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REPÚBLICA PORTUGUESA

ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 98

VIII LEGISLATURA - 1966 18 DE MARÇO

Projecto de lei n.º 2 2/VIII

Lei da caça e do repovoamento cinegético

Sumário do relatório

1.º Povoamento cinegético.
2 º Exercício salutar
8 º Adestramento militar.
4 º Descontracção e alívio de pesares
5.º Fonte de abastecimento alimentar.
6 º O extermínio.
7.º Valorização das terras ingratas, insusceptíveis de cultura rentável.
8.º Os regimes jurídicos.
9 º A liberdade de caçar para todos segundo o Código Civil.
10.º Uma democracia venatóna de comissões.
11.º Remédios constringentes.
12 º À questão crucial.
18.º Como organizar propriedades de caca guardadas?

1.º Povoamento cinegético

O número dê caçadores multiplica todos os anos
Mas cada vez esta legião depara com menos caça e mais magros resultam os trofeus obtidos
Os poisos, cantões, refúgios, matos e lugares húmidos, onde a caça se acoutava dantes, estreitecem e diminuem, cortados e perturbados pelo automóvel, pelo avião, pelas máquinas e casas, pelos fios eléctricos e pela expansão demográfica e urbana
Onde se notava abundância verifica-se agora escassez e correspondem falhas
Os biólogos e os escritores anotam as espécies que desapareceram e também as que se supõem condenadas dentro de pouco.
As artes dos caçadores ilegais progridem e dizimam
Assim, o homem encontra-se perante uma Natureza brava que contrai, ao passo que ele próprio se desenvolve
E como a vontade esclarecida pelo estudo e pela técnica se propõe lutar contra os antagonismos da Natureza para os suplantar e vencer, o mesmo homem procura travar a obra destrutiva e, pelo seu engenho, reparar as faltas e melhorar a situação.
Quando não os animais bravios e a sua caça têm os dias contados.
Uma actividade que, desde os primórdios do viver colectivo, assegurou ocupação, exigiu esforços e obteve resultados não pode perder-se como inútil ou superfluidade.
Eis porque o problema se reveste de importância e avulta agora a sua faceta de património nacional.
Mais que um entretenimento saudável, uma escola de ar puro, uma evasão das preocupações urbanas, uma desintoxicação, a caça propõe-se, na economia nacional, como fonte de enriquecimento e de atraimento alheio
Instrumento civilizado de elevação social em vez de libertar instintos primevos, a caça pode encarar-se do lado do desenvolvimento e de princípios expansivos sem ter que buscar, para seu remédio, novos liames e apertos jurídicos que ditem o comportamento dos caçadores perante horizontes vazios.
Em vez de regulamentação das actividades venatórias julga-se preferível um estatuto de novos princípios e meios sobre o repovoamento cinegético

2.º Exercício salutar

E todavia
Muitos escritores conferiram à caça o título de rainha dos desportos, pondo em evidência, no seu exercício, tra-

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(...) balhos e porfias, imprevistos e façanhas sofridas que não invejam os esforços, penas e consequências das restantes culturas físicas
D João I, rei de Portugal, no magnífico Livro da Montaria, publicado pela Academia das Ciências, Coimbra, 1918 (pp. 3 e seguintes), dando-a como proveitosa e de inultrapassável bondade pelas suas manhas, compara-a aos demais jogos, exercícios e distracções para os suplantar
Compara-a ao xadrez e a outros jogos de tabuleiro, à péla, à dança, à música, aos exercícios de salto e luta, as corridas e estafetas, ao arremesso de lanças, ao exercício de braço, facha e espada, às festas e torneios
Por fim procura demonstrar que «o joguo de andar ao monte he melhor que todollos outros joguos pêra recrear o entender, e também a correger o feito darmas, mais que todollos outros que pêra isto foram aleuantados» (p 15)
E acrescentava e «... o joguo de andar ao monte quarda o feito das armas por que se nom perca» (p 21)

3.º Adestramento militar
A caça sempre foi concebida como um preparatório da arte militar e uma inclinação pelo exercício das armas
Mestre André Resende, na Vida do Infante D Duarte (Academia Real das Ciências, edição de 1780, p 21) conta que este, respondendo a observação de um censor que o admoestava de seus exageros, nos termos seguintes afirmara

O N mal poderão os homens sofrer o exercício militar, quando a honra e necessidade os constranger, se desde mocidade senão avezarem ao cansaço, vigília, calma, e frio, este laborioso exercício da caça e montaria he huma imagem da vida militar, e quasi sombra da guerra em tempo de paz, com que os membros enrijecem e se fazem habiles para soster o pezo das armas, e não desmayarem, quando nos trabalhos militares se acharem

4.º Descontracção e alivio de pesares

Outros fazem avultar os seus efeitos psicológicos de distracção saudável, pondo em evidência as benéficas consequências temperamentais.
É assim que o mais famoso dos nossos escritores de volataria em altura, Diogo Fernandes Ferreira, moço da câmara de el-rei, por duas vezes o salienta na sua Arte da Caça de Altanaria (edição de 1899, I, p 24, e II, p 142).
Sobre o exercício da caça escreve primeiro
E alivio de cuidados pesados, mãe de altos pensamentos, é finalmente um toque no qual se conhece o para quanto cada pessoa seja

E quase no fim do seu volume de dois tomos

E assim os senhores a esta arte afeiçoados são liberais, cheios de grandes e altos pensamentos

5.º Fonte de abastecimento alimentar

Mas é mais faz parte da mesa bem provida e sem desdenhar os pobres
Encontramo-nos ainda num diverso plano - o nosso - em que a exploração da terra e a alimentação das grandes massas se surpreendem ainda distanciadas sem haver um esforço construtivo pronunciado e capaz de unir os dois sectores numa perfeita intimidade
Alimento imemorial, regalo das culinárias, primor das mesas, a caça, quando em abundância, facilita o abastecimento e consumo e melhora-o qualitativamente
Os mercados citadinos e provincianos encontravam-se dantes, nas épocas de licença, perfeitamente abastecidos, o que agora já não sucede
Os excedentes dos coutos, as colheitas dos angariadores, a actividade dos profissionais, lograva fornecer quantidades suficientes aos mercados das vilas e cidades.
Está-se, porém, evoluindo da abundância dos mercados para a escassez, para a raridade e, como consequência, para os preços inabordáveis, na altura
O que dantes era frequente na maioria das cozinhas e comedouros começa a ver-se, donde em onde, como se fruto exótico ou manjar precioso fosse apenas Os grandes mercados falham ou contraem e, em cidades enormes como Lisboa, apenas algumas lojinhas respondem em último caso à procura crescente
Entrou-se numa fase desoladora de preciosidade recôndita e inacessível. E nem tudo se pode atribuir aos efeitos destrutivos da mixomitose nos coelhos e às exportações quantiosas para a Itália
Também a absorção de peças pelos hotéis e restaurantes não pode abonar um tão demorado eclipse
Os mestres antigos da culinária portuguesa dispunham sempre de caça brava para os suas confecções e para suprir faltas e esquecimentos
São inúmeras as receitas a começar em mestre Domingos Rodriguez, cozinheiro do conde de Vimioso - Arte de Cozinha, Lisboa, 1683 -, embora o engenho se afinasse sempre em suprir as faltas
Os problemas da alimentação estão na ordem do dia, clamam pela intervenção do legislador e dos governos, não só em cada país como em todo o Mundo
A importância das proteínas nas dietas, a coordenação dos resultados da exploração da terra com a nutrição pública, a qualidade dos alimentos, as tendências irremovíveis do gosto do consumidor, as práticas- tradicionais da culinária portuguesa, acentuam e conservam como vital uma política alimentar, onde a caça brava não abdica da larga posição consagrada na história
A economia geral deseja manobrar com excedentes seguros, perante o crescimento demográfico, e considera menos natural uma evolução regressiva
Mas os próprios caçadores, imbuídos tantas vezes de desdém ou de desconhecimento, contribuem para o extermínio da caça e aí se encontram com os seus inimigos de toda a espécie

6.º O extermínio

Como que movidos por sanha ancestral, criou-se nos profissionais e nalguns atiradores um estado de espirito destruidor, um estado de nada deixar, que não corresponde às tradições que eram brasão, de que o verdadeiro caçador caça por desfastio, e não por ambição
Concelho e região onde apareçam certas linhas de atiradores, a coça desaparece durante anos e anos, em holocausto à prosápia de algumas espingardas em rivalidade.
Este estado é contrário a todos e merece combate.
E por igual o merecem as práticas hodiernas dos envenenadores, das associações de furtivos e dos destruidores de ovos e ninhadas

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7.º Valorização das terras ingratas, insusceptíveis do cultura rentável

A caça é um instrumento de valorização integral do solo.
Sobretudo as terras pobres, áridas, improdutivas que falharam na exploração trigueira ou centeeira e que não garantem conversão florestal coroada de êxito podem ser planejadas para exploração cinegética, quer de modo exclusivo, quer de modo complementar.
Nesta hora de desânimo e perplexidade de muitos lavradores e proprietários rústicos, desde que uma lei nova e regulamentos novos protejam tais iniciativas, a exploração cinegética mostra-se um instrumento novo de política e economia que merece ser tentado.
Por outro lado, o engasgamento económico e a paragem lucrativa que representam a falta de remuneração das lenhas e carvões recomendam, e mais que recomendem impõem, a tentativa de florestamento ou mesmo de revestimento rasteiro para constituir cantões apropriados à vida, reprodução e exercício da caça brava.
A Sologne, no coração da França, perto do Loire, barrenta e arenosa, imprópria para as culturas que não fossem o desenvolvimento silvestre, tornou-se, pela rendosa exploração dos seus domínios cinegéticos, a região mais giboyeuse da Europa ocidental.
Esse exemplo secular desta região, composta de três grandes departamentos franceses, e o esforço recente levado a cabo com êxito pelos nossos vizinhos espanhóis, os quais lograram reconstituir e aperfeiçoar os domínios desmantelados pela guerra civil e pela revolução marxista, carecem de ser reconhecidos, bem compreendidos e até imitados.
Também o exemplo da Checoslováquia, onde a caça é um direito do Estado, negociável, abona a exploração da caça como valorização dos matos e objecto de cuidadosos estudos e revisões capaz de produzir divisas.

8.º Os regimes jurídicos

A evolução jurídica do regime de apropriação da caça e a disciplina das. actividades venatórias ajudam a compreender as atitudes tomadas pelo legislador na regulamentação do seu exercício, onde despendeu ao longo dos séculos pertinácia e energia.
Sempre este último se propôs a defesa das espécies u particularmente a da sua natural fertilidade, melhorada agora pelo recurso a meios artificiais.
Foram graves e violentas as sanções estabelecidas para os actos anticinegéticos que ameaçavam a destruição de animais bravios, objecto de perseguição de monteiros, falcoeiros e caçadores.
Nunca se considerou o exercício de caça como um direito absoluto, sofrendo em todos os períodos históricos, além das proibições apontadas, limitações apropriadas aos conceitos generalizados da época e à ordem dos privilégios estabelecidos.
A exterminação e a captura com recursos a meios menos leais e fraudulentos contemplou-os a lei antiga como nocivos e delituosos, dando origem a penas tão pesadas como graves.
Damos apenas nota de alguns monumentos jurídicos essenciais que testemunham estas observações, postas já à entrada apenas por comodidade de exposição numa matéria intrincada que sofre com as reduções.
Uma lei de D. Afonso II de 1211 isentava os «mesquinhos» do tributo das aljavas para aves (vide Gabriel Pereira, As Caçadas, Évora, 1893).
Ordenações, cartas e alvarás publicados no título 67 do livro I das Ordenações Afonsinas, sobre os foros e proibições relativas ao exercício do cargo de monteiro-mor, referem-se aos monteiros de cavalo e moços de monte, estabelecem coimas e penalidades sobre os actos ilegais de caça e discriminam os seus efeitos (vide Edição da Universidade de Coimbra de 1786, pp. 396 e seguintes do vol. I).
No livro V das Ordenações Manuelinas, título 83, proíbe-se que se lance fogo em queimadas, sujeitando os seus autores ao pagamento do dano produzido.
No título seguinte, as mesmas Ordenações Manuelinas proíbem a caça de perdizes e de lebres com travesti de pele de boi, fios, redes e armadilhas.
Estabelece-se um período de defeso geral para a caça do coelho.
Mencionam-se especialmente as coutadas reais de Lisboa, Évora, Santarém, Sintra, Montemor, etc.
As penas constam de apreensão de redes, candeios, perda de cães, multas em dinheiro e até degredo e agravamentos em pena maior.
E no título 11 do mesmo livro V proíbe-se que qualquer pessoa fizesse coutada nos montes e terras de porcos monteses, veados, coelhos, perdizes.
As condenações começavam em degredo por dois anos. Simultaneamente, mantinha o regime e guarda das coutadas reais com o seu carácter de regalia e exclusividade. (Vide edição de Lisboa de Jacome Cromberguez, 1521, impressão de 1539).
A provisão de 7 de Agosto de 1549 estabelecia prémios pecuniários aos que matassem lobos e aos que preparassem cachorros para a sua montaria.
O alvará de 21 de Julho de 1562 proibia todas as formas de caçar perdigões e lebres na coutada de Lisboa, sob pena de prisão e multa.
A Ordenação de 1 de Julho de 1565 proibia a caça de perdigões, por vários modos, durante o defeso ao sul do Tejo, em Março, Abril e Maio, e, ao norte, em Abril, Maio e Junho, épocas da criação; e caça de corricão de Julho ao meado de Agosto e nas nevadas.
Para as lebres e coelhos o defeso avançava um mês sobre o acima citado.
Além do voo de açores e gaviões, da utilização de redes, fios armadilhas, inchós, laços, etc., recurso a cães, usavam-se bestas e espingardas. As escopetas e arcabuzes parece que tinham feito a sua aparição algumas dezenas de anos antes.
As penas pelos actos ilícitos eram grandes - degredo para fidalgos e cavaleiros e prisão e multa para as pessoas de menor qualidade. (Vide Duarte Nunez do Liam, Leis Extravagantes, 1569, pp. 159, 160 e 200 v.º).
E o mais extraordinário - a Pragmática Filipina, datada de Madrid, de 2 de Janeiro de 1611, proibia toda a espécie de caça com arcabuz, espingarda e tiros de pólvora e chumbo.
Em decreto real de 21 de Junho de 1751 regulou-se de novo o exercício do .cargo de monteiro-mor, no tocante a montarias a lobos e outros animais daninhos, impondo-se ao comum a obrigação de tomar parte no cordão de cerco promovido pelas autoridades.

9.º A liberdade de caçar para todos, segundo o Código Civil

A liberdade de caçar foi, pelo Código Civil de 1867, assegurada a todos, sem distinção, e o direito de converter em propriedade sua os animais caçados reconhecido como uma faculdade resultante da ocupação destes após o exercício venatório.

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Tal é a súmula dos direitos regulados por esse monumento jurídico, onde prevaleceram as concepções de Krauss, do visconde de Seabra e, nalguns capítulos, as do grande Herculano.
Este monumento jurídico levantou-se contra os privilégios de alguns, privilégios, aliás, de direito público, em nome do direito natural indiscriminado de todos e da liberdade civil.
A marcha para a liberdade e o direito natural indiscriminado de apropriação começaram com o «descontamento», ou seja, a conversão em terra livre e penetrável das coutadas reais, embora sob o pretexto de se reduzirem as áreas demarcadas para se melhorar a vigilância e facilitar a fiscalização e à defesa.
Grande parte da terra encontrava-se erma, inculta e até livre.
Eram raros os caçadores, ou melhor seja, as espingardas de fogo que podiam por eles ser manobradas. Eram poucas assim e naturalmente pouco espalhadas.
Os animais bravios consideravam-se uma riqueza natural, mas sem valor e sem dono.
E o direito de caçar, em nome de princípios igualitários, pertencia a cada um, qualquer que ele fosse, e concretizava-se pela apropriação da caça, depois da sua perseguição e derrube.
Às folhas e manchas de cultura sucediam-se as charnecas, matos, estevais e florestas, onde os animais bravios se acantonavam e forneciam ao caçador possibilidades abundantes.
Portanto, não se perca de vista, a caça para todos de qualquer animal bravio é livre e faz um capítulo das reformas liberais que começaram com o Regimento de 12 de Março de 1800.
Esse Código Civil de 1867, um monumento jurídico, na parte «Aquisição dos direitos», considera a caça como a ocupação de animais bravios, regulando-a do artigo 384.º até ao artigo 394.º, incluindo este, e, na sua técnica, proclamava-a um direito à sua aquisição, derivado simplesmente do facto e vontade de cada um, singularmente considerada.
O Prof. Teixeira de Abreu, incontestado mestre na matéria, preleccionava que caça era «a ocupação dos animais bravios terrestres, quadrúpedes ou voláteis que nunca tinham dono», e esta se podia exercer tanto nos próprios terrenos como nos alheios. (Vide Doutor Teixeira de Abreu, Curso do Direito Civil, parte II, Coimbra, 1904-1907, pp. 25 e segs., e visconde de Seabra, A Propriedade, p. 142).
Portanto, o Código Civil, sem acabar com as coutadas, permitiu a qualquer caçador caçar em todo terreno, findando grande parte dos privilégios atribuídos ao príncipe, aos senhores e às ordens e mosteiros que do seu exercício faziam um direito eminente que suplantava a propriedade e os bens alheios.
Nem todos, porém, tinham armas; entretanto a caça podia dizer-se que chegava para todos.
Mas aconteceu que os caçadores numerosos fizeram legião, e de legião, pela difusão e aperfeiçoamento das armas de fogo, se volveram em exército infindável e depredador.
Os refúgios e reservas começaram a ser penetrados e dizimados.
E a caça que parecia chegar e sobrar foi reduzindo, defendendo-se naturalmente nos refúgios e esconsos, e começou a rarear, a faltar, a tornar-se difícil e, pelas defesas naturais, a levantar cada vez mais longe, mais desconfiada, parecendo acrescentar a sua rudeza bravia, nativa.
Então o direito de caçar começou a entrar em colisão com o desbravamento dos matos, as arroteias e culturas e entrou em colisão mesmo com o direito dos donos das terras livres e abertas.
Verdade seja que as propriedades se repartiam e fragmentavam por forma que perdizes e lebres as atravessavam fulgurantemente e a integração dos animais sem dono, na propriedade plena, com excepção dos coutos e tapadas, parecia também privilégio e surdia como nova fonte de quezílias, de discussões e conflitos.
Mas o número de caçadores e de espingardas subia sempre e os cantões de caça iam-se condensando geogràficamente e viam-se menos povoados.
Por outro lado, o direito daqueles que converteram o inculto em terra cultivada com investimentos, labor e sacrifício apresentavam perante os factos novos razões novas que não podiam embaratecer-se.
O capítulo do Código Civil serviu de ponto de partida para um complexo jurídico inextricável.
O direito aduaneiro regula a importação de armas e munições que aqui não se fabricavam. Vêm depois os regulamentos da Administração sobre comércio, detenção, manifesto, uso e porte de arma, fabrico e venda de munições.
Seguem-se novos imperativos sobre caça, cães, vacinas, licenças, etc.
Todavia, a despeito de uma intervenção tão constante do legislador, da regalia à simples faculdade desta a um direito natural eminente e deste último a um direito temperado e regulamentado com minúcia, nem a arte progrediu nem se garantiu o seu objecto.
Reza a história que desapareceram e extinguiram-se várias espécies.
Acabaram os ursos, os cervos, os gamos, os corsos, a cabra hispânica, os javalis e outros.
Mas, ao lado de nós, estas espécies fazem parte do património espanhol de fauna cinegética.
Desapareceram por cá as montarias, a cetraria, a altanaria, a volataria, a falcoaria e a lei, que permite chamarizes nos pombos, e os proíbe nas perdizes.
Certas espécies de aves em peregrinação vêm cada vez menos e parece provável que deixarão de cortar os nossos céus.
Mas logo passando a fronteira, além de um povoamento judicioso, continuam as montarias, os cercos e as esperas.

10.º Uma democracia venatória de comissões locais

A legislação de 1934 - Decreto-Lei n.º 23 460, de 17 de Janeiro desse ano, e o n.ºs 23 461, da mesma data - não rompeu com as teorias e técnicas do Código Civil sobre a caça.
Mas considerou com primazia, não o caçador de direito natural, isolado, mas o seu agrupamento em comissões venatórias concelhias, embora estas agrupadas por distritos e por três regiões.
Tudo se passará na área do concelho e no domínio do Código Administrativo; a matéria de licenças, restrições e transgressões dizem respeito ao município.
As comissões tem por missão fiscalizar, nomear guardas, arrecadar receitas e dar-lhes destino.
Os caçadores são, simultâneamente, eleitores e elegíveis e a lei regula minuciosamente a sua forma de designação.
Portanto, com eleições, com pequenos parlamentos de comissões, com fiscalização sua, com a caça apenas como problema concelhio, seria realizada a democracia dos caça, dores, senhores dos próprios interesses, soberanos ditando a si mesmos o seu comportamento e dispondo de guarda privativa para comandar a eficácia da lei e das suas resoluções.

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A concepção parecia em todo o caso um frouxo eco do direito francês.
Em França ninguém pode possuir um permis de caça ou obter a sua renovação se não fizer parte de uma federação departamental com estatutos conformes com os modelos adoptados pelo Ministro da Agricultura.
A função principal destas federações consiste em reprimir o furtivismo e promover a organização de reservas de caça e a protecção da reprodução da mesma
Porém, em verdade, o problema da caça, com os seus aspectos de desporto mestre, de centro de atracções, de instrumento de valorização do solo e de indústria alimentar, não é concelhio - é nacional, não é local nem regional, mas diz respeito a todos.
Chegámos deste modo a uma situação, como se disse já, em que cada vez há mais caçadores e menos caça, e tem de reconhecer-se que as comissões pouco podem apresentar como activo dos seus serviços durante anos A sua atitude parece mais negativa que positiva
Perante a afluência anual de novos caçadores, a exiguidade de matos e florestas, o desbravamento, o alheamento dos serviços aos quais diz respeito, a democratização havia fatalmente de parar e mostrar-se inadequada, perdendo-se o interesse, a autoridade e até a disciplina, sem aumentar o contingente animal bravio, posto à disposição do caçador.
Surgiram então os caçadores demasiado ambiciosos e exterminadores, o furtivismo socorrendo-se de novos meios, dizimando também sem mercê, e os novos processos de conservação alimentar e as exportações, que, em lugar de promoverem a criação e reprodução natural e artificial, actuaram imprevidentemente, agravando os problemas

11.º Remédios constringentes

E chegámos assim a uma situação de crise que se agrava constantemente - cada vez, repetimos, há mais caçadores e estes dotados de superior avidez e de meios aperfeiçoados e cada vez há menos caça.
Facilmente assim se topam, proclamam e enfeixam teorias de restrição e alvitres de constrangimento, novas modalidades de direito que encurtarão os prazos, tornarão mais dificultoso o exercício, limitarão os objectivos e darão como impraticáveis certas formas de rebater e alcançar o voo ou a corrida
A caça não é um direito ilimitado nem pode conceber-se como um extermínio
O caçador seria pouco razoável que praticasse um desporto, que se dirá favorito, ao sr livre, manejando um código de rede ilimitada de imposições e comandos e, por cada gesto, tivesse que pensar em inúmeras normas jurídicas.
Só as técnicas de desenvolvimento, a criação e o comércio aperfeiçoado, a valorização e conversão de terras pouco rentáveis fornecem a chave do problema
Não são comissões de discussão e de regulamentação que se precisam, mas sociedades e agrupamentos de colaboração entre proprietários, criadores e caçadores que possam chegar a resultados semelhantemente ao que se propõe ou exemplifica nalguns países, avançados neste particular.
As coutadas, reservas, ao Estado no seu domínio privado, também estão assinaladas funções de repovoamento progressivo e de centros de irradiação e exemplos a seguir.
Não pode ser tudo livre para as armas de fogo arrasarem.
E onde a Natureza falha ou se demite incumbe à vontade do homem não apenas suplantar, mas a palavra de ordem de colmatar, desenvolver e triunfar, por fim.

12.º A questão crucial

Em muitos países, onde predominam o espírito jurídico .da Revolução Francesa e o tipo do direito civil francês, a caça faz parte do objecto do direito de propriedade, pois que esta abrange o direito de perceber os produtos naturais da terra. Punha-se fim às concepções regalistas e privilegiadas herdadas do feudalismo.
Em Portugal e na Itália, a caça é considerada rés nullius, ocupável pelo facto individual do acto venatório.
Os nossos civilistas, como vimos, procuravam justificar a atitude do Código, invocando razões de que se tratava de uma riqueza natural, que correspondia à liberdade de todos e porque os animais bravios não tinham poiso certo
Mas esta doutrina, contrariando o facto de ser a propriedade que sustenta e comporta a caça, implicava logicamente o desinteresse de quem seria o seu melhor guardião e patenteava a liberdade como faculdade sem limites quase destruidora.
Tem de passar-se, pois, a um regime mais harmónico com os condicionamentos actuais Infelizmente, isso vai ser uma fonte de más vontades e de ociosas discussões, que se não podem evitar nem tão-pouco tornear. E se não houver um pouco de coragem reformadora, continuaremos desapontados dos factos e das superestruturas desejáveis.
Por isso se adopta uma solução provisória já ensinada.
A partir de 50 ha, a caça pertence ao proprietário do território que mostre aos serviços florestais promover o repovoamento, ter guarda ou guardas seus e empenhar-se a valer na extinção dos animais nocivos.

13.º Como organizar propriedades do caça guardadas?

Como sabemos, está na ordem do dia a reconversão agrícola, e assim encontramos aqui nova faceta.
Para o repovoamento das espécies e a exploração intensiva torna-se necessária a organização cuidada e racionai de propriedades de predominante finalidade cinegética.
Os especialistas, os assistentes técnicos, os Nemrods avançados e conhecedores, têm de pronunciar-se e organizar domínios cinegéticos onde a caça viva e prolifere perfeitamente.
Analisar os terrenos com vocações, determinar a sua configuração minuciosa, estabelecer as gramíneas e leguminosas a adoptar, vestir as encostas de matos, tojos, giestais, carvalheiras, etc., estudar cuidadosamente o problema da água, dos refúgios, dos levantes, a admissão de novas leguminosas, isto é, uma série de problemas que terão de ser solucionados sobre o terreno e que importarão ainda rectificações ulteriores.
Ver-se-á quais as searas de gramíneas desejáveis e que venham a ser ceifadas o mais tarde possível, pois poucas serão tão perniciosas ao repovoamento e ao desenvolvimento cinegético como os favais, ervilhais e trigos precoces, que deixam a descoberto os ninhos e as criações logo em começo.
Também, de Abril a Junho, a montanheira se torna indesejável, devendo as grandes varas ser removidas para fora dos coutos, reservas, aldeias e sociedades
Temos de actualizar métodos e de organizar-nos em moldes paralelos aos dos grandes países ocidentais, valorizar as encostas e fragas, os pauis e charcos, os lugares húmidos, os matos rasteiros, preparando-os para a exploração ordenada da caça.
Grande parte do solo desvalorizado e ao abandono, estéril e inculto, perante as decepções do trabalho agrícola,

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(...) acusado de sáfaro e ingrato, guarda ainda o seu segredo de ser útil, de trazer um rendimento perceptível por hectare, de possuir mesmo um alto valor locativo e da converter-se com seus talhões, aceiros, arrifes, portas á avenidas, num campo de desporto imenso, grato e prolifero, onde o ar e as vistas largas tonificam, e onde, em vez de se destruir para todo o sempre, se promova a criação, o acantonamento, a melhoria artificial e um novo capítulo do bem público, que há muitos anos aguarda da boa vontade de todos, do legislador, dos serviços e dos interessados, actuação pronta, incisiva e altamente construtora, porque assim se reforma o que está e que muitos entendem não estar bem.
A Natureza, além de protegida, pode ser ajudada e transformada
À. capoeira, a chocadeira, aos parques de criação - já não são segredo para ninguém e menos o são para as empresas da especialidade -, incumbe abastecer, preencher as lacunas, recompor os desertos e enriquecer as terras delgadas e incultas ou insusceptíveis de dar rendimento, valorizando a caça e tornando-as também atraentes
«Porque em toda a caça em que os homens tomam prazer, convém que conheçam a raiz e, o uso para seu melhor entendimento, porque mais prazer terá o homem e menos erro se cometerá entendendo-a bem do que não a compreendendo» (Cf «Biblioteca Venatória de Gutierrez de la Vega», I, Librio que mandó hacer el Rey Don Alfonso de Castiella et de Leon que habla em todo lo que perte, nesce à las manieras de la Monteria, siglo XVI, p 4)

Articulado

Definição jurídica de caça

1 Além de entretenimento saudável, desporto e exercício paramilitar, a caça deve ser um instrumento de valorização nacional do solo e um elemento de atracção turística
2 A faculdade de caçar nas terras abertas, matos, montes e zonas aquáticas depende de licença, é condicionada pelas leis e sofre as limitações naturais impôs nas pela protecção das espécies e pela civilização.
Fica proibido o extermínio delas em qualquer zona e por qualquer meio venatório e o empobrecimento da fauna selvagem

Economia de subsistência

3 Os resultados disponíveis globais da caça fazem parte da economia de subsistência do povo português, obviando ao seu poder de procura e consumo e as funções turísticas do território.

Repovoamento

4 São factores de repovoamento cinegético e instrumentos de valorização integral do solo e de desenvolvimento programado

1.º As reservas - refúgios que venham a ser demarcados pelos municípios nas áreas concelhias, onde se determine um esforço de defesa e de repovoamento dos animais bravios durante o período renovável de três anos e por acordo tomado entre aqueles, as autoridades florestais e as associações locais de caçadores;
2.º As sociedades de caça a constituir entre proprietários, usufrutuários e arrendatários, vizinhos e grupos de caçadores inferiores a dez que tenham por objecto o desenvolvimento intensivo e a caça em áreas oficialmente coutadas, nunca inferiores a 50 ha. Estas poderão obter por arrendamento o direito de caçar nas matas do Estado,

3.º As empresas existentes ou a formar que explorem a produção, criação, venda e exportação das espécies cinegéticas vivas e a introdução de animais importados, tais como o colin da Virgínia, a codorniz oriental, o faisão e outros que tais elementos repovoadores,
4.º As coutadas constituídas e a constituir de harmonia com as leis em vigor, sendo as últimas sujeitas a obrigações de demarcação, estabelecimento de matos e searas, ficando em todas elas proibidas as batidas que impliquem extermínio;
5.º As aldeias em que os donos das terras e os caçadores, por escritura pública, venham a formar uma entidade responsável e se proponham o povoamento e a defesa das espécies durante certo número de anos renováveis, podendo também alienar o direito de caça,
6.º As associações de caçadores, chamadas comissões venatórias, depois de remodeladas e quando tenham por funções básicas o desenvolvimento, o repovoamento cinegético, a extinção dos animais nocivos e a luta legal contra o «furtivismo»

§ 1.º A existência de servidões de passagem, caminhos públicos e encravados não será obstáculo ponderoso à organização de sociedades de caça, reservas, coutadas e aldeias-reservas
§ 2.º As sociedades, empresas de criação, aldeias e grupos que programem oficialmente o seu desenvolvimento ficarão sujeitos apenas à fiscalização das autoridades florestais do Estado
§ 3.º Dentro das coutadas estabelecidas ou que venham a autorizar-se, constituir-se-á um ou mais refúgios ou um ou mais montes de levante de 20 ha a 90 ha, onde não poderá caçar-se nem abater-se, a não ser quando a abundância de espécies se torne nociva.

Florestas nacionais a florestas particulares sujeitas a regime

5 Com excepção das zonas arborizadas em começo e das plantações danificadas pela caça, os perímetros e domínios sujeitos ao regime florestal formarão uma única reserva nacional, fonte de riqueza cinegética, onde se promoverá o desenvolvimento, o povoamento e ainda as melhorias técnicas susceptíveis de padronizar os esforços privados.

Mudança de regime jurídico

6 Ao fim de três anos, mas propriedades de área superior a 50 ha, assistidas de guardas florestais - coutadas que não -, em que se proceda ao povoamento intensivo da caça e à extinção sistemática dos animais daninhos, circunstâncias estas verificadas especialmente pelos serviços florestais, os animais bravios ai achados pertencerão integralmente aos titulares do direito de propriedade e a caça apenas será possível pelo consentimento expresso destes últimos, que poderão dela dispor como objecto de negociação

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18 DE MARÇO DE 1965 1203

Tipos da licença autorizando a caça

7 Haverá dois tipos de licença de caça

1.º Um geral, que permita o exercício das artes venatórias em todo o Pais;
2.º Um especial, municipal, que autorize dentro dos limites de cada concelho

§ único Quando a Administração o entenda, a autorização da licença geral implicará a efectivação de um seguro contra acidentes de terceiro

Repressão do «furtivismo» em associações

8 Além das responsabilidade estabelecidas, o «furtivismo» por equipas de caçadores ilegais e de exterminadores de caça e ovos será considerado crime contra a economia da Nação, ficando os seus autores sujeitos a sanções agravadas, à perda dos instrumentos de caça e dos meios mecânicos de que se serviram para o transporte
Quando cometido de noite e com ameaça para a segurança dos guardas, sofrerá novos agravamentos

Armeiros

9 Os armeiros e espingardeiros que foi em autorizados a montar novos estabelecimentos obrigar-se-ão a possuir stande de tiro ao voo e coronhas articuladas para a melhor adaptação das armas vendidas

10 Fica proibida a venda de espingardas em segunda mão, a não ser em estabelecimentos especiais apartados das sedes

Fiscalização

11 A fiscalização oficial da caça pertencerá

1.º A Guarda Nacional Republicana,
2.º Aos guardas florestais,
3.º Aos guardas de caça arvorados formalmente pelas sociedades de caça e pelas comissões venatórias

Cies

12 Sem alteração de verba, os serviços florestais devem dar impulso, em canis adequados, à criação e conservação da pureza de raça dos seguintes cães de caça, navarros, perdigueiros, dois-narizes, podengos-coelheiros, barbaças, barbetos grandes, galgos peninsulares, podengos galguenhos e baixotes
13 A exemplo do que se passa em Macau, poderão as Misericórdias organizar, em proveito das suas receitas, corridas de galgos com lebres mecânicas movidas electricamente

Espécies ameaçadas e daninhas

14 Será objecto de regulamentação o abate das espécies ameaçadas de extinção e a obrigação geral imposta aos caçadores de se empenharem na destruição dos animais cinegeticamente considerados daninhos

Lisboa, 10 de Março de 1965 - O Deputado, Artur Águedo de Oliveira

IMPRENSA NACIONAL DE LISBOA

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