, há uma disposição especial -o artigo 412.º- que prevalece sobre o preceito genérico do artigo anterior, com o qual não pode conciliar-se. Demais, o artigo 65.º, n.º 1.º, do estatuto estabelece a distinção entre o advogado e outros assistentes, distinção essa que já vinha da Novíssima Reforma Judiciária, artigos 1089.º, 1143.º e 1253.º, § único.
Só depois de advertidos com urbanidade e de continuarem a praticar qualquer das faltas enumeradas no artigo 412.º é que aos advogados pode ser retirada a palavra, confiando o juiz a defesa a outro advogado ou pessoa idónea.
A lei inspirou-se na ideia de não deixar o réu sem patrocínio; por isso mesmo o defensor não pode, sob pretexto algum, abandonar a defesa - artigo 27.º. Ora, se o artigo 411.º fosse aplicável aos advogados, se eles pudessem ser presos enquanto não lhes fosse retirada a palavra, o réu ficaria sem defesa, o que a lei não consente.
Por outro lado, o juiz não se encontra desarmado perante o advogado contumaz: tem a faculdade de lhe retirar a palavra e, se o advogado permanecer na sala do tribunal e continuar a exceder-se, então, como simples assistente que é, está inteiramente sob a alçada do artigo 411.º
Antes de ser retirada a palavra ao advogado a sujeição deste ao artigo 411.º seria tão absurda como a aplicação desse preceito ao réu, para o qual existe a disposição, também especial, do artigo 413.º.
E esta era ainda a lição dos comentadores, conselheiros José Mourisca e Luís -Osório , respectivamente no Código de Processo Penal Anotado, vol. 2.º, p. 7, e vol. 3.º, pp. 256 e seguintes, e no Comentário ao Código de Processo Penal Português, vol. 2.º, p. 155, e vol. 5.º, p. 57. O primeiro, com a maior clareza e concisão, explicava bem que aos advogados e defensores que na causa estavam exercendo as suas funções se aplicava o artigo 412.º; o artigo 411.º aplicava-se aos espectadores, e o artigo 413.º ao réu.
6. O autor do Decreto-Lei n.º 36 387 não podia ignorar nem a jurisprudência nem a doutrina que ficam referidas, e tão-pouco podia ter querido sujeitar os advogados à situação vexatória de os fazer cair na alçada do artigo 411.º.
E, por isso, quando, para dar maior eficácia à polícia da audiência, se alterou este artigo, deixou-se intacta a disposição do artigo 412.º - único preceito, como já vimos, aplicável aos advogados.
A amplitude da redacção do artigo 411.º deu, porém, lugar á critérios de interpretação perigosos, como o que fez vencimento no aludido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Novembro de 1958.
Daí merecer o mais franco aplauso da Câmara Corporativa uma medida legislativa que restabeleça o equilíbrio das soluções legais, como a preconizada no artigo 1.º do projecto em apreciação.
7. Sucede, no entanto, que o artigo 5.º do Decreto n.º 16 489, de 15 de Fevereiro de 1929, que aprovou o Código de Processo Penal, estabelece que todas as modificações que de futuro se fizerem sobre matéria nele contida serão mandada» inserir no próprio código pelo Ministro da Justiça.
Esta circunstância e a de ser tecnicamente mais perfeito o sistema de incluir no código os disposições que esclareçam a interpretação e o alcance de qualquer dos seus artigos aconselham que se procure atingir a finalidade visada pelo artigo 1.º do projecto, não com a promulgação de um diploma avulso, mas com uma disposição que complete o preceito que suscita dúvidas.
E, por isso, a Câmara Corporativa é de parecer que a matéria do artigo 1.º do projecto deve ser incluída no artigo 411.º do Código de Processo Penal, acrescentando-se a este o seguinte:
§ 4.º Se a infracção for cometida por advogado no exercício das suas funções, não se aplicará o disposto neste artigo e observar-se-ão os termos prescritos no artigo 412.º
Foi este, aliás, o método seguido pelo próprio legislador que elaborou o Decreto-Lei n.º 36 387 para tornar aplicável também aos réus a disposição do artigo 411.º do Código de Processo Penal, aditou ao artigo 413.º um § único, com a seguinte redacção:
Se a falta cometida pelo réu constituir infracção penal, observar-se-ão os termos prescritos no artigo 411.º
No artigo 412.º é que não introduziu igual aditamento, o que bem mostra não ter querido que o artigo 411.º se aplicasse aos advogados.
Com o texto que se sugere para um § 4.º do- artigo 411.º atinge-se a louvável finalidade do projecto e põe-se termo à inquietante situação atrás descrita.
8. No artigo 2.º do projecto propõe-se nova redacção para os artigos 435.º e 468.º do Código de Processo Penal.
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O primeiro refere-se à inquirição de testemunhas, em audiência de julgamento; o segundo, à transcrição na acta da audiência dos requerimentos e protestos verbais.
Já o Instituto da Conferência da Ordem dos Advogados, após larga e proficiente discussão, entendeu que devia insistir-se junto dó Sr. Ministro da Justiça para que fosse deferida a exposição anteriormente feita pelo conselho geral da Ordem no sentido do reconhecimento dos direitos de interrogar directamente as testemunhas e de requerer sem peias, nomeadamente com o regresso ao sistema anterior ao Decreto-Lei n.º 36 387 (Revista da Ordem dos Advogados, vol. 18.º, p. 423).
E essa, precisamente, a finalidade do artigo 2.º do projecto.
De modo geral, pretende-se - e bem - o regresso ao regime vigente antes da publicação do citado Decreto-Lei n.º 36 387.
9. O primitivo texto do artigo 435.º dispunha:
As testemunhas serão perguntadas, sobre os factos que tiverem sido alegados, pelo representante da acusação ou da defesa que as tiver produzido e, finda, ela, poderão os representantes da parte contraria, o presidente do tribunal e os jurados ou juizes que compuserem o tribunal fazer-lhes as perguntas que entenderem necessárias para o esclarecimento da verdade.
§ 1.º Se, para esclarecimento da verdade, se mostrar necessário interrogar qualquer testemunha , sobre um facto novo, não alegado, poderá ser perguntada sobre ele, se o presidente do tribunal o autorizar.
§ 2.º Quando acusarem conjuntamente o Ministério Público e a parte acusadora, qualquer deles pode fazer Às testemunhas que não tiver oferecido, depois de inquiridas, as perguntas que entender necessárias para o esclarecimento da verdade.
O texto actual estabelece:
As testemunhas serão perguntadas sobre os factos que tiverem sido alegados pelos representantes da acusação e da defesa que as tiverem produzido, podendo o presidente e os juizes que compuserem o tribunal fazer-lhes as perguntas que entenderem necessárias para o esclarecimento da verdade.
§ 1.º Se, para o esclarecimento da verdade, se mostrar necessário interrogar qualquer testemunha sobre um facto novo não alegado, poderá ser perguntada sobre ele se o presidente do tribunal o autorizar.
§ 2.º Os representantes da parte contrária à que tiver produzido a testemunha poderão solicitar ao presidente do tribunal que faça a esta as perguntas necessárias ao esclarecimento da verdade. O presidente do tribunal pode autorizá-los a fazer essas perguntas directamente.
A diferença fundamental é esta: ao passo que as instâncias às testemunhas, antes da reforma, eram feitas directamente pelo Ministério Público ou pelo advogado da parte contra quem tinham sido produzidas, estes só têm hoje a faculdade de rogar ao juiz que peça esclarecimentos a essas testemunhas.
A instância directa, que era uma prerrogativa, passou a ser mera concessão.
O sistema é francamente mau.
A prova testemunhal é um dos mais importantes elementos de informação judiciária. As testemunhas, disse Bentham, são os olhos s os ouvidos da justiça.
Todavia, este meio de prova é porventura o mais perigoso e falível de todos que a lei regula.
Aceita-se como um mal necessário, mas não há quem não aponte os seus defeitos, os senta, riscos, a sua insegurança.
A melhor defesa contra- o depoimento falso, tendencioso, apaixonado, deformador da verdade, é ainda a instância da testemunha, destinada a esclarecer ou completar as afirmações por ela produzidas. Mas a instância, para ser útil, tem de ser directa.
Por isso, já o artigo 1057.º da Novíssima Reforma Judiciária permitia que findos, os depoimentos «assim o juiz, como as partes, ou seus procuradores», podiam «directamente fazer» às testemunhas«todas as perguntas que julgarem necessárias para o descobrimento da verdade»; e o mesmo se determinava no artigo 435.º do Código de Processo Penal, redacção primitiva.
O direito de instar as testemunhas estava,, portanto, nas tradições do foro português; e, exercendo-o, os advogados puderam, muitas vezes, pulverizar uma prova preparada, restabelecer a verdade, contribuir para a boa administração da justiça, que lhes cumpre auxiliar, segundo o comando legal (artigo 518.º do Estatuto Judiciário).
Subitamente, porém, a situação modificou-se radicalmente ; e a instância só por graça dos juizes ficou a ser feita pelos próprios advogados, a quem se concedeu a mera faculdade de pedir ao presidente do tribunal que faça às testemunhas as perguntas necessárias ao esclarecimento da verdade.
Desta forma, conseguiu-se simultaneamente tirar aos advogados uma prerrogativa e tornar mais arriscada ainda a administração da justiça com base na prova testemunhal.
A presente situação não é plausível e não deve manter-se.
Quem já lidou nos tribunais sabe que ninguém como o advogado está integrado nas questões em que intervêm, para poder fazer as instâncias,, de que tantas vezes resulta o apuramento da verdade.
É mister, por isso, que ao advogado se restitua o direito de instar directamente, para que ele não fique reduzido quase ao papel de espectador, que nenhum profissional digno pode aceitar.
Além disso, para o próprio iluminar dos factos, o regime vigente é altamente desvantajoso, pois, como se acentua num relatório apresentado ao Instituto da Conferência da Ordem dos Advogados pelo Dr. Angelo de Almeida Ribeiro:
... a pergunta feita por intermédio do presidente perde imediatamente 50 por cento da oportunidade: decorrem segundos preciosos que a testemunha, porventura depondo sem isenção ou com menos verdade, aproveita para se entrincheirar na
paixão com que depõe ou na mentira que engendra.
O elemento surpresa esvai-se. O brilho do interrogatório hábil desaparece.
Por vezes, o presidente não apreende o sentido ou alcance da pergunta, até porque não está informado de qualquer circunstância que invalide o depoimento da testemunha.
E outras vezes - pior ainda - diz que tal pergunta não interessa, que nada adianta ao esclarecimento da verdade ou, pura e simplesmente, que já está esclarecido ou já tem a sua ideia feita. (Revista da Ordem dos Advogados, vol. 18.º, p. 225).
10. A redacção proposta no artigo 2.º do projecto para o artigo 435.º do Código de Processo Penal reproduz quase em absoluto o texto inicial, melhorando-lhe a forma, que na verdade não era feliz.
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Todavia, convém precisar em que altura podem ser formuladas as perguntas necessárias para o esclarecimento da verdade, pelos representantes da parte contrária, pelo presidente e pelos juizes que compuserem o tribunal.
Assim evitar-se-ão dúvidas a tal respeito e impedir-se-á que decorra desordenadamente a produção da prova testemunhal. Sugere-se, por isso, o seguinte texto:
Art. 435.º As testemunhas serão perguntados pelos representantes da acusação e da defesa que as houverem produzido sobre os factos que tiverem alegado, e, findo o interrogatório, poderão os representantes da parte contrária, o presidente e os juizes que compuserem o tribunal fazer-lhes as perguntas que entenderem necessárias para o esclarecimento da verdade.
§ 1.º (O do projecto, sem alteração).
Quanto ao § 2.º, como pelo Decreto-Lei n.º 35 007, de 13 de Outubro de 1945, deixou de haver parte acusadora, passando os ofendidos e outras entidades a poder intervir no processo apenas como auxiliares do Ministério Público e na qualidade de assistentes, a Câmara entende que deve ficar assim redigido:
§ 2.º Quando acusarem conjuntamente o Ministério Público e assistentes, qualquer dos respectivos representantes poderá fazer às testemunhas que não tiver oferecido, depois de inquiridas, as (perguntas necessárias ao esclarecimento da verdade.
11. Resta considerar o que se projecta em relação ao artigo 458.º
Dizia o texto anterior:
Todos os requerimentos ou protestos verbais constarão da acta da audiência, mas serão feitos directamente ao presidente do tribunal, que poderá ordenar que a transcrição na acta se faça somente depois da sentença, se entender que se tem por fim protelar o andamento da causa.
Diz o texto vigente:
Todos os requerimentos ou protestos verbais serão dirigidos ao presidente do tribunal, que os fará referir sumariamente na acta, bem como a decisão adoptada.
Retorna-se, pelo projecto, ao sistema de fazer inserir na acta da audiência todos 09 requerimentos e protestos verbais, em vez de nela se lhes fazer apenas uma referência mimaria, confiando-se a respectiva redacção ao (presidente do tribunal.
E manifesto que não pode pôr-se em dúvida a competência deste, para se desempenhar de tal encargo. Os méritos e as virtudes da nobre magistratura portuguesa podem ser louvados sem hesitações.
Mas, de um lado, requerer e protestar compete aos advogados, e não aos juizes, cuja função é decidir; de outro, é sempre desagradável, e quase sempre inconveniente, confiar a outrem a tradução dos nossos próprios pensamentos e expressões; e, finalmente:
... se, com os requerimentos, muitas vezes o julgador não apreende inteiramente aquilo que o advogado pretende, e por isso a redacção do resumo ressente-se disso, pior se passará com os protestos, até porque os mesmos são feitos, e apresentados, em condições de alta tensão nervosa, para quem os faz e para quem tem de os aceitar. Um juiz, alvejado num protesto, precisa de ser quase extra-
humano para resumir com perfeito equilíbrio palavras que são dirigidas, as mais das vezes, contra ele próprio.
O contrário aconteceria se fosse o advogado a efectuar o protesto, ditando-o integralmente para a acta. A própria decisão sobre ele ganha em serenidade, pois o juiz tem tempo de ler o protesto, depois de o ter ouvido proferir, amarra o advogado 11 responsabilidade das razões invocadas ou expressões empregadas e despacha calmamente, como se fora um vulgar requerimento que lhe vai concluso ao gabinete. (Dr. Almeida Ribeiro, relatório citado na Revista da Ordem dos Advogados, vol. 18.º, . p. 227).
Por todas estas razões, a Câmara Corporativa adere ao texto proposto.
III
Conclusões
12. A Câmara Corporativa entende que o projecto de lei n.º 16 merece aprovação, mas ao texto desse projecto prefere estoutro:
rtigo 1.º É aditado ao artigo 411.º do Código de Processo Penal o seguinte:
§ 4.º Se a infracção for cometida por advogado no exercício das suas funções, não se aplicará o disposto neste artigo e observar-se-ão os termos prescritos no artigo 412.º
Art. 2.º Os artigos 435.º e 458.º do Código de Processo Penal passam a ter a seguinte redacção:
Art. 435.º As testemunhas serão perguntadas belos representantes da acusação e da defesa que as houverem produzido sobre os factos que tiverem alegado, e, findo o interrogatório, poderão os representantes da parte contrária, o presidente e os juizes que compuserem o tribunal fazer-lhes as perguntais que entenderem necessárias para o esclarecimento da verdade.
§ 1.º Se, para o esclarecimento da verdade, se mostrar necessário interrogar qualquer testemunha sobre um facto novo, não alegado, poderá ser perguntada sobre ele, se o presidente do tribunal o autorizar.
§ 2.º Quando acusarem conjuntamente o Ministério Público e assistentes, qualquer dos respectivos representantes .poderá fazer às testemunhas que não tiver oferecido, depois de inquiridas, as perguntas necessárias ao esclarecimento da verdade.
Art. 458.º Todos os requerimentos ou protestos verbais constarão da acta da ausência, podendo o presidente do tribunal ordenar que a transcrição na acta se faça somente depois da sentença, se entender que se tem por fim protelar o andamento da causa.
Palácio de S. Bento, l de Abril de 1959.
João Mota Pereira de Campos.
José Augusto Vaz Pinto.
José Gabriel Pinto Coelho.
Manuel Duarte Gomes da Silva.
Afonso de Melo Pinto Veloso.
Augusto Cancella de Abreu.
Adelino da Palma Carlos, relator.
IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA