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REPÚBLICA PORTUGUESA

ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 108

VII LEGISLATURA 1960

19 DE SETEMBRO

Projecto de decreto-lei n.º 516

Colheita de órgãos e tecidos nos cadáveres

1. De há muito que se vem sentindo entre nós, com premência crescente, a necessidade de utilizar, em certas condições, os órgãos e tecidos das pessoas falecidas.
Trata-se de problema hoje largamente considerado nu legislação de muitos países, merecendo especial citação a lei francesa de 20 de Outubro de 1947, a lei espanhola de 18 de Dezembro de 1950, o decreto suíço de 20 de Dezembro do mesmo ano, a lei inglesa de 26 de Julho de 1952 e a lei italiana de 3 de Abril de 1957.
E ao assunto se referiram largamente os pareceres da Procuradoria-Geral da República de 27 de Novembro d

2. Só uma adequada regulamentação permitirá resolver um número importante de casos que, de outro modo, não têm solução clínica. Em Abril de 1959, a Sociedade de Ciências Médicas calculou em cerca de 2000 o número de cegos que, no nosso país, poderão recuperar a vista graças à ceratoplastia. Em 1957 morreram em Portugal, por queimaduras, 517 indivíduos, parte importante dos quais poderia ter sido salva se funcionassem serviços apropriados para enxertos de pele. E, embora sem elementos tão precisos, pode igualmente dizer-se que será também bastante elevado o numera de casos em que os outras enxertos possíveis, especialmente os de ossos, darão resultado de grande interesse.
Compreende-se a natural reacção que medidas desta natureza podem causar em sectores menos esclarecidos da opinião pública. Mas o simples facto de 2000 [...] poderem recuperar a vista é por si só suficiente para legitimar uma regulamentação adequada, conforme, aliás, a classe medica, várias das suas organizações científicas e a grande imprensa de há muito vêm a solicitar.
Aliás, à licitude da extracção e aproveitamento da córnea dos cadáveres se referiu expressamente o papa Pio XII, que considerou, sob certas condições, que o presente projecto respeita, nada haver a objectar a elas sob o ponto de vista moral e religioso: o paciente beneficia com frequência desses aproveitamentos e o falecido não é lesado em nenhum bem.
No presente decreto-lei fica-se, em vários aspectos, bastante aquém do que se pratica noutros países. Todavia, já se abrem vastas possibilidades; e mais fácil será, de futuro, adaptar a lei às realidades nacionais e às exigências do meio, em matéria de transplantação para vivos de órgãos e tecidos de pessoas falecidas.
Decerto não faltará quem afirme que se quer ir depressa de mais; e não há-de também faltar quem considere ter-se sido prudente em excesso. Porém, o problema é delicado, envolve toda uma gama complexíssima de situações morais e de hábitos arreigados, e não parece conveniente ir-se mais longe na fase inicial.
No presente projecto procura-se, portanto, aquele justo mas difícil equilíbrio entre o respeito ancestral que ao homem merece, o cadáver de outro homem e as imposições científicas que, sem menosprezo por aquele respeito, obrigam a utilizar os cadáveres humanos para benefício dos diminuídos, dos feridos e dos doentes.

3. O sistema previsto no presente decreto-lei resume-se aos seguintes grandes princípios:

a) Qualquer pessoa pode livremente dispor do seu corpo, autorizando ou proibindo que nele se façam colheitas depois de falecer.

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b) Na falta de autorização, é permitida, a colheita desde que, notificado do óbito algum dos parentes mais próximos do falecido, nenhum deles se opuser no prazo de três horas; e é igualmente lícito realizar a colheita se, não tendo sido possível a notificação do óbito, não haja havido oposição espontânea da família do falecido, nas cinco horas subsequentes ao falecimento. Estabelece-se, porém, a necessidade cie expressa autorização do morto, ou da família, sempre que o óbito haja tido lugar em casa ou numa clínica particular.
c) Nunca poderão fazer-se colheitas de órgãos ou tecidos no cadáver da pessoa falecida sem assistência médica, em consequência de doença infecto-contagiosa, nos casos de morte violenta e em todos os demais em que deva realizar-se autópsia, por disposição da lei.

Em outras disposições fixam-se as linhas gerais a que deve obedecer o consentimento; regulo-se o modo como pode ser impugnado; indicam-se as pessoas de família com legitimidade parei o fazer, e fixam-se aã condições em que as colheitas devem ser realizadas.
Os curtos prazos estabelecidos resultam da circunstância inelutável de as colheitas, no actual estádio da técnica, só serem possíveis com êxito nas seis horas subsequentes ao óbito. E, porque a verificação deste tem especial interesse na matéria, remeteu-se para portaria dos Ministros da Justiça e da Saúde a fixação das regras de semiologia médico-legal que a regerão e que deste modo poderão ser actualizadas mais facilmente, depois de ouvidos sobre o assunto os departamentos oficiais competentes e a Ordem dos Médicos.
Estabelece-se, por último, que o cadáver humano, ou qualquer parte do mesmo, não pode ser objecto de transacção de carácter lucrativo.
Nestes termos:
Usando da faculdade conferida pela 1.ª parte do n.º 2.º do artigo 109.º da Constituição, o Governo decreta e eu promulgo, para valer como lei, o seguinte:

ARTIGO 1.º

As colheitas, no corpo de pessoa falecida, de tecidos ou órgãos de qualquer natureza que forem considerados necessários para fins terapêuticos ou de investigação cientifica ligada às técnicas de enxerto de tecidos humanos, e que tiverem de efectuar-se nas dezoito horas seguintes ao óbito, poderão fazer-se nos termos do presente decreto-lei. E lícita, nestas condições, designadamente, a colheita de ossos, cartilagens, vasos, pele e globos oculares.
§ 1.º E proibida qualquer colheita de tecidos ou órgãos, ainda que a pessoa falecida haja disposto o contrário, nos casos de morte sem assistência médica, de morte devida à doença infecto-contagiosa, de morte violenta e nos outros casos em que deva haver autópsia por força da lei.
§ 2.º Poderão ser exceptuadas do disposto no parágrafo anterior as colheitas indispensáveis para fins de investigação científica, nos casos de morte devida a doença infecto-contagiosa.

ARTIGO 2.º

Qualquer pessoa, maior ou emancipada, pode declarar que não autoriza que, do seu corpo, sejam retirados quaisquer tecidos ou órgãos. Nesse caso, nenhuma colheita será feita, salvo se a lei expressamente determinar o contrário.
Mas, igualmente, qualquer pessoa nas mesmas condições pode autorizar, por escrito ou verbalmente, que os tecidos ou órgãos do seu corpo sejam colhidos, depois da sua morte, para fins terapêuticos ou de investigação.
§ 1.º O consentimento por escrito considera-se válido desde que conste de documento autêntico ou de documento assinado pela pessoa que autoriza a colheita; e o consentimento verbal tem-se como prestado quando for testemunhado, em documento escrito, por duas pessoas de idoneidade reconhecida, ou pela família do falecido, ou pelo médico que efectuou a colheita.
§ 2.º Esta não se efectuará, porém, se a validade do consentimento verbal for impugnada pelo cônjuge sobrevivo e não separado judicialmente de pessoas e bens ou, na falta dele, e sucessivamente, por qualquer ascendente ou descendente em 1.º. grau ou por qualquer ascendente ou descendente no 2.º grau.
§ 3.º A impugnação deverá ser deduzida por escrito ou verbalmente, neste último caso na presença de duas testemunhas, até três horas, depois do falecimento, perante o médico que pretenda efectuar a recolha, ou perante o director do serviço clínico em que o corpo estiver depositado, ou perante quem legalmente represente o director desse serviço.
Mas a impugnação só poderá ser invocada em juízo se o seu autor puder fazer a prova de que ela chegou efectivamente ao conhecimento, em tempo oportuno, da entidade perante quem pretendeu deduzi-la.
§ 4.º Os serviços e o respectivo pessoal ficam obrigados- a permitir o imediato acesso às entidades referidas no parágrafo anterior cias pessoas que declarem pretender deduzir qualquer oposição à colheita. As atitudes dilatórias ou outras que visem dificultar esse acesso imediato serão punidas de harmonia com o artigo 13.º

ARTIGO 3.º

Na falta de autorização, a colheita dos tecidos ou órgãos das pessoas falecidas em clínicas e institutos universitários, nas instalações não particulares dos hospitais ou em quaisquer estabelecimentos oficiais de assistência é permitida para fins terapêuticos, quando haja presumível necessidade desses tecidos ou órgãos e salvo quando houver oposição por algumas das pessoas indicadas no § 2.º do artigo anterior.
§ .1.º Para efeito da parte final do corpo deste artigo, logo após a verificação do óbito os responsáveis pela colheita deverão participar imediatamente este e qualquer das pessoas de família referidos no § 2.º do artigo 2.º, para o domicílio indicado no boletim de admissão do doente ou ferido falecido, e aguardar por três horas que seja deduzida qualquer oposição.
§ 2.º A notificação considera-se feita desde que o documento respectivo seja assinado por uma dessas pessoas de família tio falecido ou que se possa fazer prova de que uma dessas pessoas dele teve conhecimento.
§ 3.º Se não tiver sido possível notificar o óbito nas duas horas subsequentes e não tiver havido oposição espontânea à colheita, esta é permitida a partir da quinta hora seguinte ao falecimento.

ARTIGO 4.º

Se o falecimento ocorrer fora dos locais referidos no artigo 3.º e não existir consentimento, nos termos do § 1.º do artigo 2.º, a colheita dos tecidos ou órgãos só pode efectuar-se se for autorizada pelo cônjuge sobrevivo, e não separado judicialmente de pessoas e bens, ou, na falta dele, e sucessivamente, por qualquer ascendente no 1.º grau ou por qualquer ascendente ou descendente no 2.º grau.

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ARTIGO 5.º

As colheitas só poderão efectuar-se nas clínicas ou institutos universitários, hospitais e estabelecimentos de assistência que forem indicados em portaria do Ministério da Saúde e Assistência, sob parecer das direcções-gerais competentes.
§ 1.º Quando se tratar de clínicas ou institutos universitários, a portaria será publicada, conjuntamente, pelos Ministros da Educação Nacional e da Saúde e Assistência.
§ 2.º Enquanto se não encontrem em funcionamento os respectivois bancos de órgãos, compete aos directores dos clínicas ou institutos universitários, aos directores clínicos dos hospitais ou aos chefes dos serviços clínicos dos estabelecimentos oficiais de assistência mandar afixar, em local público, a lista dos médicos autorizados a efectuar aã colheitas.

ARTIGO 6.º

As colheitas apenas podem efectuar-se dentro das dezoito horas seguintes ao óbito, e nunca poderão iniciar-se sem que os médicos que a elas procedam apresentem, ao director de serviço clínico onde vai realizar-se a colheita ou a quem legalmente o substitua, o certificado da verificação do óbito e o documento de consentimento, quando necessário.
§ único. A verificação será obrigatoriamente feita pelo menos por dois médicos, segundo as regras da semiologia médico-legal que forem definidas, ouvidos os departamentos oficiais competentes e a Ordem dos Médicos, em portaria conjunta dos Ministros da Justiça e da Saúde e Assistência. O certificado declarará, quando se trate de casos abrangidos pelo presente decreto-lei, que o cadáver satisfaz às condições exigirias, e será assinado pelos médicos verificadores, que, no prazo de 24 horas, remeterão, sob registo do correio, um duplicado à delegação ou subdelegação de saúde local.

ARTIGO 7.º

Quando houver consentimento, nos termos do § 1.º do artigo 2.º, ou quando se verificarem as condições estabelecidas nos artigos 3.º e 4.º e seja caso de realizar-se a colheita, esta poderá ser efectuada no domicílio do falecido ou em local ou estabelecimento diferente daquele em que ocorreu o óbito. Mas o médico só poderá efectuá-la depois de feitas as verificações estabelecidas no artigo anterior.

ARTIGO 8.º

As colheitas devem ser realizadas de maneira a evitar mutilações ou dissecações inúteis e por forma que, tanto quanto possível, se não prejudique a posterior realização de autopsia, se tal vier a verificar-se necessário.
£ único. Depois da operarão deverá ser restabelecida a morfologia do corpo, podendo utilizar-se, sendo preciso, elementos de prótese.

ARTIGO 9.º

Para cada colheita será levantado um auto, em duplicado, no qual se registarão a identidade do falecido, a data e a hora da verificação do óbito, os nomes dos médicos verificadores, a hora e as circunstâncias da operação e o destino dado aos tecidos ou órgãos recolhidos.
§ 1.º O original e o duplicado deste auto serão assinados pelos médicos que realizarem a colheita e pelo director da clínica ou instituto universitário, hospital ou serviço clínico, ou por quem legalmente o represente.
§ 2.º Um exemplar do auto será arquivado no estabelecimento era que se tiver realizado a colheita; o outro será remetido, no prazo de 24 horas e sob registo do correio, à delegação ou subdelegação de saúde local.

ARTIGO 10.º

Os órgãos ou tecidos serão requisitados, para fins terapêuticos, nos estabelecimentos em que se realizarem as colheitas ou a bancos organizados para este efeito. Só poderão sê-lo pelos médicos que desejem utilizá-los; e será da responsabilidade destes a conservação dos mesmos até sua completa utilização.

ARTIGO 11.º

O cadáver humano, ou qualquer parte do mesmo, não pode ser objecto de transacção de carácter lucrativo.
O disposto neste artigo não prejudica, porém, as disposições pelas quais o falecido haja condicionado a utilização do seu corpo ou de parte dele à atribuição de determinado donativo em favor de obras de assistência.

ARTIGO 12.º

Quando a aplicação dos órgãos ou tecidos colhidos nos cadáveres for feita no domicílio dos interessados ou. em estabelecimentos particulares, os encargos da colheita, conservação e distribuição dos tecidos ou órgãos serão da responsabilidade dos beneficiários.

ARTIGO 13.º

Todas as colheitas praticadas em contravenção do disposto neste diploma sujeitam os infractores às penas e demais responsabilidades estabelecidas para as autópsias realizadas ilegalmente.

ARTIGO 14.º

O Ministério da Saúde s Assistência fica autorizado a instalar bancos de olhos ou de outros órgãos e tecidos ou a permitir que os mesmos sejam instalados por entidades particulares, nas condições fixadas no título de autorização, mas sempre sem carácter exclusivo.

ARTIGO 15.º

O presente decreto-lei entra em vigor em 1 de Janeiro de 1961.

O Ministro da Saúde e Assistência, Henrique de Miranda Vasconcelos Martins de Carvalho.

Despacho

Nos termos regimentais, passa, a fazer parte do Conselho da Presidência o digno Procurador Joaquim Trigo de Negreiros.

22 de Agosto de 1960. - Luís Supico Pinto.

IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA

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