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REPUBLICA PORTUIGUESA
SECRETARIA GERAL DA ASSEMBLEIA NACIONAL E DA CÂMARA CORPORATIVA
ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA N.º 53
X LEGISLATURA - 1970 6 DE NOVEMBRO
Projecto de proposta de lei n.º 7/X
Defesa da concorrência
1. A proposta de lei de defesa da concorrência, que se apresenta constitui documento de grande alcance e significado. Empenhado na rápida promoção do desenvolvimento económico e social do País, não pode o Governo deixar de propor as medidas legislativas que assegurem um maior dinamismo e uma maior eficiência às unidades produtivas e, do mesmo passo, protejam o consumidor nacional. Ora, de entre essas medidas sobressaem, sem dúvida, as relativas à defesa do concorrência. Não se desconhece que as situações em geral contempladas nas leis deste tipo - nomeadamente os acordos ou «ententes», as práticas comerciais restritivas, as situações de preponderância, as fusões - não são as únicas que nas economias contemporâneas restringem ou distorcem a concorrência. Muitas outras circunstâncias actuam no mesmo sentido, e isto já devido à posição ocupada pelo Estado moderno na vida económica, já por motivos de justiça social, numa economia de mercado que nunca é de perfeita concorrência. Certo é, porém, que a prevenção e repressão das situações que atingem frontalmente o comportamento e a estrutura concorrencial dos mercados pode contribuir para atenuar elementos de rigidez, para promover uma maior racionalidade das condutas, em suma, para incentivar o progresso económico. Tanto basta para justificar plenamente a oportunidade das providências que se propõem agora.
2. As leis de defesa da concorrência, tal como o revela um exame de direito comparado, foram sempre concebidas e aplicadas como instrumento de política económica, e, portanto, sempre bem moldadas às estruturas concretas a que se destinavam. Daí a extrema variedade de processos e técnicas, de objectivos e limites que nos oferecem as experiências estrangeiras. A verdade, porém, é que desde os primeiros arestos de aplicação das leis antitrust nos Estados Unidos da América se desenham duas orientações fundamentais neste domínio: uma, para a qual toda e qualquer restrição objectiva da concorrência deveria ser, em si mesma, proibida - por se presumir que dela decorreria necessariamente um resultado danoso; outra, segundo a qual só deveriam ser proibidas aquelas situações não concorrenciais, que, após investigação em concreto, se tivessem revelado efectiva e realmente danosas. O primeiro dos aludidos sistemas - o sistema da proibição do dano potencial - reconhece uma perigosidade natural às situações objectivamente limitativas da concorrência; o segundo - o sistema da proibição do dano efectivo - admite que nem todas essa situações produzem resultados negativos e que um certo grau de concentração pode revelar-se mais adequado e eficiente.
Não pode deixar de reconhecer-se que, enquanto os sistemas da proibição do dano potencial têm sido acolhidos em países de vastos mercados internos e situados em alto nível de progresso económico - como os Estados Unidos da América, a Alemanha, a Inglaterra e a França -, os sistemas da proibição do dano efectivo ou do abuso têm merecido a preferência dos países de mercado interno mais restrito, fortemente dependentes do comércio internacional e, por vezes, situados em estado menos avançado de desenvolvimento económico - como a Áustria, a Irlanda, a Suíça, a Holanda, a Bélgica e os países nórdicos.
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3. Nesta ordem de considerações, ressaltam com nitidez as razões que levaram o Governo a orientar-se no sentido dos sistemas do abuso, face às actuais características da nossa economia. Com um mercado interno ainda reduzido, estando nós largamente dependentes do comércio exterior e, para mais, envolvidos num movimento de liberalização de trocas à escala mundial e europeia - a primeira das atenções do Governo não poderia deixar de se dirigir para a concorrência internacional. Ora, se é certo que muitos dos sectores da nossa economia se revelam já suficientemente apetrechados para enfrentar os rigores da competição internacional, muitos outros ainda se encontram numa fase de reconversão que os torna temporariamente menos preparados para resistir à concorrência da economias mais evoluídas da Europa e do Mundo.
Vem, por isso, de há muito preconizando o Governo a racionalização das estruturas produtivas, com vista a promover um adequado dimensionamento das empresas, sabido como é que no alargamento da dimensão pode residir importante factor de redução dos custos e de consequente robustecimento de capacidade competitiva.
Não podendo, pois, definir-se uma política de defesa da concorrência sem os olhos postos nas condições em que se desenvolve o comércio internacional, natural se torna que tal política nunca pudesse prejudicar a dimensão óptima das empresas nos vários sectores da economia.
E daí que se torne por vezes necessário não desencorajar algumas situações que - representando embora limites da concorrência no âmbito puramente interno - possam contribuir para um reforço da nossa capacidade competitiva no plano internacional.
Acresce ainda que os sistemas de proibição do dano efectivo ou de abuso se revelam mais conformes às condições actuais da vida económica, em que a concorrência efectiva já se não pode definir pelos puros requisitos da atomicidade e fluidez do mercado. Não podem, com efeito, ignorar-se as situações em que estruturas concentradas de mercado coexistem com comportamentos fortemente competitivos; como não pode esquecer-se que nas economias modernas a existência de poderes compensadores, a concorrência intersectorial e virtual, o grau de elasticidade da procura e ainda outros factores constituem limites aos efeitos negativos dos mercados de estrutura não atomística.
Daqui resulta Ter-se enveredado por uma técnica de defesa da concorrência que - ao invés de proibir ou evitar restrições à estrutura concorrencial dos mercados - antes visa a proibição dos comportamentos não competitivos que se revelem efectivamente danosos para a economia nacional.
4. Não pareceu, todavia, conveniente seguir-se a tendência de certas legislações estrangeiras no sentido de qualificar o carácter danoso das condutas pelo recurso a uma cláusula geral vaga, como «ofensa do interesse público» ou «ofensa do interesse geral». Permitindo tais conceitos uma ampla liberdade de apreciação ao interprete, poderia a sua aplicação redundar numa quebra de segurança jurídica e económica, tão importante neste domínio, pois que nesta segurança, tal como na concorrência, residem alicerces fundamentais de uma livre economia de mercado. Optou-se, pois, por uma descrição legal das condutas típicas que a experiência tem revelado revestirem gravidade suficiente para justificar uma intervenção das autoridades públicas; e, do mesmo passo, pretendeu-se subtrair do âmbito da aplicação da lei outras tantas condutas que em si mesmas não constituem restrições da concorrência ou cuja realização se pode mostrar vantajosa por variadas razões de política económica.
Também se não enveredou pela técnica acolhida nalgumas leis estrangeiras de ferir de nulidade os actos de restrição da concorrência; e isto quer porque os sistemas de fiscalização envolvem um aparelho burocrático dispendioso e nem sempre eficaz, quer porque grande parte das situações contempladas na lei não reveste a natureza de negócios jurídicos. Concedeu-se, pois, um tipo de actuação mais flexível, mais aderente às realidades oferecidas pela prática dos negócios e que a experiência de certos países, que também adoptam, tem revelado eficaz. Confia-se ao Conselho Superior de Economia a investigação das condutas puníveis, por sua iniciativa ou por iniciativa do Governo, das corporações ou dos particulares com legitimidade para a tomar. Se da instrução resultar a verificação da existência de uma daquelas condutas, deverá o aludido Conselho recomendar a adopção em certo prazo das medidas adequadas à sua cessação ou à cessação dos seus efeitos. Esta fase inicial permitirá solucionar, desde logo, muitas questões, sem quebra das garantias de que se proeurou rodear o processo para aplicação de sanções, se a elas houver lugar.
Espera-se, pois, que da coordenação da actividade administrativa e jurisdicional no domínio da defesa da concorrência resulte a flexibilidade e a prontidão necessárias, com pleno respeito dos princípios consagrados na nossa ordem jurídica em matéria de protecção das liberdades individuais no âmbito da intervenção punitiva do Estado.
Nestes termos, o Governo apresenta à Assembleia Nacional o seguinte:
Proposta de lei
CAPÍTULO I
Disposições fundamentais
BASE I
Cabe ao Estado, institutos públicos, autarquias locais e organismos corporativos assegurar as condições de uma justa e efectiva concorrência com vista ao desenvolvimento económico e social do País, tendo em conta as circunstâncias da estrutura, da concorrência internacional, do progresso técnico e de cada sector da economia.
BASE II
O Governo estimulará a racionalização das estruturas produtivas das empresas, através da concessão de benefícios fiscais ou por qualquer outra forma adequada, quando em determinado sector da economia se verifique uma situação concorrencial excessiva e quando o alargamento da dimensão das empresas favoreça o progresso técnico e a sua eficiência económica.
BASE III
1. Sempre que em dado sector da economia a evolução da produção e das trocas, as anormais flutuações ou a rigidez dos preços e ainda a situação de preponderância por parte das empresas levem a presumir que a concorrência se encontra seriamente afectada, cumpre ao Governo ordenar um inquérito geral, podendo para tanto exigir às empresas desse sector os elementos indispensáveis para a apreciação da estrutura e comportamento do mercado em que se integram, nomeadamente os acordos, decisões ou práticas concertadas.
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2. A recusa de informações, a inexactidão das informações prestadas, a ocultação, destruição, inutilização, falsificação ou viciação de documentos serão punidas pelos tribunais ordinários com multa de 100 000$ a 1 000 000$.
CAPÍTULO II
Das práticas restritivas da concorrência
BASE IV
1. São consideradas práticas restritivas, para efeito da presente lei, as condutas isoladas ou concertadas, seja qual for a forma que revistam, de uma ou mais empresas, individuais ou colectivas, que impeçam, falseiem ou restrinjam, directa ou indirectamente, a concorrência efectiva no território do continente e ilhas adjacentes e consistam em:
a) Fixar, directa ou indirectamente, um limite mínimo aos preços de venda, às margens de lucro de comprador ou a outras condições das transacções efectuadas no mesmo ou em diferentes estádios do processo de produção e comercialização;
b) Fixar, directa ou indirectamente, um limite máximo aos preços de compra, às margens do lucro do vendedor ou a outras condições das transacções efectuadas no mesmo ou em diferentes estádios do processo de produção e comercialização;
c) Restringir, por qualquer forma, a liberdade de outrem estabelecer os preços ou as condições comerciais nos acordos que celebra com terceiros, desde que essa restrição não tenha por fim a protecção de uma marca;
d) Recusar a venda ou a compra de produtos, desde que essa recusa tenha carácter discriminatório, por depender exclusivamente da pessoa do comprador ou do vendedor;
e) Aplicar, sistemática ou ocasionalmente, nas vendas ou nas compras, preços ou condições subsidiárias que, em igualdade de outra circunstâncias e independentemente das despesas de transporte, seguro e comercialização, variem conforme as pessoas com quem se realizam as transacções;
f) Subordinar a venda ou a compra de um produto a uma dada quantidade ou à compra ou à venda de outro ou outros produtos, desde que esta subordinação, pela sua natureza ou pelos usos comerciais, não tenha ligação directa com a referida operação,
g) Limitar ou controlar a produção, o desenvolvimento técnico e os investimentos em prejuízo dos consumidores;
h) Repartir os mercados, produtos, clientes ou fontes de abastecimento.
2. São igualmente consideradas práticas restritivas da concorrência as que como tal foram consideradas pelas convenções ou acordos internacionais de que Portugal seja parte.
BASE V
Sem prejuízo da aplicação da base IV, não são consideradas, em si mesmas, práticas restritivas, para efeito da presente lei:
a) Os casos em que uma empresa assegura ela própria o seu fornecimento e o escoamento da sua produção, quer directamente por depósitos, filiais, sucursais, agências, delegações ou qualquer outra forma de representação permanente, quer indirectamente por intermédio de sociedades dominadas que lhe reservam ou a que reserva a totalidade ou parte substancial da sua produção;
b) Os contratos de concessão exclusiva, de duração conforme aos usos comerciais, em que o concedente se obriga a aceitar outro distribuidor na zona afectada ao seu concessionário e este assume, em contrapartida, a obrigação da venda em exclusivo dos produtos do seu fornecedor ou, pelo menos, se vincula a não vender produtos concorrentes;
c) Os acordos que tenham por objecto a aplicação uniforme de normas ou tipos;
d) Os acordos que tenham exclusivamente como objecto a investigação em comum de melhoramentos técnicos, cujo resultado seja proporcionalmente acessível a todas as partes;
e) Os acordos de compra ou venda em comum, quando contribuam para um melhoramento apreciável da produção ou distribuição do produto;
f) Os acordos entre exportadores, as decisões ou práticas de associações de exportadores que tenham por objecto a defesa da qualidade ou do preço dos produtos;
g) Os casos em que as condutas referidas na base IV sejam impostas ou autorizadas por lei ou regulamento do Governo.
BASE VI
Se as factos mencionados na base IV tiverem a natureza de delitos antieconómicos, nos termos do Decreto-Lei n.º 41 204, de 24 de Julho de 1957, deverá seguir-se o procedimento aí estabelecido, sem prejuízo do que se dispõe na presente lei.
CAPÍTULO III
Dos órgãos e do processo
BASE VII
1. A investigação dos factos em que se traduzem as práticas referidas na base IV será secreta e efectuada pelo Conselho Superior de Economia, com a colaboração dos serviços de fiscalização da Inspecção-Geral das Actividades Económicas.
2. O Conselho Superior de Economia será reorganizado com vista ao desempenho das funções que por esta lei lhe são cometidas.
3. As reuniões do Conselho serão presididas por vogal designado pelo Ministro da Economia e nelas participarão os presidentes das corporações e os delegados dos serviços dos Ministérios ou institutos públicos que superintendam nos sectores a que o processo respeita.
4. Ressalvado o disposto no n.º 1 da base X, o Conselho não reunirá com número inferior a três nem superior a sete membros, cabendo ao presidente determinar a sua composição para cada caso e designar o relator.
BASE VIII
1. O Conselho promoverá a instrução por sua iniciativa ou quando tal lhe seja requerido:
a) Pelo Ministro da Economia ou Ministro que superintenda no sector a que respeitem as práticas restritivas;
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b) Pelo presidente da Corporação a quem estejam confiados os interesses do sector a que o processo respeite;
c) Por quem seja titular de interesse directo.
2. O início da instrução será ordenado pelo presidente, não sendo para tanto necessária a reunião do Conselho.
3. Ao exercício das funções de investigações nos processos de que se trata esta lei são aplicáveis os artigos 10.º, 11.º, 17.º, 18.º, e 19.º do Decreto-Lei n.º 46 336, de 17 de Maio de 1965.
4. Sempre que, por virtude do exercício das suas funções, o Conselho tenha conhecimento de um facto constitutivo de crime ou infracção disciplinar, deverá dele dar notícia às autoridades competentes.
BASE IX
Se da instrução resultar a existência de qualquer das práticas restritivas a que se refere a base IV, o Conselho deverá recomendar àquele ou àqueles a quem sejam imputáveis a adopção das medidas indispensáveis à sua cessação ou à cessação dos seus efeitos, fixando um prazo para cumprimento da deliberação.
BASE X
1. Das deliberações do Conselho Superior de Economia cabe a reclamação para o mesmo Conselho, funcionando em sessão plena.
2. O prazo para a reclamação é de oito dias a contar da data da notificação da deliberação aos interessados ou da sua comunicação oficiosa ao Ministro da Economia.
3. A reclamação não terá efeito suspensivo e da deliberação que a julgar não cabe recurso.
BASE XI
1. O Conselho Superior de Economia não deliberará sem que àqueles a quem sejam imputadas as práticas restritivas seja dada a oportunidade de se defenderem, por escrito, salvo se o presidente entender necessária a sua audiência oral.
2. Para o efeito previsto no número anterior, poderão as pessoas nele indicadas fazer-se representar por advogado e assistir por perito da sua escolha.
3. As deliberações do Conselho Superior de Economia deverão ser sempre fundamentadas, constar de acta, ser notificadas aos interessados e oficiosamente comunicadas ao Ministro da Economia.
BASE XII
1. Aqueles que não cumprirem as medidas fixadas pelo Conselho no prazo que lhes for assinalado, ficam sujeitos a multa não inferior a 500 000$, nem superior a 10 000 000$.
2. Em caso de reincidência, os limites referidos no número anterior são elevados para o dobro e os infractores são, ainda, punidos com as penas cominadas para o crime de desobediência qualificada.
BASE XIII
1. A aplicação das penas previstas na base anterior compete aos tribunais criminais de Lisboa.
2. A matéria de facto a apreciar será restrita ao não cumprimento das medidas fixadas pelo Conselho Superior de Economia.
3. O processo previsto nesta base seguirá, com as necessárias adaptações, os termos do processo de querela, sendo obrigatória a intervenção de um perito especializado.
4. Dos acórdãos proferidos pelos tribunais criminais caberá recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça, restrito à matéria de direito.
CAPÍTULO IV
Disposições finais
BASE XIV
1. A presente lei não se aplica ao Estado, serviços personalizados e fundações públicas.
2. O Conselho de Ministros, sob parecer do Conselho Superior de Economia, pode, por decreto fundamentado, declarar as disposições da presente lei temporariamente inaplicáveis:
a) A um certo sector da economia, caso nele se verifiquem graves perturbações estruturais;
b) À generalidade da economia, em caso grave e prolongada recessão.
BASE XV
1. É revogada a Lei n.º 1936, de 18 de Março de 1936.
2. Esta lei entra em vigor com o decreto que a regulamentar e será revista dez em dez anos.
O Ministro das Finanças e da Economia, João Augusto Dias Rosas.
IMPRENSA NACIONAL
PREÇO DESTE NÚMERO 1$60