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REPÚBLICA PORTUGUESA

SECRETARIA-GERAL DA ASSEMBLEIA NACIONAL E DA CÂMARA CORPORATIVA

ACTAS DA CÂMARA CORPORATIVA

N.º 67 X LEGISLATURA - 1971 16 DE MARÇO

SUMÁRIO

Alterações à Constituição Política

Parecer n.° 22/X, acerca da proposta de lei n.° 14/X, apresentada pelo Governo.
Parecer n.º 23/X, acerca do projecto de lei n.° 6/X, apresentado pelos Srs. Deputados Francisco Manuel Lumbrales de Sá Carneiro e João Bosco Soares Mota Amaral e outros.
Parecer n.° 24/X, acerca do projecto de lei n.° 7/X, apresentado polo Sr. Deputado Duarte Pinto de Carvalho Freitas do Amaral e outros.

PARECER N.° 22/X

Proposta de lei n.° 14/X

Alterações à Constituição Política

A Câmara Corporativa, consultada, noa termos do artigo 103.° da Constituição, acerca da proposta de lei n.° 14/X, elaborada pelo Governo sobre alterações à Constituição Política, emite, pela sua secção de interesses de ordem administrativa (subsecções de Política e administração geral e de Política e administração ultramarinas), à qual foram agregados os Dignos Procuradores António José de Sousa, António Jorge Martins da Motta Veiga, António Júlio de Castro Fernandes, Arruando Gouveia Pinto, Augusto da Penha Gonçalves, Emílio de Oliveira Martins, Hermes Augusto dos Santos, José Alfredo Soares Manso Preto e Manoel Alberto Andrade e Sousa, sob a presidência de S. Exa. o Presidente da Câmara, o seguinte parecer:

I

Apreciação na generalidade

1. Desde que obteve aprovação plebiscitaria em 19S3, a Constituição Política da República Portuguesa foi várias vezes sujeita a revisão, mas só em três oportunidades foi objecto de verdadeiras alterações de fundo. Em 1945, as alterações introduzidas na lei fundamental foram dominadas pela extensão formal dos poderes legislativos do Governo, que eram, de direito, até aí, poderes excepcionais. Em 1951, sobressaíram a integração formal na Constituição das disposições, então vigentes, de direito constitucional especial para o ultramar, e a instituição de uma reserva de competência legislativa em favor da Assembleia Nacional. Em 1959, as alterações substancialmente mais relevantes foram, sem dúvida, as respeitantes à forma da eleição do Presidente da República, à inclusão na reserva da lei de certas liberdades fundamentais e do estatuto dos juizes, e, num plano naturalmente secundário, a supressão da autarquia provincial no Continente (para não referir já uma certa directriz integracionista, em matéria de organização político-administrativa das províncias ultramarinas).
A presente proposta de lei de revisão, tal como sucedeu com aquelas que se converteram nas Leis Constitucionais

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n.ºs 2009, 2048 e 2100, a que vem de se aludir, pretende ver também consagrado na Constituição, ao lado de uma multiplicidade de alterações de alcance menor, fruto predominante de uma preocupação de perfeição técnica, de um propósito de outorgar competências flexíveis ao legislador ordinário, de coerência sistemática ou de simples actualização, um certo número de modificações mais ou menos significativas, tanto no plano dos valores e opções políticas fundamentais como igualmente no da ordenação da vida estadual.
Pode mesmo dizer-se, com verdade, que, dentre todas as propostas de revisão constitucional até hoje submetidas à consideração da Assembleia Nacional, ó a presente a que pretende consagrar maior número de inovações de tomo.
Entre estas, destacam-se as que dizem respeito aos direitos, liberdades e garantias individuais, ao estatuto dos brasileiros em Portugal, à competência reservada da Assembleia Nacional, com destaque para o facto de se fazer constituir reserva praticamente absoluta da lei a criação dos impostos, ao chamado "direito de necessidade do Estado", à defesa da Constituição e, por último, à situação constitucional das províncias ultramarinas.
Trata-se de inovações, certamente - mas não de algo que, de alguma maneira e sob qualquer aspecto, constitua uma destruição da Constituição plebiscitada em 1933 e uma solicitação ou apelo a que a Assembleia Nacional, na presente oportunidade, subverta as bases constitucionais do Estado Português ou altere o seu regime; trata-se de algo cuja aprovação deixará intacta a lei fundamental, no que ela tem de mais característico e identificante.

2. Em matéria de direitos, liberdades e garantias individuais, sempre se imputou à Constituição o pensamento de que elas seriam tantas e tão amplas quanto o permitissem as exigências do interesse social, as imposições do bem comum. Longe declaradamente estiveram sempre das intenções do legislador constituinte preocupações ou objectivos transpersonalistas, a fazer da pessoa humana um simples elo ou engrenagem de um ente transindividual, em que ela se apagasse e dissolvesse, com total disponibilidade ao serviço da Nação, do Estado, de um partido ou de qualquer outra realidade totalizante e integradora.

3. Tanto quanto as contingências da política interna brasileira o permitiram, ao longo do período de vigência da presente Constituição, no nosso país fez-se sempre o possível pela instituição e consagração de uma efectiva "comunidade luso-brasileira", correspondente às aspirações mais profundas e mais autênticas dos povos irmãos do Brasil e de Portugal. Alguns passos foram dados em direcção à meta desejada da associação ou comunidade das duas nações. E chegada a oportunidade de outros passos mais firmes e mais ousados serena tentados - e não será o menor, nem o menos significativo, aquele que, por nossa parte, ora pretendemos dar: nada mais, nada menos, do traduzido na equiparação de direitos privados e de direitos políticos entre portugueses e brasileiros, em cada um dos dois países: velha; e cara ideia que, em muito boa hora, se pretende introduzir na lei fundamental portuguesa, depois de o ter sido já na Constituição do Brasil.
Tem-se consciência da importância histórica da decisão agora tomada pelos dois países e essa importância não pode a Câmara Corporativa deixar de sublinhar.

4. Desde que, primeiro as realidades, a constituição efectiva, e, depois, o próprio texto da Constituição formal conferiram ao Executivo em Portugal uma competência legislativa paralela à da Assembleia Nacional, sentiu-se a necessidade de demarcar um sector de matérias em que não valesse o princípio da competência concorrente dos dois órgãos da soberania, o qual ficaria reservado à Assembleia Nacional para por ela ser versado sob a forme, de leis formais. A ideia, concretizada há vinte anos, cor respondeu à comum compreensão de que há assuntos que pela sua transcendência social ou política, pelas repercussões que na esfera dos direitos individuais têm as providências normativas que os disciplinam, pela necessidade de obter uma adesão e um assentimento particulares dos cidadãos para a normação a instituir, e por outras circunstâncias ainda, hão-de, por princípio, ser legislativamente tratados e discutidos e constituir objecto de resolução pelo órgão legiferante mais representativo. Em regra, este não irá preocupar-se com pormenores de regulamentação, deixará essa "legislação" secundária para o Executivo - mas deverá ser ele, exclusivamente, a ocupar-se das directrizes normativas fundamentais, do essencial dos regimes jurídicos adequados a esses assuntos.
São a experiência e as variações da sensibilidade política que vão ditando, com o decorrer dos anos, ao legislador de revisão, o quadro, que em princípio se irá alargando, de matérias fechadas ao processo da chamada "legislação burocrática", que ó o processo da legislação por decretos-leis.
A Constituição não contém nenhuma objecção de princípio, expressa ou implícita, a que o legislador de revisão proceda ao alargamento da "reserva da lei". Neste domínio, um limite estará designadamente nas expectativas de eficiência de um sistema que obriga o parlamento a desempenhar-se de tarefas cada vez mais amplas. Trata-se de um problema, digamos, técnico, de um problema "de organização".

5. Quanto ao Staatsnotrecht, é notório que, se por alguma coisa a vigente Constituição se individualiza, não é seguramente por ter sido preocupação do legislador constituinte de 1933 instituir embaraços ao Estado na defesa dos valores constitucionais contra a desordem e a subversão. Simplesmente, estas, nos dias que vão correndo, assumem novas e mais subtis formas e contra elas não é fácil lutar com instrumentos pensados, desde o século XIX, para uma época e para uma sociedade em que a desordem e a subversão eram excepcionais e só se manifestavam! (no plano interno) sob as formas catastróficas e macroscópicas da guerra civil e da revolta armada. As realidades desta nossa época são bem outras, a patologia social conhece outras síndromes subversivas muito mais variadas, insidiosas e quase constantes - e por toda a parte se torna necessário habilitar o Estado e a sociedade a defenderem-se e à própria Constituição com outros remédios menos drásticos do que os que foram imaginados ou inventados no passado, exclusivamente para aquelas hipóteses de maior gravidade.

6. A Constituição instituiu, logo de início, todo um sistema de defesa dos princípios, formas e competências por ela perfilhados ou estabelecidos, que nada devia, em perfeição técnica e em ousadia teórica, à generalidade das constituições europeias, em geral inspiradas no princípio do primado do Legislativo (primeiro (representante da Nação, depositário, portanto, de toda a soberania, a qual se considera transposta da Nação para ele) e no ideia de que a garantia das leis contitucionais residia fundamentalmente na própria autolimitação da assembleia ou das assembleias parlamentares.

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Esse sistema, de inspiração norte-americana, é mantido pela proposta de lei de revisão em análise, mas ficará sujeito a ser substituído por outro que tem, designadamente nos últimos decénios, e em seguida a certas experiências (designadamente na Checoslováquia e na Áustria) obtido as preferências dos legisladores constituintes europeus - o sistema de um (ou de mais que um) tribunal constitucional especial.
Sem embargo da transcendência desta prevista transformação, não se pode rigorosamente dizer que se ultrapassa, precisamente, o campo em que as revisões constitucionais se devem situar, que é o da "técnica", muito mais que o dos "princípios". No fundo, do que se trata, é do prever a instituição de um processo técnico, porventura melhor que o actual, de assegurar a defesa da Constituição, defesa que também constituiu preocupação do legislador constituinte de 1933.

7. Matéria de particular melindre, que na proposta igualmente se enfrenta, é a da administração ultramarina. Também neste domínio, analisadas serena e desapaixonadamente as coisas, não vêm recomendadas à apreciação da Assembleia Nacional inovações que possam entender-se como fractura ou desvio manifesto dos grandes princípios constitucionais, originariamente consagrados na lei fundamental. Sempre, desde que o mito assimilacionista, Intimamente ligado à ideologia de 1789, se desvaneceu, estes princípios consistiram, em que, sem prejuízo da sua integração política no Estado Português, sem prejuízo, portanto, da unidade nacional, o especial condicionalismo de cada um dos territórios ultramarinos impõe o reconhecimento deles como entidades, não apenas autárquicas, mas também autónomas - autónomas no sentido de que, através de órgãos locais, mais ou menos representativos, (terem intervir, não apenas na execução das leis emanadas de Lisboa e no desempenho das tarefas administrativas de interesse próprio, mas na própria feitura de uma legislação local especial, fora do que se pode chamar o "domínio reservado" do Estado.
Inscrever na Constituição as normas que dêem expressão de maior autenticidade a participação das gentes e dos interesses sociais ultramarinos na definição do direito relativo àquelas matérias que não são "reserva do Estado", não é, salvo melhor parecer, aferir as portas ao desmembramento deste é o consequente ruína da unidade nacional: é promover, nos nossos tempos, esta unidade, na única forma em que ela pode e em que ela, portanto, deve ser mantida.
Aliás, a proposta institui ou prevê todo um sistema de frenagem de tendências centrífugas que porventura se gerassem, sistema praticamente idêntico ao já. hoje existente, o qual se destina a funcionar tanto em relação ao legislador local como à própria administração e função executiva de cada território.
Isto significa que a proposta (r)e inspira, em duas ideias complementares e de nenhum modo contraditórias: a de que ó devido reconhecer as províncias ultramarinas como entidades com a sua personalidade e portanto com a sua descentralização administrativa e a sua autonomia legislativa; e a de que ó também necessário preservar, por instrumentos de centralização e de "reserva do Estado", a unidade nacional e a solidariedade entre todas as parcelas da Nação Portuguesa.
É precisa uma combinação sábia e feliz entre a descentralização e a autonomia, de um lado, e a centralização integrativa, do outro. A fórmula há-de ser esta: deve haver toda a descentralização e autonomia possíveis, dentro da integração política e da unidade nacional necessárias.
Em geral, a proposta corresponde a esta preocupação - e, assim, não infringe os princípios originariamente perfilhados na decisão constituinte de 1933: o que procura é dar-lhes uma explicitação mais adequada e desenvolvê-los até onde a sageza política o consente e recomenda.

8. Não seria justo deixar de acentuar neste momento o significado que assume o desígnio, expresso na sua proposta pelo Governo, de se dar tradução mais perfeita à ideia, que já teve qualquer revelação, ainda que imperfeita e inacabada, em 1951, de uma unificação do direito constitucional do Estado Português - unificação que terá agora lugar no plano substancial das declarações de princípios, e não apenas num plano formal ou sistemático. Não é, infelizmente, viável dar completo seguimento a esta directriz, com que o Governo seguramente quis exprimir, por mais uma forma, a unidade política da Nação organizada em Estado, um único Estado. A integração constitucional, traduzida ou explicitada em todas e cada uma das normas do texto da lei fundamental, significa de per si e visa significar, realmente, a unidade nacional, a todas as luzes. Na medida em que nos aproximamos deste ideal, servimos e proclamamos a unidade política da Nação. 0 limite nesta direcção será constituído apenas pelas realidades insuprimíveis. Os textos constitucionais assimilacionistas ignoraram no passado este limite e quiseram forçar estas realidades.
Saudemos, portanto, a louvável intenção do Governo, que e, seguramente, repete-se, sublinhar, por mais esta forma, a substancial unidade política da Nação.

9. Considera-se de grande relevo técnico e teórico, mas de somenos alcance político e prático, o conjunto das modificações e aclarações que na proposta se inscrevem, respeitantes às relações internacionais do Estado Português. De qualquer modo, elas não contendem com a orientação inicialmente perfilhada na lei fundamental, relativamente às relações entre o nosso país e a comunidade internacional e às relações entre o direito das gentes e o direito interno português. Do que se trata neste momento é simplesmente de aperfeiçoar um sistema que já nos não coloca mal em relação aos que são perfilhados no direito constitucional de outros Estados.

10. Julga-se, portanto, que a proposta de lei do Governo não importa nenhuma quebra no regime constitucional estabelecido e nas instituições ideadas, vão decorridos quase quarenta anos, e à sombra dos quais o País tem vivido em paz social, em ordem, e tem percorrido os caminhos do seu desenvolvimento, preservando os valores considerados fundamentais da civilização cristã ocidental. A esse regime a proposta mantém-no. Há continuidade. Os tempos e as circunstâncias requerem entretanto adaptações e aperfeiçoamentos, em ordem a que esses valores fundamentais, designadamente os da pessoa humana e da sua dignidade, sejam defendidos e realizados tão completamente quanto possível. É o objectivo da proposta de lei. Há renovação. Renovação na continuidade.

11. Pouco tempo antes do termo da sua carreira política, Oliveira Salazar, o homem cujo pensamento se inscreveu desde início na Constituição, disse que as presentes instituições políticas asseguraram a paz e a esta-

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bilidade internas, o progresso e o prestígio da Nação. Mas acrescentou, com a sua costumada sabedoria: "No decurso deste período (dos últimos quase quarenta anos), têm as instituições sofrido já alterações e aperfeiçoamentos vários. Não há nada de imutável, e por isso é natural que continuem a ser melhoradas consoante as necessidades que forem surgindo. Não vejo que isso deva ser motivo de estranheza". Ponto, acrescentou em substância, é que o povo português saiba introduzir nas suas instituições, que se revelaram válidas e eficientes, as alterações e emendas necessárias, "na serenidade do seu julgamento e consoante as suas próprias exigências" (Entrevistas, 1960-1966, Coimbra, 1967, p. 206).
Crê-se que esta directriz fundamental é observada na proposta que o Governo recomenda à consideração da Assembleia Nacional. E, assim, por tudo quanto vem de expor, dá-lhe a Câmara Corporativa a sua aprovação na generalidade.

II

Exame na especialidade

Artigo 1.° da proposta

12. Este artigo limita-se a fazer menção das disposições da Constituição objecto de revisão e a indicar a numeração que se pretende venham a ter.
Não há objecções à redacção do primeiro dos dois únicos artigos da proposta de lei.
O presente parecer vai agora incidir, justamente, sobre cada um dos preceitos da Constituição que são objecto desta proposta.

Artigo 2.°, § 2.°

13. Afigura-se que o intuito primordial da modificação sugerida terá sido o de eliminar a referência nominativa que no texto em vigor se faz ao Ministro do Ultramar, quando é certo que a. proposta se orienta no sentido de se prescindir de todas as alusões desse tipo, substituindo-as, quando necessário, pela menção, pura e simples, do Governo, sem qualquer especificação, a qual ficaria a constituir um obstáculo a alterações que, pela via da lei ordinária, se podem tornar necessárias em matéria de competência. E nem sequer é necessário dizer Governo Português, porque quando na Constituição se fala em Governo, sem especificação, sabe-se, sem dúvida possível, que se trata, e se trata apenas, do Governo Português.
A Câmara não tem reservas a fazer a esta alteração.
Entendeu o Governo que, uma vez que esta modificação se impunha e, assim, havia que tocar na redacção deste parágrafo, seria a altura de a aperfeiçoar, tornando-a tecnicamente mais rigorosa.
Nesta ordem de ideias, vem proposto que, em vez de se dizer que as aquisições de terrenos e edifícios são feitas por governo estrangeiro, se diga que o são por Estado estrangeiro. Na verdade, quem é parte no negócio em causa é uma pessoa colectiva - um Estado -, e não um órgão dessa pessoa colectiva, um governo. Já a Substituição da expressão para instalação de representação consular pela que vem sugerida na proposta (para representação consular) não encontra justificação que não seja, talvez, de ordem eufónica. A Câmara reputa preferível, em todo o caso, a. redacção actual do preceito, neste ponto.
E, já que se está cuidando de aperfeiçoamentos de redacção, talvez não seja desaconselhável substituir territórios ultramarinos por provindas ultramarinas.
Deste modo, indica-se como preferível a redacção seguinte:

Nas províncias ultramarinas, a aquisição por Estado estrangeiro de terreno ou edifício para instalação de representação consular será condicionada pela anuência do Governo à escolha do respectivo local.

Artigo 4.° (corpo do artigo)

14. O vigente artigo 4.° da Constituição começa por declarar que a Nação Portuguesa é um Estado independente, o que quer dizer, em resumo, que é um Estado que conduz sem ingerência alheada os seus negócios internos e externos. Não vem sugerida, nem se conceberia que viesse, qualquer modificação ao preceito, neste ponto.
Na sua forma actual, o artigo acrescenta que a soberania (da Nação Portuguesa, constituída em Estado) "só reconhece como limites, na ordem interna, a moral e o direito". E propõe-se agora que esta formulação seja substituída por outra em que se faz a afirmação, em primeiro lugar, de que a soberania é una e indivisível, e, em segundo lugar, que só reconhece como limites a moral e o direito, sem distinção entre a ordem interna e a internacional, uma vez que a referência exclusiva à ordem interna desaparece no texto agora proposto.
A tese de que a soberania nacional é una e indivisível vem directamente de Rousseau (Contrai Social, liv. II, cap. II) e passou dele para os textos constitucionais da época revolucionária, juntamente com a afirmação de que é inalienável e imprescritível.
Com dizer que a soberania é una e indivisível, pretendeu Rousseau significar que a vontade geral (correspondente à soberania, uma vez que a soberania não é senão o exercício da vontade geral) é necessariamente a vontade de todo o povo, du corps du peuple, e não de uma parte dele; só essa vontade faz a lei. O corpo político que é a Nação, como ser moral e colectivo, é soberano - e só pode ter uma vontade. Expressão ou representação da soberania, essa vontade geral é, como a própria soberania, una e indivisível.
Uma tal afirmação deixou de figurar, nos textos constitucionais franceses, depois da Constituição do Ano m (1705), passada que foi a fase em que se julgavam indispensáveis as grandes declarações de princípios e dogmas revolucionários. Por sua vez, nas nossas leis fundamentais nunca se sentiu necessidade de inserir uma afirmação daquele ou de semelhante teor.
Colhe-se a impressão de que se sentiu agora a necessidade de incluir neste lugar da Constituição a clara declaração em análise, com vista a que se desvaneçam possíveis dúvidas sobre o exacto alcance constitucional de certas alterações, que igualmente vêm propostas, quanto ao estatuto das províncias ultramarinas. Será obrigatório, com efeito, tirar-se da afirmação de que a soberania da Nação Portuguesa (ou do Estado Português, como se queira) é una e indivisível a conclusão de que não há, mesmo só em germe, em comunidades menores dentro do corpo político da Nação, qualquer poder supremo de decisão. Esse poder pertence apenas à Nação no seu conjunto - e é, neste sentido, uno e indivisível.
Com este alcance, visando tal objectivo, não só não repugna à Câmara que a declaração em apreço fique a constar do corpo do artigo 4.°, como, inclusive, considera ela muito oportuno que assim aconteça.
Quanto à outra alteração proposta, segundo a qual a soberania tout court e portanto a própria soberania externa se considerará limitada, tanto como a interna, pela moral e pelo direito, julga-se não ser viável dirigir-lhe qualquer séria objecção, até porque, em rigor, não se

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trata de outra coisa senão de dizer numa fórmula mais sintética o que já hoje se encontra dito ou subentendido na segunda parte do vigente artigo 4.°
Crê-se - encurtando razões - que o sentido útil deste inciso é evidenciar que os órgãos da soberania, no exercício desta, devem proceder em termos de não infringir as normas fundamentais da moral cristã, relativa às relações entre o Poder e os súbditos e entre potestades soberanas; e bem assim as do direito natural, entendido este como o vêm concebendo os jusnaturalistas católicos.
Há todo um conjunto de preceitos e directrizes ético-religiosas e ético-jurídicas que têm os órgãos da soberania, os poderes do Estado, como destinatários, quando estes actuam, seja no âmbito da ordem jurídica interna, seja no âmbito das relações internacionais. Por força de uma locução como aquela de que se está fazendo sintética comentário, constitui limite à actuação discricionária os órgãos da soberania, além dos preceitos da constituição escrita, explicitados em regras melhor ou pior formuladas, um certo número de princípios não escritos, um certo número de "princípios gerais de direito constitucional" a que o legislador constituinte se não considerou capaz de dar a devida expressão formal. As constituições não têm, ao menos não têm hoje em dia, um carácter estritamente positivo; são de preferência um simples instrumento de moralização do poder. Devem entender-se fundamentalmente como descrevendo um ideal de vida comunitária, proclamando os princípios fundamentais da ética nacional e internacional 1, pelo que bem se compreende que, em vez de ser ambicioso na pormenorização técnica de uma regulamentação positiva da acção do Estado, o legislador constituinte se contente com devoluções para os domínios normativos que, com um mínimo de precisão, incorporem esses princípios fundamentais.
Ora, entre as normas de direito natural ou, se se quiser, entre os princípios gerais de direito constitucional, respeitantes às relações internacionais, estão os seguintes: pacta sunt servanda e consuetudo est servanda; e deles resulta, portanto, que o Estado Português deve, nas suas relações internacionais, submeter-se ao direito internacional, tanto ao pactício como ao consuetudinário, como o texto actual explicitamente se diz.
Quanto ao dever de cooperar com outros Estados na preparação e adopção de soluções que interessem à paz entre os povos e ao progresso da Humanidade, trata-se, na realidade, de um imperativo da moral cristã.
Julga-se, assim, que a especialização que sobre a vinculação da soberania externa portuguesa por normas deste tipo é feita no vigente corpo do artigo 4.° e no texto do § 2.° deste artigo, agora proposto, è (c)m rigor dispensável. Entretanto veja-se o que, em comentário à redacção de tal • 2.°, adiante se dirá.

Artigo 4.°, § 1.º

15. Um primeiro reparo se impõe fazer ao parágrafo proposto, agora em apreço, que ó o seguinte: nada se diz neste preceito sobre como se passam as coisas quando é o direito internacional comum ou geral (direito consuetudinário internacional e princípios gerais de direito reconhecidos pelas nações civilizadas) a vincular o Estado Português, a impor-lhe que se conforme, na sua ordem interna, às obrigações que desse direito constam.
Entende esta Câmara que, uma vez que o problema dos processos ou dos meios segundo os quais ao Estado cabe dar execução às normas de direito internacional é abordado pela Constituição, convirá encarar também aquele outro aspecto desse problema, consagrando-se explicitamente o sistema mais geralmente seguido, a este respeito, nos ordenamentos constitucionais ou, de qualquer modo, normalmente observado pelos tribunais internos. Refere-se a Câmara ao sistema da adopção automática global em direito nacional das normas de direito internacional comum, segundo o qual a integração destas normas no direito interno se faz independentemente da incorporação dele por um acto estadual criador de normas correspondentes ao conteúdo preceptivo desse direito. Mas, na esteira do que se verifica ser prática constante dos tribunais da maioria dos Estados, deve ficar esclarecido que o sistema da recepção automática e directa só funciona em relação às normas de direito internacional geral (ou geralmente reconhecido) a que Portugal tenha dado adesão, expressa ou tácita. Desta sorte, será inquestionável que em direito interno não valerão aquelas normas de direito internacional geral cuja aplicabilidade seja afastada por um preceito de direito interno em contrário, não se afigurando, portanto, aconselhável seguir, no nosso direito, a directriz perfilhada em certos outros, de acordo com a qual o direito internacional geralmente aceite tem sempre supremacia sobre as normas contrárias de direito interno. Julga-se, nestes tempos que vão propícios à criação de costumes internacionais contrários aos interesses das pequenas potências ou de algumas delas e até contrários à sua expressa vontade, que não é a altura de se perfilhar, no plano constitucional, um sistema segundo o qual o direito internacional comum tem superioridade, pro foro interno, sobre o direito nacional. Seria pagar um tributo a uma concepção internacionalizante, que nada nos obriga a satisfazer de pronto. Fiquemo-nos pela consagração explícita do velho princípio blackstoneano "international law is part of the law of the land", com o significado que tanto os tribunais ingleses como a generalidade dos restantes lhe vem dando - e que é aquele que acaba de ser fixado.

16. Se não se pronunciou sobre a forma de dar cumprimento na ordem interna ao direito internacional geral, a proposta toma partido quanto ao mesmo problema em relação ao direito internacional convencional ou particular.
A este respeito, convém salientar, preliminarmente, que o direito internacional não contém disposições que imponham um certo processo ou uma certa técnica sobre a incorporação dos tratados na ordem jurídica interna, exactamente como também sucede com o direito internacional geral. Os Estados apenas estão internacionalmente obrigados a introduzir ou receber na sua ordem jurídica própria as normas do direito internacional pactício, destinadas a serem aí incorporadas.
Costuma dizer-se, para exprimir incisivamente esta ideia, que o Estado está submetido a uma obrigação de resultado e não a uma obrigação de meios.
É assim que o legislador constituinte tanto pode prescrever que as estipulações dos tratados só serão recebidas na ordem estadual por meio de um acto específico de direito interno (sistema da recepção especial, individual, individualizada, formal ou específica, também chamado sistema da transformação), o qual tanto pode ser um acto normativo interno (sistema da transformação explícita) como a lei de aprovação desse tratado (sistema da transformação implícita), como pode dispor que os tratados em que o Estado seja parte penetram na sua ordem jurídica pelo simples facto da sua entrada em vigor na ordem jurídica internacional, em seguida à observância de um

1 Cf. P. de Visscher, "Les tendances internationales des constitutions modernes", in Recueil des Cours, Académie de Droit Internationale de la Hahie, I, 1952, p. 516.

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certo processo, clássico ou simplificado, contanto que sejam publicados na colectânea oficial da legislação interna (sistema da integração automática).
O primeiro sistema (sistema da recepção especial) destinou-se a assegurar a participação do "poder legislativo" na criação de leis materiais editadas sob a forma de tratados. Dispondo, geralmente numa lei com um único artigo, que certo tratado sobre matéria legislativa pode ser ratificado ou se execute, o parlamento expressa a sua vontade de dar às normas do tratado "força de lei". Assim se salvaguardaria todo o alcance do princípio da separação dos poderes.
O segundo sistema (sistema da integração automática), porém, não prejudica o interesse público que possa haver em que o poder legislativo intervenha substancialmente a dar o seu acordo às normas dos tratados que tenham natureza de leis materiais. Num sistema constitucional com separação dos poderes, a ratificação dos tratados deste género segue-se à aprovação deles pelo parlamento, e, portanto, este tem sempre ocasião de se pronunciar sobre a conveniência da incorporação das suas normas no direito nacional, incorporação que ele pode vetar, justamente na medida em que lhe ó possível não aprovar esses tratados para ratificação.
Num sistema constitucional como o nosso, o processo de recepção específica não teria, por outro lado, justificação em relação aos tratados que fossem objecto de aprovação do Governo e não da Assembleia Nacional, visto não existir entre estes dois órgãos, no que respeita à generalidade da função legislativa, uma autêntica separação. Parece, pois, que a ratificação deles, em seguida a tal aprovação, deve bastar como expressão da vontade do Estado de incorporar no direito interno o seu conteúdo.
Num e noutro caso (isto é, haja o tratado sido aprovado pela Assembleia Nacional ou haja sido aprovado pelo Governo), será sempre necessário, para que ele se torne obrigatório na ordem jurídica interna, que o acto da ratificação seja, como se disse, seguido pela verificação de uma condição suspensiva, que é a publicação do tratado na colectânea oficial da legislação. Sem isso, no nosso direito, o tratado não se poderá aplicar no âmbito do direito interno.
Questão diversa da anterior é a de saber se, uma vez entrado automaticamente a fazer parte da ordem jurídica interna, em consequência da perfeição das condições para que ele obrigue internacionalmente, acrescentadas da publicação, um tratado se torna logo aplicável pelos tribunais e demais órgãos estaduais internos.
É que os tratados estão por vezes nas condições de certas leis internas: contêm apenas bases gerais, carecidas da indispensável ou conveniente pormenorizaçao dos regimes jurídicos que estabelecem. Tal como sucede com essas leis, não são self executing e precisam, para serem aplicáveis aos seus destinatários, de outras normas complementares, digamos: de uma segunda legislação - essa, por sua vez, exclusivamente, a domestic legislation: Impõe-se sempre a interpretação dos tratados automaticamente recebidos em ordem a concluir se, sim ou não, as Partes contratantes quiseram que esses tratados fossem logo, directamente e sem uma segunda "legislação", aplicáveis na ordem interna, pelos tribunais e outros destinatários.
Quanto à posição assumida neste capítulo pelo nosso actual direito, deve assinalar-se que não é fácil aceitar que ele consagra o sistema da transformação implícita, particularmente porque, como lembra o Prof. André Gonçalves Pereira, a aprovação parlamentar não reveste a forma de lei: reveste a de resolução (Constituição, artigo 91.°, n.° 7.°); e a aprovação por parte do Governo não tem, constitucionalmente, de revestir a forma de decreto-lei (Constituição, artigo 109.°, n.° 2.°) 2. E parece, por outro lado, que não é rigorosamente viável extrair de quaisquer passos do texto constitucional em vigor a conclusão de que nele se haja tomado posição ao menos deliberada ou consciente, entre o sistema & transformação explicita e o sistema da recepção automática, plena ou parcial. Na prática constitucional e na jurisprudência tem havido diferentes interpretações enquanto, por sua vez, a doutrina portuguesa se encontra também dividida a este respeito 3.
Parece, pois, ser a actual uma boa oportunidade paia como vem sendo requerido, se acabar de vez com dúvidas a este propósito.
No texto proposto pelo Governo, consagra-se o sistema da transformação implícita, na medida em que dele se depreende que o direito internacional pactício vigorará na ordem interna após resolução de aprovação dos tratados pela Assembleia Nacional ou pelo Governo, e a devida publicação do seu articulado.
Não repugnaria a consagração deste sistema se com ele se cobrissem todas as hipóteses que se nos apresentam. O certo, porém, é que assim não sucede, uma vez que há acordos em forma simplificada que, nos termos da constituição efectiva ou viva, não carecem de aprovação da Assembleia Nacional nem do Governo, entrando em vigor na ordem internacional logo após a assinatura.
Parece, portanto, preferível, que mais não seja para fugir a esta dificuldade, consagrar-se o sistema da recepção automática, em cujos termos os tratados (em sentido lato) vigoram na ordem interna a partir do momento em que, tendo entrado em vigor na ordem internacional, hajam sido publicados na colectânea ou colectâneas oficiais da legislação interna portuguesa (Diário do Governo e Boletins Oficiais, conforme os casos).
Deixará, assim, de haver dúvidas sobre o alcance de certos preceitos que se referem à aplicabilidade na ordem jurídica interna de preceitos de direito internacional, como seja o artigo 49.°, § 1.°, da Constituição: serão puras traduções singulares do preceito ou cláusula de recepção automática plena, consagrado no novo parágrafo do artigo 4.°
As normas recebidas na ordem jurídica interna portuguesa terão uma eficácia supra legal, mas não supra constitucional. Os preceitos legais incompatíveis com as convenções não serão eficazes (cf. Miguel Galvão Teles, Eficácia dos Tratados na Ordem Interna Portuguesa, 1967, pp. 83 a 111).

17. Em conclusão, o § 1.° do artigo 4.º poderia ter a seguinte redacção:

As normas de direito internacional geral vigoram na ordem interna desde que não haja preceito contrário de direito nacional ou desde que os órgãos o agentes do Estado Português tenham concorrido, com os seus actos ou omissões, para a respectiva formação; por seu turno, as normas constantes de tratados e acordos vinculativos do Estado Português vigoram na mesma ordem interna desde que produzam os seus efeitos na ordem internacional e hajam sido devidamente publicadas em Portugal.

2 V., por último, a este respeito, deste autor, Curso de Direito Internacional Público, 2.ª ed., pp. 103 e segs.
3 Cf. obra e autor citados, pp. 87 e segs., e bibliografia aí mencionada.

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Artigo 4.°, § 2.°

18. Já se disse atrás, com referência à redacção proposta pelo Governo para o corpo do artigo 4.°, que não é, rigorosamente, necessário afirmar-se senão que a externa do Estado Português, tal como a sua interna, se encontra limitada pela moral e pelo direito, uma vez que, conforme se esclareceu, entre os do direito natural referentes à comunidade internacional estão as normas pacta sunt servanda e consuetudo est servanda, e que a própria moral cristã impõe ao Estado Português que coopere com outros Estados na preparação e adopção de soluções que interessem à paz entre os povos e ao progresso da humanidade.
Parece que esta última declaração é, em estritas contas, desnecessária, ante o facto de ficar agora explicitado que a soberania do Estado Português se considera, tanto no âmbito das relações internas como no âmbito das relações internacionais, subordinada à moral e ao direito (natural). Aliás um autor tão autorizado como P. de Visscher considera destituídas de todo o interesse e inteiramente supérfluas declarações deste tipo 4.
Rigorosamente, a própria declaração de que o Estado Português preconiza a arbitragem como meio de dirimir os litígios internacionais seria dispensável pela mesma razão, uma vez que se trata de uma simples directriz de ordem ética, que nada de especial acrescenta à afirmação geral de que a soberania do Estado Português reconhece (na ordem externa) as limitações impostas pela moral e pelo direito (natural).
Simplesmente, tais declarações já vêm de trás (a última vem da Constituição de 1911, artigo 73.°) e talvez que fosse mal interpretada a formal eliminação de tais cânones específicos, respeitantes às relações externas do Estado Português.
Assim, inclina-se a Câmara para a sua sobrevivência. Como entretanto se trata de matéria que representa uma simples especificação do que fica afirmado no corpo do artigo 4.°, sugere-se que o § 2.°, limitado a esta afirmação, surja como § 1.°, enquanto o § 1.° passará a § 2.°

Artigo 5.° (corpo do artigo)

19. O Estado unitário é compatível com uma certa descentralização da função legislativa, que pode caber em parte a órgãos electivos de comunidades territoriais mais ou menos amplas, e, inclusive, com órgãos executivos locais, eleitos pelos referidos órgãos legislativos ou pelo povo, directamente. Para se falar em uma tal "forma de Estado", não é, portanto, necessário pensar em que todas as funções estaduais sejam exercidas por órgãos centrais do ente público máximo, por órgãos do Estado, em suma, ou por eles e por órgãos subalternos locais, em favor de quem se opere uma desconcentrarão de funções. A descentralização administrativa e a própria descentralização legislativa (especialmente se a sanção das leis pertencer a um órgão central ou a um local subalterno ou agente daquele) são geralmente consideradas compatíveis com o princípio da unidade política do Estado. Um direito de legislação e administração autónomas, em domínios circunscritos pela Constituição do Estado, não contradiz a unidade deste. Em tais casos, as leis com esta origem descentralizada são leis do Estado de que faz parte a comunidade descentralizada.
O Estado só assume a forma de Estado composto na fedida em que a certas comunidades territoriais sejam conferidos ou reconhecidos poderes constituintes, dentro dos limites fixados na constituição do Estado. E esta autonomia constitucional das comunidades territoriais que faz delas "Estados membros" de um Estado composto (Estado federativo), e distingue este de um Estado unitário relativamente descentralizado no plano legislativo e no plano executivo. As comunidades territoriais personalizadas, quando dotadas de competência legislativa e administrativa própria, a exercer por órgãos próprios, não são Estados (Estados membros de um Estado federativo): são "regiões" ou "províncias", integradas num Estado unitário. A sua constituição é a constituição do Estado como um todo, como uma unidade, não a constituição de uma parcela territorial e populacional autónoma desse Estado. A competência constitucional, o poder constituinte, em suma, está inteiramente centralizado nas mãos de um órgão (o monarca), nas mãos de uma única assembleia constituinte ou directamente nas mãos de toda a população do Estado - de toda a Nação. Não há aqui nenhum dualismo constitucional, antes simples monismo - e é por isso que as "regiões" ou "províncias" não quebram a unidade política do Estado, que continua unitário, enquanto os Estados membros de um Estado federativo implicam com a sua unidade e fazem dele, neste sentido, um Estado composto. No Estado composto, os Estados membros têm, cada um deles, a sua própria constituição, que repousa sobre o seu próprio poder e vontade, sobre a sua própria soberania, embora limitada pela constituição federal. Os Estados membros ou federados têm poderes constituintes próprios, se bem que restritos - circunstância que legitima que deles se fale como de "Estados". Este poder de auto-organização constitucional, ainda que limitado pela constituição do Estado federal, é o sinal da estadualidade, um sinal que não existe nas "províncias" ou "regiões", as quais não possuem, na verdade, um poder próprio desta ordem, numa esfera própria: a sua organização vem-lhes do Estado, como lei deste Estado. Um Estado membro de um Estado federativo, auto-organizando-se constitucionalmente, institui os seus órgãos próprios, competentes para realizar funções estaduais, no seu domínio e extensão particulares: órgãos legislativos, órgãos administrativos e órgãos jurisdicionais próprios 5.

20. Não está prevista competência para as regiões autónomas, de que ora se fala, se darem a si próprias, desde já ou no futuro, constituições particulares.
As únicas regiões autónomas que na proposta se individualizam são as províncias ultramarinas (se bem que nada se oponha a que outras comunidades territoriais assim venham a ser consideradas, em legislação ordinária - por exemplo, os distritos autónomos das ilhas adjacentes, aos quais falta, hoje em dia, para o serem, competência legislativa propriamente dita).
Ora, se é certo que na redacção proposta para os artigos 133.° e 134.° da Constituição se prevê que as províncias ultramarinas terão estatutos próprios como regiões autónomas, em que se estabelecerá a organização política e administrativa adequada à sua situação geográfica e às condições do seu desenvolvimento, certo é também que

1 Cf. ob. cit., pp. 518 e segs.
5 Os pontos de vista expressos reconduzem-se, fundamentalmente, aos de J. Jellinek, Allgemeine Staatslehre, 2.ª ed., pp. 475 e segs., e ed. francesa, II, pp. 147 e segs; e de Carro de Malberg, Téorie Générale de l'État, I, pp. 174 e segs. Ver, por último, com maior rigor, entre outros, H. Kalsen, General Theory of law and State, 1949, pp. 316 o segs. Ver também Prof. Marcello Caetano, Manual de Ciência Política e Direito Constitucional, 6.ª ed., I, pp. 133 e segs.; e Pietro Virga, Diritto Constituzionale, 6.ª ed., 1967, pp. 399 e segs., entre muitos outros.

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no artigo seguinte (em que se define o âmbito da autonomia das regiões) se não prevê que as províncias ultramarinas tenham qualquer parcela de poder constituinte próprio, no exercício do qual possam auto-organizar-se constitucionalmente, nos limites fixados pela Constituição Política da República Portuguesa. Conclui-se que os referidos estatutos constituirão diplomas legislativos ordinários. Apenas se não pode concluir, com segurança, da presente proposta se tais estatutos serão objecto de legislação emanada de órgãos legislativos centrais ou de legislação proveniente de órgãos legislativos locais. Mas sobre este ponto se dirá adiante, no lugar adequado.
As regiões autónomas não terão, tanto quanto se pode depreender da proposta de alterações em apreço, um poder legislativo próprio, ou seja, apodado num estatuto constitucional elaborado por cada uma delas ou para cada uma delas concedido, expressão desde logo de uma decisão independente, soberana, sobre a sua existência política; a função legislativa que lhes cabe tem como exclusivo apoio a Constituição Política da República Portuguesa, a Constituição do Estado Português, a qual prevê, ela própria, que certos órgãos das províncias legislem sobre determinadas matérias. Esta competência não é, pois, delegada a esses órgãos por uma comunidade local soberana, não lhes é conferida pela comunidade provincial ou regional, mas pela própria Nação no seu conjunto, na medida em que é esta, e só esta, que estabelece as normas constitucionais que fixam semelhante competência. Noutras palavras, estamos perante uma hipótese de legislação descentralizada ou de descentralização legislativa - e não perante uma hipótese de legislação estadual.
E o que se diz da legislação diz-se da administração. Os órgãos executivos das províncias ultramarinas terão poderes administrativos que se apoiarão, não em lei constitucional própria de cada uma delas, mas na Constituição do Estado Português. As províncias são, neste domínio, inquestionavelmente, simples autarquias (administrativas) territoriais, simples pessoas administrativas descentralizadas.
Em parte nenhuma da Constituição tem estado ou (nos termos da proposto.) passará a estar prevista, por outro lado, a existência de tribunais próprios de cada província ultramarina, para fundar os quais seria também necessário que à população de cada uma delas fosse consentido elaborar uma constituição e que nesta uma própria ordem judiciária (um "poder judicial" autónomo) fosse instituída. Não ha nas províncias ultramarinas outros tribunais senão aqueles cuja criação é prevista na Constituição Política da República Portuguesa para todo o território nacional, providos por juizes naturais de qualquer parte deste território e não apenas do território da província respectiva.
Acresce a tudo isto que as províncias ultramarinas não poderão manter relações diplomáticas ou consulares com países estrangeiros, nem com. Estados estrangeiros poderão concluir convenções internacionais - o que significa que não serão dotadas de soberania externa, mesmo só limitada -, facto que importa igualmente não poderem ser consideradas unidades políticas soberanas, não poderem, em suma, ser consideradas Estados "em formação" e muito menos "Estados" federados.
É, assim, legítimo concluir, desde já, que é exacto continuar a considerar o Estado Português como um Estado unitário, como se diz no corpo do artigo 5.°, na redacção proposta, e que "o exercício da autonomia das províncias ultramarinas", especificamente e desde já consideradas regiões autónomas, "não afectará a unidade da Nação Portuguesa nem a integridade da soberania do Estado", como se diz no proposto artigo 136.°, soberania que, por seu turno, como se afirma no já analisado corpo do artigo 4.°, é, e continua a ser, "una e indivisível".
Verifica-se, em resumo, que na proposta de lei em análise não houve o (propósito e de qualquer modo não expressou o pensamento de nos afastarmos, por pouco que seja, da tradicional forma unitária do Estado Português, do sistema de um Estado política ou constitucionalmente integrado. A descentralização legislativa regional não afecta esta unidade. Já Marnoco e Sousa chamou no seu tempo a atenção para que "o Estado unitário não envolve necessariamente o governo uniforme e centralizado, e por isso um Estado não deixa de ser unitário ou simples pelo facto de reconhecer uma autonomia maior ou menor às circunscrições administrativas".
Num país como o nosso, cujo território é repartido por vários continentes, os factores geográficos impõem a regionalização do Estado. A especificidade de tantas parcelas da Nação Portuguesa no plano étnico, social, cultural e económico concorre no mesmo sentido e desaconselha a centralização. Aliás, essas parcelas têm necessidades que são mais particularmente sentidas pelos cidadãos aí nascidos, aí residentes ou aí de qualquer modo radicados - e essa circunstância justifica que, confiando no natural interesse deles pelos seus problemas específicos, uma vez que formam uma comunidade cujos membros se sentem solidários uns em relação aos outros, o legislador admita a participação desses cidadãos na obra comum da satisfação dessas necessidades. A regionalização não é outra coisa senão a descentralização levada para quadros territoriais e pessoais mais amplos do que aqueles em que tradicional e preferentemente tem sido utilizada. Inclusive no país clássico da centralização, na França, está na ordem do dia o problema da regionalização - e talvez isso suceda, precisamente, por ela ter pago o maior tributo às formas napoleónicas da organização administrativa. "En France, ce besoin de décentralisation est plus profond qu'ailleurs à cause des excès du système administratif traditionnel." 6 E, como um excesso eucarreta outro, não está faltando aí quem, como o secretário-geral do partido radical, Jean-Jacques Servan-Schreiber, proponha um regionalismo que praticamente se traduz na supressão do próprio Estado - o grande obstáculo de hoje em dia, em seu parecer, para a construção de uma federação europeia: o poder político passaria do nível da nação para o das regiões e seriam estas que se federariam na Europa. Na orientação da doutrina oficial, exposta pelos Presidentes Pompidou e Chaban-Delmas, a região confinar-se-á, porém, a tarefas administrativas de índole particularmente económica, insusceptíveis de serem resolvidas no quadro restrito das comunidades e divisões administrativas tradicionais.
As regiões autónomas, de que se fala no corpo do artigo 5.°, substancialmente já existem, no direito português vigente, como vêm existindo, designadamente desde o século passado 7, avant la lettre. Como quer que se tenham designado, as províncias ultramarinas vêm sendo persistentemente qualificadas como entidades descentralizadas em relação ao Estado, dotadas de competência própria, não apenas de competência executiva, mas também de competência legislativa, a exercer ora por órgãos electivos,

6 Cf. Maurice Duverger, "La Dócentralisation, I. Du pouvoir regional", em Le Monde, 15 de Dezembro de 1970.
7 Exactamente, desde 1838. A Constituição de 1838 admitiu, excepcionalmente, a competência legislativa dos governadores-gerais das províncias ultramarinas. Recorde-se, entretanto, que já por Carta Régia de 9 de Abril de 1778 se instituiu o Conselho Legislativo do Estado da índia, com competência para alterar, embora só a título provisório, as leis em vigor.

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com a sanção de um agente representante do governo central, ora por este mesmo agente governamental. Não é, pois, de recear que o simples facto de agora se falar expressamente nelas promova ou acelere tendências centrifugas e constituía de per si perigo para a unidade nacional 8.

21. Quanto à redacção proposta para o corpo do artigo 5.°, há que chamar a atenção para o facto de se dizer neste ponto que o Estado Português poderá compreender regiões autónomas, e se deixar assim entender que as províncias ultramarinas não são desde já consideradas regiões autónomas, ao contrário do que resulta do proposto artigo 133.°
A Câmara reputa preferível uma redacção de que resulte não ser a autonomia regional uma espécie de desconto ou reserva à unitariedade do Estado Português - e, assim, sugere a seguinte:

O Estado Português é unitário, compreendendo as regiões autónomas previstas nesta Constituição e as demais que venham a ser reconhecidas, de acordo com a sua situação geográfica e as condições do respectivo meio social.

Artigo 5.°, § 1.º

22. O corpo do artigo 5.° pretende-se agora reservá-lo acenas à declaração sobre a forma ou estrutura do Estado Português, enquanto na redacção que se pretende alterar, pelo contrário, se aludia também, além disto, à forma de governo ou forma política do Estado Português. Trata-se de uma questão puramente formal, em que não custa tomar partido pela solução que na proposta se pretende ver perfilhada.

23. É sabido que a tipologia das formas de governo só se pode adequadamente formular em correlação com as concepções gerais que na constituição se perfilham, em consequência da decisão política fundamental que lhe deu vida, sobre os princípios políticos básicos (princípios de "regime político"). E nesta lógica que na Constituição Política de 1933 se dispõe que a forma de governo do Estado Português é a República Corporativa, associando-se ao aspecto puramente organizatório e externo do "governo" uma alusão ao regime político a cujas concepções a organização política está directamente associada, a ponto de se não poder interpretar esta sem ter presentes aquelas.
Nada se pretende alterar sobre tais pontos. A forma de governo republicano mantém-se, significando isto que o "governo" cabe à generalidade da população ou a representantes seus, não havendo ninguém cujo poder de direcção política ou cujo, ofício governativo não tenha título representativo. Por outro lado, essa participação do povo no "governo" não se verifica por uma via exclusivamente individualista. Está previsto que nele participem todos os elementos estruturais da Nação e, portanto, não apenas os indivíduos, mas também as "corporações" ou sociedades primárias em que eles se integram e parcialmente se realizam. E fundamentalmente isto que se pretende significar com a declaração constitucional de que a República é corporativa.

24. Simplesmente, o corporativismo partilha com outras fórmulas ou regimes políticos, designadamente o liberal e o socialista, a devoção ao princípio da igualdade jurídica, dando, assim, à República, simples forma externa de governo, um conteúdo que a essa forma, tomada isoladamente ou em si própria, não corresponde necessariamente - já que, se lhe corresponde sempre um governo do povo, tomado colectivamente, e não de indivíduos isolados, o povo pode ser apenas uma parte da comunidade.
Não há reparos a fazer a que, em vez de se dizer que a forma de governo (expressão que, apesar de tudo, dada a sua tradição desde os clássicos do direito constitucional, se julga preferível à utilizada na proposta) consagrada ó, além do mais, baseada no livre acesso de todas as classes aos benefícios da civilização, se diga que ela se baseia no livre acesso de todos os portugueses a esses benefícios. O princípio a que se quis dar formulação é o de que o Estado deve proceder em termos de todos os cidadãos ou o maior número possível deles participarem nos benefícios do progresso material e, através deste, do progresso moral e intelectual, removendo os obstáculos de ordem material, económica e social que restringem o desenvolvimento da personalidade humana. Mas tal directriz, que exprime aliás uma das formas da igualdade jurídica (igualdade jurídica substancial), cumpre-se em relação a pessoas, a cidadãos, e não em relação a classes - um conceito dissonante, de resto, no quadro geral das concepções constitucionais vigentes.

25. O último dos princípios inscritos na proposta redacção deste § 1.° do artigo 5.° é o de que os elementos estruturais da Nação - indivíduos ou cidadãos e "corporações" - têm direito a participar, de um modo geral e na forma adequada, tanto na política como na Administração.
No texto actual do corpo do artigo 5.° menciona-se que esses elementos estruturais da Nação, além de participarem na vida administrativa, participam também na "feitura das leis". Esta última fórmula é inadequada, por insuficiente, para exprimir todo o quadro de intervenções que, constitucionalmente, a tais elementos competem na vida política nacional - pois lhes cabe, directa ou indirectamente, participar também na eleição do Presidente da República e em todas as suas atribuições políticas, na eleição da Assembleia Nacional e no desempenho da sua competência, na designação dos Procuradores à Câmara Corporativa e no exercício dos números desta, sem distinção entre os que se traduzem na colaboração na feitura das leis e os restantes, e na própria escolha do Governo e no exercício da sua actividade política. Em vez de se falar na "feitura das leis", será, portanto, mais correcto aludir à "política", à "vida política" ou ao "governo". Na proposta utiliza-se a palavra "política", que parece, na realidade, aceitável, em contraposição a "administração".
Não se descortina vantagem em qualificar como "geral e local" a administração em que os elementos estruturais da Nação são admitidos a participar. Eles participam em todas as modalidades ou tipos de administração, directa ou indirectamente - na estadual ou directa e na autárquica ou indirecta, tanto nas formas de administração geral como nas de administração especial, tanto ao nível central como ao nível local. Basta, pois, referir que participam na vida administrativa.

26. Assim, sugere-se a seguinte redacção para o parágrafo em epígrafe:

A forma de governo é a República Corporativa, baseada na igualdade dos cidadãos perante a lei, no livre acesso de todos os portugueses aos benefícios da civilização e na participação dos elementos estruturais da Nação na vida política e administrativa.

8 Para um amplo elenco dos países em que o "regionalismo" tem sido consagrado, até hoje, v., por último, Paolo Biscaretti di Ruffia, Diritto Costituzionale, 8.ª ed., 1969, pp. 657 e segs.

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Artigo 5.º, § 2.º

27. A nossa Constituição não se limita a aludir à igualdade perante a lei, ficando por esta fórmula breve. No corpo do artigo 5.°, na redacção em vigor, mencionam-se duas formas de igualdade, na medida em que aí se consagra a eliminação dos obstáculos a que todos os cidadãos ascendam aos benefícios da civilização (igualdade substancial ou material) e se dispõe que todos os elementos estruturais da Nação - a começar, naturalmente, pelos cidadãos - participem no "governo" e na administração. E mo § único, por seu turno, volve-se ao assunto, não só para dar o sentido geral do princípio da igualdade jurídica (a negação de qualquer privilégio), como também para referir uma específica aplicação de tal princípio: a igual admissibilidade ao provimento nos cargos públicos.
Ora o princípio da igualdade jurídica (que aliás se refere tanto a indivíduos com a pessoas jurídicas e mesmo a entidades desprovidas de personalidade jurídica) envolve bastante mais do que essa igualdade no direito de provimento nos cargos públicos.
Em primeiro lugar, é um princípio constitucional que se deve considerar dirigido não apenas ao legislador ordinário, mas também aos juizes e aos órgãos da Administração.
O princípio em causa, pelo que respeita aos juizes, poderia ser constitucionalmente expresso de forma específica, transportando-se para a Constituição a norma do artigo 110.° do Estatuto Judiciário, segundo a qual os juizes estão exclusivamente vinculados à lei. E de uma norma sensivelmente formulada nestes termos (artigo 101.º da Constituição Italiana) que a doutrina em Itália faz derivar a conclusão de que os juizes devem constitucionalmente obediência ao princípio da igualdade. Crê-se, porém, que a simples inclusão na Constituição do princípio da igualdade perante a lei basta para se entender que os juizes estão obrigados pelo cânone da igualdade de tratamento dos cidadãos.
No que respeita à Administração, o princípio não se encontra também especificadamente articulado na Constituição. Crê-se, entretanto, que ele resulta constitucionalmente consagrado, na medida em que seja lícito concluir que a Constituição perfilha o "princípio da legalidade da administração" (Constituição, artigo 109.°, a.° 4.°). Mas não tem seguramente tradução constitucional no que respeita ao exercício dos poderes discricionários da Administração. Em Itália, por exemplo, julgou-se oportuno incluir na Constituição o chamado "princípio da imparcialidade", para traduzir a ideia de que, no âmbito da sua liberdade, a Administração deve decidir em obediência ao cânone da igualdade dos administrados (artigo 97.°).
O nosso legislador constituinte teve em vista, ao dispor sobre a igualdade jurídica, sobretudo, quando não exclusivamente, formular uma directriz endereçada ao legislador. E este, aliás, o sentido tradicional das declarações constitucionais na matéria: desejou-se especialmente que o legislador ordinário tivesse em conta que se encontravam abolidos os antigos privilégios de nascimento e de sexo.
Isto significa que os órgãos constitucionalmente competentes não podem legislar discriminativamente, tendo em mente consagrar ou manter privilégios injustificados à luz da filosofia social consagrada na Constituição. A nota fundamental e sobre todas significativa do preceito do § único do artigo 5.°, em vigor, e do proposto § 2.° deste artigo, é, assim, aquela que se exprime na negação de qualquer privilégio. E esta norma que o legislador deve ter sempre presente; e é nesta norma, por outro lado, que o intérprete deve permanentemente atentar, ao reconstituir o pensamento das leis ordinárias.

28. Pretende-se na proposta que a enumeração dos privilégios negados seja agora diferente da que vinha estabelecida, desde início, na Constituição. No texto em vigor exclui-se qualquer privilégio de nascimento, nobreza título nobiliárquico, sexo ou condição social; no texto proposto enumeram-se, para os arredar, os privilégios de nascimento, raça, sexo ou condição social.
No direito constitucional comparado, a lista dos privilégios que o legislador ordinário não pode respeitar ou, seja como for, admitir ou consagrar, é variável e por via de regra mais extensa. No modo de ver desta Câmara, a enumeração tem sempre de se entender como simplesmente exemplificativa, e não como taxativa. O que o legislador constituinte pretende dizer, na sua, é que não são constitucionalmente lícitas normas legislativas que admitam privilégios, discriminações, diferenciações ou desigualdades em si próprias objectivamente injustificadas e injustificáveis, ante o sistema de valores constitucionalmente consagrados e a comum consciência social. Assim, o facto de aparecer agora expressamente proibida qualquer discriminação racial não importa uma inovação. O artigo 5.° e o seu § único, vigentes, são de entender como negando, já hoje, a legitimidade de qualquer privilégio racial.

29. O legislador constituinte, para ser completo no elenco das expressões do princípio da igualdade jurídica, enquanto vinculativo para o legislador, deveria dispor sucessivamente, sobre a igual sujeição dos cidadãos às leis e à jurisdição do Estado, tanto no domínio das questões civis como no das criminais e das administrativas, sobre a igualdade no gozo dos direitos privados e públicos, sobre a igual admissibilidade ao provimento em cargos públicos, civis e militares, sobre a igual repartição das vantagens ou benefícios, sobre a igual sujeição aos encargos públicos, sobre a igual tutela jurisdicional e sobre a igual sujeição às penas.
Entretanto, a Constituição apenas se refere, de forma positiva, à igualdade do direito ao provimento em cargos públicos e, implicitamente, à igualdade nas vantagens ou benefícios a repartir pelos cidadãos e à igualdade na sujeição aos encargos públicos.
É evidente que em todos, estes domínios são admitidos os desvios ou excepções que a própria Constituição determina ou fixa. Assim, por exemplo, a igualdade do direito ao provimento em cargos públicos ó negada em relação aos parentes até ao 6.° grau dos reis de Portugal (Constituição, artigo 74.°).
Ao lado dos desvios reais ao princípio da igualdade, como aquele de que se acaba de falar, há os desvios aparentes. Com efeito, o princípio da igualdade jurídica não impõe um tratamento absolutamente parificado de todos os cidadãos, uma igualdade de facto entre todos eles. O princípio em causa apenas requer paridade de tratamento quando sejam iguais as condições objectivas e subjectivas. A diversidade das circunstâncias implica uma diversidade de tratamento legislativo - não parecendo, assim, inclusive, vedada, no plano constitucional, a possibilidade de leis individuais ou pessoais e, muito menos, de "leis-providência". Por outro lado, a natureza das coisas justificará que a lei não seja aparentemente igual para todos os cidadãos. A isso se podem opor, com efeito, óbices de ordem natural, biológica e moral, considerada esta segundo os padrões da civilização crista. Ponto é que esses desvios se não possam interpretar como expressão de privilégios ou de encargos ligados às pessoas como tais.

30. Assim, afigura-se a esta Câmara que o § 2.°, para ficar redigido em termos tecnicamente correctos, teria de ser reformado, do princípio ao fim. Em homenagem, po-

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rém à directriz de que só se impõe refazer formalmente os preceitos constitucionais na medida em que se justifique ou requeira alguma alteração no seu conteúdo, não se cuidará de remodelar este parágrafo, aceitando-se a redacção proposta, que, aliás, se aproxima muito da do actual § único.
Sugere-se tão-só que hão-de admitir-se os desvios (em todo o caso aparentes) ao princípio da igualdade do homem e da mulher perante a lei que se justifiquem pela sua respectiva natureza. Crê-se que se devem admitir, em matéria de direitos privados, quanto à mulher casada, seja lícito fundamentar na necessidade de preservar a unidade da família - circunstância que, ainda recentemente, levou o legislador a consagrar, designadamente, o instituto do poder marital, segundo o qual o marido é o chefe da família (Código Civil, artigo 1674.°). Dos termos em que este § 2.° fica redigido resultará que um bom número de normas discriminatórias em matéria de capacidade de direito público da mulher, que até agora se justificavam pela necessidade de preservar o bem da família, entra a dever ser considerado inconstitucional e, portanto, inaplicável pelos tribunais.
Considerando o que vem de se expor, deverá dar-se ao § 2.º do artigo 5.° a seguinte redacção:

A igualdade perante a lei envolve o direito de ser provido nos cargos públicos, conforme a capacidade ou serviços prestados, e a negação de qualquer privilégio de nascimento, raça, sexo ou condição social, salvas, quanto ao sexo, as diferenças de tratamento justificadas pela natureza e pela unidade da família, e, quanto aos encargos ou vantagens dos cidadãos, as impostas pela diversidade das circunstâncias ou pela natureza das coisas.

Artigo 5.°, § 3.°

31. Este parágrafo não tem correspondente na actual versão da lei fundamental. Não se suscitam hoje quaisquer dúvidas sobre quais são os elementos estruturais da Nação. Não se impõe, portanto, que a Constituição o diga - e sobretudo que o diga desta forma quase incidental.

Artigo 7.° (corpo do artigo)

32. No texto em vigor deste artigo consigna-se que a lei pode estabelecer restrições ao princípio da plenitude da capacidade de direitos dos nacionais portugueses, em prejuízo dos naturalizados. Pretende-se, agora, legitimar restrições a este princípio em desfavor dos que adquiram a nacionalidade portuguesa pelo casamento, o que perfeitamente se justifica.
Igualmente se justifica que se diga que essas restrições são tanto as impostas pelas leis ordinárias como, obviamente, as que a própria Constituição institui ou prescreve. A Câmara entende, contudo, que se deve fazer menção, não só aos direitos e garantias, como também as "liberdades", à semelhança do que se passa com o artigo 8.° Propõe-se, assim, esta redacção:

A lei determina como se adquire e como se perde a qualidade de cidadão português. Este goza dos direitos, liberdades e garantias consignados na Constituição, salvas, quanto às que não sejam nacionais de origem, as restrições estabelecidas na Constituição e nas leis.

Artigo 7.°, § 1.°

33. No proposto corpo deste artigo prevê-se que a Constituição restrinja os direitos dos portugueses não originários. E o que neste § 1.º se faz quanto a certos direitos políticos, aí reservados aos portugueses originários.
Como se verá em comentário ao § 3.°, a lista de funções referida ma proposta de lei deve ser encurtada. O que aí se dirá com referência aos cidadãos brasileiros, há muito residentes em Portugal, vale, mutatis mutandis, para os cidadãos portugueses não originários.
Assim, este parágrafo deverá ficar redigido do seguinte modo:

São privativas de portugueses originários as funções de Presidente da República, de Conselheiro de Estado, de Deputado e de Procurador à Câmara Corporativa, de membro do Governo, de Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, de Procurador-Geral da República, de governador das províncias ultramarinas, as funções diplomáticas, e a participação no colégio eleitoral para designação do Presidente da República.

Artigo 7.°, § 2."

34. Visa-se, com ais alterações que neste preceito se introduzem à redacção do vigente § único do artigo 7.°, que fundamentalmente lhe corresponde, eliminar a dúvida que se tem posto sobre a constitucionalidade do provimento, como agentes funcionários, de estrangeiros chamados ao exercício em Portugal de funções públicas com carácter predominantemente técnico, como tom sucedido, designadamente, com professores universitários de certas especialidades e com leitores estrangeiros das Faculdades de Letras.
Tem sido à custa, de um esforço dialético muito louvável que &e tem admitido como constitucional tal prática. A Câmara acha bem que se aproveite o presente ensejo para tomar inquestionável a solução que já vem sendo defendida e seguida.

Artigo 7.°, § 3.°

35. Nos termos do § único do artigo 7.°, em vigor, a que corresponde o proposto § 2.°, os estrangeiros gozam em Portugal idos direitos e garantias reconhecidos pela Constituição aos Portugueses, se a lei não determinar o contrário.
O primeiro idos objectivos deste proposto § 3.°, tal como 6e encontra redigido, é facultar ao legislador ordinário o estabelecimento de um desvio em favor dos cidadãos brasileiros, desvio que contraria o princípio da igualdade jurídica de todos os estrangeiros em Portugal, de tal modo que, sob o benefício de reciprocidade no Brasil para os cidadãos portugueses, os brasileiros poderão ser equiparados, para o efeito de gozo de direitos de toda a ordem, pelo legislador ordinário, aos portugueses. A proposta encara esta possibilidade, sob aquela referida condição, inclusive em relação aos próprios direitos políticos, mas, neste caso, apenas em favor dos cidadãos brasileiros que tenham a sua residência principal e permanente em território português e, assim, demonstrem uma ligação efectiva e mão apenas ocasional e formal à comunidade nacional. Não se pode, efectivamente, esquecer que o gozo dos chamados direitos políticos está naturalmente ligado ao facto de se ser membro de uma certa comunidade (de uma certa polis - e daí, precisamente, que esses direitos se digam políticos), ao facto, em suma, de se ser cidadão - no caso, cidadão português. Ora, a circunstância de um brasileiro residir permanentemente em Portugal, a juntar de todo um conjunto de factores históricos, culturais e tantas vezes étnicos que o assimilam e praticamente equiparam aos cidadãos portugueses na sua lealdade, na sua allegiance à comunidade nacional, permite que, sem desnaturação do conceito e da função dos direitos políticos, o gozo destes possa também ser atri-

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buído ema Portugal aos brasileiros, mo pressuposto de que, mutatis mutandis, eles sejam também reconhecidos, em igual medida, aos portugueses radicados no Brasil.
A medida exacto em que a isopolitia luso-brasileira virá a ser instituída depende de negociações que, já iniciadas, poderão ser concluídas, após a aprovação de um preceito constitucional como o que se está analisando, uma vez que a Constituição brasileira sofreu recentemente a aliteração que, por sua vez, abre a porta à possibilidade de o legislador ordinário estabelecer a equiparação dos portugueses residentes no Brasil aos próprios brasileiros, em matéria de gozo de direitos, incluindo os direitos políticos, exceptuados os de maior transcendência.
Na actual proposta faz-se também uma restrição relativamente aos direitos políticos de maior valor, remetendo o § 3.° para o § 1.°, para o efeito de enumerai esses direitos.

36. A redacção sugerida pelai Câmara para o parágrafo é a seguinte:

"Sob reserva de igual tratamento em favor dos portugueses no Brasil, os cidadãos brasileiros podem ser equiparados aos portugueses para o efeito do gozo de direitos, exceptuados aqueles a que se refere o § 1.º; o exercido de direitos políticos, porém, só será permitido aos cidadãos brasileiros que tenham a sua residência permanente em território português.

Como se vê, esta Câmara, embora reconheça o que há de melindroso na confecção do elenco das funções que podem e das que não podem ser. exercidas por brasileiros nas condições indicadas, inclina-se para que as funções judiciais em geral, com excepção das de Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e de Procurador-Geral da República, lhes possam ser confiadas. Não se vê razão forte em sentido contrário.
Elimina-se a referência à residência principal, pois basta falar-se em residência permanente.

Artigo 8.°, n.° 8.°

37. Admite-se que a referência feita actualmente pela Constituição à culpa formada, neste preceito, seja eliminada, para se falar antes, de uma forma genérica, em prisão preventiva. Por certo que a culpa formada deveria ser, idealmente, o pressuposto fundamental da prisão preventiva. Mas já que hoje se não pode prescindir de uma prisão preventiva anterior à formação da culpa e se terá mesmo de dizer que é esta a mais geralmente praticada, a prisão com culpa formada passou a ser apenas uma modalidade, e não o caso típico ou principal, da prisão preventiva. E por isso justificado que neste n.° 8.°, em que directamente se define a garantia individual de não se poder ser privado da liberdade pessoal nem preso, se refira a categoria global da prisão preventiva, reservando-se a distinção entre as duas modalidades aceites - sem e com outra formada - para os §§ 3.° e 4.º É, efectivamente, nestes parágrafos que se pretende definir os princípios gerais do regime da prisão preventiva, sendo que aquela distinção só tem relevo, hoje em dia, nos termos desse regime. Como, porém, tais parágrafos não se limitam rigorosamente a prever os casos em que a prisão preventiva ó admissível e prescrevem, além disso, o fundamental sobre as garantias que a rodeiam (o que é, aliás, tão importante como a fixação daqueles casos), será mais correcto fazer, neste n.° 8.°, menção não apenas dos casos, mas também dos termos.
Assim, o n.° 8.° do antigo 8.° deverá, no modo de ver, desta Câmara, ficar redigido do seguinte modo:

Não ser privado da liberdade pessoal nem preso preventivamente, salvo nos casos e termos previstos nos §§ 3.º e 4.°

Artigo 8.°, n.° 9.°

38. A consideração devida à liberdade pessoal e a consequente tentativa de limitar o arbítrio do Estado conduziram à afirmação iluminista do principio da liberdade em matéria penal. "Ninguém pode ser punido senão em virtude de uma lei feita e promulgada antes de o delito ter sido cometido, e legalmente aplicada" - eis a fórmula da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, que em breve se tornou património de todos os países civilizados.
O exame do seu significado - à luz da sua dimensão de garantia com que a fórmula foi historicamente afirmada - mostra ser seu conteúdo o seguinte:

1.° Afirmação de que ninguém pode ser submetido a uma pena se não cometeu um facto previsto por uma lei que deve, ela própria, cominar também a respectiva sanção;
2.° Exigência de que a lei se encontre já em vigor quando o facto foi cometido;
3.° Extensão do princípio a toda a chamada "matéria penal"; portanto, a todas as normas aplicáveis quando um facto definido como criminoso é cometido e se lhe liga a sanção cominada - de modo a o princípio abranger também (num certo sentido que adiante se precisará) a legalidade da "repressão penal", isto é, também do processo para aplicação da pena;
4.° Proibição da "analogia" incriminatória.

Històricamente, este princípio sofreu, por vezes, em certos países, reduções mais ou menos amplas no seu conteúdo; assim se pretendeu limitar o seu âmbito de aplicação às disposições ditas "substanciais" ou às normas que fixam os elementos constitutivos das incriminações, ou se considerou que ele não obstaria à existência de normas penais retroactivas. Qualquer destas limitações acabou, porém, por traduzir-se numa reafirmação do poder repressivo do Estado contra o cidadão e numa prevalência do seu arbítrio, o que põe em causa, pelo menos, a rígida e precisa dimensão de garantia, em homenagem à qual, como se disse, o princípio foi historicamente afirmado.

39. Considerada a redacção actual que ao princípio da legalidade dá o n.° 9.° do artigo 8.° da Constituição e a redacção diferente que para ele é consignada na proposta de lei, cumpre, em síntese, observar o seguinte:

a) A oportunidade de continuar a conceder ao princípio assento expresso na Constituição parece indiscutível: por esta via, não só lhe é reconhecida a sua verdadeira e própria função de garantia, como esta ganha consistência adequada, na medida em que a lei ordinária não poderá modificar-lhe o âmbito, introduzir-lhe excepções ou eliminá-lo;
b) A redacção actual do n.° 9.° do artigo 8.° dá ao princípio-chave do ordenamento penal português uma expressão razoável, respondendo no essencial ao conteúdo com que tem sido historicamente afirmado. Através dela consignam-se sem equívoco as ideias de que só a lei pode ser fonte de incriminação, de que a descrição

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típica tem de ser anterior à prática do facto e de que ó proibido o recurso à analogia no momento da incriminação.

Dir-se-ia, assim, ser dispensável o acrescento introduzido pela proposta governamental, se não mesmo inconveniente, por manchar a pureza do princípio com detalhes regulamentares que só à lei ordinária pertenciam.
A consideração seria inexacta. Já entre nós se notou, com razão, que o texto constitucional vigente não dá expressão segura à necessária conexão dos princípios "sullum crimen" e "nulla poena sine praevia lege penali" (v as Actas da Comissão Revisora do Projecto do Código Penal, vol. I, no respeitante ao artigo 1.°). Conexão tanto mais difícil de estabelecer num texto claro, quanto a existência de anterioridade da fixação da pena não deverá valer no caso de uma lei posterior cominar uma pena concretamente menos grave para o facto cometido.
É essa conexão que vem exigir a parte final do texto proposto. Através dela torna-se claro que também a pena não de ser fixada em lei anterior, ao mesmo tempo que se consagra o princípio da aplicação da sanção penal mais favorável ao delinquente. E, afinal, a consagração, através de uma fórmula mais simples e feliz, do critério exarado no artigo 7.° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, pelo modo seguinte:

Ninguém pode ser condenado por uma acção ou omissão que no momento em que foi cometida não constituía crime, segundo o direito interno ou o direito internacional. De igual modo, não pode ser infligida qualquer pena superior à que era aplicável no momento em que o crime foi cometido.

Deste modo, a redacção proposta pelo Governo ó inteiramente de aceitar e aplaudir.

40. Há ainda outro problema relacionado com o princípio da legalidade que o texto proposto não defronta claramente - o da sua conexão com as chamadas medirias de segurança - e que tanto mais instante se torna quanto foi "primeira preocupação" do Governo, conforme diz no relatório da proposta, "consignar garantias não opinas para a Condenação criminal e aplicação das penas, mas também para a declaração de perigosidade e aplicação de medidas de segurança". Importa, pois, determinar se e em que medida deve o conteúdo do princípio da legalidade valer também para este caso.
É absolutamente segura a ideia de que para a medida de segurança valem, como paira a pena, as exigências na "reserva da lei" e da "proibição da analogia" inscritas no princípio da legalidade 9. A diferença, de não pequeno relevo, concerne ao princípio da irretroactividade, que, aceite para a pena nos termos preditos, se considera inaplicável às medidas de segurança 10 em virtude do seu carácter e da sua função próprias: se têm carácter terapêutico e se, por outro lado, devem aplicar-se ai quem seja, no momento da aplicação, criminalmente perigoso, tudo parece impor a sua aplicação "retroactiva", mesmo que esta se faça à custa de razoáveis exigências de garantia.
Mesmo a ser assim, parece que não deveria perder-se a oportunidade de, no n.° 9.° do artigo 8.°, consignar a extensão admissível e desejável do princípio da legalidade às medidas de segurança, acrescentando-se ao texto proposto para este n.° 9.° do artigo 8.°: "ou medida de segurança fora dos casos previstos na lei".
Não se deixará, porém, de notar ainda o seguinte: admitir incondicionalmente que o legislador ordinário possa fixar retroactivamente as medidas de segurança, mesmo em homenagem à sua natureza e à sua função, não deixa de importar uma drástica redução de garantia que, em matéria criminal, o princípio da legalidade visa atribuir aos cidadãos; deve ser assegurada, pelo menos, a anterioridade da lei que fixa os pressupostos da aplicação da medida de segurança e, portanto, os índices da perigosidade. Pode dizer-se, como em Itália, que a conclusão já resultará de uma interpretação restritiva, que tudo parece aconselhar, de um texto com o acrescentamento proposto. Melhor, porém, será adoptar uma fórmula que, não excluindo a aplicação da concreta medida de segurança prevista pela lei em vigor ao tempo da decisão, consagre a exigência de anterioridade da previsão legal do caso a que vai aplicar-se: essa fórmula pode ser a seguinte: "nem medida de segurança fora dos casos previstos em lei anterior".

41. De acordo com as alterações sugeridas, o texto do artigo 8.°, n.° 9.°, passaria a ser o seguinte:

Não ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare puníveis o acto ou omissão, bem como não sofrer pena mais grave do que a fixada ao tempo da prática do crime nem medida de segurança fora dos casos previstos em lei anterior.

Artigo 8.°, n.° 10.°

42. O que a proposta de lei veio acrescentar ao texto actual deste n.° 10.° é certamente de aplaudir e encontra--se suficientemente justificado no seu relatório.
Verifica-se que a proposta, a exemplo do que sucede no texto actual, não especifica "as necessárias garantias die defesa" a que se refere e que têm de existir tanto para antes como para depois da formação da culpa. Dificilmente, para aquela primeira fase, se pode pensar em mais do que na assistência de advogado constituído ou, na sua falta, de defensor oficioso, e na admissibilidade de memoriais e requerimentos a receber obrigatoriamente. Na regulamentação desta matéria, o legislador ordinário deve inspirar-se naquela directriz constitucional, tendo em conta, naturalmente, que não devem ser consagradas soluções que ponham em grave risco a finalidade a prosseguir no processo criminal. Tem de se atentar, na verdade, em que é, em princípio, prejudicial à investigação o conhecimento por terceiros dos resultados a que se vai chegando na investigação. Tudo o que em homenagem ao direito de defesa se prescreva na lei ordinária tem de conciliar-se com a finalidade do processo criminal.
É certo que, especialmente quando e na medida em que a instrução preparatória seja confiada a autoridades policiais, são possíveis abusos, traduzidos em atropelos ou violações de qualquer dos direitos, liberdades e garantias individuais e em especial das garantias de defesa. Esses abusos devem estar, sob as formas adequadas, sujeitos a controle jurisdicional.
Não se deve, portanto, razoavelmente, ir além do que o texto da proposta prescreve nestes domínios.

9 Como expressamente se afirma no artigo 25.°, n.° 3.°, da Constituição Italiana:

Ninguém pode ser submetido a medidas de segurança, salvo nos casos previstos na lei.

10 V., neste sentido, o artigo 6.° do projecto do Código Penal, em 1.ª revisão ministerial:

Às medidas de segurança, reeducação ou tratamento é aplicável, na falta de disposição legal em contrário, a lei em vigor ao tempo da decisão.

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Artigo 8.°, n.° 11.°

43. O texto actual do n.° 11.° do artigo 8.° refere-se exclusivamente às penas. Segundo o ordenamento jurídico português vigente, as "penas" não esgotam a categoria das sanções ou reacções criminais; constituem apenas um sector desta categoria, existindo ao seu lado o das genericamente chamadas "medidas de segurança". As razões por que a Constituição se limita a prever a sua existência, no artigo 124.°, apontadas no relatório da proposta de lei, são historicamente compreensíveis. Seria injustificável, porém, que não se aproveitasse o ensejo para, na presente revisão, fixar as regras (relativas às modalidades que podem revestir as medidas de segurança e aos termos da sua aplicação) que mereçam, pelo seu carácter de verdadeiras garantias do cidadão, ser elevadas à categoria dos preceitos integrantes do artigo 8.° da Constituição. Essas garantias, como também exactamente se afirma no referido relatório, são tanto mais imperiosamente requeridas quanto "as medidas de segurança, que podem ser tão gravosas da liberdade individual como as penas, apresentam melindre superior, visto que falta, para justificá-las, a culpabilidade".
Na base destas considerações apresentou o Governo a sua proposta de alteração do referido n.° 11.° do artigo 8."
Perante a redacção proposta para substituir o texto actual, cumpre ponderar o que se segue:
a) As razões que estão na base da exigência de que as medidas de segurança não sejam perpétuas nem assumam carácter tendencialmente perpétuo - sendo por isso materialmente inconstitucionais tanto as de duração ilimitada como (e é o caso da generalidade das previstas no ordenamento jurídico português actual) as estabelecidas por períodos indefinidamente prorrogáveis - estão expostas em síntese, com absoluta exactidão, no relatório da proposta de lei, e só há que concordar com elas. A doutrina portuguesa actual não deixava já, de resto, de acentuar a duvidosa legitimidade constitucional da prorrogação indefinida, mesmo à luz do texto vigente do n.° 11.° do artigo 8.º (v. Eduardo Correia, Direito Criminal, 1, p. 74).
Não deverá, por tudo isto, deixar-se de saudar vivamente uma inovação que, vindo ao encontro das propostas de construção do nosso direito penal do futuro, marca um rumo de indiscutível progresso na maior garantia da liberdade da pessoa humana, frente ao poder sancionador do Estado, e merece, assim, a mais incondicional adesão.
b) Resta o problema de saber se tal garantia deve também estender-se às medidas de que sejam passíveis os inimputáveis, isto é, aqueles que praticaram um facto criminoso típico em virtude de anomalia psíquica que lhes furtou a capacidade para avaliar a ilicitude do facto ou para se determinarem por aquela avaliação.
Uma coisa parece certa: não basta invocar a utilidade ou necessidade da medida que atinge o inimputável e a sua finalidade terapêutica para daí logo se poder concluir pelo carácter ilimitado ou indefinidamente prorrogável daquela; o inimputável é ainda e sempre um homem que, embora na sua forma "modificada" de existir, não pode transformar-se em meio para os outros alcançarem quaisquer fins. Isto significa que tombem às medidas de segurança para inimputáveis tem de presidir uma ideia ética, em espécie a de que a liberdade externa social tem como necessário condicionamento e pressuposto a liberdade interior, ética ou moral.
Mas, desta forma, parece que, mesmo de um estrito ponto de visto ético, se justificará que, relativamente a inimputáveis perigosos (mas só relativamente a eles e já não a imputáveis, mesmo que também uma medida de segurança por eles sofrida tenha fundamento em anomalia psíquica e fim terapêutico), a medida de segurança só cesse quando o tribunal competente verifique que deixou de existir o estado de perigosidade que lhe deu causa. E essa, aliás, a solução prevista no referido projecto de Código Penal, aceite tanto na comissão revisora como na 1.ª revisão ministerial.

44. Conclui-se, assim, pela integral adesão às ideias contidas na proposta do Governo, sugerindo-se - peles razões acabadas de expor - redacção diferente para a parte final do preceito. O texto do n.° 11.° do artigo 8.° poderia, em face do que fica dito, ser o seguinte:

Não haver pena de morte, salvo no caso de beligerância com pais estrangeiro e para ser aplicada no teatro da guerra, nos termos da lei penal militar, nem penas ou medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade pessoal com carácter perpétuo, com duração ilimitada ou estabelecidas por períodos indefinidamente prorrogáveis, ressalvadas as medidas de segurança para inimputáveis.

Artigo 8.°, n.º 21.°

45. A proposta mão vai ao ponto de consagrar ou reconhecer genericamente como direito fundamental o "direito de agir" em tribunal para tutela do próprio direito material. No plano do contencioso civil, esse "direito de agir" está entre nós reconhecido na lei ordinária - no Código de Processo Civil (artigo 2.°) -, mas admite-se aí que a um direito material possa, excepcionalmente, não corresponder uma acção. Verifica-se que o "direito de agir" ó encarado por agora, no plano constitucional, apenas no domínio do contencioso administrativo.
E é neste domínio, realmente, que mais se vem fazendo sentir um preceito do tipo do que é agora proposto pelo Governo.
As nossas leis, por vezes, limitam os vícios ou ilegalidades que são susceptíveis de ser invocados em recurso contra determinados actos administrativos e restringem, assim, correspondentemente, as garantias jurisdicionais dos administrados aos quais esses comportamentos ilegais da Administração especialmente prejudiquem; e, com maior frequência ainda, excluem todo e qualquer recurso contencioso contra decisões ou deliberações definitivas e executórias da Administração, vendo-se os administrados na situação de não poderem reagir contra tais actos, porventura flagrantemente ilegais, pela via jurisdicional.
Esta categoria de actos irrecorríveis ou parcialmente imunes de fiscalização contenciosa deve desaparecer num Estado de Direito (v. Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, 8.ª ed., 11, p. 1126).
Os termos em que se encontram redigidos os artigos 15.º e 16.° da Lei Orgânica do Supremo Tribunal Administrativo (Decreto-Lei n.° 40 768, de 8 de Setembro de 1956) já têm sido interpretados no sentido de que foram por eles revogadas todas as disposições legais anteriores que declaravam certos actos administrativos do Governo e dos órgãos dirigentes dos serviços públicos personalizados insusceptíveis de recurso. Mas é evidente que especiais disposições legais posteriores com esse alcance se sobrepõem à norma geral da referida Lei Orgânica. A aprovação de uma norma como a ora proposta acarretará a prática ineficácia dessas disposições especiais, já que não poderão ser aplicadas pelos tribunais nos feitos submetidos a julgamento, dada a sua superveniente inconstitucionalidade material (artigo 123.º da Constituição).

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Entretanto, no modo de ver desta Câmara, o teor do preceito que se pretende ver agora introduzido na Constituição merece uma observação e carece de um retoque. O retoque a fazer visará prover a que neste novo preceito se englobem não apenas os recursos contenciosos de anulação de actos administrativos, os únicos considerados, mas também os recursos de "mérito" e os recursos de plena jurisdição (acções, na técnica das nossas leis), referidos a actos administrativos, em que se não trata apenas de averiguar em que medida esses actos são juridicamente incorrectos ou não foram praticados de acordo com uma norma, e também de decidir se e em que medida ofenderam os actos subjectivos de um administrado, terminando o tribunal eventualmente por condenar a Administração a uma prestação ou mesmo por se substituir a ela, rectificando ou reformando esses actos. No contencioso fiscal e aduaneiro, no contencioso eleitoral, no contencioso da responsabilidade extracontratual, no contencioso dos contratos administrativos e no contencioso administrativo penal, por exemplo, o recurso contencioso a utilizar, ante um acto da Administração lesivo de direitos de um particular, pode ser, não um recurso de anulação, mas um recurso de "mérito" ou um recurso de plena jurisdição. Na medida em que a lei admita só estes tipos de recurso, não se poderá dizer que aos particulares se não faculta uma tutela jurisdicional adequada, que é, por sinal, mais favorável.
Deverá, assim, de preferência à fórmula proposta, utilizar-se outra que traduza a ideia de que constitui garantia dos cidadãos haver recursos contenciosos de anulação dos actos administrativos definitivos e executórios de que não caiba outra forma de recurso contencioso; ou então, simplesmente, a ideia de que haverá sempre recurso contencioso dos actos administrativos.
Uma observação. Existe toda uma categoria de actos, relativos a administração dos serviços judiciais. Alguns deles são susceptíveis de impugnação perante instâncias independentes, que devem, enquanto julgam da regularidade jurídica desses actos, ser consideradas instâncias contenciosas, tribunais especiais do contencioso administrativo. E o que sucede com os presidentes das Relações, o Conselho Superior Judiciário, o Conselho Superior do Ministério Público e o Supremo Conselho Disciplinar, nos termos dos artigos 515.° e seguintes do Estatuto Judiciário. O controle contencioso destes actos definitivos e executórios está, assim, desde já, melhor ou pior; assegurado, em termos de se dar cumprimento ao preceito que ora se pretende adicionar ao artigo 8.° da Constituição.
Parece haver, entretanto, outros actos da administração dos serviços judiciais de que não há instituído recurso contencioso, conforme se depreende do artigo 407.°, 4, do Estatuto Judiciário. A aprovação deste novo preceito constitucional obrigará a que o legislador proveja à instituição dos recursos de que aí prescinde.
Convém, por outro lado, referir aqui que os actos dos vários agentes ou magistrados do Ministério Público que precedem os julgamentos e em particular os actos de polícia judiciária, não vêm sendo considerados susceptíveis, corridas as instâncias hierárquicas, de recurso contencioso de anulação. A doutrina comum entende que tais actos são, pela finalidade jurisdicional que visam, actos materialmente jurisdiciornais, ainda que da competência de agentes administrativos, excluídos por isso mesmo da acção fiscalizadora de tribunais, comuns ou especiais, do contencioso administrativo. (Problema diferente ó o de saber S8, dada, justamente, a natureza jurisdicional de tais actos, eles não deveriam, ante o artigo 116.° da Constituição, caber na competência exclusiva de um juiz, embora diferente do juiz da audiência de discussão e julgamento. Desse problema não se cuida, aqui.)
Não merecerá também contestação que não são susceptíveis de recurso contencioso (de anulação e de plena jurisdição) os actos do "Executivo" que tenham a natureza de "actos de governo" ou de "actos políticos". Já, porém, como se disse, os actos administrativos que a lei ordinária especialmente subtraia ao controle contencioso dos tribunais, aos quais poderemos chamar "actos formalmente políticos", porque são substancialmente actos administrativos, passarão a ser contenciosamente impugnáveis, passando a ser inconstitucionais os preceitos das leis ordinárias que consagram a sua subtracção à fiscalização contenciosa.

46. Em conclusão, parece que a melhor redacção para o proposto n.° 21.° do artigo 8.°, em apreço, será esta:
Haver recurso contencioso em caso de lesão de direitos ou interesses legítimos por actos da administração pública.
Aproveitam-se, nesta redacção, dados do direito constitucional comparado: do artigo 19.°, 4, da Lei Fundamental Alemã, e do artigo 113.° da Constituição Italiana.

Artigo 8.°, § 2.º

47. A diferença entre o texto proposto e o texto em vigor traduz-se, afinal, apenas em se prever que a lei (uma lei especial) regulará o exercício da liberdade religiosa. Não se levantam dúvidas sobre a conveniência de o exercício desta liberdade fundamental ser regulado pela lei ordinária, sobretudo tendo em conta que ela interfere com interesses sociais que o poder civil não pode ter por indiferentes ao bem comum temporal. Essa liberdade terá, aliás, que sofrer limites, como haverá ocasião de referir em comentário ao proposto artigo 45.°
Tome-se nota, entretanto, de que não entra no elenco das liberdades dos cidadãos portugueses, estabelecido no artigo 8.°, qualquer número que especifique a liberdade religiosa. Os vários direitos em que ela se analisa estão mencionados em mais que um lugar da Constituição, como em apreciação à proposta nova epígrafe do título x da parte i se referirá. Da "liberdade religiosa", formalmente, fala-se incidentemente neste § 2.° e volta a falar-se nessa epígrafe. Mas não há, por causa disso, nenhuma substancial inovação neste domínio, prevista na proposta de lei.

Artigo 8.°, § 3.º

48. Neste parágrafo perfilhou-se a ideia de que a prisão preventiva ó essencialmente excepcional. Sabe-se que o problema da prisão preventiva resulta da concreta antinomia entre o valor individual da liberdade e o interesse social da prevenção e da repressão criminais. Se aquele valor implica que ninguém seja privado da sua liberdade antes de ter sido julgado e condenado judicialmente como autor responsável de um delito, aquele último interesse justificará uma prisão anterior à condenação, para impedir que o delinquente se mantenha na possiblidade de, entretanto, cometer novos delitos, para assegurar que ele se não subtraia às consequências penais que lhe venham a ser impostas, e para prevenir a integridade das provas e de quaisquer outros elementos de esclarecimento e de fundamentação jurídico-criminais. Ora, sendo a Uberdade um valor superior e fundamental, a solução correcta, de iure condendo, será justamente aquela que sacrifique a liberdade apenas na medida estritamente necessária - e só enquanto o for - para dar satisfação às exigências de

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uma válida repressão criminal, e que ofereça rigorosas garantias de validade e justificação concreta.
Sendo essencialmente excepcional, a prisão preventiva só há-de admitir-se nos casos em que expressa e formalmente venha a ser prevista na lei (em execução, tanto quanto possível vinculada, de uma directriz ou de um preceito constitucional), podendo-se, deste modo, falar aqui de um princípio da legalidade da prisão preventiva.
O legislador ordinário deve regular o assunto de harmonia com o que se pode designar o princípio da subsidariedade, decorrente, de resto, do carácter ou essência excepcional da prisão preventiva. Desse princípio resulta que a prisão preventiva não deverá ser admitida quando puder ser substituída, sem inconvenientes para a prossecução do interesse social atrás enunciado, por providências não detentivas. Não desconhece o nosso direito processual criminal vigente algumas dessas providências, e outras poderão vir a ser criadas. O citado princípio da subsidiariedade da prisão preventiva justifica ainda que, independe, temente de ser ou não substituível por outras providências, ela seja excluída se concretas circunstâncias particulares do acto ou do agente o justificarem (pense-se no que já hoje prescreve, por exemplo, o artigo 293.° do Código de Processo Penal, e pense-se em situações particulares de idade, de saúde e outras).
A admissibilidade da prisão preventiva - deriva isso, ainda, do seu carácter excepcional - deve estar dependente de pressupostos legais objectivos (podendo falar-se, também a este propósito, de um princípio da tipicidade). Ora pode dizer-se que hoje em dia são três os tipos de pressupostos da prisão preventiva que se exigem nas leis. Exige-se, em primeiro lugar, um fundado juízo de imputação do acto ao agente, ante o qual, razoável e objectivamente, ele se possa ter por sujeito de autoria e culpabilidade criminais. Em segundo lugar, não é aceitável a prisão se o delito não tiver uma certa gravidade. Por último, em alternativa ou em cumulação com o anterior tipo de pressuposto, aceita-se ainda a prisão preventiva com o fundamento num interesse processual.
A prisão preventiva em flagrante delito justifica-se ante o primeiro tipo de pressupostos, sendo o segundo tipo irrelevante. Fora de flagrante delito, a prisão preventiva há-de justificar-se ante os três tipos de pressupostos indicados: requer-se uma farte suspeita da prática do crime; a infracção há-de ter uma certo gravidade (segundo a proposta, há-de tratar-se de um crime doloso e há-de corresponder-lhe uma pena de prisão superior a um amo ou tratar-se de caso em que seja aplicável medida de segurança privativa da liberdade); e, por último, impõe-se que subsista um interesse processual.
Nada há, naturalmente, a objectar quanto ao que na proposta de lei se estabelece sobre a legitimidade da prisão preventiva, quando há culpa formada. Verificados os demais pressupostos, a prisão preventiva justifica-se porque a autoria e a culpabilidade do agente se mostram então fortemente indiciadas em factos e circunstâncias concretas. Houve uma instrução processuamente conduzida, portanto com garantias de objectividade e contrôle.
Mas a proposta admite também a prisão sem culpa formada, "havendo forte suspeita dai prática do crime" - e nem se concebe que a não admitisse, dado que a imperatividade e o relevo do interesse social criminal não dispensam essa modalidade da prisão preventiva. A prisão preventiva sem culpa formada é, afinal, no plano do direito comparado, como que o tipo normal da prisão preventiva. De qualquer modo, à prisão sem culpa formada, que passou a ser a regra, não é possível deixar de rodeá-la de garantias de objectividade, de averiguação, de fundamentação e de juízo. Sobre este ponto se porém, a propósito do parágrafo seguinte.

49. Tudo considerado, a Câmara recomenda a adopção do texto proposto pelo Governo para este parágrafo.

Artigo 8.°, § 4.º

50. No parágrafo anterior alude-se aos pressupostos objectivos da prisão preventiva. No parágrafo ora sob análise alude-se às garantias.
O chamado "princípio do título" exige que ninguém possa ser preso preventivamente sem fundamento num mandado ou ordem escrita de autoridade competente de que constem razões legais e factuais justificativas da prisão.
A este princípio admitem-se na legislação comparada excepções só em casos muito particulares, o mais característico dos quais é o "flagrante delito". Nas legislações estrangeiras apontam-se outras excepções, como a "detenção de urgência", a "detenção de segurança" e a "averiguação preliminar", sujeitas a regimes muito especiais.
A proposta subscreve claramente o princípio referido, com a excepção comum e compreensível do flagrante delito. Apenas parece desejável que se analise a genérica referência aos "motivos", exigindo-se tanto a imputação do acto a um delito legal como a enunciação dos factos ou circunstâncias em que se funda a suspeita do seu cometimento. Assim se evitará que se tenham por suficientemente motivadas ordens de prisão que se limitam a referir a autoria ou a suspeita da autoria de um delito, individualizado apenas pela respectiva categoria abstracta ou designação legal.
É sem dúvida da maior importância, em segundo lugar, fixar quais as autoridades competentes para ordenar a prisão preventiva. A proposta de lei não sugere para este problema solução diferente da que se prescreve na actual redacção do § 4.° Efectivamente, tanto vale dizer-se que a prisão poderá ser ordenada pela "autoridade competente" (segundo a lei ordinária) como dizer-se que o poderá ser por ordem "de autoridade judicial ou de outras autoridades expressamente indicadas na lei".
A necessidade de admitir que outras, que não apenas a autoridade judicial, possam ordenar a prisão preventiva resulta especialmente de se não preverem providências sucedâneas dessa que dispensem o mandato judicial, especialmente no domínio dos delitos que atentem contra a segurança e a ordem pública.
Parece, porém, que este desvio ao princípio de que tão importante restrição à liberdade individual antes do julgamento cabe às autoridades judiciais há-de ter uma contrapartida no plano das garantias. Se as autoridades não judiciais podem ordenar por escrito a prisão preventiva fona dos casos de flagrante delito, hão-de essas prisões ser sujeitas a uma reapreciação, a um controle tanto quanto possível exercido por autoridades independentes e distintas das que podem decretar a prisão. Os desvios de uma tal directriz só podem conceber-se como excepcionais ante muito sérias razões, todas referidas a impreteríveis exigências processuais, no específico domínio de segurança e de ordem pública.
Aliás, afigura-se à Câmara que uma reapreciação (jurisdicional) da ordem de prisão preventiva da própria autoridade judicial não é menos necessária; pode o interrogatório preliminar do preso ser suficiente para infirmar os fundamentos que haviam justificado a inicial ordem de prisão, dada por um juiz.

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Sugere-se, assim, que a prisão preventiva haja de ser submetida, em ambos os casos, a uma reapreciação, nestes termos levado o suspeito à presença da autoridade de contrôle competente, num prazo tanto quanto possível certo para efeito de por este ser ouvido e interrogado, decidirá ela sobre a revalidação e a manutenção da prisão. (Distingue-se a "revalidação" da "manutenção", porque o juiz, embora reconheça a validade legal da prisão efectuada ou ordenada, revalidando-a, nesse caso, pode não concordar com ela ou não ver já motivo para a sua manutenção.)
Como, em comentário ao parágrafo anterior, já houve ocasião de esclarecer, não deverá admitir-se a prisão preventiva quando puder ser substituída por providências não detentivas ou de liberdade provisória.
Na redacção que se propõe aceita-se esta orientação - mas esclarece-se que, se o arguido não observar as condições a que fica subordinada a liberdade provisória, poderá ser ordenada a prisão preventiva dele.
Estas considerações levam à Câmara a introduzir uma alteração na redacção proposta. Antes de a enunciar, não se deseja omitir duas notas mais.
O primeiro apontamento respeita a que se não pode prescindir de, quando menos na lei ordinária (pois se trata de algo que tem mais que ver com a execução do que com os pressupostos e garantias fundamentais da prisão preventiva), consagrar o chamado "princípio do contrôle sucessivo" da validade ou necessidade da manutenção da prisão preventiva.
Não bastará, efectivamente, que a prisão preventiva sem culpa formada não possa ultrapassar certos prazos estabelecidos na lei (conforme a redacção do já analisado § 3.°) e seja, neste sentido, limitada. E ainda indispensável que, oficiosamente ou a requerimento do detido, ela seja susceptível de ser reexaminada, para se averiguar se se mantêm ou se desapareceram as causas que a justificaram.
O direito comparado trilha, a este respeito, dois caminhos o li perfilha dois sistemas:- o primeiro consiste em limitar a validade da prisão preventiva a um prazo relativamente curto e permitir que ao termo deste se possa decidir a sua prorrogação por prazos sucessivos iguais; e o segundo traduz-se em prescrever um prazo máximo e permitir que o detido requeira nova ou novas decisões sobre a manutenção, ou impor mesmo, alternada ou cumulativamente cm aquele requerimento, um oficioso reexame periódico. A outra nota é a que respeita ao princípio da indemnização pela prisão preventiva injusta. Não se alude já à responsabilidade penal e civil que uma prisão preventiva legal fundamenta. Alude-se, sim, à responsabilidade que resulta do facto de se ter sido submetido injustificadamente a uma prisão preventiva. A injustiça não deriva pura e simplesmente de se vir a ser absolvido. Mas a absolvição, especialmente se não fundada apenas no princípio in dúbio pro reo, bastará para a indiciar.
O legislador ordinário não precisou de ver consagrado na Constituição o princípio da responsabilidade por actos lícitos para o perfilhar no domínio da administração em geral (Decreto-Lei n.° 48051, de 21 de Novembro de 1967). Considerados os prós e os contras, ele decidirá se ó possível, designadamente ante considerações de ordem financeira, ir-se até aí neste especial domínio. A Câmara, ao dizer isto, não toma entretanto partido sobre se o artigo 9.° daquele diploma não abrange já, afinal de contas, o caso figurado.

51. A Câmara votou a eliminação do adjectivo "excepcional" com referência à providência do "habeas corpus".

52. Eis a redacção que, tudo considerado, a Câmara sugere para o § 4.º

Fora dos casos de flagrante delito, a prisão em cadeia pública ou detenção em domicilio privado ou estabelecimento de alienados só poderá ser levada a efeito mediania ordem por escrito de autoridade judicial ou de outras autoridades expressamente indicadas na lei, onde se identifique o delito e constem os fundamentos objectivos da prisão ou detenção, devendo, em ambos os casos, submeter-se a prisão sem culpa formada a decisão de revalidação e de manutenção, ouvido o réu, nos prazos estabelecidos na lei. A prisão não será ordenada nem será mantida quando possa ser substituída por quaisquer medidas de liberdade provisória, legalmente admitidas, que sejam suficientes para a realização dos seus fins. O não cumprimento das condições a que ficar subordinada a liberdade provisória poderá determinar a prisão preventiva do arguido.
Poderá contra o abuso do poder usar-se da providência do "habeas corpus".

Artigo 31.°, n.° 1.°

53. Respeita o artigo 31.° aos objectivos que norteiam a intervenção do Estado na vida económica e social; e haverá naturalmente de entender-se, uma vez que a Constituição acolheu o clássico princípio da subsidiariedade tal como o propõe a, doutrina social da Igreja, em conjunção com o artigo 29.°, onde se inscrevem as finalidades apontadas à "organização económica da Nação".
Aí se mencionam já, explicitamente, o "máximo de produção e riqueza socialmente útil", bem como a "justiça entre os cidadãos", fórmulas que na linguagem e nas perspectivas então dominantes, aceitàvelmente correspondem às modernas preocupações em matéria de criação da riqueza e de repartição do produto.
Não pode todavia ignorar-se que, desde então, o progresso das técnicas e a modificação das estruturas produtivas, a maior complexidade da vida económica, a crescente interdependência com outras economias, a generalização de novas e maiores aspirações socio-económicas, a acentuação dos ideais de justiça, têm imposto ao poder público, responsável pelo bem comum, uma intervenção miais ampla, mais profunda e mais sistemática, no domínio económico. E visível, por outro lado, que o acento tónico dessa intervenção transitou dos problemas atinentes à estabilização (ao "equilíbrio", nas suas múltiplas dimensões) para objectivos de mais dinâmica índole: o ritmo de crescimento do produto, a justiça na repartição dos frutos do progresso e dos sacrifícios que ele impõe, o especial cuidado com o desenvolvimento das parcelas mais atrasadas da Nação.
Aceita-se, assim, em consonância com estes modificações de ênfase e de perspectiva, a substituição do actual n.° 1 por outra fórmula que melhor traduza as hodiernas aspirações da colectividade e as correspondentes preocupações do Estado no terreno económico e social. Nada objecta a Câmara, portanto, ao novo texto sugerido na proposta.

Artigo 33.°

54. Pela actual redacção deste artigo, o Estado só pode tomar a seu cargo a exploração de actividades económicas, em regime de exclusivo ou de livre concorrência, para conseguir benefícios sociais superiores aos que seriam obtidos sem a sua intervenção. Quer dizer: o Estado só será produtor de bens ou de serviços na medida em que a iniciativa privada se não verifique ou, verificando-se,

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não seja suficiente para a produção dos bens ou serviços requeridos pela procura ou, sendo embora suficiente,, os forneça em condições de custo mais elevadas. A base doutrinal desta directriz constitucional encontramo-la em palavras bem conhecidas e frequentemente lembradas do Prof. Oliveira Salazar, contidas em discurso de 16 de Março de 1933 sobre os "Conceitos económicos da nova Constituição":

O Estado deve manter-se superior ao mundo da produção, igualmente longe da absorção monopolista e da intervenção pela concorrência. Quando pelos seus órgãos a sua acção tem decisiva influência económica, o Estado ameaça corromper-se. Há perigo para a independência do Poder, para a justiça, para a liberdade e igualdade dos cidadãos, para o interesse geral, em que da vontade do Estado dependa a organização da produção e a repartição das riquezas, como o há em que ele se tenha constituído presa da plutocracia de um país. 0 Estado não deve ser o senhor da riqueza nacional, nem colocar-se em condições de ser corrompido por ela. Para ser árbitro superior entre todos os interesses é preciso não estar manietado por alguns [...]
O progresso não está em o Estado alargar as suas funções despojando os particulares, mas em o Estado poder abandonar qualquer campo de actividade por nele ser suficiente a iniciativa privada.

Estamos, portanto, mais. uma vez perante uma explicitação do principio da subsidiariedade, tal como ao tempo era advogado pela doutrina social da Igreja. De acordo com este princípio, para que o Estado tome couta de uma actividade económica, de uma exploração, não basta que essa actividade ou essa exploração sirvam um interesse colectivo: é preciso ainda que a economia ou empresa privada não satisfaça, ou não satisfaça inteiramente, esse interesse colectivo. É esta a ideia que também se encontra expressa no artigo 6.° do Estatuto do Trabalho Nacional, segundo qual "o Estado deve renunciar a explorações de carácter comercial ou industrial [...] quer concorram no campo económico com as actividades particulares, quer constituam exclusivos, só podendo estabelecer [...] essas explorações em casos excepcionais, para conseguir benefícios sociais superiores aos que seriam obtidos sem a sua acção [...]". O Prof. Costa Leite (Lumbrales), em A Doutrina Corporativa em Portugal, lembra que, de harmonia comi o princípio referido, o Estado não absorve a actividade individual, supre-a nas suas deficiências, criando a utensilagem económica nacional que os particulares não poderiam realizar.
Há, entretanto, uma nota que se não costuma fazer ressaltar suficientemente, a partir do texto do artigo 33.° da Constituição em vigor e do artigo 6.° do Estatuto do Trabalho Nacional. Não há dúvida de que o princípio da subsidiariedade, neles consagrado, não leva a que devam entregar-se à iniciativa privada aqueles meios de produção cuja propriedade (como já se fizera menção na Quadragésimo Anno) venha a conferir um poder económico tal que constitua um perigo para o bem público. Na Mater et Magistra voltou-se a este ponto para salientar que na nossa época se verifica uma tendência para a expansão da propriedade pública do Estado e idos entes públicos menores. Mas reafirma-se que é conveniente continuarmos a conformar-nos, neste ponto, com o princípio da subsidiariedade. Tanto o Estado como os estabelecimentos de direito público não devem atender a sua propriedade para fora dos limites evidentemente exigidos pelo bem comum, e de modo nenhum com o simples objectivo de reduzir ou, pior ainda, de suprimir a, propriedade privada, tomando-se, simultaneamente, as convenientes medidas de escolha das pessoas responsáveis por estas explorações públicas, que vão ficar sujeitas a um contrôle atento e constante, que mais não seja para evitar a formação de núcleos de poder económico em prejuízo do bem da comunidade que é a sua razão de ser.
Ora, considerados estes pontos de doutrina, custa admitir que, como vem proposto, o Estado (e quem diz este diz qualquer entidade de direito público) "tome a seu cargo", e portanto faça incluir no sector público, actividades económicas só porque são "de primacial interesse colectivo". Há que combinar esta ideia com a que inspira a fórmula actual do artigo 33.° Na verdade, se a propriedade privada de certos meios de produção de primacial interesse colectivo for de ordem a pôr em perigo o bem comum ou a causar-lhe grave, detrimento, impõe-"e que para o evitar e, portanto, para conseguir benefícios sociais superiores aos que se obtêm sem a intervenção do Estado, este tome conta de tais explorações ou empresas.
No que respeita ao outro ponto versado no antigo 33.° o respeitante à intervenção na gerência de actividades económicas particulares, as alterações propostas são de menor relevo. Suprime-se, por um lado, o advérbio "directamente" e, pear outro, admite-se uma alternativa too fundamento dessa intervenção em vez da copulativa actual (ou em vez de e).
A supressão do referido advérbio justifica-se, pois que o problema se põe não só quanto à designação de administradores ou gerentes, como quanto à simples presença de delegados do Estado, para transmitirem à administração os pombos de vista e directrizes deste e para acompanharem, controlando-a, a gestão que das empresas façam os próprios empresários particulares.
A substituição da copulativa pela alternativa também merece apoio, sem embargo de provavelmente, na interpretação do texto actual, se dever chegar à mesma solução.

55. Em conclusão, para o corpo do artigo 33.° sugere a Câmara a seguinte redacção:

O Estado só poderá tomar a seu cargo actividades económicas de primacial interesse colectivo, em regime de exclusivo ou não, para conseguir benefícios sociais superiores aos que seriam obtidos em regime de simples iniciativa privada, e apenas poderá intervir na gerência, das actividades económicas particulares quando haja de financiá-las ou para conseguir benefícios daquela ordem superioras aos que seriam obtidos sem a sua intervenção.

Artigo 38.°

56. O texto agora proposto obriga apenas a que os litígios emergentes dos contratos individuais de trabalho não sejam julgados pelos tribunais ordinários comuns, isto é, por aqueles tribunais ordinários aos quais cabe julgar, segundo as leis processual civil e do processo criminal, a generalidade dos litígios de direito privado e de direito criminal. Do texto em análise não resulta que os tribunais de trabalho, que hão-de julgar os litígios emergentes dos contratos individuais de trabalho, tenham de ser tribunais ordinários especializados; poderão continuar a ser, como hoje têm de ser, ante a redacção do vigente artigo 38.° da Constituição, tribunais especiais. Em qualquer destes dois casos se dará ou poderá dar satisfação à necessidade de confiar a apreciação e julgamento desses litígios a órgãos jurisdicionais que possuam uma específica, preparação e aptidão técnica para a interpretação das normas materiais de direito laborai e para a

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apreciação dos factos da vida real nesse domínio. Enveredando pelo primeiro caminho, resultará que os tribunais de trabalho terão a sua organização fixada pelas normas do ordenamento judiciário geral, facto que implicará ficarem os juizes exactamente com o mesmo estatuto dos juízes dos tribunais ordinários comuns fixado na Constituição (artigo 119.°) e no chamado Estatuto Judiciário. Enveredando pela segunda via, teremos para os tribunais de trabalho uma organização especial e para os juizes um estatuto, no estabelecimento do qual o legislador ordinário não encontra pela frente vínculos constitucionais.
Constitui um progresso importante o facto de a Constituição deixar de impor esta segunda via, impedindo o legislador ordinário de trilhar a primeira, se, como muitos julgam, ela se lhe afigurar preferível, quer no que respeita à tutela adequada dos direitos privados, quer no que concerne ao próprio estatuto dos magistrados.

Artigo 39.º

57. Na sua actual redacção, este preceito limita-se a proibir a greve e o lock-out, a negar o direito à suspensão concertada do trabalho pelos dadores dele e a interrupção da laboração por parte dos empregadores. Mas não faria nenhuma espécie de sentido que, à supressão destes direitos, mediante o exercício dos quais trabalhadores e empresários procurariam realizar, em cada momento, a justiça comutativa nas suas relações de emprego, não correspondesse, como contrapartida, a obrigatoriedade de as respectivas organizações sindicais e gremiais (ou, quando estas últimas não existam, aquelas organizações e as empresas interessadas) procurarem uma solução pacífica para os seus litígios ou diferendos colectivos nas relações de trabalho, recorrendo a um sistema de conciliação por meio de comissões mistas e, no caso de este procedimento fracassar, se socorrerem de uma instância arbitral cuja imparcialidade e cujas possibilidades, de documentação estejam asseguradas. A sociedade tem especialíssima obrigação de curar da regulamentação adequada dos institutos da conciliação e da arbitragem, já que, com a denegação do direito de greve e de paralisado temporária da produção de certos bens ou serviços, de se liberta de sérios prejuízos no domínio da produção, do rendimento nacional e da sua distribuição. Especialmente pelo que concerne à arbitragem, é necessário providenciar para que ela seja confiada a quem realmente se encontre acima dos interesses contrapostos dos patrões e dos operários e tenha possibilidade de se documentar devidamente sobre a situação das categorias em litígio, designadamente sobre as condições financeiras das actividades. Será augurável que, sob a forma arbitral, os salários e outras condições de trabalho venham a ser lixados, dentro da zona de indeterminação, naquele ponto de equilíbrio transaccionai que corresponda ao que se fixaria ao fim da greve ou do lock-out. Numa economia em fase de desenvolvimento, como a nossa, em que circunstâncias excepcionais vêm impondo ou explicando a denegação de tais direitos à suspensão do trabalho ou da produção, justifica-se que a própria Constituição incumba ao legislador ordinário a adopção de sistemas de solução pacífica de diferendos colectivos nas relações de trabalho que façam o mais possível esquecer a impossibilidade, de recurso ao ultimum remedium - à greve e ao lockout.
No nosso sistema jurídico faltou, até ao Decreto-Lei n.° 49 212, de 28 de Agosto de 1969 (de que algumas disposições passaram a ter nova redacção por força do artigo 1.° do Decreto-Lei n.º 492/70, de 22 de Outubro, tendo-lhe também, aliás, este último diploma acrescentado alguns preceitos), a exacta individualização dos órgãos de conciliação e de arbitragem. Este defeito foi corrigido por esse importante diploma, que será a execução por parte do legislador ordinário do imperativo preceito, que ora se trata de estabelecer ao nível da lei fundamental.

Artigo 43.° (corpo do artigo)

58. Faltava na Constituição (salvo quanto ao ensino primário) uma directriz sobre a que se vem chamando, ainda que impropriamente, "democratização do ensino e da cultura" e que melhor se dirá "direito fundamental à instrução ou à educação e direito fundamental à cultura".
Neste artigo, na sua versão actual, com exclusão daquele ensino, limita-se o legislador constituinte a consignar que o Estado manterá escolas dos vários graus de ensino e instituições de alta cultura, sem definir uma orientação sobre as responsabilidades que ao Estado cabe nos dias de hoje assumir no domínio do acesso dos cidadãos do ensino e à cultura e sem reconhecer, por outro lado, o correspondente direito de cada homem, dentro da comunidade nacional, ao acesso a um e à outra.
No plano constitucional, perfilha-se e vinha-se, aliás, perfilhando desde o século XIX, afinal de contas, uma concepção "liberal", em cujos termos a educação e a cultura média e superior estariam abertas a todos. Simplesmente, o custo dos estudos punha-as fora do alcance do maior número. As carreiras mais lucrativas ou prestigiosas (as "carreiras liberais" ou "profissões liberais") estavam abertas a todos, a ninguém estava barrado o acesso a elas - mas, de facto, os detentores de riqueza tinham-no mais facilitado. Os liceus e Universidades estavam, na realidade, destinados à formação dos elementos dos estratos sociais materialmente privilegiados, sendo os meios de fortuna dos pais os factores determinantes da selecção.
Entretanto, já em 1942, Pio XII, na sua Mensagem de Natal, aludira a estes direitos fundamentais e os proclamara; e os seus sucessores. João XXIII, na Pacem in Terris, e Paulo VI, em mais que um documento e designadamente, na Populorum Progressio, bem como, por seu turno, também o Concílio Vaticano II, na Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo Contemporâneo, insistiram mais demoradamente na justiça e na necessidade da sua consagração. Em síntese, nestes textos proclama-se um direito universal do homem a uma educação, instrução ou cultura de base e a uma formação técnico-profissional correspondente ao grau de desenvolvimento da comunidade política a que ele pertence. Para além disto, caberá ao Estado proceder de tal modo que faculte aos cidadãos, de acordo com os seus respectivos méritos, capacidades e engenho, ascenderem aos graus superiores da instrução e da cultura e chegarem, na sociedade, a lugares, postos e responsabilidades o mais possível adaptados aos talentos, aptidões e competências alcançados.
Note-se que na proposta se não impõe, senão como meia directriz, ao Estado, a obrigação de assegurar a todos os cidadãos o acesso aos vários graus de ensino e aos bens da cultura, sem outra distinção que não seja a resultante das capacidades e dos méritos. Não são fixados os termos em que esta obrigação há-de ser cumprida. Este aspecto do problema será, portanto, versado em legislação ordinária. Da política concreta a adoptar neste domínio dependerá a efectivação do princípio da igualdade de oportunidades requerido pelo respeito devido à personalidade humana, que não é compatível com discriminação entre os homens.

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59. A proposta versa também, na redacção sugerida para o corpo do artigo 43.°, a matéria de que, na redacção actual, ele exclusivamente se ocupa. Reconhece-se que a nova redacção é preferível, porque deixou de estar actualizada a classificação aí consagrada das escolas e porque no texto vigente se não alude, como convém, a estabelecimentos de investigação, cuja existência em separado dos estabelecimentos de ensino superior, especialmente no capítulo da investigação aplicada, pode ser aconselhável.

Artigo 43.°, § 1.°

60. Na actual redacção deste § 1.° diz-se que o ensino a que aí se alude pode fazer-se não só em escolas oficiais, como também no lar doméstico e em escolas particulares. A eliminação da referência às escolas particulares não tem significado, dado o disposto no artigo 44.°, a respeito do qual se não propõe qualquer alteração. O que é relevante é a supressão da referência ao ensino no lar doméstico. Crê-se que essa referência não deverá manter-se.
Assim, o texto da proposta parece ser de aceitar.

TITULO X

Da liberdade religiosa, e das relações do Estado com a Igreja Católica

61. A ter-se como adequada a epígrafe do título X, resultaria que a proposta faria consistir a liberdade religiosa apenas na liberdade de culto e de organização das confissões religiosas. Na verdade, versando este título a liberdade religiosa e as relações do Estado com a Igreja Católica e tratando o artigo 46.° e os antigos seguintes justamente das referidas relações, da liberdade religiosa só pode tratar o artigo antecedente - artigo 45.° -, que "penas se refere a liberdade de culto e à liberdade de organização das confissões religiosas.
Mas o direito à liberdade religiosa é consabidamente mais alguma coisa que o direito à liberdade de culto e de organização religiosa. E, antes disso, o direito individual de, em matéria religiosa, não se ser obrigado a agir contra a própria consciência nem se ser impedido de actuar de acordo com ela, privada ou publicamente, só ou em associação.
A própria natureza social do homem exige que este manifeste externamente os actos internos da religião, comunique com outros em matérias religiosas e professe a sua religião de modo comunitário. (Daí a liberdade da prática de actos religiosos, a liberdade de culto, particular e público, de cada um.)
Do facto de a liberdade religiosa competir a cada pessoa, não apenas tomada individualmente, mas também quando actua em comum, resulta, por outro lado, que os homens podem constituir comunidades religiosas. Estas comunidades, por sua vez, terão o direito de livre organização, administração e comunicação, o direito de honrarem a divindade com culto público, o direito de ensinarem ou de professarem publicamente a sua fé, o direito de, pela propaganda, mostrarem livremente a eficiência particular da sua doutrina para ordenar a sociedade e vivificar toda a actividade humana e o direito de livremente se reunirem e de formarem associações ou instituições educativas, culturais, caritativas é sociais.
A liberdade religiosa não é, porém, apenas um direito individual; é também um direito familiar. Cada família, enquanto comunidade que é, goza de um direito próprio e primordial, o direito de ordenar livremente a sua vida religiosa doméstica sob a direcção dos pais. A estes compete determinar a formai de educação religiosa que se há-de dar aos seus filhos, de acordo com as suas próprias convicções religiosas.
Simplesmente, o Estado, o poder civil, não deve limitar-se a não criar embaraços escusados ao exercício do direito de liberdade religiosa. Visito que, de um modo geral lhe compete proteger e promover os direitos invioláveis do homem, esse podar deve assumir a protecção da liberdade religiosa, de todos os cidadãos e criar condições propícia ao desenvolvimento da vida religiosa. Especialmente cumpre-lhe providenciar para que ia igualdade jurídica de cidadãos nunca seja violada por motivos religiosos e, consequentemente, para que entre eles, por esse facto, se não estabeleça alguma discriminação.
A liberdade religiosa não é, entretanto, jurídicamente ilimitada. A ideia do bem comum e de uma ordem moral objectiva legitima que se editem normas moderadoras dessa liberdade:, exigidas pela tutela eficaz e pacífica harmonia dos direitos de todos os cidadãos, pelo zelo da paz colectiva e pela salvaguarda da moralidade pública.
Tal é, em resumo, e empregando tanto quanto possível as próprias palavras oficiais, a doutrina, da Igreja, expressa pelo Concílio Vaticano II na sua Declaração sobre a Liberdade Religiosa, que, aliás, desenvolve e confirma numerosas tomadas de posição de vários Pontífices, a parto de Leão XIII. Destas aproxima-se a Declaração Universal dos Direitos do Homem, votada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de Dezembro de 1948 (artigos 18.°, 19.° e 20.°).
Esta doutrina não está toda ela traduzida na formulação proposta para o artigo 45.° Seria, entretanto, fazer uma duplicação versar neste lugar da Constituição todo o conteúdo do direito de liberdade religiosa: a liberdade de crença religiosa sob qualquer forma, individual ou comum, (com a consequente Uberdade de organização, administração e comunicação), a liberdade de culto, a liberdade de propaganda ou de proselitismo e a liberdade de ensino religioso, contanto que se não contrariem os demais princípios constitucionais, nem se atente contra a ordem social e os bons costumes e que os ritos praticados respeitem a vida, a integridade física e a dignidade das pessoas. E que a liberdade de crença já está consagrada no artigo 8.°, n.° 3.°, que, de resto, garantindo a liberdade de práticas religiosas, faz, por sua vez, segundo se crê, uma duplicação com a liberdade de culto, prevista hoje nos artigos 45.º e 46.°, e que a proposta em análise refere no artigo 45.° A liberdade de ensino e a liberdade de reunião e de associação, por seu lado, estão, de um modo geral; previstas no mesmo artigo 8.°, n.ºs 5.° e 14.°, tornando-se, assim, ao que parece, desnecessária uma estatuição especial, no ponto em que essas liberdades se relacionam com a Religião. A liberdade de propaganda ou de proselitismo cabe, por sua parte, na geral liberdade de expressão de pensamento, sob qualquer forma, a que se alude no artigo 8.°, n.° 4.°
Daqui resulta, no modo de ver da Câmara, não ser adequado dizer-se, na epígrafe do título X, que aí se vai tratar (subentende-se que de um modo geral) da liberdade religiosa. Do que, à parte as relações do Estado com a Igreja Católica, aí se trata e tratará é apenas de dois dos direitos em que a liberdade religiosa se analisa: digamos, da liberdade de culto e da liberdade de organização das confissões religiosas. E esta a matéria do proposto artigo 45.º
Por outro lado, nos artigos seguintes não se trata apenas das relações entre o Estado e a Igreja Católica; trata-se também das relações entre o Estado e as outras confissões.
Assim, o título X deverá ser encimado pela seguinte epígrafe: "Da liberdade de culto e de organização reli-

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dosa e das relações do Estado com a Igreja Católica e demais confissões."

Artigo 45.°

62. O artigo 45.°, como aliás todo o título X, versando problemas constitucionais de ordem religiosa, como que se furta, pudicamente, a referir o nome de Deus, que é justamente a Quem se dirige o culto de que se fala. Se é discutível que num Estado aconfessional, como é o nosso, a Constituição se deva colocar sob a invocação do nome de Deus, como há quem pretende, se é ainda mais discutível que deva ser na altura de uma revisão dela que tal invocação se há-de introduzir no seu texto ou no seu pórtico, não parece sê-lo que, no lugar em que mais amplamente se alude àqueles referidos problemas constitucionais de ordem religiosa, seja censurável procurar o legislador constituinte fórmulas hábeis para se dispensar de a Ele fazer alusão. Proceder assim é quase, da parte do legislador constituinte, tomar uma posição confessional "ao contrário", uma atitude confessional de sinal oposto, quando na verdade não foi essa seguramente a sua intenção. Deverá, portanto, nesta oportunidade, o legislador de revisão, ao modificar várias das disposições do título X, usar, sem respeitos humanos, da linguagem apropriada, não deixando, como é naturalíssimo, de mencionar aí o nome de Deus, um nome que leis fundamentais bem modernas de países nada suspeitos de confessionalismo (a Câmara está a lembrar-se, por exemplo, da República Federal da Alemanha, da Tunísia, do Gabão, entre tantos outros) empregam e invocam sem reticências.
Entende a Câmara que, correspondendo a esta directriz, no artigo 45.° se pode começar por dizer que o Estado assegura a liberdade do culto de Deus.
Poderá objectar-se que na Igreja não se presta apenas culto a Deus, mas também à Virgem, aos anjos e aos santos e bem-aventurados. Todas as honras e homenagens dirigidas a estes se referem a Deus, e só são dignos leias porque são amigos de Deus, Lhe estão inseparavelmente unidos e participam da Sua glória (cf. J. A. da Silva Marques, "Culto", in Verbo - Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, 6).
É possível que surja ainda a crítica de que num país como o nosso, em que certas populações, sem chegarem a ser propriamente politeístas, praticam entretanto cultos animistas, não é legítimo ter em vista e garantir apenas as práticas religiosas monoteístas. Será, entretanto, fácil responder que não ó essa a intenção do legislador, e que politeístas e animistas encontrarão em tal texto, sem dúvida nenhuma, bom fundamento para reivindicarem a sua liberdade de culto e de ritos.

63. A Igreja admite que a liberdade religiosa e, consequentemente, a de culto e de organização sofram limites, como se pode verificar lendo a citada Declaração sobre a Liberdade Religiosa. O artigo 45.° respeita também, neste aspecto, a sua doutrina. A única questão que se pode pôr é a de saber se, de acordo com tal Declaração, é lícito consignar-se como limite à liberdade das confissões religiosas o respeito pelos princípios fundamentais da ordem constitucional e pela ordem social definida na Constituição. Para negar legitimidade a esse limite seria necessário demonstrar que a lei fundamental não consagra normas "conformes com a ordem moral objectiva, exigidas pela tutela eficaz e pacífica harmonia dos direitos de todos os cidadãos, pelo suficiente zelo pela honesta paz pública, que é a ordenada convivência na verdadeira justiça, e pela devida salvaguarda da moralidade pública". Tudo isto, que "constitui uma parte fundamental do bem comum e brota da noção de ordem pública", é o que precisamente a Constituição procura assegurar e promover. Não parece, portanto, haver qualquer fundada divergência entre o que se consigna na proposta, em matéria de limites à liberdade de culto e de organização religiosa, e os ensinamentos da Igreja.
Neste artigo, e quanto a este ponto, retoma-se, afinal, a posição que está hoje definida no § único do artigo 46.° e no artigo 139.° Falta apenas a referência aos tratados e convenções internacionais, a que se alude hoje no último destes preceitos, mas essa omissão é propositada e irrelevante, dado o princípio geral que se consigna nos artigos 3.° e 4.°

64. A Câmara sugere, assim, a seguinte redacção:

O Estado assegura a liberdade do culto de Deus, bem como a de organização das confissões religiosas cujas doutrinas não contrariem os princípios fundamentais da ordem constitucional, nem atentem contra a ordem social e os bons costumes e desde que o culto praticado respeite a vida, a integridade física e a dignidade das pessoas.

Artigo 46.° (corpo do artigo)

65. A Lei n.° 2048, de 11 de Junho de 1951, veio introduzir no artigo 45.° da Constituição a afirmação de que é livre o culto da religião católica como culto da religião da Nação Portuguesa, com vista a pôr em realce a particular posição de que no nosso país, em comparação com as outras confissões religiosas, goza essa religião.
Esta declaração constitucional merece várias críticas. A primeira consiste em fazer notar que, deste modo, se disfarça mal um certo desvio ao "regime de separação", também proclamado na lei fundamental, na direcção do "regime de união" ou de religião oficial, tão inconveniente para a Igreja Católica como para o Estado. Depois, observa-se que na Nação Portuguesa não se professa só essa religião nem apenas uma das grandes religiões monoteístas - e que, em rigor, é mesmo inexacto que a religião católica seja hoje a religião da maioria dos portugueses, ao contrário do que, de algum modo, é sugerido por aquela fórmula. Finalmente, pode dizer-se que não faz grande sentido afirmar que o culto da religião católica é livre como "culto" da Nação Portuguesa: ele ó livre porque é tradução de um direito fundamental das pessoas e das comunidades religiosas em que estas se integram.
Na proposta em apareço transparece a ideia de que o legislador constituinte, se reconhece que o Estado não tem religião oficial, não pode ignorar as relações muito especiais que na realidade existem e estão consagradas entre a Nação Portuguesa e a Igreja Católica. Esta não é posta em verdadeiro pé de igualdade com as outras confissões religiosas. Enquanto estas são organizações de direito privado, meramente lícitas, que actuam sob a tutela ou contrôle do Estado, como outras organizações ou entidades de direito privado, a Igreja Católica é reconhecida como uma entidade soberana, dispondo do seu próprio direito e mantendo relações com o Estado Português, do tipo das que se estabelecem de Estado com Estado, isto é, relações bilaterais ou convencionais. Por outro lado, nos termos da Concordata em vigor, cabe à Igreja e à religião católica um certo número de regalias que não são concedidas em Portugal a nenhuma outra confissão ou religião - facto que inquestionavelmente se deve a que o Estado Português não toma uma posição inteiramente neutral perante os valores religiosos próprios do catolicismo, antes reconhece uma superioridade ética a esses valores ou, de qualquer modo, reconhece

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que eles são os valores a que um largo sector da população portuguesa presta adesão e rende culto.
Crê-se que, quando agora, na proposta em apreço, se afirma que "a religião católica apostólica romana é considerada como religião tradicional da Nação Portuguesa", se não pretende outra coisa senão continuar a sublinhar, com esta nova fórmula, a situação especial em que a religião católica se encontra no nosso país, bem diferente daquela em que as outras confissões se encontram, que é uma pura situação de direito privado, confinada, como atrás se disse, ao domínio do juridicamente lícito e eticamente indiferente. Sem a afirmação dessa especial situação, Ida qual resulta que a Igreja Católica coopera com o Estado na realização das finalidades que este constitucionalmente julga dever realizar, numa perspectiva neutralista, muitas das normas de direito ordinário resultariam incoerentes e a maioria das próprias disposições do nosso direito concordatário sê-lo-iam também.
Simplesmente, a melhor forma de expressar esta ideia ou este propósito não parece consistir em se afirmai- que a religião católica é a religião da Nação Portuguesa (como se diz hoje no artigo 45.°) nem, como agora se propõe, em se declarar que ela é considerada como religião tradicional da Nação Portuguesa. Afirmar, que ela é a religião da Nação Portuguesa é, ante o pluralismo de crenças religiosas nacionais, em que sobressai, além do catolicismo, o maometismo, ser-se claramente inexacto. Dizer que ela é considerada como religião tradicional da Nação Portuguesa também é inexacto, pelo menos, na medida em que é só parcialmente verdadeiro: quanto mais não seja a partir do momento histórico já recuado em que a Nação se alargou para fora do seu primitivo quadro europeu e passou a compreender outros povos e outras gentes, outras creanças passaram a ser próprias da Nação Portuguesa, de tal maneira que, com rigor, bem se pode dizer que várias são hoje de considerar religiões tradicionais da Nação. Acresce que a expressão também se pode entender - ainda que com deslealdade, é certo - no sentido de que a religião católica não é uma religião que os Portugueses professem com autenticidade, antes é apenas algo de tradicional, algo que, por isso tende a deixar de ser.
A melhor fórmula para traduzir o significado fundamental da declaração em causa ainda a esta Câmara parece ser uma decalcada na que advogou na seu parecer n.° 13/V (Diário das Sessões, n.° 74, de 24 de Fevereiro de 1951). Nessa altura, a Câmara Corporativa sugeriu que o artigo 46.° começasse por esta afirmação: "O Estado reconhece a posição especial da Igreja Católica, em que professa, a maioria dos portugueses." A última parte deste período, pelais razões já ditas, não pode perfilhar-se, mas a primeira merece consagração. A esta Câmara afigura-se que a formulação mais apropriada à finalidade tida em vista será esta ou outra semelhante: "E reconhecida a posição especial da religião católica entre as várias crenças professadas pelos portugueses."
A propósito, note-se que não se afigura necessário identificar como "apostólica romana" a religião católica. Quando se fala de "igreja católica lusitana" é que é imperioso adjectivar suplementarmente a locução "igreja católica".

66. Prossegue-se, na redacção proposta para o artigo 46.°, com a declaração de que "a Igreja Católica goza de personalidade jurídica", omitindo-se o mais que a isto se segue no texto vigente do artigo 45.° e corresponde, aliás, ao que consta da Concordata. Francamente, a Câmara não sente o peso da razão, invocada no relatório da. proposta, que conduziu o Governo a omitir aqui que a Igreja Católica se pode organizar de harmonia com o direito canónico e constituir por essa forma associações ou organizações cuja personalidade jurídica ó igualmente reconhecida - e, por via disso, sugere que o texto actual subsista.

67. Seguidamente, enquanto no actual artigo 45.° 8e diz que o Estado mantém em relação à Igreja Católica o regime de separação, no proposto artigo 46.º declara-se que o regime das relações do Estado cora as confissões religiosas - portanto as confissões religiosas em geral - é o de separação.
Ora não parece a uma parte da Câmara que as relações entre o Estado e a Igreja Católica e as relações entre o Estado e as demais confissões religiosas se pautem pelo mesmo sistema. Não pode esquecer-se, na verdade (e a Constituição italiana não o esqueceu, dizendo-o expressamente no seu artigo 7.°), que a Igreja é uma comunidade soberana que o Estado Português reconhece como tal, de tal modo que as suas relações com o Estado são relações entre entidades independentes na sua respectiva ordem reguladas, no mais alto escalão, por normas de direito internacional - ao passo que as relações do Estado com as demais confissões religiosas são relações de direito interno, visto tais confissões não serem nem soberanas nem independentes. Não se pode, assim, dizer que o Estado será independente em relação a essas confissões ou que estas sejam independentes em relação ao Estado. O Estado regula unilateralmente as suas relações com elas por meio da sua própria legislação, e elas estão em relação ao Estado numa dependência de ordem "policial", razão por que se lhe torna possível evitar que elas se evadam do domínio do licito ou reprimir as suas contravenções ao estatuto que para cada uma delas tenha sido aprovado unilateralmente por ele. E esta a posição que, para todas as confissões religiosas (incluindo a religião católica), foi fixada pelo artigo 2.° da "Lei da Separação" de 20 de Abril de 1911, na esteira de idêntica lei francesa de 1905 e da correspondente do cantão de Genebra, de 1909: "Todas as igrejas ou confissões religiosas são igualmente autorizadas como legítimas agremiações particulares, desde que não ofendam a moral pública nem os princípios do direito público português."
Essa parte da Câmara entende, assim, que não é apropriado associar todas as confissões religiosas para efeito de as considerar constitucionalmente submetidas ao mesmo sistema de relações com o Estado. É preciso, para se ser exacto, assinalar, numa fórmula adequada, que o Estado e a Igreja Católica são duas entidades soberanas e independentes na sua respectiva ordem, são duas entidades cujo direito próprio não tem a fonte ou o fundamento da sua validade numa norma, pertencente à outra entidade soberana; e que têm naturalmente de regular as relações entre si, como partes colocadas em pé de igualdade jurídica, par acordos e por "concordatas" - dado que os fiéis são, ao mesmo tempo, cidadãos portugueses e que os interesses que uma e outra prosseguem não se encontram separados, requerendo uma colaboração entre ambas. As relações do Estado com as outras confissões são diferentes: estas sim, são separadas do Estado, no sentido de que este não interfere com a sua autonomia privada, salvo na medida estrita em que lhe cumpre salvaguardar os interesses da "ordem pública"; e o seu respectivo "direito" tem o fundamento da sua validade na própria ordem jurídica estadual.
A parte majoritária da Câmara, sem embargo de também entender que as relações do Estado Português com a Igreja Católica se baseiam na independência e subentendem a colaboração entre os dois poderes, propende para

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que se deva acentuar no texto do artigo em análise que é de separação o regime das relações do Estado com todas as confissões religiosas. Considera ela que o regime de independência e colaboração (concordatária) não tem autonomia conceitual em relação ao de separação.
Assim, entenda a Câmara que se deve aproveitar o ante ensejo para exprimir com o desejável rigor técnico-jurídico o sistema de relações do Estado Português com a Igreja Católica e com as demais confissões religiosas. Em vez da fórmula proposta pelo Governo, deverá dizer-se que "as relaições do Estado Português com a Igreja Católica assentam na independência dos dois Poderes na respectiva ordem e na colaboração que, sobre matérias de interesse comum, seja definida em concordatas e acordo". Após estas afirmações, no artigo em análise há-de dizer-se que "o regime das relações com as confissões religiosas é o da separação".

68. Esta Câmara considera apropriado suprimir-se a afirmação de que haverá relações diplomáticas entre a Santa Sé e Portugal, mediante recíproca representação. Tudo quanto se impõe afirmar na Constituição é que o Estado Português reconhece a independência da Igreja e portanto, a sua soberania, na respectiva ordem. Daqui decorre que os dois Poderes, justamente porque soberanos, poderão manter relações diplomáticas, mediante recíproca representação, entre eles. Mas o legislador constituinte não pode impor unilateralmente que essas relações sejam bons e muito menos que elas sejam permanentes. São sempre possíveis crises nas relações entre as duas soberanias - e nada exclui que se possa chegar, em alguma oportunidade, por iniciativa de qualquer delas, ao corte ou suspensão de relações diplomáticas. Aliás, e por último, não pode ignorar-se que já foi sugerido, no próprio seio da Igreja, que esta suprima o seu actual sistema de representação internacional, o que, a vingar, implicará que a Igreja elimine o seu serviço público diplomático.

69. Por último, no artigo cujo texto ora se aprecia deixa de se fazer alusão à esfera do Padroado Português do Oriente, ao contrário do que hoje sucede com os artigos 45.°, 133.° e 140.° Transcreve-se o que a este respeito pensa autorizadamente o P.° António Leite: "Parece-nos oportuna a omissão de tal referência, o que, evidentemente, não significa a abolição do Padroado. Deixar-se-á apenas aberta a porta a negociações futuras", que se tornariam "quase impossíveis se se mantivesse na Constituição a referência ao Padroado do Oriente" (in Alguns Aspectos da Reforma Constitucional, separata da Brotéria, vol. XCII, 1971, p. 10). E que, por um lado, o 2.° Concílio do Vaticano pediu aos Estados que renunciassem aos privilégios relativos à nomeação dos bispos, como pode ver-se no Decreto sobre o múnus pastoral dos bispos, o que, como também lembra o P.e António Leite, virá a impor um entendimento entre o Estado Português e a Santa Sé sobre o assunto. Por outro lado, torna-se muito problemática a possibilidade de Portugal exigir, na altura própria, o cumprimento das obrigações da Santa Sé no que respeita à apresentação do Patriarca das Índias, cuja sé se encontra em Goa. O Governo Português- deseja ficar com as mãos livres para negociar sobre tais problemas, no momento oportuno, com a Santa Sé.

70. Ante o exposto, a Câmara recomenda para o corpo do artigo 46.° a redacção seguinte:

É reconhecida a posição especial da religião católica entre as várias crenças professadas pelos portugueses. A Igreja Católica goza de personalidade jurídica, podendo organizar-se de harmonia com o direito canónico 6 constituir por essa forma associações ou organizações, cuja personalidade jurídica é igualmente reconhecida. As relações do Estado Português com a Igreja Católica assentam na independência dos dois Poderes na respectiva ordem e na colaboração que, sobre matérias de interesse comum, seja definida em concordatas c acordos. O regime das relações do Estado com as confissões religiosas é o da separação.

Artigo 48.°, § único

71. Esta disposição vem a ser a reprodução, com adaptações, do actual artigo 140.° da Constituição. As alterações traduzem-se, fundamentalmente, na falta de referência à personalidade jurídica das missões e às concordatas e mais acordos celebrados com a Santa Sé, a elas relativas.
A referência específica à personalidade jurídica das missões justifica-se tanto menos quanto se venha a perfilhar a sugestão desta Câmara, feita atrás, em comentário ao corpo do artigo 46.°, de que subsista a alusão hoje feita ao direito da Igreja de constituir associações ou organizações cuja personalidade jurídica é reconhecida.
A menção das concordatas e acordos, se tinha justificação, deixa de a ter, por o assunto das missões vir agora tratado sob a forma de um parágrafo do artigo em que, de um modo geral, se trata das relações entre o Estado e a Igreja e onde precisamente se prevê que estas serão objecto de concordatas e acordos.
A Câmara sugere, entretanto, que, para actualização do preceito no campo das ideias e da terminologia, se diga que as missões têm, em quanto especificamente interessa ao Estado, fins de educação e de promoção social. O parágrafo ficaria assim redigido:

As missões católicas portuguesas do ultramar e os estabelecimentos de formação do seu pessoal serão protegidos e auxiliados pelo Estado como instituições de educação e promoção social.

Artigo 49.°, n.° 2.°

72. É conhecido o alcance do artigo 49.º da Constituição: é opinio communis, hoje em dia, que neste preceito apenas se faz uma enumeração das coisas públicas do Estado, a que o legislador ordinário não poderá retirar esse carácter. O âmbito do domínio público fixado na Constituição não pode ser reduzido pela legislação comum; mas nada impede que continue em vigor toda a legislação que considere outras coisas, além das aí indicadas, como públicas, nem que nova legislação submeta ao estatuto da propriedade pública outros bens, diferentes dos elencados no artigo 49.°
Assim, a Lei n.° 2080, de 21 de Março de 1956, aplicável na metrópole e no ultramar (onde foi em especial confirmada pelo Regulamento da Concessão de Terrenos nas Províncias Ultramarinas, aprovado pelo Decreto n.° 43 894, de 6 de Setembro de 1961), veio declarar que pertencem ao domínio público do Estado o leito do mar e o subsolo correspondente nas plataformas submarinas contíguas às costas marítimas portuguesas, continentais ou insulares, que se denominam plataformas continentais, mesmo fora dos limites do mar territorial.
A inclusão de uma norma na Constituição, segundo a qual a plataforma continental pertence ao domínio público do Estado, não pode, pois, ter outro sentido que não seja vedar ao legislador ordinário revogar a norma da base 1.ª da Lei n.° 2080, na parte em que declara essa plataforma pertencente a tal domínio.

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Não se vê inconveniente na alteração proposta. Quanto às vantagens dessa adição, deve reconhecer-se que elas não são positivamente de grande monta, como, aliás, de um modo geral, não são consideráveis os proveitos que resultam da inclusão de todo o corpo do artigo 49.° na Constituição.
O que não parece apropriada é a redacção que vem sugerida para o n.° 2.° deste artigo. Há, em primeiro lugar, uma objecção a que, em vez de se falar, como hoje nesse número se fala, em águas marítimas, se fale em águas territoriais. E que o domínio público do Estado, no que respeita a águas marítimas e seus leitos, abrange, não apenas o mar territorial, mas também as chamadas águas interiores, ou seja, as águas dos portos, estuários, baías e outras parcelas fechadas do mar - o que tem, ou pode ter, importância para o efeito do traçado das linhas de base a partir das quais se determina a extensão do mar territorial em dados portos da costa. A expressão "águas marítimas" abrange tanto as águas salgadas interiores como o mar territorial ou águas territoriais - e é, indubitavelmente, este o seu alcance na redacção actual do h.° 2.° do artigo 49.° Não terá, por certo, sido intenção do Governo, ao propor a substituição da expressão águas marítimas por águas territoriais, restringir as águas marítimas (e seus leitos) que constitucionalmente deverão considerar-se pertencentes ao domínio público do Estado, desejando que a outra parcela continue a pertencer ao domínio público, mas não por efeito de preceito constitucional. Não se perceberia por que é que este haveria de ser o seu intento.
Desta sorte, recomenda a Câmara que, em vez de em águas territoriais, se continue a falar em águas marítimas, neste n.° 2.°
Observe-se que, na redacção encarada pelo Governo, a plataforma continental aparece contraposta aos leitos das águas territoriais, quando é certo que, nos termos da base I da Lei n.° 2080, O solo e o subsolo correspondentes às águas territoriais também fazem parte da plataforma continental.
A verdade, porém, é que, para a Convenção de Genebra de 1958 sobre a Plataforma Continental, que visou definir o estatuto jurídico do solo e subsolo das áreas submarinas adjacentes às costas, mas apenas fora da área do mar territorial, plataformas continentais são apenas estas últimas áreas. É este o sentido mais corrente da expressão e é a ele que se deve referir o preceito em análise. Às áreas do solo e subsolo das águas marítimas portuguesas já a Constituição se refere no texto actual do preceito. O que interessa é fixar, para efeitos de direito interno, o estatuto do solo e subsolo na área do alto mar adjacente às águas marítimas portuguesas, área que, nos termos da Convenção referida, se designou por "plataforma continental". Deste modo, a disposição em apreço deverá ficar assim redigida:

As águas marítimas, com os seus leitos, e as plataformas continentais.

Artigo 51.° (corpo do artigo)

73. A redacção do corpo deste artigo é, com adaptações, a do corpo do actual artigo 161.° - o qual passaria, assim, a ser de aplicação a todo o território nacional.
O Governo terá pensado, julga-se que sem razão, que esse texto comporta também o sentido e alcance do actual artigo 51.°
No que respeita ao ultramar, ele é hoje desenvolvido pela base LXXIX da Lei Orgânica do Ultramar Português.
O texto do actual artigo 51.° tem servido para fundar a indisponibilidade de certos bens do Estado e de outro entes públicos; directamente afectos aos serviços público ou, mais latamente a fins de utilidade pública. Trata-se de bens privados que não são objecto de pura exploração financeira por parte da Administração.
Não há dúvida de que nessa categoria de bens privados indisponíveis devem incluir-se aqueles que a própria lei assim considere, quando menos pelo especial regime que paia eles fixe. Mas (na base do actual artigo 51.°) também se devem considerar indisponíveis outros, a respeito dos quais a lei se não pronuncie expressamente, que se encontrem directamente afectos ao funcionamento de um serviço público ou a fins de utilidade pública. Note-se que a todos estes, por tal razão, os considera o Código de Processo Civil, no seu artigo 823.°, impenhoráveis.
A nova redacção proposta para o artigo 51.° implica a consagração do critério da enumeração dos bens do património indisponível do Estado, em prejuízo do critério da afectação, até hoje admitido, com base na redacção actual desse artigo. Não parece que neste sentido se deva caminhar.
Por outro lado, não se impõe dizer que a lei especificará os bens do domínio público. A lei e a doutrina em geral têm admitido que os bens do domínio público não são taxativamente enumerados pela lei. Esta consagra um critério geral de definição dos bens sob esse regime, de acordo com o qual, na ausência de normas especiais que se desviem desse, critério, os bens do Estado se qualificam como públicos.
Parece, portanto, que a melhor formulação para o preceito ainda é, afinal de contas, a actual.
O legislador, aliás, não fica inibido de especificar quaisquer bens a respeito dos quais não deseje que haja dúvidas de que são indisponíveis. Haverá sempre lugar, por exemplo, para uma norma como a da actual base LXXIX da Lei Orgânica do Ultramar Português.
Assim, em resumo, o corpo do artigo 51.° deverá, no entender da Câmara, continuar como está redigido: "Não podem ser alienados quaisquer bens ou direitos do Estado que interessem ao seu prestígio ou superiores conveniências nacionais."

Artigo 51.°, § único

74. Este parágrafo representa, praticamente, a transposição do § único do vigente artigo 161.° da Constituição. A lei constitucional já se ocupou, no passado, ela própria, de dispor directamente sobre as concessões e ocupações de parcelas de terrenos nas condições do corpo do actual artigo .1&1.° Assim sucedeu com os artigos 9.° e 10.° do Acto Colonial. Essa matéria passou para a Lei Orgânica do Ultramar Português, na base do § único do artigo 1&1.°, texto segundo a Lei n.° 2048.
Apesar de tudo, o preceito é julgado dispensável, uma vez que constitui duplicação do que já se encontra disposto no § único do artigo 49.° e do que passa a dizer-se no artigo 60.°

TITULO XIII

Das empresas de interesse colectivo e das concessões

75. Esta epígrafe vem substituir a actual, assim formulada: "Das administrações de interesse colectivo."
Em primeiro lugar, parece realmente de aceitar que em vez de "administrações" se fale em "empresas". O termo "administrações" não inculca a natureza privada das entidades em causa.
E já que se introduz neste título um artigo sobre concessões, é compreensível que na sua epígrafe se aluda a elas.

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Artigo 89.°

76. 0 objectivo deste preceito foi, até agora, não apenas legitimar, mas mesmo impor que certos tipos de empresas privadas (por via de regra, sociedades comerciais) estejam sujeitas, não obstante essa sua natureza de empresas privadas, a um regime que não é puramente de direito privado, como em princípio deveria ser para exprimir o domínio e direcção dos capitalistas e empresários privados sobre o que legalmente lhes pertence. Só na base de uma disposição constitucional específica, ante o valor genérico do princípio geral da subsidiariedade, deduzível de várias normas constitucionais, do preceito que consagra o direito fundamental de propriedade (dos meios de produção de bens ou serviços) e do que consagra a liberdade de indústria, é que se pode conceber a legitimidade de uma Intervenção do Estado que tão profundamente restringe e comprime, ou pode restringir e comprimir, a liberdade de empresa, a iniciativa e a propriedade privada, conformando compulsòriamente as decisões dos empresários e capitalistas e convertendo em larga medida certas empresas em estabelecimentos públicos à ordem da Administração, excluídas do sector privado. As empresas privadas de que se fala no artigo 59.° ficam em grande medida sujeitas às decisões económicas da Administração, a heterodecisões, ainda que os empresários sejam mantidos na propriedade dos estabelecimentos e ainda que essas decisões devam vinculativamente manter-se no quadro dos objectivos sociais e económicos fixados no próprio artigo 59.° 11.
A finalidade do artigo 59.° não deve ser alterada. Do que se trata ó justamente de dar fundamento constitucional às normas de direito ordinário que, em relação às "empresas de interesse colectivo" (as quais são, repete-se, empresas privadas), instituam uma sujeição mais ou menos intensa delas à Administração.
Nesta ordem de ideias, afigura-se à Câmara não se impor que se preveja a legitimidade da atribuição, nos regimes especiais de cada categoria dessas empresas, de certos direitos. O legislador ordinário pode conceder-lhes, ante as imposições do bem comum, os direitos ou prerrogativas que entender adequados, sem com isso contender com qualquer princípio ou preceito constitucional, designadamente o que dispõe sobre a igualdade jurídica. Assim, se, por exemplo, na lei ordinária se lhes conferir o direito à expropriação por utilidade pública dos imóveis de que careçam, ou se se lhes permitir beneficiarem do regime das empreitadas de obras públicas, não se requer para tanto qualquer base constitucional específica.
Em rigor, parece que a matéria da nacionalidade das empresas de interesse colectivo (exigência de que sejam nacionais e não estrangeiras, pelo menos em alguns casos) também não tem de ser aqui prevista: no artigo 7.° prevê-se a equiparação entre nacionais e estrangeiros no campo dos direitos privados "se a lei não determinar o contrário". Daqui resulta, sem necessidade de outro qualquer fundamento constitucional, que o legislador pode estabelecer que as empresas de interesse colectivo, ou algumas delas, devam ter a nacionalidade portuguesa. Ver hoje, em geral, sobre este ponto, o Decreto n.° 46 312, de 28 de Abril de 1965.
Em matéria de pessoal, quererá a proposta aludir, provavelmente, às limitações já previstas no artigo 25.°, com referência ao artigo 24.°, ambos da Constituição. Mas aquele já alude a "empresas que exploram serviços de interesse público", expressão que deve, parece, equiparar-se a "empresas de interesse colectivo". Na dúvida, porém, transige-se com a inclusão da referência ao pessoal destas empresas.
Parece, por sua vez, requerer-se a menção dos corpos gerentes. Além do mais, desaparecerão quaisquer, dúvidas sobre a constitucionalidade de normas como as da Lei n.° 2105, de 6 de Junho de 1960, sobre remuneração, acumulações e incompatibilidades dos corpos gerentes de empresas desta ordem.
Não se concorda com que se não mencione que as empresas de interesse colectivo possam estar sujeitas a regime especial quanto a concurso, como no texto actual do artigo 59.º se estabelece. Trata-se de um assunto para que, à primeira vista, se não requer base constitucional especial. Mas não é assim. Designadamente para incrementar o desenvolvimento económico (um dos fins indicados no artigo 59.°), pode justificar-se que o Estado tenha de autorizar novas indústrias, em sectores que interesse desenvolver, por concurso público, como recentemente procedeu no sector dos petróleos e da petroquímica, atribuindo aos adjudicatários benefícios do tipo fiscal, creditício, auxílios e garantias directas. As restrições à liberdade de indústria, que o concurso implica, carecem de apoio constitucional, segundo se crê.
Cuida-se, em resumo, que a parte inicial do texto do artigo 59.° deverá ser esta:

São consideradas de interesse colectivo e sujeitas a regimes especiais, no tocante aos seus deveres, concurso, administração e gerência, pessoal e intervenção ou fiscalização do Estado...

No texto proposto, como aliás também no actual, consigna-se a seguir o quadro de interesses colectivos cuja relevância, em relação a cada tipo de empresas, ditará o regime especial da intervenção estadual que a lei lhes há-de respectivamente fixar - regime que, portanto, não tem de ser, e efectivamente não é, uniforme. (Por isso, prefere a Câmara falar em regimes especiais e não, como vem proposto, em regime especial). O Governo sugere algumas alterações em relação ao que se encontra hoje dito no artigo 59.°, a este respeito.
É necessário ponderar a alteração advogada, no que concerne à definição das empresas de interesse colectivo. Segundo a "redacção em vigor, são todas e apenas "as empresas que visem ao aproveitamento e exploração das coisas que fazem parte do domínio público do Estado" - quer dizer: as empresas concessionárias de serviços públicos (ou de obras públicas e serviços públicos, conjuntamente) que impliquem a utilização ou o aproveitamento privativo de coisas públicas (aproveitamento mediato); e as empresas concessionárias da exploração das coisas públicas.
Na primeira parte da sua enumeração - "empresas concessionárias de serviços públicos, de obras públicas ou da exploração, de coisas do domínio público - os dois textos, o actual e o proposto pelo Governo, coincidem, portanto.
Mas há um certo número de outras empresas, a respeito das quais, tanto e às vezes mais do que em relação

11 É certo que já no Código Comercial (artigo 178.°) se admitia que. as sociedades anónimas que explorassem concessões feitas pelo Estado ou por qualquer corporação administrativa, ou tivessem constituído em seu favor qualquer privilégio ou exclusivo, poderiam ser, segundo o caso, também fiscalizadas por agentes do Governo ou da respectiva corporação administrativa - mas essa fiscalização limitar-se-ia à do cumprimento da lei e dos estatutos e ao modo como fossem satisfeitas as condições exaradas nos diplomas das concessões e cumpridas as obrigações estipuladas em favor do público. Tal fiscalização não representava, portanto, nenhuma intervenção no âmbito próprio das decisões dos empresários, nenhum domínio das empresas, em contradição com o sentido normal das garantias fundamentais estabelecidas na lei fundamental (Carta Constitucional e, depois, Constituição de 1911).

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às primeiras, se justificam regimes especiais de intervenção estadual. Com duvidosa constitucionalidade, algumas delas já vêm sendo submetidas a regimes juridicamente anómalos, ante os princípios privatísticos - e são praticamente aquelas a que o Governo ande agora, na sua proposta.
Neste ponto, não há, pois, reparos especiais a fazer-lhe. Apenas se deve esclarecer que as "sociedades de economia pública", de que se fala na proposta, deverão provavelmente ser aquelas de que o Prof. Marcelo Caetano fala no seu Manual de Direito Administrativo, 9.ª ed., 1, p. 398 e seg.: serão as sociedades que várias pessoas colectivas de direito público formarem, observando as normas de direito privado. E, por outro lado, conveniente deixar anais claro que não basta, para que uma empresa seja considerada de interesse colectivo, o desempenho de alguma actividade em regime de exclusivo ou com privilégio não conferido em lei geral: é preciso que se trate da sua actividade fundamental.

77. Ante o exposto, a Câmara recomenda para o artigo 59.° a redacção seguinte:

São consideradas de interesse colectivo e sujeitas a regimes especiais, no tocante aos seus deveres, concurso, administração e gerência, pessoal e intervenção ou fiscalização do Estado, conforme as necessidades da defesa nacional, da segurança pública e do desenvolvimento económico e social, as empresas concessionárias de serviços públicos, de obras públicas ou de exploração de coisas do domínio público do Estado, as sociedades de economia mista e de economia pública, as empresas que desempenhem a sua actividade em regime de exclusivo ou com privilegio não conferido em lei geral e, ainda, todas as empresas que exerçam qualquer actividade considerada por lei de interesse nacional.

Artigo 60.°

78. O texto proposto representa, com pequenas alterações, a generalização a todo o espaço jurídico português do que, por ora, só se encontra expressamente prescrito para o ultramar, no artigo 162.° da Constituição.
Entende a Câmara que não há desvantagens na redacção desejada, em relação ao texto em vigor.

Artigo 61.º

79. Corresponde ao actual artigo 62.°, com duas insignificantes alterações de redacção, que não melhoram notavelmente o texto actual.
O actual artigo 61.° é suprimido. Trata-se de uma norma programática, em parte dispensável, em parte já cumprida e noutra parte desactualizada (na medida em que, tanto ou mais que as- ligações marítimas com o ultramar e com os países com grandes colónias portuguesas, interessam hoje as ligações aéreas).

Artigo 62.º

80.º A proposta é no sentido de ser transposto para este lugar o texto vigente do artigo 60.° Não ha objecção a opor.

Artigo 70.°, § 1.°

81. No § 1.° do artigo 70.° explicita-se o alcance do princípio da legalidade dos impostos. Na verdade, e diferentemente do que acontece noutros lugares do texto da lei fundamental, o legislador constituinte, no tocante aos impostos, não se bastou com estabelecer em termos genéricos uma reserva de lei; antes entendeu - recordado, por certo, da larga e frequentemente excessiva intervenção que, na vigência da Constituição de 1911, o Executivo tinha afinal na matéria, ao abrigo da prática de autorizações globais de poder conferidas pelo Legislativo 12 - dever indicar expressamente os elementos dos impostos cuja determinação cabia necessariamente à lei são eles, além das reclamações e recursos admitidos aos contribuintes, a incidência, a taxa e as isenções. Estes elementos - os chamados elementos essenciais dos impostos - cumpre ao legislador, (exclusivamente, defini-los, de modo que não lhe é, em princípio, facultado conceder aos órgãos da administração fiscal qualquer margem de discricionaridade nesse domínio ou atribuir aos mesmos órgãos uma competência regulamentar autónoma ou delegada para a sua disciplina por via geral e abstracta 13. Desta maneira se acautelam os interesses patrimoniais dos contribuintes, pois se lhes garante - e tal é o fundamento do princípio que o § 1.° do artigo 70.° encerra - a inexigibilidade de outros sacrifícios tributários além dos definidos em diploma com o valor formal de lei 14.
Pois bem: a alteração ora proposta ao § 1.° do artigo 70.° visa "torná-lo mais maleável, para adaptá-lo às necessidades da prática": procura-se dar maior flexibilidade à reserva de lei em matéria fiscal, de maneira a torná-la adequada a tempos em que atribuição serve e tem de servir finalidades "parafiscais", como se diz no relatório da proposta de lei em apreciação, ou, mais rigorosamente, extrafiscais. Assim, segundo a nova redacção do preceito, a lei terá apenas de fixar os limites da taxa e de traçar o quadro das isenções de imposto, podendo deixar para a administração fiscal o encargo de determinar a primeira dentro dos respectivos limites e de concretizar ou conceder as últimas, quer mediante actos genéricos, quer mesmo, eventualmente, mediante actos de conteúdo individual.

82. Não tem a Câmara objecções a fazer, no essencial, à alteração proposta. Com efeito, o fundamento invocado pelo Governo para justificá-la procede inteiramente: é inegável que os objectivos extrafiscais da tributação - concretamente, os objectivos de política económica e social que, cada dia mais, ela tem de servir - não se compadecem ou compadecem-se mal com um sistema tributário que se conserve rigidamente estruturado pelo legislador e que continue a não conceder a administração financeira a mínima parcela de liberdade de movimentos.
É que a intervenção do Estado no domínio económico e social, que incide sobre uma esfera tão diversificada e fluida como esta é, tendo de começar por tomar a forma legislativa, deve depois operar-se através de medidas mais cingidas à realidade concreta - e para proceder a esta coperetização acha-se com frequência muito melhor habilitada a Administração do que os órgãos legislativos. Ora não fogem a esta regra os mecanismos de índole fiscal mediante os quais o Estado pode intervir, e intervém, na vida económica e social, e que fundamentalmente consistem na concessão de isenções e no manejo das taxas dos impostos: basta recordar alguns dos fins que a sua utilização se pode propor, dentro, v. g., do objectivo geral de

12 Cf. Oliveira Salazar, "Dá não retroactividade das leis em matéria tributária", Boletim da Faculdade de Direito, vol. IX (1925-1926), n.° 10, e notas.
13 V., por último, J. M. Cardoso da Costa, Curso de Direito Fiscal. Coimbra,, 1970, p. 166.
14 V. Teixeira Ribeiro, Os Princípios Constitucionais da Fiscalidade Portuguesa, separata do Boletim da' Faculdade de Direito, vol. XLII, Coimbra, 1966, p. 8.

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estimular o processo de desenvolvimento económico (lembrem-se, só a título de exemplo, o incentivo ao investimento e a orientação sectorial ou regional deste último), para logo entender a necessidade de conferir, ao funcionamento de tais mecanismos uma conveniente e mais ou menos extensa maleabilidade.
Compreende-se, pois, que se não queira forçar o legislador a emitir nesta matéria uma disciplina muito estrita - como, prima facie, a actual redacção do § 1.º do artigo 70.º pareceria exigir: mas antes se deseje facultar-lhe a possibilidade de conceder neste domínio à Administração, sempre que o entender oportuno, uma margem de maior ou menor liberdade.
Não há nisto inconveniente, uma vez que, no respeitante a determinação da incidência dos impostos - ou seja, à determinação das pessoas, factos e situações a este sujeitos -, a, competência, do legislador permanece a ser exclusiva e indelegável, e a actividade administrativa continua, por consequência, a revestir carácter vinculado; e uma vez que, além disso, mesmo no domínio da taxa e das isenções, a lei terá sempre de fixar os limites da primeira e de traçar, em termos mais ou menos genéricas, o quadro das segundas.
Movimentando-se a liberdade da Administração dentro destas balizas, ela não afectará, assim, o essencial da garantia que o artigo 70.° outorga aos particulares, e que cumpre, evidentemente, preservar: mantém-se intacta a impossibilidade de exigir-lhes maiores sacrifícios tributários do que os consentidos pelo legislador. Por outro lado, tal liberdade nunca poderá ser tão ampla que dela advenha um intolerável risco de desigualdade para os contribuintes.

83. Importa, aliás, dizer que a doutrina que mais demorada e .atentamente se tem debruçado sobre o alcance do § 1.° do artigo 70.º da Constituição já hoje reconhece, mesmo em face da actual redacção do preceito, a legitimidade de a lei outorgar à Administração competência para estabelecer taxas de imposto inferiores ao máximo legal ou para concretizar e conceder as isenções legalmente previstas. Fundamenta-se a doutrina, para concluir assim, na aludida circunstância de esta outorga de competência não contrariar a razão de ser e os objectivos do princípio do artigo 70.° 15.
E o facto é que tal procedimento já se instalou na nossa prática legislativa - a qual é, assim, ela mesma, a sentir e a corroborar a necessidade de se conferir à Administração tributária, em vista dos fins extrafiscais dos impostos, uma nova maleabilidade. Vários exemplos significativos desta prática se colhem, quer nos diplomas através dos quais se estruturou a reforma fiscal em vigor (v., p. ex., o artigo 83.° do Código da Contribuição Industrial), quer nas leis de meios mais recentes (v., por último, o artigo 13.° da Lei n.° 10/70, de 28 de Dezembro).
Neste contexto, o alcance da alteração que o Governo propõe ao § 1.° do artigo 70.° reside apenas, afinal, numa ratificação expressa do entendimento do preceito que vem sendo acolhido pela doutrina mais significativa e pela prática das leis. De modo que o problema, que a proposta de alteração verdadeiramente levanta é o da utilidade desta.
Pensa a Câmara, todavia, que, mesmo em tal plano, a alteração se justifica. E justifica-se em ordem a eliminar definitivamente as dúvidas já suscitadas (v., inclusivamente, o n.º 71 do seu parecer n.° 19/X, sobre a proposta de Lei de Meios para 1971 - Actas da Câmara, Corporativa, n.° 59, de 28 de Novembro de 1970), e que não deixariam, por certo, de continuar a suscitar-se, acerca da legitimidade constitucional de preceitos legislativos como os citados há pouco.
A conveniência em afastar estas dúvidas é, de resto, tanto maior quanto outra alteração prevista na proposta de lei em apreço consiste em reservar para a competência da Assembleia Nacional a disciplina legal dos elementos essenciais dos impostos: é de crer, na verdade, que, aprovada a presente proposta neste outro ponto, se torne ainda mais necessário ao legislador limitar-se, muitas vezes, á traçar um quadro genérico das isenções fiscais possíveis e a fixar tão-só os limites das taxas. Ora, acontece que a doutrina já se mostra mais reticente em aceitar a possibilidade de o legislador atribuir à administração tributária sequer a faculdade de determinar a taxa dos impostos e de conceder isenções, dentro dos limites da lei, quando a Constituição consagra o chamado princípio da autotributação dos cidadãos, isto é, quando a mesma reserva, em exclusivo, ao (Parlamento a- criação dos impostos 16.

84. De acordo com a redacção dada na proposta do Governo ao § 1.° do artigo 70.°, a lei. quando não estabelecer a taxa de certo imposto, deverá determinar os seva limites: parece, pois (assim, pelo menos, se concluirá de uma interpretação literal do preceito), que neste caso a lei terá de fixar tanto o limite máximo como o limite mínimo da taxa. Mas a verdade é que só a determinação do primeiro destes limites é necessária para defender os contribuintes do pagamento de impostos mais elevados do que o legalmente consentido; e pode suceder que a determinação do segundo se mostre inconveniente, ou venha a revelar-se tal, no momento em que as circunstâncias aconselhem, uma redução do respectivo imposto mais ampla do que a que ele permite. Em vista disso, afigura-se preferível à Câmara exigir apenas que a lei fixe a taxa dos impostos ou o seu limite máximo.

85. Ex positis, a Câmara conclui que deve ser a seguinte a redacção par" o parágrafo em apreço:

Em matéria de impostos, a lei determinará: a incidência, a taxa ou o seu limite máximo, as isenções a que possa haver lugar, as reclamações e os recursos admitidos em favor do contribuinte.

Artigo 70.°, § 2.º

86. Pelo que respeita ao § 2.° do artigo 70.°, a alteração proposta relaciona-se com a inclusão no artigo 93.°, a par do princípio da competência exclusiva da Assembleia Nacional para a criação de impostos, de uma cláusula (a do § 1.°) destinada a permitir ao Governo legislar nessa matéria, sem autorização da Assembleia e fora do funcionamento efectivo dela, em caso de urgência e necessidade pública. Trata-se de evitar que o alcance desta cláusula fique, afinal, frustrado pela exigência da autorização parlamentar anual da cobrança dos impostos, consignada no § 2.° do artigo 70.° (cf. artigo 91.°, n.° 4.°): é por isso que se sugere a modificação do preceito em termos de ficar "expresso que a cobrança dos impostos só nas gerências subsequentes àquela em que forem criados depende de autorização da Assembleia" (relatório da proposta de lei em apreciação).

15 V. Teixeira Ribeiro, Os Princípios Constitucionais, cit., p. 9, e J. M. Cardoso da Costa, Curso, cit., p. 167.
16 Contra esta possibilidade em tal hipótese v., justamente Teixeira Ribeiro, Os Princípios Constitucionais, cit., p. 9.

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Sendo assim, uma vez que se aceite a cláusula de urgência do § 1.° do artigo 93.°, julga a Câmara que é também de aceitar a correspondente alteração do § 2.° do artigo 70.º Na verdade, não faria sentido permitir ao Governo legislar sobre impostos nos casos de urgência, dispensando-se, deste modo, para tal efeito, a convocação extraordinária da Assembleia, e exigir depois esta convocação para obter a autorização da cobrança dos tributos; e seria absurdo, por outro lado, pensar-se numa autorização de cobrança concedida ao Governo previamente, por isso que a hipótese prevista no § 1.° do artigo 93.°, e que se pretende acautelar, é justamente a de ele não dispor de autorização legislativa da Assembleia.
A maneira como no relatório da proposta de lei se fundamenta a alteração em apreço faz supor que, no entender do Governo, ela apenas vem explicitar o entendimento que já hoje deve ser dado ao 1 2.° do artigo 70.° Não é líquido que seja assim, pelo que respeita aos impostos (e eram até agora quase todos) criados por decreto-lei. Mas, ainda que seja esse o caso, a alteração justifica-se, pois tem a vantagem de eliminar qualquer dúvida acerca da* correcção, constitucional de uma prática que logo a força dai circunstâncias imparia seguir, e, no fundo, com compreensível legitimidade.
A Câmara faz notar, porém, que a redacção agora sugerida para o § 2.° do artigo 70.° não cobre todos os possíveis casos de legislação tributária governamental - ou só os cobre entendida em termos bastante hábeis. É que o Governo, ao abrigo do § 1.° do artigo 93.°, além de poder "criar" impostos novos, pode simplesmente "modificar" os existentes, alargando a sua incidência ou agravando as suas taxas; e a autorização para a cobrança dos impostos assim modificados, no período financeiro em que o Governo procedeu à sua alteração sem consentimento prévio da Assembleia Nacional, não pode, obviamente, considerar-se dada por esta última na Lei de Meios para o respectivo ano económico. Pensa-se, por isso, que, em lugar de redigir o preceito como vem proposto, melhor será incluir nele uma ressalva visando directamente a utilização pelo Governo dos poderes que lhe são conferidos pelo artigo 93.°, § 1.º
De acordo com esta sugestão, o § 2.° do artigo 70.° ficaria redigido como segue:

A cobrança de impostos estabelecidos por tempo indeterminado ou por período certo que ultrapasse uma gerência depende de autorização da Assembleia Nacional, sem prejuízo, porém, da faculdade conferida ao Governo pelo § 1.º do artigo 93.º
Artigo 80.°, § 2.º

87. A Lei n.º 1885, de 23 de Março de 1935, substituiu a redacção primitiva do § 2.º do artigo 80.°, na qual se mantinha a solução consagrada na Constituição de 1911, sobre a substituição do Presidente da República enquanto se não realizasse a eleição dele e na hipótese de, por qualquer motivo, haver impedimento transitório do exercício da função presidencial - e veio dispor que, em vez de ser substituído pelo Governo no seu conjunto, o seria pelo Presidente do Conselho.
Na sua redacção actual, que é a que lhe foi dada pela Lei n.° 2048, citada, esta solução manteve-se. Mas na proposta de revisão que veio a converter-se nessa lei considerou-se que conviria providenciar para dois grupos de hipóteses: as de o Presidente da República e o Presidente do Conselho morrerem simultaneamente, de ficarem ao mesmo tempo impossibilitados de exercer os seus cargos, de conjuntamente abandonarem ás suas funções ou juntamente sofrerem impedimento transitório; e as de o Presidente do Conselho, encontrando-se temporàriamente nos termos do § 2.° deste artigo 80.°, no exercício da função presidencial, faltar, em consequência de qualquer daqueles factos, ou sofrer impedimento transitório. Na proposta em causa sugeria-se que, em tais casos, seria chamado ao exercício da função presidencial o Ministro que devesse substituía o Presidente do Conselho, pela ordem de precedência.
A Câmara Corporativa considerou então desnecessário contemplar as referidas hipóteses, que qualificou de catastróficas. De qualquer modo, aconselhou, para o caso de se considerar indispensável regular o assunto, que a substituição do Presidente da República, nas hipóteses figuradas, competisse ao Presidente da Assembleia Nacional por uma série de razões que se podem ver expostas no seu parecer n.° 13/V, e aqui inteiramente se perfilham, de novo, e se dão como reproduzidas. O que se não mantém é o ponto de vista, então expresso, de que as hipóteses de falta e de impossibilidade física simultânea do Presidente da República e do Presidente do Conselho, em tampos como os de hoje, sejam, de per si, de todo inverosímeis, pelo que se explica perfeitamente que o legislador de revisão não deixe em aberto uma lacuna sobre a forma de cujo preenchimento ou integração bem poderia, chegado o momento, não haver acordo, ou não o haver com a prontidão requerida.
Mas a regulamentação ora proposta suscita, por sua vez, problemas que convém deixar esclarecidos.
Em primeiro lugar, a entrada transitória do Presidente da Assembleia Nacional no exercício da função presidencial, que consequências há-de importar para o exercício da sua função própria na Assembleia? A proposta não o diz - mas parece que, durante a sua permanência no exercício daquela função, o exercício da presidência da Assembleia Nacional deve passar necessariamente para os vice-presidentes, pela respectiva ordem. Dispondo a Assembleia Nacional de vice-presidentes, não custa a admitir que o seu Presidente seja considerado impedido, nas sobreditas circunstâncias, e que, assim, aqueles sejam, nos termos regimentais, chamados ao exercício da presidência desse órgão da soberania - e com toda a competência, honras e regalias que ao Presidente se reservam.
Mas a chamada do Presidente da Assembleia Nacional ao exercício da função presidencial cria imediatamente para este, nas circunstâncias figuradas, o dever de nomear um Presidente do Conselho, que, por hipótese, falta ou está impedido de exercer as suas funções próprias (de acordo com o princípio da continuidade do funcionamento dos órgãos constitucionais). Esta nomeação suscita, por sua vez, o problema de saber se o exercício da função presidencial passa logo para o novo Presidente do Conselho - que é o primeiro substituto do Presidente da República, por força do § 2.º do artigo 80.° -, voltando o Presidente da Assembleia Nacional, praticado e executado o acto da nomeação, ao exercício exclusivo das suas funções próprias, ou se, pelo contrário, o exercício das funções de Chefe do Estado é conservado pelo Presidente da Assembleia Nacional até ao momento da eleição presidencial (para só falar da hipótese de maior relevo). A Câmara prefere esta última solução, que, aliás, resulta dos termos da proposta. E que um Presidente do Conselho nomeado nas condições figuradas é, por força das circunstancias, uma figura politicamente transitória, uma pessoa que, em princípio, será mantida em funções apenas até que haja um novo Presidente da República, em cuja confiança se apoia.
Não carece de solução expressa - e, se houvesse que o resolver, sê-lo-ia, em sentido negativo - o problema

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de saber se o Presidente pro tempore carece de tomar Ãpo-^e nos termos do artigo 75.°,
i- Assina, a Câmara sugere que o regime de suplência da ^presidência da Eepública, versado no § 2.°, o seja, nos termos seguintes:
Enquanto se não realizar a eleição ¦prevista n&ste artigo ou quando por qualquer motivo houver impedimento transitório das funções presidenciais, ficará o Presidente do Conselho e, na sua falta, o Presidente da Assembleia Nacional, investido rias atribuições de Chefe do Estado, com prejuízo, neste último caso, do exercido das funções próprias.
Artigo 81.°, n.° 7.°
88. Neste n.° 7.° do artigo 81.°, tanto no texto em vigor como no que vem proposto, começa-se por dispor que ao Presidente da República compete "representar a Nação e dirigir a política externa do Estado".
Xo texto actual deste número diz-se, em seguida, que ao Presidente da Eepública compete "ajustar convenções internacionais e negociar tratados de paz e aliança, de arbitragem e de coméreio".
Xo texto proposto declara-se que lhe compete "concluir acordos e ajustar tratados internacionais, directamente ou por intermédio de representantes".
Verifica-se que, na sua versão actual, a Constituição, -,em, aliás, Lhe associar qualquer diferença de regime no que toca. ao processo de formarão, faz uma distinção entre convenções internacionais em sentido estrito, em que Esta terminologia, que distingue entre tratados e convenções, surpreende-se pela primeira vez, se se não erra, no artigo 10.° do Acto Adicional de 1852, e viu-se adoptada também na Constituição de 1911, artigo 47.°, n.° 7.°
Xa versão que do n.° 7.° do artigo 81.° o Governo pretende agora ver consagrada, e pelo que respeita ao treaty iiiaking power do Presidente da Eepública, distingue-se (como os anglo-saxónieos, que opõem os treaties aos agreements) entre tratados internacionais e acordos; e verifica-se, ante o contexto das disposições constitucionais pertinentes, na formulação que o Governo deseja ver para elas consagrada, que se pretende ligar a estes dois termos um regime diferente no que toca ao processo constitucional da sua formação. Assim, os tra'ados internacionais serão concluídos pelo Chefe do Estado ou (com certeza mais correntemente) por representante seu e por ele ratificados depois de serem aprovados para o efeito pela Assembleia Nacional ou pelo Governo. Os acordos, por seu turno, são concluídos pelo Chefe do Estado ou por representante seu; de qualquer modo, não carecem de ratificação nem de aprovação parlamentar, bastando sempre a do Governo.
Simplesmente, e ainda segundo a proposta do Governo, a distinção entre tratado e acordo não é apenas de ordem formal ou processual: é também de ordem intrínseca ou material. Assim, hão-de necessariamente revestir a forma sole>ne de tratado as convenções que se lefinam "¦ matérias da competência reservada da Assembleia Nacional, as convenções de paz, aliança ou arbitragem, as que se refi.raim à associação de Portugal "om outros Estados e, por último, as que versem matéria legislativa. As demais convenções da competência do Presidente da Eepública revestirão, ou, "nies-, pod-erão revestir, a forma simplifi" cada de acordo e não carecerão, por isso, de aprovação parlamentar nem de ratificação.
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89. Dados estes esclarecimentos, sem os quais a pro-posta de nova redacçãòdo n." 7.° do artigo'81.° não pode ser apreciada, que pensar da sua formulação?"
Desde logo, impõe-se lembrar que a afirmação constante do texto actual e do texto proposto, de que ao Presidente da Eepública cabe (•além da. (representação interna) & representação internacional geral da Nação Portuguesa,, é só arproxiirnativ.ameaite exacta, pois, (r)e ó verdade que, a esse título, acredita e recebe embaixadores e representantes diplomáticos, faz a guerra e exerce o comando das forças armadas, é também verdade que não conclui, directa oú indirectamente, nem ratifica todas as convenções internacionais ajustadas em nome do Estado Português.
Estes descontos não têm, entretanto, sido suficientes para se reclamar a revisão da fórmula com que o n.° 7.° abre e se deseja que continue a abrir. A prática constitucional tem bastado para servir de apoio às sobreditas limitações ao carácibeir absoluto do nosso direito constitucional escrito.
90. Merece apoio a ideia do Governo, expressa na sua proposta, de distinguir, dentro das convenções - internacionais da competência do Chefe do Estado, duas categorias ou tipos diferentes, os tratados e os acordos em forma simplificada. Que se saiba, no plano do direito constitucional escrito comparado, são poucas as constituições a distinguir, expressa ou implicitamente, entre "tratados" e "acordos" não submetidos a identificação. Mas as constituições efectivas da maioria dos países são hoje no sentido da consagração de uma tal dicotomia.
Simplesmente, a referida bipartição das convenções internacionais não é apenas relevante para efeitos de aprovação (parlamentar ou governamental) e de ratificação. É-o também para efeitos de competência, no que respeita à conclusão delas. O treaty making power não pertence sempre e necessariamente ao Chefe do Estado, para o exercer directamente ou por intermédio de representantes diplomáticos seus, a começar pelo seu representante habitual ou normal, o Ministro dos Negócios Estrangeiros. Nem todas as convenções são, em suma, "convenções diplomáticas". A prática desmente, tanto lá fora como entre nós, esta concepção - distinguindo-se, dentro dos acordos em forma simplificada", entre os acordos que são negociados e concluídos pelo Chefe do Estado ou -normalmente - por agentes diplomáticos (acordos diplomáticos, acordos políticos) e os "acordos administrativos" ou "acordos paradiplomáticos", negociados e concluídos, sem "plenos poderes" conferidos pelo Chefe do Estado, por Ministros diferentes daquele atrás indicado ou por dirigentes de serviços personalizados ou simplesmente autónomos (para não falar já dos acordos militares, que se costuma englobar, também na categoria dos acordos paradiplomáticos). A prática é hoje em dia no sentido do. que um autor chama a descentralização espontânea do poder de representar o Estado no exterior.
Cuida-se que o problema formal, suscitado por esta prática, baseada no que se chama a constituição efectiva ou viva (living), se resolve se, em vez de se falar, no n.° 7.° em análise, em representantes, se falar em representantes diplomáticos - o que logo deixará transparecer que, nesse número, e em relação aos acordos em forma simplificada, apenas se tem em vista os acordos diplomáticos, não os acordos administrativos em sentido estrito, os quais se não incluem no treaty making power do Chefe do Estado.
É certo que a Constituição não virá a aludir, em qualquer outro lugar, aos. acordos administrativos, quer para afirmar que eles podem ser concluídos por outrem que não o Chefe do Estado ou representante diplomático seu,

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quer para dispor que eles não carecem de ratificação, por parte do Chefe do Estado. Mas, assim como, até hoje, não se tem tido dúvidas sobre a validade destes acordos, não concluídos pelo Chefe do Estado ou representante diplomático seu, na ausência do preceito constitucional escrito que os admita, não se lhes virá daqui em diante, certamente, regatear direitos de cidade na nossa ordem jurídica. Aliás, é o que sucede um pouco por toda a parte.

91. Pode, porventura, fazer-se algum reparo ao emprego, no n.° 7.° do artigo 81.°, dos verbos concluir e ajustar, respectivamente em relação aos acordos e aos tratados. Verifica-se que nos textos constitucionais portugueses, até ao momento, a terminologia a este respeito tem variado: em 1822 e em 1838 adoptou-se o termo fazer, em 1826 os termos fazer e concluir, em 1852 o termo celebrar, em 1911 os termos negociar e ajustar e em 1933 os termos ajustar e negociar. Todos eles são indiferentemente apropriados para significar a intervenção directa ou indirecta que o Chefe do Estado tem na formação ou conclusão das convenções internacionais, a qual, nos tratados formais solenes, ou clássicos, vai desde a negociação à redacção, à assinatura e à ratificação. Verifica-se que a ratificação, no que respeita aos tratados, é, para a proposta, concebida como algo que se adiciona à restante intervenção do Chefe do Estado, algo que se segue ao ajuste dos tratados, que englobará, apenas, portanto, na terminologia perfilhada, a negociação, a redacção e a assinatura deles.

92. Na proposta diz-se que os tratados são ratificados depois de aprovados pela Assembleia Nacional ou pelo Governo (para ratificação). Esta aprovação é, sob certo ponto de vista, uma autorização dada ao Chefe do Estado para este proceder à ratificação. Vistas, porém, as coisas de outro ângulo, esse acto parlamentar ou governamental pode configurar-se realmente como uma aprovação - aprovação de um projecto de tratado, condição sine qua non para o Chefe do Estado, que boje já não possui um ius representationis omnimodae, uma plenitudo potestatis, no domínio das relações exteriores do Estado, poder exercer a sua competência de assumir, em definitivo, pela ratificação, certas obrigações internacionais em nome do Estado Português. Não há, assim, razão para contestar a propriedade do termo "aprovação", usado no texto proposto, na sequência do actual e de todos os correspondentes textos constitucionais anteriores (de 1822, 1826, 1838 1852), com excepção do de 1911, que falava em ratificação do Congresso (sendo que, na verdade, este termo comporta também, na própria doutrina, além do significado de aceitação definitiva dos projectos de tratado, por parte do Chefe do Estado, o mesmo significado que a aprovação parlamentar).

93. Tudo considerado, a Câmara decide-se por aconselhar a seguinte redacção para este n.° 7.º do artigo 81

Representar a Nação e dirigir a política externa do Estado, ajustar tratados e concluir acordos internacionais, por si ou por intermédio de representantes diplomáticos, e ratificar 'os tratados, depois de aprovados pela Assembleia Nacional ou pelo Governo.

Artigo 81.°, n.° 9.°

94. Na actual redacção, este preceito não se refere, como deveria; a todos os actos carecidos de promulgação, segundo a própria lei fundamental. Na verdade; o vigente artigo 150.º § 1.°, dispõe que os diplomas da competência legislativa do Ministro do Ultramar que revestirem a forma de decreto serão promulgados "nos termos da Constituição", o que só pode significar que serão promulgados pelo Presidente da República, visto não haver outro órgão constitucional com uma competência política deste tipo
Na redacção desejada pelo Governo, esta deficiência é eliminada, falando-se em que ao Presidente da República compete promulgar, além dos actos a que o testo actual já se refere, os "decretos para o ultramar", a que a proposta alude no § 2.° do artigo 136.° e que são uma das formas que as normas legislativas aplicáveis no ultramar constitucionalmente revestem.
Nada há, naturalmente, a objectar ao que constitui um aperfeiçoamento do texto deste n.° 9.° do artigo 81.º

95. Outra melhoria que se assinala na formulação recomendada pelo Governo é a que se traduz na supressão da referência, feita aos decretos individuais, agora substituída pela alusão aos restantes decretos (quer dizer, aos decretos que não sejam decretos-leis, decretos para o ultramar e decretos, regulamentares) - pois é sabido que não são forçosa ou rigorosamente individuais todos os actos que revestem constitucional ou legalmente esta forma e que não carecem de promulgação, antes da simples assinatura do Presidente da República.

96. Outra beneficiação técnica que o Governo deseja para este preceito é a que se traduz em se suprimir a expressão "sob pena de inexistência", dizendo-se, em lugar disso, que os diplomas mencionados neste número que não sejam promulgados, assinados e publicados segundo nele se determina são "juridicamente inexistentes". Ter-se-á entendido talvez que a inexistência, que é uma sanção para a verificação de certas irregularidades muito graves dos actos jurídicos em geral e dos actos legislativos, regulamentares e administrativos em especial, não ó rigorosamente uma pena. Mas então haveria a notar que, curiosamente, o Governo não propôs alteração correspondente à redacção do corpo do artigo 82.°, onde subsistirá a expressão "sob pena de inexistência".

Artigo 82.°, § 1.º

97. Este parágrafo corresponde, sem alterações, ao vigente § único do mesmo artigo 82.° Afigura-se, entretanto, à Câmara que se deve aproveitar o ensejo da revisão para substituir o, termo demissão, no n.° 1.°, por exoneração, paralelamente com a já consagrado no § 1.°, do artigo 107.°
Assim, o n.° 1.° do § 1.° ficaria redigido nestes termos:

A nomeação e exoneração do Presidente do Conselho.

Artigo 82.°, § 2.º

98. O Decreto-Lei n.° 48 620, de 10 de Outubro de 1968, veio dispor que "os decretos-leis que forem aprovados em Conselho de Ministros serão referendados apenas pelo Presidente do Conselho e pelo Ministro ou Ministros competentes" (artigo 3.°, n.° 3). As razões desta alteração ao que estava consagrado na prática, com base no Decreto n.° 22 470, de 11 de Abril de 1933, vêm explicadas no preâmbulo daquele diploma. Pretende o Governo, com a sua proposta, dar consagração constitucional explícita a esta solução, que, aliás, o legislador ordinário pôde estabelecer em 1968, ante a forma como se encontra redigido o corpo do artigo 82.°, é qual, nestes casos, não impõe a referenda do Governo no seu conjunto. De qualquer modo, desde que a aprovação em Conselho de Ministros assegura que todo o Governo apreciará esses diplomas, não custa especialmente consagrar na Constituição esta prática. A Câ-

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mara, porém, não esconde que um decreto-lei poderá, assim, ser produto da vontade de apenas a maioria dos componentes do Governo, presentes em Conselho de Ministros, e que, assim, desaparece o poder que cada Ministro tinha de, envolvendo nisso a sua responsabilidade política, vetar os projectos de decretos-leis. E talvez que o novo sistema seja, até por isso, superior ao anterior.

99. O novo regime é agora estendido aos "decretos que aprovem tratados internacionais que versem matéria legislativa". A proposta requer a forma clássica do tratado pura as convenções internacionais que versem matéria legislativa - mas não exige que, para serem ratificados pelo Chefe do Estado, esses tratados sejam previamente aprovados pela Assembleia Nacional, contentando-se, em relação a eles, com a aprovação do Governo (proposta, artigo 109.°, n.° 2.°).
Tem sido prática corrente que a aprovação dos tratados internacionais para ratificação, por parte do Governo (nos termos do actual artigo 109.°, n.° 2), assuma a forma da decreto-lei. A Constituição, porém, nada diz a este respeito. Fala-se agora em decreto, como sendo a forma que revestirá essa aprovação (proposta, artigos 82.°, § 2.°, e 109.°, § 4.°). A proposta no seu articulado não lhe chama decreto-lei; submete-o às mesmas normas em matéria de referenda (proposta, artigo 82.°, § 2.°), mas já não, pelo menos explicitamente, em matéria de promulgação e publicação (proposta, artigo 81.°, n.° 9.°). Afigura-se, entretanto, à Câmara, que tais decretos derem ter um regime idêntico ao dos decretos-leis. No relatório da proposta pressupõe-se que, na generalidade dos casos, esses decretos suo votados em Conselho de Ministros ou então assinados por todos os Ministros, que é justamente o que sucede com os decretos-leis.

100. Uma última observação sobre este parágrafo. Poderá dizer-se que ê tecnicamente deficiente a formulação deste preceito, enquanto se fala na referenda de actos do Governo, que outra coisa não são os decretos a que aí se faz alusão. Teremos, assim, o Governo a subordinar a existência jurídica de actos da sua autoria -os decretos- à prática de um outro acto, igualmente da sua autoria - a referenda. A formulação correcta será aquela em que o acto que se apresenta como carecido de referenda do Governo é um acto da competência do Presidente da República, já que este, como o rei de Inglaterra, can not act alone: o acto de promulgação dos decretos.
Uns tantos Procuradores, em minoria, entendem que não vale a pena alterar o texto proposto. Basta lembrar que não será a primeira vez que o legislador constituinte consagrará este erro técnico: podemos surpreendê-lo, hoje mesmo, pelo menos, no § 1.° do artigo 150.º da Constituição. E o Governo retoma-o, mais uma vez, na redacção que propõe para o § 2.° do artigo 136.°
Mas a maioria da Câmara entende que se deve dar ao preceito, neste ponto, uma formulação correcta.

101. Deverá substituir-se a redacção proposta pela seguinte:

Deve ser referendada por todos os Ministros a promulgação dos decretos-leis e a dos de aprovação de tratados internacionais que versem matéria legislativa, quando vão tiverem sido aprovados em Conselho de Ministros.

Artigo 82.°, § 3.°

102. Trata-se de consagrar explicitamente a prática que, na matéria, vem sendo de há muito seguida e que já o fora, por último, na lei ordinária (Decreto-Lei n.° 48 620, cit., artigo 1.°, n.° 2) - o que não merece objecção.

Artigo 85.° (corpo do artigo)

103. A alteração que se propõe diz exclusivamente respeito ao número dos Deputados, componentes da Assembleia Nacional. Esse número foi inicialmente de 90, passando para 120 em 1945 e para 130 em 1951.
A justificação apresentada pelo Governo para esta proposta de alteração traduz-se em sublinhar que assim se permitirá uma representação mais justa das províncias ultramarinas e de certos círculos metropolitanos.
E, efectivamente, não restam dúvidas, pelo que diz respeito àquelas, de que, em especial Angola e Moçambique, elegem, segundo a lei em vigor, um número de Deputados à Assembleia Nacional em que, de modo nenhum, há equiparação, considerados a sua população, a sua área e o seu desenvolvimento, aos outros círculos, designadamente aos círculos eleitorais metropolitanos 17.
Acresce que, como aumento previsto de componentes da Assembleia Nacional, não se transcende-o nível quantitativo que se pode considerar mais conveniente para que o Parlamento não deixe de ser um colégio adequado ao desempenho das suas atribuições, no âmbito das estruturas constitucionais consagradas entre nós e do espírito que as domina ou inspira - um espírito que não se compadece com um areópago muito numeroso, dividido pelas paixões e pelo tumulto.
A alteração proposta comportará ainda a vantagem de facultar o acesso à Assembleia Nacional de um número mais elevado de colaboradores na discussão dos grandes problemas nacionais, de pessoas que, em cada momento, são politicamente mais representativas nos vários círculos e aspiram naturalmente a poder candidatar-se.
Também não é de desprezar, como justificação para o apoio que esta Câmara dá à proposta neste ponto, que o acréscimo do número dos Deputados irá naturalmente elevar o quorum e aumentar o número das presenças em cada reunião - factor que não deixará de concorrer para o prestígio da Assembleia Nacional e para o avigoramento do valor representativo das suas tomadas de posição.
De qualquer modo, este número de 150 Deputados não se afasta consideràvelmente, para mais ou para menos, dos que, pelas leis anteriores a 1933, foram previstos para os órgãos parlamentares correspondentes a Assembleia Nacional. Bastará recordar que, pela Lei Eleitoral de 3 de Julho de 1913, a Câmara dos Deputados era composta por 163 Deputados.
O aumento dos Deputados que compõem a Assembleia Nacional não suscitará a necessidade de eleição suplementar. Os vinte Deputados previstos a mais mão resultam de vagas que tenham ocorrido na Assembleia Nacional - pelo que se não põe o problema de, conforme o § 3.° do artigo 85.°, fazer funcionar o mecanismo dessa eleição. É neste sentido que este parágrafo se mostra interpretado pelo § 3.° do artigo 1.° do Regimento da Assembleia Nacional: as únicas condições tem que, segundo este preceito, haverá eleição suplementar são as de haiver um certo número de vagas (superior a vinte, nos termos do artigo 2.° do Decreto-Lei n.° 37 570, de 3 de Outubro de 1949)

17 Segundo o artigo 1.° do Decreto-Lei n.° 43 901, de 8 de Setembro de 1961, os círculos de Angola e Moçambique elegem cada um sete Deputados, mais, um apenas do que os que elegem os círculos de Aveiro, Braga, Coimbra, Leiria, Santarém e Viseu, e menos cinco e menos três do que os que elegem, respectivamente, os de Lisboa e do Porto - isto só para referir as anomalias mais gritantes.

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"reconhecidas por deliberação da Assembleia sobre a verificação de poderes ou ocorridas durante a legislatura por extinção do mandato".

Artigo 91.°, n.° 2.°

104. Segundo a redacção actual do n.° 2.° do artigo 91.°, à Assembleia Nacional compete vigiar pelo cumprimento da Constituição.
A correcção constitucional dos actos da competência do Presidente da República é insusceptível de fiscalização por qualquer dos outros órgãos da soberania, uma vez que, nos termos da Constituição (artigo 78.°), ele só responde directamente perante a Nação. Assim, a Assembleia Nacional não tem, não obstante os latos termos do n.° 2.º do artigo 91.°, competência para vigiar pelo cumprimento da Constituição por parte do Presidente da República. Os tribunais, por seu turno, também não são concebidos pela Constituição como sujeitos ao contrôle de outros órgãos da soberania. A eles é que, pelo contrário, cumpre fiscalizar, em certos termos, a constitucionalidade das normas jurídicas editadas por órgãos diferentes (artigo 123.°).
Resta considerar o Governo e a Assembleia Nacional. Quanto ao Governo, a sua actividade concreta imediatamente subordinada à Constituição (actividade "política" ou "de governo") ou por esta de qualquer modo disciplinada está sujeita a um controle do Presidente da República, na medida em que o Presidente do Conselho e de algum modo os próprios Ministros são da sua confiança (Constituição, artigos 107.°,. § 1.°, e 108.°), e ao da Assembleia Nacional (artigos 91.°, n.° 2.°, e 123.°, § único). A sua actividade legislativa é fiscalizada pela Assembleia Nacional, pelos Tribunais & pelo Presidente da República. A actividade da Assembleia Nacional, enquanto sujeita à Constituição, é, por seu turno e por último, fiscalizada: pelos tribunais, quando essa actividade é normativa; pelo Presidente da República, na medida em que, perante as exigências dos interesses superiores da Nação (os quais justamente podem ser afectados por uma actuação sistemàticamente inconstitucional desse órgão), pode dissolvê-la (artigo 81.°, n.° 6.°); e por si própria (autocontrôle da constitucionalidade), conforme justamente dispõe de um modo geral o n.° 2.º do artigo 91.°, confirmado pelo § único do artigo 123.°
Quais são, então, em resumo, os poderes dia Assembleia Nacional, no que (respeita à fiscalização do cumprimento da Constituição?
A Assembleia Nacional pode, em primeiro lugar, apreciar a correcção constitucional dos "actos políticos" do Governo. Não se depreende da letra da Constituição nem dos seus princípios que a Assembleia Nacional detenha um poder de superintendência em relação a esses actos e que, a esse título, os possa suspender, modificar, revogar ou anular. Poderá apenas apreciá-los.
A Assembleia. Nacional pode, em segundo lugar, no que respeita ainda ao Governo, tirar os efeitos que entender da inconstitucionalidade formal ou orgânica de todas as regras de direito e é a única entidade competente para apreciar a inconstitucionalidade formal ou orgânica das constantes de diplomas dele emanados, quando promulgados pelo Presidente da República (artigo 123.°, § único). A inconstitucional idade material destas regras e de todas as demais regras de direito constantes de diplomas emanados do Governo, essa pode ser apreciada pela Assembleia, a qual, no exercício de competências previstas no n.° 2.° do artigo 91.°, poderá declarar a inconstitucionalidade material dessas normas.
A inconstitucionalidade dos actos não normativos da Assembleia Nacional poderá ser por esta apreciada e, segundo o princípio do paralelismo das competências e das formas, poderá ela, por "actos contrários", assegurar respeito que deve à Constituição.
A inconstitucionalidade formal ou orgânica das regras de direito constantes de diplomas da sua competência, promulgados pelo Presidente da República, é por ela fiscalizável nos termos atrás aludidos para diplomas idênticos da competência do Governo. A inconstitucionalidade material das regras de direito de quaisquer diplomas da sua competência pode ser apreciada nos termos também atrás expostos paira as regras de direito editadas pelo Governo.
São inquestionáveis os poderes que ela possui em relação aos actos políticos do Governo e aos actos não normativos da sua própria competência.
A Constituição é omissa quanto à extensão dos poderes da Assembleia Nacional no que respeita aos actos normativos do Governo ou dela própria feridos de inconstitucionalidade material. Quanto aos feridos de inconstitucionalidade formal ou orgânica há, pelo contrário, norma expressa: a do § único do artigo 123.°
Na proposta sugere-se, uma equiparação da competência da Assembleia Nacional quanto às duas formas ou modalidades de inconstitucionalidade, transpondo-se o estatuído no § único do artigo 123.°, em relação à inconstitucionalidade formal ou orgânica, para a hipótese da inconstitucionalidade material.
Parece aceitável esta orientação, ainda que se venha a manter, de futuro, o actual regime de fiscalização jurisdicional da inconstitucionalidade material, fixado no corpo do artigo 123.° É que uma coisa é a Assembleia Nacional poder anular uma norma, designadamente uma norma legal, outra é fazê-lo cada tribunal. E a equiparação justificar-se-á mais ainda se vier a ser votado o proposto texto do § 1.° do artigo 123.°
Apenas se recomenda uma outra redacção para o preceito ora em apreço, que será esta:

Velar pela observância da Constituição, podendo declarar com força obrigatória geral a inconstitucionalidade de quaisquer normas, ressalvadas, porém, sempre as situações criadas pelos casos julgados, vigiar pelo cumprimento das leis e apreciar os actos do Governo e da Administração.

Artigo 91.°, n.° 7.°

105. Relacionando este número com o n.° 7.° do artigo 81.°, com o § 2.° do artigo 82.°, já apreciados, e com o n.° 2.º do artigo 109.°, sobre que não chegou ainda a altura de a Câmara se pronunciar especificamente, verifica-se ter o Governo, na sua proposta, optado pela solução de fazer da Assembleia Nacional, no que respeita ao processo de formação das convenções internacionais em que participe o Estado Português, um órgão com competência, não se dirá excepcional, mas, de qualquer modo, tendencialmente restrita ou limitada. À Assembleia, com efeito, nem sequer caberá aprovar para ratificação a generalidade dos tratados, porque quanto aos acordos, por definição, ficarão todos de fora do seu âmbito de atribuições relativas à vida jurídica internacional do Estado Português.
Nos termos desse conjunto de preceitos, tal como vem pressuposto ou se espera que fiquem redigidos, a Assembleia Nacional, no que concerne aos tratados, aprovará necessariamente apenas os tratados políticos (tratados de paz, aliança ou arbitragem, os que se refiram à associação de Portugal com outros estados) e, dos tratados que versem matérias legislativas, os que se ocupem de matérias da sua competência reservada, nos termos do artigo 93.°

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Nada, no entanto, impedirá que sejam levados à sua apreciação e aprovação outros tratados, além destes.
Daqui resulta que os tratados em geral, incluindo os que versem matéria legislativa, serão aprovados, não pela Assembleia, mas pelo Governo. Dado que os tratados pórticos e os tratados sobre matérias reservadas são raros e excepcionais, ter-se-á que o processo quase legislativo da aprovação parlamentar dos tratados virá a ser utilitário muito espaçadamente.
Ora o sistema da simples aprovação governamental não se justifica, como sistema-regra, em relação a tratados, isto é, em relação a convenções internacionais negociadas pelo Chefe do Estado ou por representantes diplomáticos seus e destinadas a ser por ele ratificadas. Esse sistema deve, em princípio, reservar-se para os tratados cuja entrada em vigor seja urgente e não possa, portanto, esperar pelo desenvolvimento do lento processo parlamentar de aprovação para ratificação, e, dentro dos acordos, para aqueles que forem negociados pelo Chefe do Estado ou por representantes diplomáticos dele. Tais acordos versam matérias de administração técnica ou, simplesmente, como é corrente dizer-se, "matérias administrativas". Estas serão as que implicam uma regulamentação pormenorizada e susceptível de frequentes alterações, muito pouco das predilecções do parlamento e bastante afastadas das suas capacidades específicas. Tais compromissos são, por outro lado, de pouco ou nenhum interesse para a opinião pública. De qualquer modo, sendo o parlamento uma instituição que trabalha com lentidão, só tarde é que ele conseguiria aprovar todas as convenções internacionais deste tipo, as quais, na hora actual, são cada vez mais numerosas, dado o desenvolvimento das relações internacionais e o âmbito cada vez mais largo da intervenção do Estado na ordem interna 18.
O Governo encontra-se em muito melhores condições do que a Assembleia para fazer um juízo definitivo sobre a conveniência de o Estado se obrigar por convenções deste tipo. Como já se disse noutro lugar deste parecer, a constituição efectiva consente, inclusive, que elas sejam pelo Governo negociadas e concluídas, no exercício do seu próprio treaty making power, sem incumbência do Chefe do Estado, procedendo, como o soberano na monarquia absoluta, no uso de uma espécie de ius representationis omnimodae ou de plenitudo potestatis, no domínio das relações internacionais. Se isto é possível e é licito, justificado é, paralelamente, que, quando, no mesmo domínio de assuntos, intervenha o Chefe do Estado ou representante diplomático seu, se dispense a aprovação parlamentai e baste a aprovação governamental.
Crê a Câmara que é esta a solução que se deve consagrar formalmente na Constituição. Não se vê que ela acarrete uma grande sobrecarga de trabalho para a Assembleia Nacional - em primeiro lugar, porque os tratados nunca são em cada ano numerosos, e em segundo lugar porque a sua aprovação é sempre muito mais expedita do que é a votação das leis, não havendo, como não há, a possibilidade da aprovação simplesmente parcial e a consequente faculdade de emenda: a aprovação ou a rejeição terão lugar in terminis. Em toda a medida em que se restrinja a intervenção parlamentar neste domínio, substitui-se a democracia pelas formas tecnocráticas do poder 19.
Não se argumente em sentido contrário, com o exemplo da Constituição francesa de 1958, segundo a qual só carecem de aprovação parlamentar, além dos tratados políticos, os tratados que se ocupem de matérias de natureza legislativa [os tratados "qui modifient des dispositions de nature legislative" (artigo 53.°)]. Esta orientação deve-se a que, naquela Constituição, se admite que o Executivo, fora das matérias a que se refere o artigo 34.°, reservadas à lei, possui um amplo poder regulamentar independente (artigo 37.°) - o que não sucede entre nós. No nosso direito não existe um "domínio próprio do Governo", em que este intervenha por via regulamentar. Intervém, sim, mas no uso das suas faculdades legislativas, paralelamente com a Assembleia Nacional, que sempre pode revogar os decretos-leis do Governo e tem mesmo de os ratificar, se publicados no período de funcionamento dela.

106. Em resumo, sugere a Câmara que no artigo 91.°, n.° 7.°, se diga que compete à Assembleia Nacional "aprovar os tratados internacionais".
Isto significará que o Governo, no domínio dos tratados, só terá uma intervenção por motivos de urgência, como se verá mais adiante, ao analisar-se o artigo 109.°, n.° 2.°, e o seu § 4.° Ao Governo caberá, sim, aprovar para ratificação os acordos negociados pelo Chefe do Estado, directamente ou por plenipotenciários seus - e serão, segundo se colhe da prática internacional e dos ensinamentos da doutrina, os acordos técnicos, os acordos comerciais provisórios ou de curta duração, os acordos que não acarretem novos encargos para o Tesouro e os acordos que estabeleçam a interpretação ou a forma de dar execução aos tratados.
Não é, entretanto, viável dar uma definição constitucional rigorosa do âmbito material dos acordos, em relação ao dos tratados. A própria doutrina não o tem conseguido: "Les auteurs qui ont risque des essais de définition n'ont pas pu éliminer toutes les contraditions et toutes les obsourités." 20.
Na medida em que o Governo transcender o domínio da competência do Chefe do Estado e da Assembleia Nacional, assume as suas responsabilidades políticas. Mas, nos termos da prática internacional, a vinculação do Estado pelas convenções concluídas sem a intervenção directa ou indirecta do Presidente da República, sem a ratificação dele em seguida a aprovação parlamentar, em princípio não será por isso menos internacionalmente inquestionável.

Artigo 91.°, n.° 10.° (eliminação deste número)

107. Explica o Governo, no relatório da proposta de lei, que, com a supressão do actual n.° 10.° do artigo 91.°, se visa apenas deixar claro que tanto a Assembleia Nacional como o Governo podem conceder amnistias. Parte-se implicitamente do princípio de que não há quaisquer dúvidas sobre a natureza legislativa material das amnistias: "estas representam exercício do poder legislativo que à Assembleia cabe por força do n.° 1.° do artigo 91.°" Se assim é, "mostra-se inútil".
Simplesmente, não é assim tão inquestionável como à primeira vista parece a tese de que o acto de amnistia é um acto materialmente legislativo.

18 Para se fazer uma ideia do ritmo em que um Estado se vincula por convenções internacionais, recorde-se que a França em 1947 celebrou uma em cada dois dias úteis.
19 Cf. J. Buchmann, À la recherche d'un ordre international, Lovain, Paris, 1957, p. 188.
20 P. F. Smets, La conclusion des accords en forme simplifiée, Bruxelles, 1969, p. 142.

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Os nossos constitucionalistas têm, é certo, tomado esta doutrina como segura, desde Marnoco e Sousa a Marcello Caetano.

Sendo a amnistia um acto do poder social, que na plenitude da sua soberania extingue as condenações a que deram lugar certas infracções, deve pertencer ao parlamento [...] A amnistia é [...] geral, aplicando-se sempre, não a um caso particular mas a uma categoria de casos; e objectiva, aplicando-se sempre não a indivíduos determinados, mas a um grupo determinado de infracções, quaisquer que sejam os seus autores 21.
A amnistia é matéria de lei, pois consiste no perdão e promessa de esquecimento de toda uma categoria de crimes 22.

Em geral, em abono da "teoria legislativa", costuma lembrar-se que este acto de clemência se traduz, afinal de contas, numa revogação, embora temporária e parcial, de determinadas disposições da lei penal.
Mas a verdade é que não falta quem, essencialmente com o argumento de que se trata de uma manifestação do poder punitivo, sustente que o acto de amnistia tem natureza jurisdicional ("teoria jurisdicional"), quem veja nele uma manifestação de um poder administrativo, pois se não trataria de mais que de uma renúncia, por parte do Estado, ao exercício da execução da pena, a qual é, materialmente falando, tradução da função administrativa ("teoria da renúncia"), e, por último, quem entenda que o acto da amnistia tem natureza política ou "governamental" ("teoria política"). E para este último entendimento não falece sequer a boa razão de que os actos em que ela se exprime só à primeira vista são gerais, porque, no fundo, do que se trata é de uma derrogação da lei em relação a pessoas determinadas ou tecnicamente determináveis na hora da prática desse acto ou no momento até ao qual a amnistia se destine a produzir os seus efeitos, e de que, em substância, o que é objecto de clemência são infracções em ^concreto e individualizáveis. A generalidade e a abstracção referem-se necessariamente, ao futuro, e traduzem uma impossibilidade de previsão individualizada - e a amnistia refere-se obrigatoriamente ao passado. Do que se trata, fundamentalmente, portanto, é de um acto plural "de governo", de uma série de "actos de governo", acidentalmente reunidos numa única declaração de vontade. Tais actos são fundamentalmente actos contra legem 23, cuja prática só pode ter lugar na base de uma habilitação constitucional específica, uma vez que, não se justificando em termos de justiça, antes por outras considerações a ela estranhas (trazer a calma ao Pais, fazer participar certas pessoas, culpadas de certos crimes, na alegria suscitada por eventos particularmente faustos da Nação), ofendem o princípio da igualdade jurídica. Não é, pois, sem justificação que tais actos já foram, entre nós, e ainda são em certos outros países, da competência do Chefe do Estado (monarca ou presidente da República), a quem cabe, em princípio, a competência para a prática dos actos políticos ou "de governo". De qualquer modo, é a Constituição que tem de dizer qual é o órgão da soberania que há-de dispor desta faculdade de actuar contra legem, que não é, material, mente, uma faculdade legislativa. A Constituição de 1911 no seu artigo 27.°, n.° 11.°, retirou essa competência ao Chefe do Estado (Carta Constitucional, artigo 74.°, § 8.°), para a conceder ao Congresso, não se limitando, e muito bem, a destituir o Chefe do Estado desse poder. Se o fizesse, em rigor, nenhum outro órgão poderia conceder amnistias. O que fez foi transferir uma competência "política" ou "governamental" de um para outro órgão. As amnistias passaram, por via disso, a constituir "leis formais", a assumir a forma de lei, sem terem a natureza de lei. A Constituição de 1933 retomou a solução que na de 1911 se perfilhara, quanto à atribuição da competência para conceder amnistias, conferindo-a, no n.° 10.° do seu artigo 91.°, à Assembleia Nacional, que a exerceria sob a forma de lei. Simplesmente, como inicialmente apenas no uso de autorizações legislativas ou nos casos de urgência e necessidade pública, e, a partir de 1945, de um modo geral, o Governo poderia fazer decretos-leis sobre as matérias em que a Assembleia Nacional pode fazer leis, entendeu-se, correctamente, que o Governo, sob a forma de decreto-lei, poderia, tanto como a Assembleia Nacional, sob a forma de lei, conceder amnistias. A supressão do actual n.° 10.° do artigo 91.° envolveria, em rigor, tanto a supressão da competência da Assembleia Nacional como a do Governo para concederem amnistias.
A referência autónoma ao poder da Assembleia Nacional não é, pois, uma simples sobrevivência histórica, algo de excrescente e de supérfluo: em boa técnica, essa referência deve subsistir, servindo para que tanto a Assembleia Nacional como o Governo conservem esse poder.
Em conclusão, ante as divergências doutrinais sobre a natureza dos actos de amnistia, e porque é, pelo menos, muito duvidosa a sua natureza legislativa, não vê esta Câmara vantagens de qualquer ordem na supressão fio actual n.° 10.° do artigo 91.°; antes vê nisso possíveis inconvenientes.

Artigo 91.°, n.°s 10.°, 11.° e 12.°

108. Trata-se de nova numeração, requerida pela supressão do n.° 10.° deste mesmo artigo. Dada a posição que a este último propósito a Câmara toma, não há lugar para esta alteração de numeração.

Artigo 93.° (corpo do artigo)

109. Na versão inicial da Constituição, e segundo a ideia que a ela presidiu, a generalidade da função legislativa cabia à Assembleia Nacional (artigos 91.°, n.° 1.°, e 92.°). O Governo só legislaria no uso de autorizações legislativas ou nos casos de urgência e necessidade pública (artigo 108.°, n.° 2.°), portanto, excepcionalmente. Pagava-se, como se vê, apesar de tudo, um grande tributo à concepção clássica, segundo a qual a lei se identifica com a vontade geral expressa pelo parlamento.
Simplesmente, também se partiu ao mesmo tempo da ideia de que seria, em regra, muito difícil à Assembleia Nacional, se quisesse ocupar-se do conjunto da obra legislativa, e dado que o seu funcionamento é intermitente, que é complicado o seu processo de trabalho e que não ó constituída por técnicos da generalidade das matérias a regular, antes por pessoas, em princípio, competentes apenas para dar a solução das grandes questões sociais, económicas e jurídicas (matters of general competence), passar além dos princípios gerais das reformas legislativas, das bases gerais dos regimes jurídicos. Daí o que ficou

21 Marnoco e Sousa, Constituição Política da República Portuguesa. Comentário, 1913, pp. 441 e segs.
22 Marcello Caetano, A Constituição de 1933. Estudo de Direito Político, 1956, p. 98.
23 É, no fundo, esta a doutrina de Laband (Befehlstheorie), segundo o qual "der Gnadeakt ist ein Befehl contra legem, ein Veto gegen der Lauf von Gesetz und Eecht". No mesmo sentido, outros autores citados em Edgar Uhle, Die Amnistie nach altem und neuem Gnadenrecht, 1935, p. 58.

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disposto no artigo 92.°: "as leis votadas pela Assembleia Racional devem restringir-se à aprovação das bases gerais dos regimes jurídicos", o que, tendo em conta o preceituado na segunda parte deste artigo, veio, mais exactamente, a traduzir-se em que as leis podiam restringir-se a isso, e naturalmente a isso se restringiriam. A parte "técnica" dos regimes legalmente estabelecidos, os pormenores de disciplina das matérias reguladas na lei, essa caberia, em princípio, a outro órgão constitucional, estruturado de forma a poder mobilizar os conhecimentos especializados necessários para elaborar as normas complementares necessárias. Esse órgão seria o Governo, o qual, nos termos do artigo 108.°, n.° 3.°, disporia, precisamente para este efeito, de faculdades regulamentares.
Entendeu, entretanto, o legislador constituinte que um certo e restrito número de matérias, consideradas mais importantes, deveria ficar reservado à Assembleia Nacional para ser disciplinado em todo o pormenor, sob a forma de lei 24. Foram elas as indicadas na redacção original do artigo 93.°
A verdade, porém, ó que o sistema ideado e consagrado na Constituição de 1933 sofreu as suas distorções, e, ao abrigo da letra, que não do espírito, do n.° 2.° do artigo 108.°, sob pressão das realidades, o Governo se veio tornando, logo a partir da enteada em vigor da lei fundamental, no legislador normal, entrando a Assembleia Nacional a funcionar como órgão legislativo de excepção. O domínio da crise económica e dos problemas sociais nos anos 30 e a intervenção do Estado em todos os sectores da vida durante e após a 2.ª Grande Guerra exigiram uma numerosa legislação de índole mais ou menos especializada, que à Assembleia Nacional, no aliás curto período de cada sessão anual, e tendo, para mais, outras atribuições de índole não legislativa a realizar, não foi possível elaborar, ainda que limitando-se à construção de simples princípios gerais ou orientadores.
Perante a prática constitucional instaurada, perante a norma que por via consuctudinária assim se criou, o problema que se pôs deixou de ser o de negar o Governo como legislador concorrente da Assembleia Nacional para passar a ser o de lhe vedar a possibilidade de intervir legislativamente num domínio de competência legislativa reservado à Assembleia.
Foi esse o alcance da alteração de redacção que, no artigo 93.°, foi introduzida pela Lei n.° 2009, de 17 de Setembro de 1945, a qual, para pôr a "verdade formal" de acordo com a "verdade real", veio, na modificação que introduziu ao artigo 109.°, n.° 2.°, a instaurar expressis verbis o sistema que faz do Governo o legislador normal para a metrópole. Enquanto até essa altura o objectivo do artigo 93.° era vedar ao Governo tratar certas matérias importantes sob a forma de regulamento "independente" e obrigar a Assembleia Nacional a versar esses assuntos sob a forma de lei, depois de 1945 o escopo de tal norma constitucional, com a redacção que lhe veio a ser dada, passou a ser o de fechar a porta ao decreto-lei como forma normal 25 de disciplina básica de tais matérias 26.

110. A Lei n.° 2048 deu, das matérias reservadas, nestes termos, à Assembleia Nacional, um elenco mais curto do que aquele que na versão primitiva do artigo 93.° se fazia das que não podiam assumir a forma de regulamento, isto sem embargo de a Câmara Corporativa ter sugerido que ele fosse ampliado (parecer n.° 13/V). Mas a lista veio, finalmente, a ser acrescentada de outros assuntos pela Lei n.° 2100, de 29 de Agosto de 1959.
Na proposta ora em apreço visa-se alargar ainda mais o quadro das matérias que, no plano da sua disciplina jurídica geral ou básica, hão-de ser tratadas pela Assembleia Nacional sob a forma de lei.
De um modo geral, a decisão sob cada uma das propostas adições há-de depender de se concluir ou não em cada caso que se justifica que a disciplina básica da matéria deve, em princípio, ser estabelecida pelo órgão legislativo mais representativo, porque directamente eleito, que ó a Assembleia Nacional. Tudo essencialmente estará em saber se essas matérias são altamente relevantes para a comunidade, se cada uma delas só obterá a disciplina que mais bem aceite há-de ser pelos cidadãos se for discutida em público pela assembleia dos representantes do País - e se o interesse público não pode sofrer gravemente pelo facto de uma legislação "às claras" ou pelo facto de se ter de aguardar a sua demorada deliberação no Parlamento. Considerada esta directriz, vai a Câmara analisar seguidamente as propostas alterações neste domínio.

111. a) O relatório da proposta de lei justifica que a matéria da nacionalidade entre no quadro das matérias reservadas, com duas razões: o facto de as normas basilares sobre nacionalidade terem natureza constitucional e o facto de se tratar de matéria que directamente contende com os direitos fundamentais e que se mostra susceptível de ser regulada por forma sistemática.
Afigura-se à Câmara que não há inconveniente na atribuição à Assembleia Nacional da competência exclusiva para elaborar as bases gerais do regime da aquisição e perda da nacionalidade portuguesa. O assunto é, realmente, de alta importância para a comunidade - tanto que se pode efectivamente dizer que se trata de matéria constitucional. Na verdade, ó corrente a doutrina de que são de direito constitucional, materialmente entendido, as normas que fixam ou circunscrevem o âmbito ou a extensão de um dos elementos essenciais do Estado, a sua população, fixando os critérios da pertinência a ele das pessoas físicas e jurídicas. Por outro lado, não se vê que a disciplina básica de tal matéria perca pelo facto de não ser em princípio confiada ao Governo, nem que seja de recear que a clássica lentidão do processo parlamentar provoque demoras indesejáveis. Tratando-se, para mais,

24 Não repugnaria entender-se que o Governo, sobre essas matérias, pudesse editar regulamentos de execução - entendendo-se por isso apenas as normas que se limitassem, estritamente, a interpretar as normas legais ou a integrar as suas lacunas -, e não normas que completassem ou desenvolvessem as normas legais, numa parte voluntária ou deliberadamente deixada por disciplinar pelo legislador, com pormenores de aplicação ou de organização situados no interior daquelas normas legais. Se se quisesse chamar às normas do Governo que contivessem estes pormenores regulamentos "independentes", então o que deveria dizer-se era que o artigo 93.°, na sua versão inicial, não facultava que sobre as matérias nele indicadas o Governo fizesse regulamentos independentes.
25 A legislação do Governo, nas matérias reservadas à competência da Assembleia, ficou limitada aos casos em que a Assembleia Nacional o incumbisse de as disciplinar (artigo 91.°, n.° 13.°).
26 No parecer desta Câmara de 16 de Junho de 1945 (Diário das Sessões, n.° 176, de 16 de Junho de 1945, suplemento) admitiu-se que eventuais normas complementares das normas legais (expedidas no exercício da competência exclusiva da Assembleia Nacional, fixada no artigo 93.°), necessárias para colmatar as suas lacunas, deveriam passar a assumir a forma de decretos-leis. Excluir-se-iam, sempre, com este objectivo, os decretos regulamentares. Mas a Câmara, no seu parecer n.° 13/VII (Actas da Câmara, Corporativa, n.° 58, de 12 de Maio de 1959), afirmou expressamente que, estabelecidas (nessas matérias) as bases gerais dos respectivos regimes jurídicos pela Assembleia Nacional, o Governo poderia desenvolvê-las ou completá-las, quer sob a forma de decretos-leis, quer mesmo sob a forma de decretos regulamentares.

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de matérias em que naturalmente se concentra um certo interesse dos cidadãos em geral, não deixará de convir dar-lhes oportunidade de seguir a discussão pública delas na Assembleia Nacional.
É claro que a opinião pública já não seria tão naturalmente atraída para as discussões técnicas sobre os pormenores do regime desta matéria, e, por isso, se compreende que eles devam ficar para regulamento.
É curioso que as coisas já assim se passaram com as bases sobre aquisição e perda da nacionalidade constantes da Lei n.° 2098, de 29 de Julho de 1959, e com o chamado "Regulamento da Nacionalidade Portuguesa" (Decreto n.° 43 090, de 27 de Julho de 1960).
É interessante notar que, no artigo 34.° da vigente Constituição Francesa, o Parlamento surge como o único competente para fixar todas as negras (e não apenas os princípios fundamentais) sobre a nacionalidade, ressalvando-se sempre a possibilidade de o Governo o substituir mediante ordonnances (antigos decrets-lois), no uso de autorização legislativa (artigo 38.°).

112. b) A .proposta do Governo redunda, afinal de contas, em reunir numa única alínea as actuais alíneas e) e g) do artigo 93.° E inteiram ente aceitável que os princípios gerais sobre o estatuto dos juizes dos tribunais ordinários, cujos pressupostos constitucionais constam dos artigos 119.° e 120.°, sejam fixados pela Assembleia Nacional, dada a sua importância fundamental. Nenhum inconveniente se descortina em que se apoie a orientação perfilhada. Aliás, esta Câmara já se pronunciou neste sentido no seu parecer n.° 13/VII e para ele remete, a este propósito.
Poderia pensar-se em sugerir que, em vez de se aludir só à "organização dos tribunais", se deveria falar primeiramente na sua criação - mas, salvo melhor parecer, aquela expressão abrange a própria criação deles.

113. c) Pretende-se agora que as bases relativas à definição dos deveres decorrentes da defesa nacional passem a ser da competência reservada da Assembleia Nacional, com a alegação de se tratar de matéria que contende directamente com os direitos fundamentais e que se mostra susceptível de ser regulada por forma sistemática.
Tais deveres referem-se não apenas às pessoas, mas também aos bens dos cidadãos. Em França, esta matéria constitui reserva absoluta da lei, não se limitando o Parlamento a votar, a respeito dela, os princípios fundamentais, susceptíveis de serem desenvolvidos ou completados sob forma regulamentar - o que comprova a alta importância que a sua Constituição dá a tal matéria, a qual, realmente, como o Governo na sua proposta salienta, contende de forma directa com os direitos fundamentais (de liberdade e de propriedade). Poucos serão, pensa-se, os assuntos em que mais se justifique a intervenção da Assembleia Nacional, ante as razões que em geral se indicaram atrás como próprias para fundar a entrega ao Parlamento da decisão sobre elas, ainda que apenas nos aspectos básicos ou fundamentais.

114. d) Trata-se da matéria da primeira parte da actual alínea f), adicionada ao artigo 93.° pela Lei n.° 2100. A matéria da segunda parte passará, segundo a proposta, a constituir uma nova alínea, a alínea f), sobre a qual se dirá no lugar próprio. Não há objecção à nova formulação dos preceitos já hoje em vigor.

115. e) Certamente que se não trata de confiar à Assembleia Nacional competência reservada para definir concretamente as infracções a que cada tipo ide pena ou da medida de segurança corresponderá. A ser assim, a pro. posta teria tido em vista conferir à Assembleia poderes reservadas para formular em pormenor praticam ente toda a paste especial do Código Penal, como sucede em França onde ó reserva absoluta de lei, votada pelo Parlamento, à determinação dos crimes e delitos, bem como das penas que lhes são aplicáveis (artigo 34.°). Mas entre nós apenas se deseja que ao Parlamento caiba, limitadamente, a aprovação dos princípios gerais sobre definição das penas criminais e das medidas de segurança. Aliás, seria difícil ir-se no nosso país para uma reserva absoluta de lei nesta matéria, dado que hoje em dia há, por vezes, necessidades imediatas de intervenção legislativa criminal.
A Câmara, mesta ordem de ideias, perfilhou o ponto de vista e a redacção proposta pelo Governo.
Alguns procuradores, entretanto, entenderam que não é fácil conceber-se que a definição de que m estai alínea se fala possa fazer-se desligada do sistema (penal, do qual as medidas criminais não são senão um efeito particular. Por isso se inclinaram para que a alteração ficasse assim redigida: "Direito e instituições criminais."
Assim, e em resumo, a Câmara recomenda a adopção da fórmula proposta pelo Governo.

116. f) Por uma simples questão de sistematização, esta alínea é o produto do desdobramento em duas da actual alínea f) do artigo 93.° Não se descortina objecção a tal modificação.
Aproveita-se para esclarecer que não pode considerar-se um erro referir expressamente o carácter excepcional da providência do habeas corpus. Pode, quando muito, considerar-se uma inutilidade.
Entretanto a Câmara vota a supressão do adjectivo "excepcional", por se poder entender que a providência tem qualquer coisa" de anormal, o que mão é certo. Propõe-se, portanto, a seguinte redacção:

f) Condições de uso do "habeas corpus".

117. g) É no artigo 49.°, § 1.°, in fine, que a Constituição prevê, incidentalmente, a legitimidade da expropriação determinada pelo interesse público, mediante justa indemnização. Simplesmente, até agora, a regulamentação básica desta matéria, como aliás também a da requisição, não tem sido da competência reservada da Assembleia Nacional.
Fica entendido, no que respeita à expropriação, que à Assembleia competirá pelo menos definir as finalidades de utilidade pública que podem fundamentá-la, as actividades em favor das quais a expropriação pode ser decretada, as directrizes sobre a extensão dela, os princípios gerais em matéria de indemnização e os respeitantes ao processo administrativo e jurisdicional, destinado a assegurar uma adequada tutela tanto do interesse público como dos direitos dos proprietários.
Quanto à requisição, há que lembrar que, na parte respeitante às requisições militares, esta matéria ficará contemplada na alínea c). O facto só por si, porém, não desaconselha que neste lugar se fale genericamente na requisição (para fins militares e civis). E, em todo o caso, necessário ter presente que são vários os textos legais (e regulamentares, inclusive) que têm legitimado a requisição para finalidades administrativas ou, noutros termos, para fins de carácter civil. A aprovação do texto ora proposto vai acarretar a necessidade de refundir toda esta matéria num diploma básico, numa loi cadre, sobre as requisições civis - mas a importância dela e as suas implicações com os direitos fundamentais de propriedade e de liberdade justificarão o empreendimento. Nessa lei se

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enunciarão, além do mais que se achar conveniente, os fins administrativos que são susceptíveis de fundamentar as requisições, as circunstâncias em que elas poderão ter lugar, as autoridades competentes para as exigir, a forma que deverão revestir e as indemnizações a que darão origem.

118. h) Volta agora a pôr-se a questão candente da competência parlamentar, de princípio exclusiva, para a criação de impostos.
O problema foi suscitado pela Câmara Corporativa em 1951, no seu parecer n.° 13/V, tendo então sugerido que os princípios gerais sobre a criação de impostos e de taxas deveriam ser, em regra, aprovados pela Assembleia Nacional. O Governo só poderia fazê-lo no uso de autorização legislativa e em casos de urgência e necessidade pública (estando ou não aquela reunida, mas, mais naturalmente, nos intervalos das sessões legislativas), devendo es decretos-leis, nestas hipóteses, ser sujeitos a ratificação parlamentar na primeira sessão legislativa que se seguisse à sua publicação.
Esta sugestão não vingou na Assembleia, em substância, por se ter entendido que esta tem oportunidade de tomar contacto com os princípios gerais relativos aos impostos (e às 'taxas) a propósito da aprovação, que exclusivamente lhe compete, da lei de meios.
Em 1959, nos projectos de lei n.ºs 19 e 21 (Actas da Câmara Corporativa, n.° 48, de 4 de Abril, e n.° 50, de 11 de Abril, respectivamente), insistiu-se pela consagração desta orientação, esclarecendo-se que, fora do funcionamento efectivo da Assembleia Nacional e em caso de urgência e necessidade pública reconhecidas como existentes pelo Presidente da Assembleia, poderia o Governo criar impostos e taxas, sem prejuízo, porém, da respectiva sujeição a ratificação, nos termos do § 3.° do artigo 109.°
Reexaminando o assunto, esta Câmara concluiu (parecer n.° 13/VII) não ser aconselhável modificar, por aquele então, o sistema consagrado de repartição dos poderes constitucionais em matéria fiscal entre a Assembleia Nacional e o Governo.
Sendo a função tributária uma das anais importantes, e as resoluções, que no exercício dela se tomam, das mais graves, na medida em que interessam vivamente ao País inteiro, não é de estranhar que periòdicamente ressurja a ideia de atribuir os poderes de criação de impostos em princípio apenas ao Parlamento. E isso perfeitamente normal e compreensível, já que "o poder financeiro tem desempenhado um papel essencial no desenvolvimento histórico dos parlamentos - mais importante, a princípio, que o papel do poder legislativo. As assembleias consentiram no imposto e votaram o orçamento antes mesmo de terem votado a lei" 27.
E entretanto de salientar que, por agora, não se propõe igual solução quanto às taxas - pois se terá pensado que a Assembleia, ante a complicação técnica dessa matéria e a multiplicidade das intervenções que dela se requereriam, não é quem se encontra em melhor posição para legislar sobre o assunto, não devendo, por isso, confiar-se-lhe, em princípio, uma competência legislativa exclusiva em tal domínio. Assim, aliás, se concluiu na Assembleia Nacional, em 1959, de uma forma generalizada.
É legítimo concluir-se, ante os termos da discussão parlamentar sobre a matéria, que o argumento de maior Peso que terá determinado em 1959 a rejeição dos projectos de lei referidos haja sido o de que a competência exclusiva da Assembleia Nacional poderia conduzir a que não fosse possível ao Governo cumprir a sua obrigação de assegurar o equilíbrio orçamental, a não ser mediante uma redução de despesas que porventura poderia ser absolutamente inviável, visto a margem de compressão das despesas do Estado ter limites e estes podem estar atingidos.
Revendo a sua última posição, está a Câmara hoje em crer que não há tanta razão como antes admitiu que houvesse, para recear atritos indesejáveis entre o Governo e a Assembleia Nacional, no que respeita à obtenção das receitas necessárias à cobertura das despesas previstas como devendo ser efectuadas. Entre a maioria dos representantes da Nação e o Governo em funções haverá uma natural conjugação de directrizes políticas. Se é certo que a conservação do Governo no Poder não depende do destino que tiverem as suas propostas de lei ou de quaisquer votações da Assembleia Nacional, que o Governo é da exclusiva confiança do Presidente da República (artigo 112.° da Constituição) e que o Presidente do Conselho responde (e responde só) perante este (artigo 108.°), que é quem o nomeia livremente, não ó menos certo que o Presidente da República, entre tudo aquilo que deverá ter em conta na formação das suas decisões a este respeito, não deixará principalmente de considerar a necessidade de uma fundamental harmonia entre as directrizes políticas dominantes na Assembleia Nacional e as que o Governo perfilha, competindo-lhe utilizar criteriosamente, para o efeito, quando essa unidade de direcção política por desfortuna se quebrar, e com vista a instaurá-la de novo, os instrumentos da dissolução da Assembleia Nacional e da exoneração do Governo. Nesta hipótese de crise, perante uma rejeição por parte da Assembleia Nacional dos impostos requeridos pelo Governo, por este considerados essenciais e indispensáveis, uma de duas: ou o Presidente da República perfilha o ponto de vista da Assembleia e será conduzido a exonerar o Governo, nomeando outro de acordo com a orientação dominante nesse órgão, o qual, portanto, prescindirá dos impostos antes pretendidos; ou o Presidente da República se inclina para a orientação do Governo e dissolve a Assembleia, ficando este com possibilidade de usar da competência de legislar no sentido pretendido, invocando urgência e necessidade públicas. A nova Assembleia, uma vez eleita e em funções, dirá sobre o assunto a última palavra, cabendo-lhe ratificar ou negar a ratificação aos decretos-leis assim publicados.
Não há dúvida de que, na hipótese de crise figurada, vem ao de cima e adquire evidência aquela dose de "parlamentarismo" de que o sistema constitucional português não deixa de algum modo de participar. No sistema agora proposto, o ingrediente "parlamentarista" sobressai mais - mas ele não deixa de existir na própria formulação actual desse sistema, pelo menos na medida em que compete exclusivamente à Assembleia Nacional votar a lei de meios (artigo 91.°, Desde que, porém, se tenham em conta as situações habituais, de aparentemente político estreito entre os dois órgãos em funções - Assembleia Nacional e Governo -, não há que recear divergências invencíveis e graves no que respeita à criação dos impostos. Na prática, o que virá a passar-se entre nós, se a proposta em análise vier a ser votada, será sensivelmente o que se passa nos países onde a ligação entre o governo em funções e uma consistente maioria parlamentar faz desta um instrumento de colaboração com o poder executivo: em regra, essa maioria

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aparecerá com a missão primordial de apoiar as propostas que envolvam a política geral do Governo.
Acresce que não será de excluir, num sistema assim desenhado, que o Governo venha a legislar, com frequência, no exercício de autorizações legislativas, as quais não ficam arredadas. E bem possível, na verdade, que se restaure, em face de um sistema que constituirá neste aspecto uma "reposição das nossas leis constitucionais tradicionais de antes de 1933, a prática, que ante estas se seguia quase sempre, de, fora da oportunidade da votação do projecto de orçamento, o Executivo ser autorizado pelo Parlamento a elaborar e publicar leis tributárias avulsas ou reformas tributárias amplas.
Seja como for, volta-se, assim - espera-se que sem inconvenientes políticos de maior -, a uma tradição constitucional muito significativa, e alinha-se a lei fundamental do Pais com a grande maioria das restantes de lá de fora, as quais, a este respeito, se baseiam, como é bem sabido, no facto de os impostos constituírem um sacrifício da propriedade e dos direitos privados dos cidadãos, de que o parlamento é considerado o primeiro guarda e protector, no facto de os impostos terem, por via de regra, efeitos importantes e múltiplos na vida económica nacional, cumprindo ouvir os directos representantes de todos os interesses em jogo, e, por último, no facto de, através da publicidade da discussão sobre os tributos no parlamento, se mostrar aos contribuintes o interesse público da sua cobrança 23.
A alusão ao artigo 70.° significa que, nesta matéria, a Assembleia se não limita à aprovação das bases gerais do regime jurídico de cada imposto, pois., não obstante a redacção do artigo 70.°, que fala em princípios gerais, este preceito, no que toca aos impostos, por força do seu § 1.°, obriga, como na altura própria se disse, o legislador ordinário a fixar os seus elementos essenciais - incidência, taxa, isenções (e ainda as reclamações e recursos dos contribuintes). O artigo 70.°, afinal de contas, está incoerentemente redigido; e o artigo 93.°, alínea h), incoerentemente redigido ficará também.
Assim, em conclusão, a Câmara Corporativa não vê hoje inconvenientes políticos graves nem prevê situações de embaraçante complicação que tornem desaconselhável a consagração do princípio da competência exclusiva da Assembleia Nacional para a criação de impostos nos termos do artigo 70.°, como vem proposto pelo Governo.
O princípio da autonomia financeira das províncias ultramarinas impõe, entretanto, a reserva da segunda parte da alínea h), que se tem estado a apreciar.

119. i) Este texto substituirá o da actual alínea b), crê-se que com vantagem. E natural que se tenha ponderado que actualmente tem um relevo cada vez maior a moeda bancária ou escriturai, que não estava abrangida pela redacção da alínea b), a qual só se referia às moedas metálicas e de papel.

120. j) Corresponde literalmente à actual alínea c)

121. l) Além dos institutos de emissão, que são os bancos emissores, são consideradas instituições de crédito os institutos de crédito do Estado, os bancos comerciais e os estabelecimentos especiais de crédito (artigo 2.º do Decreto-Lei n.° 42 641, de 12 de Novembro de 1959).
Portanto, além dos bancos, há outras instituições de crédito sem esse nome cuja influência no mercado do dinheiro ó equiparável.
Sendo assim, não tem sentido manter a actual redacção da alínea d) do artigo 93.°, que o texto da alínea l) proposto visa substituir.
De duas uma: ou se entende que, além dos bancos emissores, também a criação de outras instituições de crédito deve ser da competência exclusiva da Assembleia Nacional; ou se entende que devem ser incluídos na reserva de lei apenas os institutos de emissão.
Parece mais aceitável esta última posição, dadas as particulares exigências da função emissora e especial influência que os institutos de emissão têm sobre a circulação e o crédito, nomeadamente sobre a actividade das demais instituições de crédito. Note-se que o artigo 34.° da Constituição francesa se refere ao regime de emissão da moeda, entre as matérias da reserva absoluta da lei, e não ao sistema creditício.
Concorda-se, pois, com a redacção proposta pelo Governo.
Apenas se chama a atenção para que seria lógico aproximar esta alínea da alínea t), dado o nexo existente entre o sistema monetário e os institutos de emissão: estes são um instrumento de intervenção dentro daquele. Assim, a proposta alínea l) passaria a ser a alínea j) e esta passaria a ser a alínea l).

122. m) Trata-se da transposição para este artigo da alínea a) do n.° 1.° do actual artigo 150.° Desde, que se perfilha a orientação de, tanto quanto possível, integrar nos lugares próprios dos vários capítulos da Constituição as matérias versadas actualmente no título VII da parte II, a inclusão desta alínea no artigo 93.° impõe-se Anote-se apenas que se não vê vantagem nem explicação para que, em vez de se dizer "regime geral de governo das províncias ultramarinas", se diga "regime geral do governo das províncias ultramarinas".

123. n) A razão exposta em comentário às alíneas anteriores está na base da transposição para este lugar da alínea b) do n.° 1.º do artigo 150.° em vigor, com uma simples modificação de redacção, que se traduz em substituir Governo da metrópole por Governo Central. Efectivamente, não é tecnicamente correcto falar-se em "Governo da metrópole", porque o Governo, como órgão da soberania, tem atribuições e poderes, tanto em relação à metrópole como em relação às províncias ultramarinas, e, por outro lado, não há órgão da soberania que se chame "Governo da metrópole". A Constituição chama-lhe Governo, sem mais qualificativos. Esta última circunstância leva a sugerir que, sem embargo de a formulação do preceito não ficar inteiramente satisfatória, este seja redigido assim: "Definição da competência do Governo e dos governos ultramarinos quanto à área e a tempo das concessões de terrenos ou outras que envolvam exclusivo ou privilégio especial."

124. o) Constitui esta alínea, com a adaptação tornada indispensável, a reprodução do disposto, hoje, na aliena c) do n.° 1.° do artigo 150.° A razão da inclusão

28 Perdem, no condicionalismo político pressuposto, vigor os argumentos tirados da tecnicidade cada vez maior desta matéria e da impopularidade das decisões sobre impostos, a que os Deputados são particularmente sensíveis, porque não é a eles que se pedem contas pela má gestão económica do País. A solução de princípio de atribuir à Assembleia reservadamente esta competência oferece, entretanto, um inconveniente que se tem de aceitar: a necessária publicidade que têm de ter as discussões na Assembleia Nacional pode levar a especulações, antes da saída dos diplomas e prejudicar alguns efeitos que se pretenda alcançar.

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desta matéria neste lugar da Constituição ó a mesma que se aduziu com referência às duas alíneas anteriores.

Artigo 93.°, § 1.º

125. Já se esclareceu, em comentário ao § 2.° do artigo 70.° e à alínea h) deste artigo, que o sistema segundo a qual a competência legislativa em matéria de impostos cabe à Assembleia a título exclusivo carece de atenuações, uma das quais é justamente a que se enuncia neste parágrafo do artigo 93.° Não só o Governo poderá obter da Assembleia Nacional autorização para legislar sobre impostos, nos aspectos fixados no artigo 70.°, como, nos mesmos limites, poderá, independentemente dessas autorizações parlamentares, fazer decretos-leis nessa matéria, fora dos períodos de funcionamento efectivo da Assembleia Nacional, em casos de urgência e necessidade pública. O relatório da proposta prevê que tal competência poderá o Governo exercê-la em relação a todo e qualquer imposto, seja qual for a finalidade dele: mas admite que o ensejo para o recurso a tal poder há-de surgir sobretudo em relação aos impostos, com a criação dos quais se visem finalidades "parafiscais" (rigorosamente: extrafiscais), as quais podem assumir um carácter conjuntural e requerer uma intervenção legislativa oportuna, quer dizer, imediata, que, estando a Assembleia Nacional encerrada, em princípio há-de caber ao Governo sob a forma de decreto-lei.
Como se sabe, segundo a Constituição vigente, os decretos-leis publicados fora do período de funcionamento efectivo da Assembleia Nacional não carecem de ratificação (artigo 109.°, § 3.°, a contrário) e a razão estará em que a Assembleia pode, se tiver fundamentais objecções s. subsistência do estatuído nos diplomas expedidos fora desse período pelo Governo, suspendê-los ou revogá-los. Daqui resulta que o facto de a Assembleia não usar, uma vez entrada em funcionamento efectivo, da sua competência de suspensão ou revogação dos referidos decretos-leis, importa, afinal de contas, uma ratificação tácita deles.
No caso presente, porém, as coisas não se passariam assim, porque os membros da Assembleia Nacional não teriam o direito de apresentar projectos de lei de suspensão ou revogação dos decretos-leis do Governo, os quais necessariamente envolveriam diminuição de receita do Estado criada por "leis" anteriores (artigo 97.°). O que ora se propõe constitui a única forma de ladear este preceito constitucional.
Não se desconhecem os riscos que a aplicação do sistema gera para as normais relações entre Assembleia e Governo - mas, como já se deixou entender, espera-se que eles sejam, na generalidade dos casos, meramente hipotéticos ou teóricos.

126. A proposta não nos diz, na redacção que apresenta para o § 1.° do artigo 93.°, se a ratificação dos decretos-leis terá de ser expressa ou poderá ser tácita, como sucede em relação aos decretos-leis publicados durante o funcionamento efectivo da Assembleia Nacional - devendo entender-se que o § 3.° do antigo 109.° se aplicará neste caso por analogia.
Donde resulta que a "caducidade", de que no parágrafo em apreço se fala, virá a traduzir-se na cessação de vigência a que no § 3.º do artigo 109.° se faz alusão; e que a data precisa em que a vigência de um decreto-lei publicado nas sobreditas condições termina deverá ser aquela em que sair no Diário do Governo o aviso de recusa (expressa) de ratificação, expedido pelo Presidente da Assembleia.

Artigo 93.°, § 2.º

127. Como noutro lugar do presente parecer já se deixou dito, o Governo pode desenvolver ou completar, em decreto regulamentar e por maioria de razão em decreto-lei, os princípios gerais dos regimes jurídicos que o artigo 93.° manda serem fixados em lei pela Assembleia Nacional.
Enquanto a Assembleia se não pronunciar nesses termos, em matérias até hoje reguladas em decreto-lei, continuarão estes em vigor, para se não cair numa situação de vácuo legislativo.
O objectivo específico do proposto § 2.° é esclarecer que o Governo pode continuar a legislar sobre esses assuntos, em casos como os figurados, se se limitar a alterar os pormenores de aplicação dos regimes gerais que se encontrem perfilhados nos decretos-leis anteriores. Mas vai mais longe, consentindo-lhe, se ampliar as garantias dos particulares nestes estabelecidas, invadir o domínio dos princípios ou bases gerais, alterando-os em sentido mais favorável para eles.
Que pensar da proposta neste ponto?
É já hoje óbvio que o Governo pode continuar a legislar, mediante decreto-lei, sobre matérias reservadas a Assembleia Nacional, na parte não referente aos aspectos básicos dos regimes jurídicos estabelecidos em decreto-lei antes de dada matéria ter entrado na competência exclusiva da Assembleia. Mais do que isso: pode até versá-la em decreto regulamentar, se os aspectos de pormenor dos regimes estabelecidos tiverem sido objecto de diplomas desta espécie. Nos aspectos básicos é que o Governo não pode intervir sob a forma de decreto-lei, salvo no uso de autorizações legislativas. Não precisa isso de ser explicitado.
Quanto à consignação da possibilidade de o Governo, em todo o caso, invadir, com decretos-leis, os aspectos básicos, os princípios dos decretos-leis vigentes (enquanto estes não forem substituídos por leis formais), se por essa forma alargar as garantias dos particulares, é lícito objectar que, estando o Governo preparado para alterar esses princípios ou bases sob a forma de decreto-lei, preparado deve estar também para apresentar à Assembleia Nacional propostas de lei e, assim, suscitar deste órgão o exercício da sua competência exclusiva.
Só se poderia ser inclinado a perfilhar a proposta se se devesse admitir que poderá haver urgência especial em estabelecer legislativamente princípios mais favoráveis aos particulares, em dada matéria da competência reservada da Assembleia Nacional - uma urgência tal que não permitisse esperar pelo seu funcionamento. E difícil imaginar que tal possa suceder. Se isso fosse concebivel, então mais valeria consagrar-se explicitamente a possibilidade genérica da legislação governamental no campo da reserva da Assembleia Nacional, em casos de urgência e necessidade pública, em termos idênticos aos previstos especificamente para os impostos, no proposto § 1.°, já analisado.
E já nem se fala no contencioso que se poderia gerar sobre se determinados preceitos seriam mais ou menos favoráveis para os particulares.
Pelo exposto, não se julga recomendável a inserção do proposto § 2.° na Constituição.

Artigo 93.°, § 3.°

128. No artigo 150.°, n.° 1.°, da Constituição é confiada exclusivamente ao Ministro que superintende no conjunto das atribuições do Governo relativamente ao ultramar (hoje o Ministro do Ultramar) a iniciativa das leis da

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competência reservada da Assembleia Nacional especialmente respeitantes às províncias ultramarinas. A proposta, na lógica já posta em relevo, traz este preceito para o artigo 93.°, sob a forma de um parágrafo, que ó o § 3.°, ora em análise.
Considera-se acertada a orientação, que já com referência ao § 2.° do artigo 2.° se evidenciou, de suprimir a referência na Constituição a determinados Ministros em concreto - na hipótese, ao Ministro do Ultramar. Nada nos diz que amanhã a sua designação não seja outra ou mesmo que se não confiram a Ministro ou Ministros diferentes, ou até à Presidência do Conselho, as competências hoje concentradas no Ministro do Ultramar. A forma, já não se diz de não forçar o legislador a manter esse órgão, ou esse órgão com tal designação, mas de prevenir qualquer das soluções apontadas, será a de se fazer referência ao Governo e não ao Ministro do Ultramar.
Dado que a Assembleia Nacional, nos termos da proposta, legisla especialmente para o ultramar apenas nas matérias a que alude o proposto artigo 93-°, dizer, como se diz no § 3.° sob apreciação, que "a iniciativa das leis que respeitem especialmente ao ultramar cabe em exclusivo ao Governo" vem a dar. no mesmo que hoje se diz no n.° 1.° do artigo 150.° Isto significa que a iniciativa das leis comuns à metrópole e ao ultramar (leis para todo o território nacional, de que a proposta fala no § 1.° do artigo 136.°) é a prevista de um modo geral no artigo 97.°

Artigo 94.º

129. Não propondo o alargamento da sessão legislativa anual da Assembleia Nacional, o Governo mostra perfilhar as razões que militam em sentido contrário, todas ou pelo menos parte das quais foram expostas em 1959 por esta Câmara, no seu parecer 13/VII, já várias vezes cita/do. Não há, pois, que voltar ao assunto.
O que o Governo propõe é, simplesmente, a antecipação da data em que a sessão legislativa anual se inicia. Com vista - esclarece-se "no relatório da proposta - "a que a votação da lei de meios possa ser preparada com mais tempo", há-de a sessão legislativa ordinária começar a 15 de Novembro, isto é, dez dias antes da data actualmente prevista. Tem-se verificado, efectivamente, que nem a Assembleia Nacional nem a Câmara Corporativa podem, no tempo com que ficam para o estudo e discussão da proposta de lei de autorização das receitas e despesas, exercer convenientemente as suas competências respectivas, tendo em conta a data à volta da qual se requer que a lei de meios seja publicada, para poder ser executada pelo Governo.
Para corresponder melhor aos intuitos da proposta, parece preferível antecipar o início da sessão legislativa para 15 de Outubro.
Na verdade, costuma suceder que ia Assembleia Nacional, durante a primeira fase dos trabalhos, não tem à sua disposição os pareceres da Câmara Corporativa relativos às propostas e projectos de lei, em regra apresentados nesse período e vê-se na necessidade de interromper os seus trabalhos, enquanto aguarda a elaboração de tais pareceres. Daqui resulta que parece apropriado prescrever-se que a sessão legislativa compreenda dois períodos, um de 15 ã& Outubro a 15 de Novembro e outro de 1 de Fevereiro a 31 de Março.
Lembre-se, entretanto, que a aprovação desta sugestão da Câmara obrigará, reflexamente, a uma modificação do prazo previsto no antigo 91.º, n.° 4.°
Nestes termos a Câmara entende que o corpo do artigo deverá ter a seguinte redacção:

A sessão legislativa da Assembleia Nacional compreende dois períodos, o primeiro dos quais de Is de Outubro a 15 de Novembro e o segundo de 1 de Fevereiro a 31 de Março, salvo o disposto nos artigos 76.º, 76.º e 81.°, n.° 5.

Artigo 95.°, § 2.º

130. Uma primeira alteração relevante: as comissões em que a Assembleia Nacional se pode organizar não interromperão necessariamente o seu funcionamento nos períodos de interrupção dos trabalhos em sessões plenárias, como sucede ante o texto actual, em cujos termos "as comissões só estarão em exercício durante o funcionamento efectivo da Assembleia". Segundo o que ora vem proposto, diversamente, com efeito, "as comissões só estarão em exercício entre o início e o termo da sessão legislativa", o que lhes permitirá estarem em exercício durante as interrupções. Parece adequado que assim se disponha, para não obrigar à suspensão de trabalhos (ou ao seu prosseguimento, mas sem que os Deputados, membros delas, estejam sujeitos ao regime que lhes é aplicável durante o funcionamento efectivo) que justamente devem continuar durante elas, a fim de proporcionarem o conveniente labor da Assembleia, a seguir a essas interrupções.

131. Outra alteração proposta, cuja aprovação se recomenda, por óbvias razões: a que se traduz em permitir ao Presidente da Assembleia Nacional que convoque as comissões (permanentes) nas duas semanas anteriores à abertura da sessão legislativa, para se ocuparem de propostas ou projectos de lei já apresentados, que devam ser objecto dos trabalhos da Assembleia.
No resto, há apenas diferenças irrelevantes de redacção.

Artigo 95.°, § 3.º

132. A primeira alteração que se propõe consiste em permitir que os membros do Governo se façam substituir: nas reuniões das comissões em que o Governo deseje participar, por representantes seus. Dado o carácter essencialmente especializado que as leis em preparação muitas vezes assumem, não custa admitir que melhor colaboração dêem às comissões os técnicos ou especialistas dos vários departamentos ministeriais, que tantas vezes são os verdadeiros autores intelectuais das propostas, apresentadas embora sobre responsabilidade dos membros do Governo, ou que, de qualquer modo, são conhecedores mais profundos das matérias em estudo nas comissões do que os membros do Governo. Sem embargo, entende a Câmara que o tipo de relações entre a Assembleia Nacional e o Governo requer que os membros do Governo compareçam pessoalmente, podendo fazer-se acompanhar do pessoal técnico conveniente.
A segunda alteração visa a permitir è Câmara Corporativa, por delegado seu, estar presente nas comissões parlamentares em toda a medida do necessário.
A Câmara propõe, portanto, a seguinte redacção:

Os membros do Governo, acompanhados ou não por pessoal técnico, podem tomar parte nas reuniões das comissões, e, sempre que sejam apreciados projectos ou propostas de alterações sugeridas pela Câmara Corporativa, poderá participar nelas um delegada desta Câmara.

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Artigo 99.°, § único

133. No que respeita à alínea b) do § único em apreço, deixa-se de dispor que as deliberações a que se referem os artigos 2.° e 80.º sejam promulgadas como resoluções - e a razão do que vem sugerido encontra-se no relatório da proposta.
Diz-se aí, quanto as deliberações da Assembleia Nacional sobre rectificações de fronteiras, que uma de duas: se a rectificação de fronteiras consta de tratado, a Assembleia intervirá a aprová-lo para ratificação, nos termos do n.° 7.° do artigo 91.° - e a deliberação de aprovação será promulgada como resolução justamente por isso, em face do também disposto no § único do artigo 99.°; se a ratificação é unilateralmente deliberada pela Assembleia nacional, na medida em que lhe cabe definir os limites dos territórios da Nação, então a deliberação deverá tomar a forma de lei.
Neste ponto, nada há a objectar.
A supressão da referência ao artigo 80.º é, por seu turno, explicada pelo facto de hoje em dia a Assembleia Nacional não ter de deliberar sobre a eleição presidencial, como sucedia ante a Lei n.° 2048, por força da qual, em 1951, justamente se inseriu na alínea b) do § único do artigo 09.° a referência ao artigo 80.°
Contra isto poderá dizer-se que no artigo 80.º se alude a outra deliberação da Assembleia Nacional: a relativa ao seu assentimento à ausência do Presidente da República para país estrangeiro, a qual deve ser promulgada como resolução. O certo, porém, é que o será por força da parte final da alínea b), que se refere a "outras (deliberações) semelhantes".
Assim, pode concordar-se com o que vem proposto a este respeito.
Finalmente, há que observar que as referências aos vários números do artigo 91.º deverão subsistir na forma actual se, como é sugerido por esta Câmara, o actual n.° 10.° do artigo 91.º não for suprimido.
A alínea b) do § único em apreciação deverá, assim. ter a seguinte redacção:

As deliberações a que se referem os n.ºs 3.º, 6.º, 7.º e 12.º do artigo 91.º e outras semelhantes.

Artigo 101.°, § único

134. O relatório da proposta enuncia o motivo que levou o Governo a pronunciar-se- pela adição deste parágrafo ao artigo 101.° Inspirou-se o Governo no exemplo francês. Na verdade, o artigo 48.° da Constituição Francesa de 1958 dá ao Governo, em substância, competência para ele próprio determinar a "ordem do dia" do Parlamento, na medida em que ela deve comportar prioritariamente, e segundo a precedência fixada pelo Governo, a discussão dos projects de loi por ele apresentados e das propositions de loi por ele aceites.
Ao lado deste sistema, há aquele segundo o qual a fixação da ordem do dia cabe exclusivamente ao presidente da assembleia legislativa e aquele segundo o qual essa fixação cabe à própria assembleia, que, assim, é "senhora da sua ordem do dia".
O primeiro destes dois sistemas pode, de direito ou por força de normas não jurídicas, pôr o presidente na obrigação de consultar (directa ou indirectamente) os membros da assembleia, ou o Governo, ou uns e o outro.
É este o sistema mais antigo, dentro dos regimes representativos, e, de qualquer modo, veio a constituir o processo de evitar o caos da vida parlamentar e que os parlamentares dessem primazia às questões de interesse demagógico.
O segundo desses dois sistemas, por sua vez, traduz mais fielmente que qualquer outro o princípio de que o Parlamento é o representante da soberania popular.
Não é possível fazer-se aqui uma exposição de história do direito parlamentar e um excurso pelo direito parlamentar comparado relativo à competência para a fixação da ordem do dia dos parlamentos, remetendo-se, a esse respeito, para o estudo de Cotterret, "L'ordre du jour des assemblées parlementaires", na Revue du Droit Public, 1961, pp. 813 e segs. É apenas necessário dizer-se, neste momento, que a orientação de conferir ao Executivo um papel mais ou menos determinante na fixação da ordem do dia das reuniões do Parlamento se tornou inevitável em face da necessidade de canalizar o mais possível este órgão para a colaboração com ele na adopção das providências legislativas julgadas indispensáveis a uma sociedade em que a disciplina normativa estadual é de regra. Trata-se, em suma, de "racionalizar a ordem do dia como instrumento de trabalho parlamentar". Como os parlamentos não foram em geral capazes de se autodisciplinar, os governos acabaram a pouco e pouco por se lhes substituir na fixação da ordem do dia. Exclui-se, nomeadamente, a Inglaterra, onde a disciplina foi livremente aceite pelos Comuns - aí, porém, porque a maioria está inteiramente associada às directrizes do Executivo.
Propõe o Governo que a fixação da ordem do dia, em vez de ser, como hoje ó, por força do artigo 31.°, alínea b), do Regimento da Assembleia Nacional, da competência do seu Presidente, seja da competência conjunta deste e do Presidente do Conselho.
Duvida-se de que, havendo, como tem havido, um alinhamento entre as orientações de política geral do Governo e da maioria da Assembleia, uma tal norma seja rigorosamente necessária para induzir a Assembleia a ser colaborante na oportuna preparação e adopção das normas legais julgadas pelo Governo urgentes ou convenientes. Não consta que problemas de desentendimento a este propósito tenham surgido - e é mesmo de admitir que um entendimento ou acordo se tenha mais ou menos sistematicamente verificado entre as duas Presidências a este propósito.
A formulação de uma tal regra, na Constituição não viria mais do que tornar formal e estrito o que já vem sendo e seria natural que continuasse a ser. prática corrente nas relações entre a Assembleia Nacional e o Governo. A Câmara sugere a não aprovação da proposta do Governo

Artigo 109.°, § 1.º

135. Não há objecções à alteração proposta. O Decreto-Lei n.° 48 618, de 10 de Outubro de 1968, previu que haja na Câmara Corporativa uma secção permanente, com competência para dar parecer ao Governo sobre projectos de diploma a publicar por ele. A conveniência de que exista esta secção não parece ser discutível e, por isso, nada obsta a que a sua institucionalização se faça ao nível constitucional.
A modificação que consiste em se dizer que as secções em geral corresponderão aos interesses representados na Câmara não merece reparos.

Artigo 104.°, § 3.°

136. No § 1.° deste artigo não se dispõe sobre a competência da secção permanente da Câmara Corporativa. A sua competência está hoje fixada no citado Decreto-Lei n.° 48 618. O § 3.°, cujo aditamento aos dois existentes o Governo propõe, visa, a este respeito, tão-só excluir a competência da referida secção para emitir

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pareceres sobre as propostas, projectos, convenções e tratados a que se alude no artigo 108.º da Constituição. Pretende-se que a secção permanente, cuja constituição hoje não é, e naturalmente continuará no futuro a não ser, especializada, não seja chamada a emitir parecer sobre matérias que lhe não são ou podem não ser familiares. Consentir nisso seria desvirtuar o papel que cabe a esta Câmara no processo de formação das normas jurídicas, tornando-o formal e inautêntico.
Em consequência da inclusão deste parágrafo, que é novo, o actual § 3.° passará para 4.° e o presente § 4.° será o § 5.°, como vem proposto.

Artigo 109.°, n.° 2.°

137. A Câmara entende que deve prever-se a possibilidade de todos os tratados, com exclusão dos chamados tratados políticos, poderem, em caso de urgência e necessidade públicas, ser aprovados pelo Governo.
Esta possibilidade deverá ser encarada mesmo em relação aos tratados que versem matéria da competência legislativa exclusiva da Assembleia Nacional, sobretudo tendo em conta que bem pode suceder conterem os tratados que versem matéria legislativa em geral uma ou outra norma que seja da competência legislativa exclusiva da Assembleia. Ora, nem sempre será viável ter de se aguardar o funcionamento deste órgão para submeter tais tratados à sua aprovação. Essas normas serão incidentais e surgirão no contexto de outras normas legislativas, porventura carecidas de vigência urgente na ordem, internacional e na, ordem interina.
Aliás, a matéria, deste número já foi apreciada especialmente em comentário ao proposto n.° 7.° do artigo 91.° Em consequência das observações então feitas, a Câmara sugere que o texto proposto seja substituído pelo seguinte:

Fazer decretos-leis e aprovar, em casos de urgência e necessidade pública, os tratados internacionais que versam matéria legislativa, bem como, em todos os casos, os acordos internacionais em matérias administrativas.

No relatório da proposta encontram-se estas palavras:

Quanto aos acordos, a regra que se aceita, e que corresponde à prática, tanto nossa como estrangeira, é de que não carecem de qualquer aprovação. Uma excepção se abre, porém, a esse princípio, nas hipóteses em que o acordo se refira a assuntos internos da competência do Governo.

Se bem se entende, quererá o Governo aludir a que há acordos em forma simplificada, celebrados por Ministros diferentes do dos Negócios Estrangeiros e por dirigentes de serviços autónomos ou personalizados, os quais entram em vigor na ordem internacional após a sua simples assinatura. Estes acordos não carecem de ratificação nem sequer de aprovação parlamentar ou outra. Só carecem de aprovação do Governo os acordos em forma simplificada, negociados e assinados pelo Chefe do Estado ou por plenipotenciário seu, sobre matérias administrativas.

Artigo 109.°, § 4.°

138. O texto deste novo preceito, proposto pelo Governo, deverá ser apreciado tendo em conta o que se sugeriu quanto ao n.° 2.° deste artigo e tendo em mente o facto de que os tratados, uma vez aprovados pelo Governo, serão naturalmente ratificados pelo Presidente da República, entrando em vigor na ordem internacional, trocados ou depositados que sejam os instrumentos de ratificação. Não se concebe que um tratado entre em vigor na ordem externa, para deixar de vigorar sucessivamente pelo facto de a Assembleia Nacional não ratificar o decreto de aprovação do Governo. E, no entanto, parece que é uma consequência destas que ma proposta se prevê vir a suceder se a ratificação de tal decreto se não verificar. Ela só teria lugar se os tratados em causa, tivessem sido expressamente concluídos sob reserva de que os seus efeitos internacionais cessarão no caso de a Assembleia Nacional se recusar a ratificar o decreto que os aprovar. Simplesmente, há tratados unilaterais que não admitem reservas e, em todos os bilaterais e em muitos multilaterais, pode justamente não haver aceitação delas, tornando-se os tratados impossíveis em relação às Partes que as rejeitem.
Em face disto, crê a Câmara que não é viável a consagração da solução proposta pelo Governo. No seu modo de ver, a aprovação dos tratados pelo Governo em casos de urgência e necessidade pública não carece de ratificação parlamentar, desde logo porque esta ratificação não pôde influir na vigência internacional dos tratados. O que sucederá, será que o Governo, intervindo nestas condições, envolve de algum modo a sua responsabilidade política, ficando sujeito às críticas da Assembleia Nacional e da opinião pública extraparlamentar. Este facto não deixará de fazer com que o Governo seja prudente e consciencioso no uso que haja de fazer da sua competência de aprovação.
A Câmara, portanto, não aconselha a aprovação deste novo parágrafo tal como se encontra redigido.
O que se imporá dizer será que a aprovação dos tratados pelo Governo revestirá a forma de decreto referendado por todos os Ministros e que a aprovação dos acordos revestirá a forma de decreto referendado pelo Presidente do Conselho e pelo Ministro competente - como, aliás, no relatório se afirma, sem contrapartida no texto da proposta.
Se, porém, a Assembleia Nacional o votar, recomenda-se que nele se diga, simplesmente, que os decretos-leis de aprovação de tratados que versem matéria legislativa devem ser ratificados na primeira sessão legislativa que se seguir à sua publicação. Isto para o pôr em harmonia com o parágrafo anterior, tal como a Câmara o formula.
A seguir-se a opinião da Câmara, o § 4.° seria assim redigido:

A aprovação dos tratados pelo Governo revestirá a forma de decreto, cuja promulgação será referendada por todos os Ministros, enquanto a aprovação dos acordos se fará por decreto, cuja promulgação será referendada pelo Presidente do Conselho e pelo Ministro competente.

Artigo 109.°, § 5.º

139. Este parágrafo destina-se, como do relatório da proposta se depreende, a tornar inquestionável que o Governo pode declarar o estado de sítio em qualquer das situações seguintes: não se encontrar a Assembleia Nacional em funcionamento e não ser possível convocá-la com a necessária urgência, ou encontrar-se ela impedida de reunir. Ante a Constituição, neste momento, uma tal competência é pelo menos duvidosa. Em todo o caso, crê-se que essa competência se deve considerar como um dos que os Americanos chamam inherent powers do Governo, necessários para salvaguardar, em circunstâncias excepcionais, a realização dos próprios fins da Constituição e das leis.
É normal, hoje em dia, conferir-se ao Executivo um" competência desta ordem, em circunstâncias deste tipo

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e até, em alguns sistemas, independentemente delas, embora então a validade da declaração seja referida a um período, carecendo, para produzir os seus efeitos a além dele, do assentimento parlamentar.
Só se poderá discutir sobre se o estado de sítio, declarado provisòriamente nas referidas condições, pelo Governo, há-de poder durar, sem necessidade de ratificação pela Assembleia Nacional, pelo período máximo fixado na proposta - noventa dias. Como o Governo ficará sob as criticas da Assembleia Nacional, no dia em que ela venha a reunir, e, de qualquer modo, sob o controle da opinião pública, é de pressupor que ele levante o estado de sítio, antes do termo desse período, logo que o regime de suspensão de garantias se torne dispensável, designadamente por terem cessado as graves perturbações da ordem e da segurança públicas ou as graves ameaças dessas perturbações.
Também se aceita que a eficácia do acto de suspensão das garantias possa exceder aquele período se, permanecendo a necessidade dele, for absolutamente impossível a reunião da Assembleia para autorizar a prorrogação do estado de sítio.
Não se diz, entretanto, na proposta, directamente, em que veste é que o Governo se apresentará a decretar o estado de sítio. Depreende-se pela forma que o acto de declaração deve revestir, que será o Governo no seu conjunto, visto a declaração se fazer por decreto-lei.
A Nação carecerá de ser informada das providências utilizadas pelo Governo durante a vigência do acto de declaração de estado de sítio provisório. Está, pois, muito bem que, terminado este, o Governo envie à Assembleia Nacional um relatório sobre as providências tomadas durante a sua vigência. Subentende-se que a Assembleia será convocada para apreciar esse relato, a quanto parece. Nada se diz, neste ponto, porém, sobre os poderes que a Assembleia Nacional tem em relação a esse documento. Crê-se que tem justamente apenas aqueles que estão previstos no n.° 2.° do artigo 91.°

Artigo 109.°, § 6.°

140. O alcance específico do texto deste parágrafo é também explicado no relatório da proposta. Trata-se de prever a possibilidade de o Governo, fora dos condicionalismos da mais extrema gravidade (guerra externa ou ameaça iminente dela; guerra civil ou ameaça iminente do seu desencadeamento), de que se fala no n.° 8.° do artigo 91.° e no proposto parágrafo anterior, mas ainda assim perante situações e em períodos de subversão, localizada ou não e mais ou menos permanente, decidir a declaração de um estado de emergência ou de urgência (como quer que se lhe queira chamar), menos gravoso para os cidadãos do que o ordinário estado de sítio civil ou político, no âmbito do qual adoptaria as providências necessárias para reprimir a subversão e prevenir a sua extensão, restringindo as liberdades e garantias fundamentais na restrita medida em que isso se revelar indispensável.
Uma tal possibilidade é hoje admitida na legislação constitucional ou ordinária das democracias ocidentais clássicas, desde que a Constituição do Reich, em 1919, conferiu ao Presidente da República o poder de adoptar as providências necessárias, incluindo o uso das forças armadas, e de suspender a eficácia de múltiplas normas constitucionais, nos casos de relevante perturbação ou ameaça de perturbação da ordem e da segurança públicas.
Bastará recordar agora que idêntica possibilidade é reservada pela Constituição Francesa de 1958, no seu célebre artigo 16.°, ao Presidente da República, para a hipótese de as instituições da República, de a integridade do território ou de a execução dos compromissos internacionais serem ameaçados de maneira grave e imediata e de o regular funcionamento dos poderes públicos constitucionais ser interrompido. Nessas circunstâncias, o Presidente da República adoptará as providências requeridas por elas, ouvidos o Primeiro-Ministro, os Presidentes das Assembleias e o Presidente do Conselho Constitucional.
Precedente deste texto constitucional é a Lei de 16 de Março de 1956, em que foram conferidos ao Governo Francês, por causa da crise argelina, poderes para adoptar qualquer medida excepcional, requerida pelas circunstâncias, para o restabelecimento da ordem, a protecção das pessoas e dos bens e a defesa do território.
E hoje em dia, na base de uma ordonnance de 16 de Janeiro d(c) 1969, o Conselho de Ministros pode, sem intervenção do Parlamento, decidir a mise en garde, estado de acordo com o qual lhe é lícito adoptar um certo número de procedimentos que não requerem a declaração do estado de sítio integral ou parcial.
Este uso de poderes excepcionais, sem declaração do estado de sítio, tornou-se necessário a partir do momento em que a vida civil passou a desenvolver-se em condições de generalizada intranquilidade social e de instabilidade política, em termos de, pelas suas proporções e amplitude, em certos momentos se chegar a pôr em perigo a unidade nacional e a estabilidade das instituições políticas.
Tornou-se, assim, indispensável repensar e tornar mais maleável a velha instituição do clássico estado de sítio, idealizada, como remédio absolutamente excepcional e de uso improvável, para os casos de ruptura fragorosa dos estados de longa, firme e indisturbada paz social, vivida nos quadros do "Estado de direito" liberal.
O proposto parágrafo, que ora se analisa, prevê que, quando a situação se prolongue, a Assembleia Nacional se haja de pronunciar sobre a existência e a gravidade da subversão que tiver sido invocada pelo Governo para justificar o uso de certos poderes excepcionais em caso de crise. Ê normal que assim suceda. Para situação parecida, era o que já se dispunha na Constituição de Weimar, de 1919, e ó o que se prevê no artigo 16.° da Constituição francesa vigente.
Não se consigna no texto proposto qual o período por que a situação de excepção se há-de prolongar para que a Assembleia assuma o poder de se pronunciar sobre a existência e a gravidade da subversão. Esta Câmara acha preferível que se admita o poder de a Assembleia Nacional se pronunciar logo, desde que esteja em funcionamento e a partir do momento em que se inicie a sessão legislativa, se não estiver em funcionamento na altura da adopção das providências excepcionais. De qualquer modo, parece que se não devem propriamente submeter a ratificação as providências excepcionais adoptadas, nestas condições, pelo Governo, bastando que & Assembleia, como vem proposto, se pronuncie sobre se a situação de subversão existe e tem a invocada gravidade. Um debate e uma votação sobre a adequação das providências ao fim tido em vista seria inconveniente, posto que arrastaria a Assembleia para um domínio de juízos e apreciações discricionárias que não poderia fazer, que mais não fosse por carência de todos os elementos a ter em conta 29.

29 Sobre "estado de sítio" e "poderes excepcionais", v. hoje em dia, em especial Das Staatsnotrecht (in Belgien, Frankreich, Grossbritannien, Italien, der Niederlanden, der Schweiz, und den Vereinigten Staaten von Amerika), Köln-Berlin, 1955; e Pietro Giuseppe Grasso, "Figure di stato d'assedio negli ordinamenti constituzionali contemporanei", in Il Político, 1959, pp. 827 e segs.

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Entende a Câmara que deve ficar consignado que o Governo há-de enviar à Assembleia Nacional um relatório sobre o uso que fez dos poderes de emergência, anàlogamente ao que sucede na hipótese do parágrafo anterior.
Assim, a Câmara sugere a seguinte redacção para o parágrafo em análise:

Ocorrendo actos subversivos graves em qualquer parte do território nacional, poderá o Governo, quando se não justifique a declaração de estado de sitio, adoptar as providências necessárias para reprimir a subversão e prevenir a sua extensão, com a restrição de liberdades e garantias individuais que se mostrar indispensável, devendo, todavia, a Assembleia Nacional pronunciar-se sobre a existência e gravidade da situação. Terminado o estado de emergência a que este parágrafo se refere, o Governo enviará à Assembleia um relato das medidas tomadas.

Artigo 123.° (corpo do artigo)

141. A principal alteração de redacção proposta para o corpo do artigo 123.° visa não deixar, daqui em diante, dúvidas de que os tribunais terão, necessariamente, não apenas competência para não aplicar, em cada caso, as normas jurídicas inconstitucionais, mas também para apreciar a existência da inconstitucionalidade. Há, de facto, quem entenda que, no corpo do artigo 123.°, na sua actual redacção, apenas se preceitua que os tribunais não podem aplicar diplomas inconstitucionais; quanto à competência para os apreciar, nesse preceito nada se diz; e, assim, nada se oporia a que a lei ordinária atribuísse a outro órgão, que não a todos e cada um dos tribunais, o poder de apreciar a existência da inconstitucionalidade. Seria só porque não existe qualquer lei ordinária neste sentido que se teria de entender que todos os tribunais têm, implicitamente, poderes para apreciar a inconstitucionalidade das normas jurídicas 30. Assim, não poderiam suscitam se dúvidas sobre a constitucionalidade da norma da Lei Orgânica do Ultramar Português que, em certos termos, confere apenas ao Conselho Ultramarino competência para apreciar a inconstitucionalidade.
Com a redacção que vem proposta para o artigo 123.°, fica esclarecido que todos os tribunais, nos feitos submetidos a julgamento, têm competência para apreciar a existência da inconstitucionalidade e, sucessivamente, para não aplicar, nesses feitos, as normas inconstitucionais. Só não apreciarão a existência de inconstitucionalidade orgânica ou formal das regras de direito constantes de certo tipo de diplomas.
Já que tais dúvidas se vêm suscitando e ha debate sobre o assuntos 31, admite-se facilmente a conveniência de elas serem arredadas - como são com o texto proposto.

142. A segunda alteração de redacção traduz-se em se aludir a normas e não a leis, decretos ou quaisquer outros diplomas. Sugere a Câmara que se diga normas jurídicas e não simplesmente normas. E, aliás, esse o modo de dizer utilizado, para exprimir a mesma ideia, na base LXVII da Lei Orgânica do Ultramar Português, conforme sugestão da Câmara Corporativa (parecer n.° 9/VIII - Actas da Câmara Corporativa, n.° 36, de 22 de Março de 1962). Deixará, de qualquer modo, de haver dúvidas de que as normas dos tratados e acordos internacionais estão também sujeitas, na ordem interna, ao contrôle jurisdicional da sua constitucionalidade (material).

143. Deve sublinhar-se que do texto proposto pelo Governo resultará passar a ser susceptível de apreciação pelos tribunais ultramarinos em geral a inconstitucionalidade orgânica ou formal dos diplomas legislativos ministeriais e das portarias legislativas do Ministro do Ultramar, os quais, verificada a existência dessa inconstitucionalidade, não serão aplicados, nos feitos submetidos ao seu julgamento, pelos ditos tribunais. Isto significa que a solução hoje e desde 1963, a este respeito, consagrada na base LXVII, II, da Lei Orgânica do Ultramar Português, com fundamento no § 3.° do artigo 150.º da Constituição, será suprimida.
Por outro lado, a inconstitucionalidade orgânica ou formal dos diplomas emanados dos órgãos legais das províncias ultramarinas passará também, se o legislador não fizer uso da autorização prevista no § 1.º proposto, a ser apreciada por todos os tribunais ultramarinos, os quais não deverão, verificada essa inconstitucionalidade, aplicá-los nos feitos submetidos a julgamento. Deve, em todo o caso, recordar-se que a constitucionalidade da base LXVII, III, da Lei Orgânica citada, que retira hoje aos tribunais ultramarinos o contrôle da constitucionalidade orgânica ou formal daqueles diplomas é muito discutível; e que, de toda a maneira este preceito da lei em questão preenche as condições previstas no projectado § 1.° do artigo 123.°, de que sucessivamente se falará.

Artigo 123.°, § 1.º

144. A proposta não prevê a instituição imediata e obrigatória de um "tribunal constitucional", ou a atribuição, nos mesmos termos, a um tribunal já existente, da competência para apreciação da inconstitucionalidade referida no corpo do artigo. Prevê, sim, que a lei ordinária possa concentrar em algum ou alguns tribunais essa competência. Feita essa concentração, as decisões tomadas por esse ou esses tribunais terão eficácia objectiva ou geral, de tal modo que, então, os tribunais onde o incidente de inconstitucionalidade se suscite ficarão apenas com competência para não aplicar as normas anuladas por esse outro ou esses outros tribunais.
Aprovado este novo parágrafo, desaparecerão, de um golpe, todas as dúvidas, por ora subsistentes, sobre a regularidade constitucional da atribuição de competência ao Conselho Ultramarino para apreciar a inconstitucionalidade orgânica ou formal da generalidade dos diplomas normativos ultramarinos, nos incidentes de inconstitucionalidade que a ele sobem para julgamento (com eficácia erga omnes), feita pela vigente base LXVII, III, da Lei Orgânica do Ultramar Português.

145. Se bem que se haja manifestado pela solução contrária e pela manutenção do statu quo constitucional a este respeito, ao apreciar, em 1959, no seu parecer n.° 16/VII (Actas da Câmara Corporativa, n.° 58, de 12 de Maio de 1959), o projecto de lei n.° 32, não tem esta Câmara hoje muita relutância em admitir que o legislador ordinário fique autorizado a proceder à experiência da concentração da fiscalização jurisdicional da constitucionalidade das normas jurídicas num ou mais tribunais, experiência que, em parte, se encontra feita, quanto a certas formas de inconstitucionalidade e a uma parcela relativamente importante do direito do ultramar (a emanada dos órgãos locais) com o Conselho Ultramarino. É exacto que

30 V., para esta interpretação do corpo do artigo 123.°, Marcello Caetano, Manual de Ciência Política e Direito Constitucional, 5.ª ed., 1967, pp. 620 e segs.
31 De que dá notícia o autor citado na nota anterior, ob. e loc. cits.

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o conselho se tem revelado relativamente ousado na sua jurisprudência nesta matéria, desde que competência (de princípio, bastante lata) neste domínio lhe foi conferida, na Carta Orgânica, em 1933. Vamos esperar que, se ou quando o sistema for generalizado, se produzam os benéficos resultados que o principal defensor da solução ou proposta (o Prof. Marcello Caetano) dela espera 32. Designadamente, vamos esperar que deixe de ser quase só meramente platónica, praticamente despida de eficiência, como até aqui, a competência de fiscalização jurisdicional da constitucionalidade das normas jurídicas, sem, entretanto, se cair numa indesejável intromissão abusiva de uma ou mais altas instâncias contenciosas num domínio, essencialmente político, qual é especialmente o da actividade legislativa, no espaço livre ou discricionário que o legislador constituinte deixa ao legislador comum.
Não faltará certamente à Câmara Corporativa ocasião d 12, em concreto, se pronunciar sobre a eventual reforma legislativa que, com base neste novo parágrafo do artigo 123.°, venha, a curto ou longo prazo, a ser concedida.

Artigo 123.°, § 2.º

146. Só em parte este parágrafo coincide com o actual e único do artigo 123.° Na verdade, este último refere-se ao contrôle exclusivamente político da inconstitucionalidade orgânica ou formal das normas que constem de diplomas promulgados pelo Presidente da República, enquanto o proposto § 2.° se refere, além destas, às normas constantes de tratados ou outros actos internacionais.
Sobre a parte em que a nova redacção coincide com a actual, não se impõe agora qualquer apreciação. Sobre a parte restante é que se torna necessária uma sumária análise.
Segundo a proposta, a Assembleia Nacional (e só ela) poderá apreciar, em primeiro lugar, se no processo de formação de um tratado ou de um acordo internacional intervieram as entidades que, nos termos da Constituição, têm competência para representar o Estado Português. No caso de as normas constitucionais de competência não terem sido observadas, as normas constantes dos tratados e acordos celebrados nestas condições, uma vez incorporadas no direito interno, viriam a ser normas viciadas de inconsititucionalidade orgânica - e a Assembleia poderia apreciar este vício, determinando os seus efeitos.
Em segundo lugar, a Assembleia Nacional poderá verificar se, na conclusão dos tratados e acordos internacionais, foram observados os trâmites constitucionais sobre o processo de formação das convenções.
Neste outro capítulo tratar-se-ia de ver se os representantes diplomáticos (no caso de os tratados não serem, como é normal, negociados pelo próprio Chefe do Estado em pessoa) estavam munidos de "plenos poderes", se nas convenções em geral foi aposta a assinatura dos representantes do nosso país, se foram aprovados pelo órgão competente (Assembleia ou Governo) e se foram, sendo caso disso, devidamente ratificados. Estas convenções, entretanto incorporadas no direito interno, enfermariam de inconstitucionalidade formal, na medida em que as normas constitucionais sobre estes pontos não houvessem sido observadas, e a Assembleia apreciá-la-ia, determinando, como na hipótese anterior, os seus efeitos.
Deverão as coisas passar-se assim?

147. Quanto à inconstitucionalidade orgânica, a hipótese mais grave será a de ser invadido o âmbito do treaty making power do Chefe do Estado por um Ministro que não seja o dos Estrangeiros, ou pelo órgão dirigente de um serviço personalizado ou simplesmente autónomo. (A inversa deve considerar-se juridicamente irrelevante, ao que parece.) Quid iuris, num caso destes?
Segundo a chamada "teoria constitucional", uma convenção celebrada por um órgão constitucional incompetente não será sequer obrigatória no plano da ordem jurídica internacional. Mas contra esta orientação doutrinal tem-se objectado, entre outras coisas, que, se fosse permitido a cada Estado invocar a incompetência constitucional da autoridade que interveio em seu nome na celebração de uma convenção, o direito internacional convencional estaria sujeito a ser negado, passados anos sobre a celebração das convenções. Além disso, a inobservância das regras constitucionais de competência poderia tornar-se um fácil denominador para artificiosas manipulações políticas e para o triunfo da má fé nas relações internacionais. Aliás, diz-se também que os Estados não podem, negociando uma convenção, invadir os assuntos da competência interna das outras Partes contratantes (como são os respeitantes à fixação em concreto da competência para celebrar convenções internacionais) e que, de qualquer modo, nos tratados multilaterais, tal averiguação seria virtualmente impossível. Uma situação intolerável seria criada se os Estados fossem forçados a fazer indagações minuciosas para saberem se um compromisso se manterá ou não e estivessem expostos a ver os seus co-contratantes renegar as suas obrigações, alegando que se não consideram obrigados por as normas da sua constituição não terem sido exactamente observadas quando uma dada convenção foi concluída.
Há quem tenha restringido à violação das normas constitucionais de competência com caracter notório ou manifesto a consequência da nulidade das convenções internacionais; mas tem-se objectado, além do mais, que o sentido aparentemente claro de certas normas constitucionais pode ser alterado pela jurisprudência, pela prática ou pela doutrina de um país, de forma a tornar inexigível que outros Estados o conheçam; e que esta matéria ó quase sempre muito complexa.
A recente Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, no seu artigo 46.°, perfilha, entretanto, esta orientação, acentuando que uma violação do direito interno respeitante à competência para a conclusão das convenções não pode ser alegada, a não ser que essa violação tenha sido manifesta e diga respeito a uma regra de direito interno de importância fundamental. Trata-se da tutela de boa fé. Se as circunstâncias foram tais que o outro ou os outros contratantes puderam, de boa fé, crer a convenção válida, esta deve valer na ordem internacional.
Seja como for, muitos autores e a prática internacional são no sentido de que a nulidade, no plano da ordem jurídica internacional, de uma convenção celebrada nas condições figuradas, não é indefinidamente susceptível de ser feita valer, nem o pode ser quando o Estado já obteve vantagens com a aplicação da convenção.
Temos, portanto, que casos há em que as convenções internacionais celebradas com violação das normas constitucionais sobre o treaty making power são válidas internacionalmente e outros casos em que são internacionalmente inválidas.
Quando, apesar dessa violação, as convenções são válidas, cumpre ao Estado Português, apesar de tudo, observá-las, não sendo lícito a qualquer órgão jurisdicional ou político declarar a sua inconstitucionalidade orgânica.
Quando tais convenções são inválidas, pergunta-se que órgão ou que órgãos hão-de ter competência para apreciar

33 V. ob. e ed. cit., p. 622.

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a irregularidade cuja verificação origina a invalidada internacional das normas que são objecto delas, e, conse-quentemente, provoca a sua invalidado na ordem jurídica interna, onde, entretanto, foram recebidas.
A proposta é no sentido de que essa competência deve caber à Assembleia Nacional. E já se sustentou, de lege lata, que hoje em dia essa competência lhe cabe ". Não interessa tomar-se aqui posição a este respeito no plano do direito constituído. O problema, neste momento, é um problema de lege ferenda.
A hipótese que está a ser visada é — não se esqueça — especialmente a de o Presidente da República ser defraudado do seu treaty making power, em favor de um membro do Governo ou de um serviço personalizado ou autónomo.
Parece realmente apropriado confiar à Assembleia Nacional, como vem proposto, competência para apreciar essa inconstitucionalidade, a qual se traduz, rigorosamente, numa violação da divisão dos poderes. Tratar-se-á de um acto de grande melindre político, porque, a título de declarar a inconstitucionalidade de uma convenção internacional, definindo os seus efeitos, se poderá chegar, por erro ou deficiente apreciação, a negar a eficácia jurídica na ordem interna de uma convenção realmente válida na ordem internacional. E natural que a responsabilidade, pelos efeitos de um acto afinal de contas respeitante às relações internacionais, em que a Assembleia participa, deva ser assumida, não pelos tribunais, mas por ela mesma. Os tribunais dificilmente se abalançariam a tomar decisões desta gravidade.
À parte esta solução, só se concebe que a competência para apreciação da inconstitucionalidade orgânica das convenções internacionais coubesse ao Governo no seu conjunto ou ao Presidente da República. Ao Governo não é adequado confiar-lhe este poder — até porque, algumas vezes pode tratar-se de convenções que deveriam revestir a forma solene do Tratado e requereriam a intervenção da Assembleia. E para que este poder ficasse reservado ao Presidente da República seria necessário admitir, simultaneamente, a necessidade da referenda dos seus actos neste domínio pelos Ministros competentes, um dos quais seria justamente aquele que se está imaginando ter invadido o treaty making power do Presidente da República — o que não parece ser solução. Ainda que se entendesse que só deve intervir a referendar o acto do Presidente da República. O Ministro dos Negócios Estrangeiros, não há dúvida de que a decisão seria politicamente difícil de tomar, pelo conflito que abriria entre dois membros do Governo.

148. Quanto aos casos de inconstitucionalidade formal, deve começar por acentuar-se que o problema se põe tanto em relação aos acordos como em relação aos tratados.
As soluções da prática internacional e da doutrina, no que respeita à validade ou invalidade deles na ordem internacional se, no processo da sua formação, houverem sido infringidas as normas constitucionais, são idênticas às que sumariamente se expuseram a respeito da inconstitucionalidade orgânica.
No que respeita à sua invalidade interna e à competência para apreciação desse vício de inconstitucionalidade
formal, são por igual cabidas as considerações e conclusões antecedentes, sobre esse outro vício.

TITULO VII

Das províncias ultramarinas

149. Como se acentuou em 1951, no parecer n.°13/V, metrópole e ultramar são, em rigor, meras designações geográficas, consideradas, para certos efeitos, significativas de espaços jurídicos, e nada mais.
É mais apropriado referir na epígrafe deste título as entidades jurídicas de cuja estrutura, nas suas grandes linhas, aí se tratam — um pouco como sucede, em determinadas divisões sistemáticas da Constituição, com outras entidades autárquicas e com os organismos corporativos. Aquelas entidades são as províncias ultramarinas.

Artigo 133.º

150. Neste artigo diz-se que as províncias ultramarinas terão estatutos próprios. De estatutos volta a proposta a falar logo no artigo seguinte — e não se vê que seja necessário exprimir duas vezes, em artigos sucessivos, a mesma ideia.
Basta, portanto, falar-se deles neste lugar, depois de se ter afirmado que as províncias ultramarinas formam regiões autónomas.
Daqui resulta, dados os termos do proposto artigo 5.º, que estas terão organização política e administrativa adequada à sua integração geográfica e às condições do respectivo meio social.
Nos estatutos observar-se-á naturalmente o regime geral de governo das províncias ultramarinas que a lei definir. Ê natural que esta lei, ela própria, venha a esclarecer a quem compete a feitura dos estatutos das regiões autónomas. Na proposta não se esclarece se isto fica reservado à competência de auto-organização dessas entidades ou se, pelo contrário, tal matéria, por contender com os superiores interesses nacionais, deverá pertencer aos órgãos da soberania do Estado.

151. Em 1959, a Lei n.° 2100 veio, na redacção que consagrou para o artigo 134.°, dispor que «a organização político-administrativa (das províncias ultramarinas) deverá tender para a integração no regime geral da administração dos outros territórios nacionais».
O preceito assim redigido comporta defeitos, pois se partiu do princípio de que a integração administrativa
(a única de que rigorosamente aí se poderia querer falar) era, só por ser integração, algo que realizava melhor a unidade política, a unidade nacional, do que a especialização dos serviços e das administrações — o que não é necessariamente exacto, até porque a uniformização administrativa, indiferente às exigências dos condicionalismos diferentes, gera descontentamentos, provoca atei-tos e pode importar quebra na eficiência dos serviços.
Seja, porém, como for, a verdade é que existem hoje serviços provinciais integrados na organização geral da administração de todo o território português (serviços nacionais), ao lado de outros, certamente mais numerosos, que constituem organizações próprias de cada pro-

33 Cf. Miguel Galvão Teles, Eficácia dos Tratados na Ordem Jurídica Portuguesa (Condições, Termos e Limites), 1867, p. 195.

34 Para a solução do problema geral da fiscalização da inconstitucionalidade orgânica e formal das convenções, no plano da lei constitucional vigente, v. Miguel Galvão Teles, ob. cit., p. 160 e segs. Alguns dos seus argumentos para a integração das lacunas da lei vigente podem transpor-se para a solução do problema no plano da revisão constitucional.

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vincia. Nada nos diz que outros serviços nacionais se não devam instituir ou organizar, por serem porventura a melhor forma de assegurar a boa gestão dos próprios interesses de cada província e, de qualquer modo, dos interesses comuns a todo o território do Estado Português. Não é de excluir in limine, por exemplo, que serviços como os da saúde pública, do ensino em geral, da justiça e outros, não apenas possam, mas mesmo eventualmente devam ser organizados como serviços nacionais.
A Câmara entende que é preciso evitar, por todas as razões, que a Constituição fique redigida em termos de, pela omissão de um preceito sobre este assunto, se entender amanhã, que não pode haver lugar para uma integração administrativa, ainda que parcial ou limitada, estendida até onde for útil ou necessário. Por isso, sugere que, num último inciso, neste artigo 133.° se diga que na lei sobre o regime geral de governo das províncias ultramarinas se deverá prever a possibilidade de haver serviços públicos da administração provincial integrados na organização da administração de todo o território português.
Já não se tratará de se ser vítima de um pathos integracionista. Trata-se de, com mente fria e ânimo tranquilo, admitir, realisticamente, que há serviços públicos provinciais que devem ser integrados e outros que só «contra a natureza» o poderão ser.

152. Acrecenta-se, neste lugar da proposta, que as províncias ultramarinas poderão ter a designação de «Estados», de acordo com a tradição nacional, quando o progresso do seu meio social e a complexidade da sua administração justifiquem essa qualificação honorífica.
Assinale-se que se não trata de qualificação, digamos, científica, que às províncias ultramarinas caiba, analisado que seja o regime jurídico, especialmente o regime constitucional, a que ficam sujeitas. Esta Câmara, especialmente a propósito do artigo 5.°, já teve ocasião de evidenciar que a unidade política nacional não é negada ou quebrada ou mesmo simplesmente atenuada pelo facto de se prever a existência de regiões autónomas. As comunidades populacionais das regiões não são, isoladamente, detentoras de soberania própria, no exercício da qual elaborem a sua respectiva constituição ou modifiquem a que em certo momento lhes haja sido outorgada pelos órgãos da soberania do Estado. Os órgãos legislativos das províncias ultramarinas não exprimem a vontade soberana das suas populações; não existe um executivo local, responsável perante uma assembleia legislativa e concebido também como representante, ainda que indirecto, de cada uma dessas populações, entendidas como providas de soberania. Não existe, nas províncias ultramarinas, um «poder judicial» próprio de cada uma delas, e exercido apenas por cidadãos naturais de cada província, órgãos legislativos, executivos e judiciais, em cada província, não exprimem outra soberania que não seja a da Nação Portuguesa no seu conjunto, a qual, antes de mais, se manifesta ou exerce, no plano constituinte, elaborando uma única constituição e introduzindo-lhe, sempre que seja oportuno, alterações. Uma comunidade sem poder constituinte não é uma entidade soberana — não é, juridicamente, um Estado.
O facto de estas províncias deterem, para serem exercidos por órgãos locais, certos poderes legislativos e administrativos, não importa quebra da unidade nacional. A integração política continua a ser completa. A descentralização administrativa e legislativa, na medida em que é consagrada, não importa a estadualização porque não se atingem os limites além dos quais a «região» deixa de o ser para ser um «Estado», ainda que limitado na sua soberania interna e externa. Observados estes limites, todas as reformas são possíveis, porque a unidade nacional continua preservada e em nada se atenta contra ela. A descentralização administrativa e a autonomia legislativa não atingem a unidade da Nação. A participação das populações e dos interesses organizados locais, na vida administrativa e na feitura das leis que especialmente lhes respeitam, não é nada que, de per si, signifique um risco para a unidade política da Nação. O Prof. Oliveira Salazar, cuja concepção unitarista é incontestável, sentiu-o perfeitamente e não o ocultou, em mais que uma oportunidade. Na sua entrevista à Life, de 4 de Maio de 1962 (in Entrevistas, cit. p. 80), disse-o expressivamente:

À medida que os territórios se desenvolvem e a instrução se difunde, as elites locais tornam-se mais numerosas e capazes e as suas tarefas podem ser acrescidas sem risco, antes com vantagem, para a comunidade nacional. É esta a orientação do nosso trabalho.

Pouco antes, em 31 de Maio de 1961, dissera ao The New York Times, (ob. cit., p. 39):

O sistema então instituído (na alteração constitucional de 1951 e na Lei Orgânica do Ultramar de 1953) tenderá ainda a evoluir em harmonia com o progresso realizado nos domínios político, económico e social, a caminho de formas mais elevadas de autonomia...

Aliás, isto é coerente com o que afirmara na Assembleia Nacional em 30 de Novembro de 1960 (Discursos, vi, p. 101):

O Governo tem o espírito aberto a todas as modificações da estrutura administrativa, menos os que possam atingir a unidade da Nação e o interesse geral.

E com o que dissera em 30 de Junho de 1961, no mesmo local (ob. cit., pp. 153 e seg.):

A estrutura constitucional não tem, aliás, nada que ver, como já uma vez notei, com as mais profundas reformas administrativas, no sentido de maiores autonomias ou descentralizações, nem com a organização e competência dos poderes locais, nem com a maior ou menor interferência dos indivíduos na constituição e funcionamento dos órgãos da Administração [...]. Só tem que ver com a natureza e solidez dos laços que fazem das várias parcelas o todo nacional.

Apura-se que a denominação «Estado» foi utilizada em referência a mais que uma dependência ultramarina da Coroa Portuguesa, pelo menos a partir dos princípios do século XVII, para designar unidades político-administrativas mais ou menos extensas dos Descobrimentos portugueses na América do Sul, em África e na Ásia. No Regimento de 1642 do Conselho Ultramarino (in Colecção Cronológica da Legislação Portuguesa, compilada por José Justino de Andrade e Silva, 2.ª série, 2.° vol., pp. 152 e segs.), dizia-se que lhe competiam:

... todas as matérias e negócios de qualquer qualidade que fossem, tocantes aos ditos Estados da índia, Brasil e Guiné, ilhas de S. Tomé e Cabo Verde e de todas as mais partes ultramarinas e lugares de África...

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Segundo o Regimento de 1608 da Mesa da Consciência e Ordens, a esta pertencia-lhe conhecer dos negócios das três Ordens Militares do Reino, índias Orientais, Estados do Brasil e mais partes ultramarinas (cf. Marcello Caetano, 0 Governo e a Administração Central apôs a Restauração, in História da Expansão Portuguesa no Mundo, m, 1940). Entre 1617 e 1626, foi primeiro criado e depois instalado o Estado de Maranhão, repartindo-se assim o Brasil em dois grandes Estados (Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, 2." parte, I, p. 806):

... do Marauhâo, englobando o Pará, Maranhão e Ceará..., e o do Brasil, que compreenderia as terras desde o Ceará até Santa Catarina.

O Estado do Maranhão veio depois a tomar, sucessivamente, o nome de Estado do Maranhão e Grão-Pará, de Estado do Grão-Pará e Maranhão e de Estado do Grão-Pará e Rio Negro (cf. Artur César Ferreira Reis, Dicionário de História de Portugal, n, p. 918 e segs. Ver também Hélio Viana, História do Brasil, i, 7.a ed., 1970, pi 18 e segs).
A Constituição de 1822 passa, pelo que respeita ao Reino do Brasil, a considerá-lo dividido em províncias e deixa de aludir a «Estados» em relação a outros territórios ultramarinos portugueses, incluindo os da Península Indostânica. Perdido o Brasil, a Carta Constitucional de 1826 e a Constituição de 1833 procedem em termos idênticos aos da Constituição de 1822, em relação aos restantes territórios. Em todo o caso, na Carta Orgânica das Províncias Ultramarinas de 1 de Dezembro de 1869 (Rebelo da Silva) encantramos (referência ao Estado da índia, referência retomada, no plano constitucional, em 1933.
A ideia de substituir a designação «Províncias» pela de «Estados» esteve na ordem do dia no último vinténio do século passado. Defendeu-a sobretudo Júlio de Vilhena, em ligarão com a solução de desconcentrar em comissários régios as mais elevadas responsabilidades do Estado Português em matéria administrativa. De acordo com tal ideia, todo o território ultramarino português seria dividido em Estados, tendo à frente esses comissários régios: o Estado da índia, compreendendo a Índia, Macau e Timor; o Estado da África Oriental, compreendendo o território de Moçambique; o Estado da África Ocidental, compreendendo o território de Angola, e o Estado da África Insular, compreendendo a Guiné, S. Tomé e Príncipe e Cabo Verde (cf. Dr. Júlio de Vilhena, Antes da República, I, Coimbra, 1916, pp. 246 e 353). No 2.° suplemento desta obra, editado em 1918, em que responde às criticas de Chaves de Castro, aparece, entretanto, omitido o Estado da África Insular, sendo os respectivos territórios incluídos no Estado da África Ocidental, atrás referido (p. 34).
Na última passagem de Júlio de Vilhena pelo Ministério, a ideia teve começo de execução com o Decreto de 30 de Setembro de 1891. No artigo 1.° deste diploma é atribuída à então chamada província de Moçambique a designação de Estado da África Oriental.
Não há dúvida de que a designação de Estado era para Vilhena constitucionalmente irrelevante. Tão irrelevante que, certeiramente, Chaves de Castro, partindo do decreto citado, lhe pôde dizer (cf. Júlio Marques de Vilhena e o seu livro Antes da República, Coimbra, 1918, p. 27):

... a muito pouco se reduzia a reforma das províncias ultramarinas (por Júlio de Vilhena indicada). Mudava-se-lhes o nome, fazia a sua divisão em províncias e estas em distritos e intendências, criava-se uma ou outra comarca e entregava-se a administracã0 do Estado a um comissário régio e ficava salva a Pátria.
Eis — acrescentou — a que ficou reduzida a organização do Estado da África Oriental, tão pomposamente inculcada... e que nada produziu, sendo-lhe aplicável o Parturiunt montes, nascitur ridiculus mus.

Verifica-se, portanto, que a proposta utiliza no artigo em apreço a expressão «Estados» numa daquelas acepções figuradas ou metafóricas de que não apenas ela mas muitas outras palavras são susceptíveis. Repare-se num desses sentidos, na seguinte passagem de um discurso do Prof. Salazar (Discursos, vi, p. 297):

... As grandes províncias ultramarinas são na legislação actual verdadeiros estados administrativamente autónomos integrados politicamente.

Só translatamente se pode falar em Estado com este alcance.
E, pois, um facto que a designação de «Estado» está longe de ser desconhecida na história da nossa administração ultramarina e, em certa medida, pode, assim, considerar-se uma designação tradicional.
Verifica-se, por outro lado, que essa designação serviu, no passado, para exprimir uma certa organização da administração de grandes territórios ou grupos de unidades territoriais na administração directa ou indirecta do Poder Central, em nada correspondendo ao sentido técnico, que hoje a expressão comporta, de entidades territoriais dotadas de soberania interna e externa, ainda que, em certos casos, restrita ou limitada.
Visto que, como se mostrou, as províncias ultramarinas portuguesas não são entidades soberanas nem externa nem internamente, e são, tão-só, entidades auxiliares do Estado Português, Estado unitário, de que fazem parte, a designação que, porventura, lhes seja, em concreto, atribuída não pode ter senão, como na proposta se pretende, um significado ou alcance honorífico. As províncias ultramarinas portuguesas, tidas em conta as soluções constitucionais até hoje consagradas e aquelas que são propostas, não são entes soberanos, não têm soberania, não são juridicamente Estados. Poderão, sim, vir a ser designados «Estados», como honorificamente os Algarves foram, pelo menos de 1822 até 1911, considerados «reinos».
Poderá pensar-se em que estas fórmulas honoríficas são politicamente inconvenientes? Nunca se verificarão secessões políticas ou perdas de territórios nacionais por causas desta ordem. O «reino do Brasil» perdeu-se, não por causa desta qualificação, mas porque outros e muitos diversos factores operaram nesse sentido. E os «Estados» que tivemos não se tornaram jamais independentes. Aventar ou recear inconvenientes para a consagração da possibilidade prevista no texto proposto é admitir que um nada (um título ou honra) baste por si só para desencadear ou acelerar um movimento de independência das províncias ultramarinas ou de alguma delas. Não se crê que um semelhante temor seja realista. Não haja, portanto, medo das palavras!
Entretanto alguns procuradores entenderam que a expressão «Estados» não se justifica, por ser equívoca politicamente e cientificamente inexacta. Quanto a considerar-se as províncias ultramarinas como regiões autónomas a Câmara já versou o problema a propósito do artigo 5-° Somente se impõe dizer neste momento que alguns pro-

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curadores entenderam que se deveria apenas acentuar a descentralização administrativa das províncias.

153. Tudo visto, a Câmara sugere a seguinte redacção para o artigo 133.°:

Os territórios da Nação Portuguesa situados fora da Europa constituem províncias ultramarinas e formam regiões autónomas, com o seu estatuto próprio, podendo ser designados por Estados, de acordo com a tradição nacional, quando o progresso do seu meio social e a complexidade da sua administração justifiquem essa qualificação honorífica.
§ único. O estatuto de cada província ultramarina estabelecerá a organização adequada à sua situação geográfica e às condições do seu desenvolvimento, observada a lei que fixar o regime geral de governo das provindas ultramarinas. Nesta deverá prever-se a possibilidade de haver, quando convier, serviços públicos de administração provincial integrados na organização da administração de todo o território português.

Artigo 134.°

154. Esta artigo, dado o que houve ocasião de dizer em comentário ao texto proposto para o artigo anterior, não deve aludir aos estatutos das províncias ultramarinas. Esse assunto, no ponto de vista da Câmara, deve ser versado no artigo anterior e não carece de nova referência neste.
Também não há necessidade de, depois de se ter falado nas províncias ultramarinas como regiões autónomas, se vir dizer neste lugar que cada uma delas é dotada de autonomia. Basta dizer-se que cada província (melhor: cada província ultramarina) constitui uma pessoa colectiva de direito público, com capacidade para adquirir, contratar e estar em juízo — preceito cuja redacção é melhorada em relação à do actual artigo 165.°
Agora o que parece é que este artigo deve mudar de lugar, passando para o fim do título VII. Antes de se falar de algo que diz respeito ao direito administrativo, ao direito privado e ao direito processual, deve dispor-se sobre assuntos de maior relevo, como são os dos propostos artigos 135.° e 136.° É mesmo duvidoso que caiba, em boas contas, dizer-se na lei fundamental que as províncias ultramarinas são pessoas colectivas de direito público e que têm esta e aquela capacidade jurídica e judiciária. Não se diz isso na Constituição, por exemplo, nem do Estado Português nem das autarquias locais — e não se tem sentido a necessidade de incluir nela para esses entes públicos fórmulas semelhantes àquela outra. A lei que defina o regime geral do Governo das províncias ultramarinas se encarregará de a recolher. Mas a Câmara não ^ai ao ponto de propor a supressão do artigo. Quod abundai non nocet.
Nestes termos, o artigo em referência deverá ter a redacção:

Cada província constitui uma pessoa colectiva de direito público, com capacidade para adquirir, contratar e estar em juízo.

Artigo 135.°

155. Rigorosamente, o que é específico da autonomia regional é o poder de legislar. Os outros poderes — o poder de administrar em geral e, em especial, o de dispor das próprias receitas, afectando-as às suas despesas — são poderes autárquicos, os quais, em regra, cabem a qualquer ente público 35 e 36.
As províncias ultramarinas são entes auxiliares do Estado, por este constituídos ou reconhecidos por motivos de natureza prática, em ordem a, ainda que mediata ou indirectamente, realizar uma boa administração, no mais lato sentido do termo (que engloba uma boa legislação) — partindo da ideia de que as próprias pessoas primariamente interessadas na melhor solução dos problemas locais são presumivelmente boas conhecedoras desses problemas, convindo por isso que participem na resolução deles 37.
Não se trata, portanto, de que as províncias tenham ou não tenham o que se chama uma espécie de direito natural a, por meio de órgãos próprios, intervirem na gestão dos seus próprios negócios ou na «administração» dos seus próprios assuntos. Trata-se, mais exactamente, de a Constituição do País reconhecer, em certos termos e com certas limitações, a conveniência prática e a razoabilidade da participação da população das províncias na prossecução dos interesses públicos que primordialmente lhes dizem respeito, sem embargo de serem mediatamente interesses de toda a Nação.

156. a) A respeito da alínea a) do proposto artigo 135.°, há que admitir que a «autonomia regional» é tanto mais completam ente realizada quanto os órgãos da região sejam órgãos electivos, uma vez que essa autonomia visa também garantir, de algum modo, o «princípio da liberdade». Simplesmente, custa admitir que todos os órgãos do governo da província sejam electivos. Põem-se logo objecções a que o possam ser sem restrições os órgãos legislativos, aliás a exemplo do que sucede com os órgãos legislativos do Estado. Também, nas províncias ultramarinas é difícil conceber que uma assembleia eleita satisfaça todas as necessidades de legislação local, mesmo quando se encontra em período de funcionamento.

35 A descentralização pode, efectivamente, assumir feição exclusivamente administrativa ou ir até à faculdade de emanar normas de grau igual a das normas legislativas editadas pelo Estado, mas com validade limitada ao território de ente local descentralizado e matérias determinadas, ficando o exercício dessa faculdade submetido a controle. V. Giovanni Tarantini, «Alcune considerazioni sul concetto di 'Stato regionale'», in Rassegna di Diritto Pubblico, ano 20, 1965, p. 131. «Quando se fala — diz este autor — do tipo de organização regional', não se alude senão ia uma espécie do género descentralização, mais exactamente, à forma limite da descentralização, para além do qual estaremos perante um sistema completamente diverso, o sistema federal» (p. 132). V. neste autor ampla bibliografia sobre o «Estado regional», a «autonomia regional» e o «federalismo».
36 «A essência da autonomia reside no poder que tem um ente público de criar um direito próprio, que é reconhecido pelo Estado e que este incorpora no seu próprio ordenamento jurídico e declara obrigatório, como as demais leis e regulamentos.» (V. Juian Fernando Badia, «El Estiado regional como realidad jurídica independiente, in Revista de Estúdios Políticos, 129, 1963, pp. 77 e segs., e autores aí citados.) «A autonomia implica sempre competências legislativas.» «Mas serem (as regiões) entidades autonomas não pressupõe que sejam soberanas, antes pressupõe a sua integração no Estado ... O ente autárquico (por sua vez) goza do poder normativo, mas este poder tem apenas carácter regulamentar, não legislativo» (p. 88).
37 Visa-se, em suma, vivificar a «administração», integrando os primeiros e mais directos interessados na eficiência e na bondade de acção «administrativa» do Estado nas estruturas «administrativas» que a hão-de levar a cabo. Estamos perante uma fórmula organizatória do Estado politicamente unitário, que se chama descentralização. Não se trata de abandonar competências a entes politicamente distintos, antes de distribuir, transferindo-as, competências a entes que se fazem entrar na organização estadual unitária, no mesmo «aparelho» unitariamente organizado, e que ficam, de algum modo, subordinadas, no seu exercício, à administração central.

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Há que admitir, ao lado desta, uma legislação local de outra fonte, naturalmente uma legislação local da competência dos governadores.
Quanto aos órgãos administrativos da província, um, seguramente, não será electivo — o governador. E julga--se que não deve ficar definida na Constituição a obrigação de serem electivos os órgãos que ale dirigirá. O próprio facto de, segundo a proposta, eles virem a ser colocados sob a chefia do governador inculca que não poderão nem deverão ser electivos. Os órgãos administrativos electivos implicariam a consagração da ideia de que as províncias ultramarinas teriam «um poder executivo próprio» que imprimisse uma direcção autónoma à administração loca]. Isto seria tanto como fazer das províncias ultramarinas Estados membros de uma federação em embrião. Não é isso que ó coerente, em especial com o facto de o governador dirigir os órgãos executivos locais [artigo 136. °, alínea c), na redacção que vem proposta].
Isto tudo para não falar nos órgãos judiciais, os tribunais, que num sentido lato se podem englobar nos «órgãos de governo próprio», e que não são nem, no espírito da Constituição, podem ser órgãos electivos.
Daqui resulta que a alínea a) só deve ter tido em vista que haja órgãos legislativos electivos nas províncias ultramarinas — mas não é isso o que, textualmente, nele está consignado. À letra, todos os órgãos de governo próprio das províncias serão electivos.
Assim, parece que o artigo 135.° deveria começar desta forma:

A autonomia das províncias ultramarinas compreende:

a) O direito de possuir uma assembleia electiva com competência legislativa;

157. b) Como já foi dito e demonstrado, a competência legislativa local não pode ser integralmente atribuída a uma assembleia electiva. E também já foi esclarecido que as províncias não têm propriamente o direito de legislar. Tem o poder de o fazer para a realização de interesses que, embora locais, transcendem pela sua projecção os exclusivos dela própria.
Os órgãos de que, no texto proposto para a alínea b), se fala são tanto a assembleia electiva como, necessariamente, o próprio governador, conforme for determinado na lei que definir o regime geral de governo das províncias ultramarinas.
Deste modo, a Câmara sugere que na segunda alínea se diga:

O direito de legislar, com respeito das normas constitucionais o das emanadas dos órgãos da soberania, sobre todas as matérias que lhe interessem exclusivamente e não estejam reservadas pela Constituição ou pela lei que defina o regime geral de governo das províncias ultramarinas à competência daqueles órgãos;

158. c) Já se disse o essencial sobre a matéria desta terceira alínea. Convirá redigi-la do seguinte modo:

O direito de, através de órgãos locais, assegurar a execução das leis e a administração interna.

Ficou esclarecido que esses órgãos próprios não são electivos. A responsabilidade do governador nesses domínios é integral e referida aos órgãos da soberania. Faz pouco ou não faz mesmo sentido nenhum que, num sistema administrativo destes, os órgãos que estão subordinados ao governador sejam órgãos electivos.

159. d) Trata-se, nesta alínea, da competência financeira das províncias ultramarinas, a qual, como se sabe é uma parcela da sua competência administrativa geral. Não repugna, em todo o caso, enunciar à parte a atribuição dela às províncias ultramarinas, como aliás hoje em dia é feito no vigente artigo 166.° Mas a melhor fórmula parece ser a seguinte:

O direito de cobrar as suas receitas e afectá-las às suas despesas, de acordo com o diploma de autorização, votado pela sua assembleia legislativa em que serão definidos os princípios a que deve obedecer o orçamento na parte das despesas de quantitativo não determinado por efeito da lei ou contrato preexistente.

Supõe-se que esta redacção corresponde melhor ao que deve suceder e, de resto, já hoje mais ou menos sucede, ante o disposto na base LVII da vigente Lei Orgânica do Ultramar Português.

160. e) A capacidade de gozo de direitos privados das pessoas colectivas de direito público é praticamente geral, não se requerendo, portanto, qualquer, norma que a defira, no caso especial das províncias ultramarinas. Basta o que no texto do proposto artigo 134.° se dirá para que fique assente que elas podem ser proprietárias, podem dispor do seu património -e podem celebrar actos e contratos em que tenham interesse.

161. f) O «direito» expresso nesta alínea, mais que todos os restantes, só forçadamente se pode referir à «autonomia». Compreende-se, entretanto, que se não queira omitir na Constituição esta directriz, que hoje está consignada no seu artigo 159.° A falta de melhor localização, na nova sistemática constitucional, para um preceito neste sentido, poderá ele ficar neste artigo.

162. g) Razões de segurança, hoje em dia mais prementes do que nunca, podem justificar que, inclusive a nacionais, se proíba a entrada cm qualquer província ultramarina e que se ordene a sua expulsão. Trata-se de uma restrição importante qo direito fundamental de aller et venir e compreende-se que ela deva ser consignada na Constituição, como aliás tem estado (artigo 137.°). Não se trata propriamente de algo que tenha especificamente que ver com o conteúdo da «autonomia» de cada província ultramarina — mas, à falta, de melhor lugar para a inserção do preceito, aceita-se que ele se inclua neste artigo, onde, de resto, a seguir-se a redacção sugerida por esta Câmara, não se falará de autonomia.
No plano da redacção, discorda-se de que se fale em Governo Central. Quando se fala de Governo, não há equívoco possível sobre que se trata do órgão da soberania assim designado. O governo local é o «governo da província».

163. Em conclusão, a Câmara, sugere a seguinte redacção para o artigo em apreço:

A autonomia das províncias ultramarinas compreende:

a) O direito de possuir uma assembleia electivo, com competência legislativa;
b) O direito de legislar, com respeito das normas constitucionais e das emanadas dos órgãos da soberania, sobre todas as matérias que lhe interessem exclusivamente e não estejam reservadas pela Constituição ou pela lei

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que definem o regime geral de governo das provindas ultramarinas à competência daqueles órgãos;
c) O direito de, através de órgãos locais, assegurar a execução das leis e a, administração interna;
d) O direito de cobrar as suas receitas e afectá-las às suas despesas, de acordo com o diploma de autorização, votado pela sua assembleia legislativa, com que serão definidos os princípios a que deve obedecer o orçamento nu parte das despesas de quantitativo não determinado por efeito de lei ou contrato preexistente;
e) [Igual à alínea f) da proposta do Governo.]
f) O direito de recusar a entrada no seu território a nacionais ou estrangeiros por motivos de interesse público e de ordenar a respectiva expulsão, de acordo com as leis, quando da sua presença resultarem graves inconvenientes de ordem interna ou internacional, salvo o recurso para o Governo.

Artigo 136.º

164. Como já houve ocasião de dizer atrás, as provincias ultramarinas são entes auxiliares do Estado, a cujos órgãos a Constituição confere competências que reputa susceptíveis de serem exercidas em melhores condições do que se o fossem pelos órgãos do próprio Estado. Simplesmente, a Constituição não pode abdicar de reservar para os órgãos da soberania (órgãos da soberania, tout court, e não órgãos da soberania da República; a soberania é da Nação), competências que só por estes se concebe serem devidamente desempenhadas; não pode prescindir de manter nas províncias ultramarinas um representante permanente do Governo com uma competência cujo exercício assegure a coordenação e a harmonia entre os interesses da província e os interesses gerais e superiores do Estado; e bem assim não pode deixar de conceder aos órgãos da soberania poderes de superintendência e fiscalização em relação, de um modo geral, aos actos de toda a ordem dos órgãos locais. Estes são os dispositivos mediante a utilização dos quais se preservarão a unidade da soberania do Estado, as conveniências gerais da Nação Portuguesa e a solidariedade entre as províncias ultramarinas e a metrópole.

165. a) Na primeira alínea consigna-se que só os órgãos da soberania (representam toda a Nação (incluindo, portanto, também as províncias ultramarinas, que dela fazem parte integrante) — tanto interna como externamente, entenda-se.
Não pode, efectivamente, haver dúvidas de que só um órgão da soberania representa a Nação no seu conjunto, interna e externamente: o Presidente da República, nos termos do artigo 81.°, n.° 7.° Tecnicamente, não se requereria uma reafirmação desta norma neste outro lugar da Constituição. Em todo o caso, julga-se politicamente útil relembrar aqui esse cânone fundamental.
Só a referência aos empréstimos é, aliás, rigorosamente necessária, correspondendo ao disposto, hoje em dia no artigo 173.°
Sem embargo de as províncias ultramarinas não serem sujeitos de direito internacional e de, portanto, os seus órgãos próprios não poderem celebrar tratados ou acordos estados estrangeiros, a Constituição, na sua versão actual, admite que os governos das províncias ultramarinas, devidamente autorizados, negociem com territórios estrangeiros acordos ou convenções (artigo 151.°, § 1.°). Isto parece não ficar proibido pelo texto em análise. Deverá entender-se que estamos perante mais uma excepção, e esta hoje constante da própria constituição escrita, ao princípio constitucional segundo o qual é o Chefe do Estado, que, directamente ou por intermédio de representante diplomático seu, detém o treaty making power. Os governos das províncias representam, nesta actividade, o Estado e não a província. Trata-se de mais uma hipótese de acordos em forma simplificada.
As províncias ultramarinas não poderão contrair empréstimos em países estrangeiros, diz-se na alínea em apreço. Ti esta, como se disse, também a solução hoje consagrada no artigo 173.°

166. b) Não se especifica nesta alínea quais são es órgãos da soberania que têm competência legislativa em relação às províncias ultramarinas. Essa especificação é feita no § 1.°
Tal como hoje sucede, a Constituição indica quais são os órgãos centrais com competência para legislar para o ultramar e diz, em cláusulas muito gerais, quais s3o as matérias sobre que essa competência se deve exercer, deixando para a lei que fixar o regime geral de governo das províncias ultramarinas a especificação dessas que se poderão chamar competências objectivas.
A competência legislativa dos órgãos legislativos das províncias ultramarinas pode ser exercida com inobservância da Constituição, das disposições normativas editadas pela Assembleia Nacional ou pelo Governo ou, de qualquer modo, com prejuízo dos interesses comuns ou superiores do Estado. Tal como já hoje sucede (Constituição, artigo 152.° e Lei Orgânica do Ultramar Português, base x, u), os órgãos da soberania podem anular ou revogar os diplomas que estiverem nestas condições. Trata-se de um controle político que, em parte, é paralelo de um controle jurisdicional, operado nos termos do texto proposto do artigo 123.°
Julga-se que a expressão final desta alínea deve ser substituída por esta outra: «provenientes dos órgãos da soberania», para se abrangerem também as normas provenientes da Assembleia Nacional, as quais os diplomas legislativos locais podem também contrariar. Os diplomas nestas condições devem também poder ser anulados pela via do poder de superintendência política dos órgãos da soberania.

167. c) Já houve que fazer alguma referência ao conteúdo desta alínea.
Julga-se que não teria sido pensamento do Governo prescindir de fazer do governador a autoridade competente para assinar e mandar publicar os diplomas legislativos votados pela assembleia legislativa, para legislar quando menos no intervalo das sessões legislativas, ou no caso de autorizações daquela assembleia e para exercer o poder de iniciativa perante ela. O dizer-se que é o representante do Governo irá permitir que na lei que defina o regime geral de governo das províncias ultramarinas se lhe confirem especificadamente estas e outras competências políticas.
Sugere-se apenas que se não fale em Governo Central, mas simplesmente em Governo. A razão já foi exposta.

168. d) Não pode haver dúvidas de que a defesa nacional, que «visa manter a liberdade e independência da Nação, a integridade dos territórios portugueses e a segurança das pessoas e dos bens que neles se encontram» (Lei n.° 2048, de 16 de Agosto de 1956, base i) e cuja «estrutura orgânica é uma para todo o território» (base iv),

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deve ser assegurada pelos órgãos da soberania da República e Governo) (bases VI e seguintes).

169. e) Trata-se da competência a que também hoje alude o artigo 153.° da Constituição a que, entre outras, se refere, no plano das leis ordinárias, a base IX da Lei Orgânica, do Ultramar Português. O termo «superintendência» comporta, em primeiro lugar, no sentido em que tem sido empregado neste contesto, a reserva de certos competências administrativas sobre matérias que representem interesses superiores ou gerais da política nacional no ultramar ou sejam comuns a mais de uma província ultramarina, como for especificado nas leis e especialmente na que define as bases do regime geral de governo das províncias ultramarinas. Em segurado lugar, tal termo abrange poderes de fiscalização em relação ao exercício da competência administrativa dos órgãos locais da administração, também como for especificado nas leis ordinárias, poderes de superintendência em sentido estrito e poderes de tutela preventiva, sucessiva, correctiva, substitutiva, regulamentar e disciplinar — tudo como nas referidas leis se especificar.
O princípio, em matéria de administração das províncias ultramarinas, será o da descentralização e o da desconcentração. As decisões e deliberações definitivas cabem, em princípio, aos órgãos locais das províncias. 0 Terreiro do Paço tem, neste domínio, limitados poderes administrativos próprios ou reservados. O que sucede é que exerce, em relação à administração levada a cabo pelos órgãos provinciais, poderes hierárquicos, nuns casos, e poderes tutelares, noutros.
Nada diz a Constituição sobre qual será o órgão que exercerá estes poderes em Lisboa. Fica para as leis ordinárias a tomada de posição a este respeito (um ministério especial ou distribuição por vários ministérios de tais poderes). Actualmente, a referência específica ao Ministro do Ultramar, feita em mais que um lugar da Constituição, subentende que o grosso da competência administrativa dos órgãos dia soberania lhe deve caber.

170. f) 0 conteúdo da alínea f) representa, a reprodução do essencial que se encontra hoje disposto nos artigos 169.°, n.° 2, 171.°, 172.°, 173.° e 174. ° Não merece o texto em questão qualquer reparo especial.

171. g) Depreende-se que é pensamento da proposta do Governo incumbir, em princípio, aos órgãos legislativos das províncias a definição do regime económico de cada uma delas, adequando-o às necessidades do seu desenvolvimento e do bem-estar da sua população [proposta alínea f) do artigo 135. °], cabendo aos órgãos da soberania legislar sobre a integração da economia de cada província na economia geral da Nação — alínea g) do artigo 136.°, ora em análise. Esta é também a posição tomada hoje na Constituição (artigos 159. ° e 160. °).

172. h) Se, nos termos da base I da Lei n.° 2084, cit., a defesa nacional [que, nos termos da proposta alínea d), é assegurada pelos órgãos da soberania] visa, além do mais, manter a segurança das pessoas e dos bens que se encontrem nos territórios portugueses, parece justificar-se esta alínea h). Apenas se impõe uma pequena alteração de redacção.

173. i) Ao Presidente da República cumpre manter e cumprir a Constituição (artigo 75. °). À Assembleia Nacional cumpre vigiar pelo seu cumprimento (artigo 91.°, n.° 2.°, e § único do artigo 123.°). Aos tribunais incumbe velar pela defesa da constitucionalidade, nos termos já vistos.
Sem dúvida que estas competências se referem a todo o País e a todos os cidadãos. Fica assente com esta alínea, que o que vale para a metrópole vale em idênticos termos para o ultramar.

174. Assim, no parecer desta Câmara, o artigo em apreço deverá ter a seguinte redacção:

Com vista à preservação da unidade nacional da integridade da soberania do Estado, das superiores, conveniências da Nação Portuguesa e da solidariedade das suas várias parcelas, compete aos órgãos da soberania:

a) (Igual à proposta do Governo.)
b) Legislar sobre as matérias de interesse comum, ou de interesse superior do Estado conforme for especificado na lei a que se refere a alínea m) do artigo 93.º, e revogar ou anular os diplomas locais que contrariem tais interesses ou ofendam as normas constitucionais e as provenientes dos mesmos órgãos da soberania;
c) Designar o governador de cada província ultramarina, como representante do Governo e chefe dos órgãos executivos locais;
d) (Igual à proposta do Governo.)
e) (Igual à proposta do Governo.)
f) (Igual à proposta do Governo.)
g) (Igual à proposta do Governo.)
h) Proteger, quando necessário, as populações centra as ameaças à sua segurança e bem-estar que mão possam ser eliminadas pelos meios locais;
i) Igual à proposta, do Governo.)

Artigo 136.°, § 1.º

175. Os dois únicos órgãos da soberania em que, naturalmente, se pode pensar para legislarem para o ultramar são a Assembleia Nacional e o Governo.
À Assembleia Nacional fica reservada (como hoje. aliás) uma certa competência legislativa. Mas, além dessa, é-lhe agora, de novo, conferida uma competência mais ampla, podendo legislar para todo o território nacional (como. por último, transitoriamente, sucedera entre 1945 e 1951).
A competência legislativa do Governo no seu conjunto vão é referida na proposta nos mesmos termos em que o é a da Assembleia Nacional, na parte não reservada. No § único, em relação à Assembleia Nacional, para essa competência reservada, diz-se que ela legislará para todo o território nacional. Em relação ao Governo no seu conjunto, nada se diz. Tudo terá de ser especificado na lei sobre o regime geral de governo das províncias ultramarinas, em aplicação da cláusula geral inscrita na alínea b), segundo a qual os órgãos da soberania legislarão sobre as matérias de interesse comum ou de interesse superior do Estado. No § 1." diz-se apenas que o Governo no seu conjunto legislará por decreto-lei.
Parece pouco aceitável que a competência da Assembleia Nacional seja neste parágrafo identificada pelo âmbito territorial da eficácia das normas que resultam do seu exercício e a do Governo no seu conjunto pela forma que revestirão os respectivos diplomas. Afigura-se à Câmara que, excluídas as matérias da competência exclusiva da Assembleia Nacional, as matérias de interesse comum e portanto, aplicáveis à metrópole e a todas ou algumas províncias ultramarinas, devem, ser da competência tanto daquele órgão como do Governo no seu conjunto, para ser exercida respectivamente sob a forma de lei e de de-

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creto-lei. Quanto aos diplomas que digam respeito a matéria de interesse superior do Estado, aplicáveis a todas ou algumas províncias ultramarinas, serão da competência de um Ministro apenas, conforme for especificado na lei sobre o regime geral de governo das províncias ultramarinas.
Desta sorte, o § 1.º deverá, no parecer da Câmara, ser assim redigido:

Os órgãos da soberania com atribuições legislativas relativamente às províncias ultramarinas são a Assembleia Nacional, sob a forma de lei, nas matérias da sua exclusiva competência e nas de interesse comum a metrópole e a todas ou algumas delas, o Governo, sob a forma de decreto-lei, neste último domínio, e o Ministro ao qual a lei confira competência especial para o efeito, nas matérias de interesse superior do Estado ou que sejam comuns a mais de uma província ultramarina.

Artigo 136.°, § 2.°

176. As observações a fazer a este parágrafo são duas apenas. Uma já foi feita noutro ponto deste parecer e traduz-se em notar que não são os decretos que são referendados, mas a promulgação deles. Como esta fórmula é corrente, não se levantarão objecções à sua utilização neste lugar. A outra observação consiste em lembrar que a forma de diploma legislativo ministerial não pode adoptar-se quando o Ministro estiver a exercer funções em qualquer província: adopta-se. Assim, parece melhor empregar-se, como se faz hoje no § 1." do artigo 100.°, a forma «adoptando-se».

Artigo 136.°, § 3.»

177. Nos termos do direito em vigor (Constituição, artigo 150. °, § 1. °, e Lei Orgânica do Ultramar Português, base X, III), o Conselho Ultramarino é o órgão que o Ministro do Ultramar normalmente consulta sobre a legislação que edita. Também se prevê que o parecer deste órgão possa ser substituído pelo da Câmara Corporativa. Por isto, e porque, embora, que se saiba, não haja " intenção de lhe alterar o nome, a modificação da sua designação é sempre possível, a proposta fala apenas em «um órgão consultivo adequado». Não há reparo a fazer a esta modificação do texto da lei constitucional.
Também não há nada a dizer contra a supressão da referência concreta ao Ministro do Ultramar, que, pelo contrário, era feita no § 1." do artigo 150.°
Por último, também se está de acordo com o texto proposto, quanto à forma de se referirem as hipóteses em que um parecer é dispensável.

Artigo 136.°, § 4.º

178. Este parágrafo há-de referir-se, não a «qualquer diploma publicado pelo Governo Central», mas a «qualquer diploma emanado dos órgãos da soberania», para abranger, como deve, também os diplomas emanados da Assembleia Nacional.
A menção de que se trata aqui exprime uma ordem ao serviço competente no sentido da publicação no Boletim Oficial da província ou províncias onde o diploma haja de executar-se.

Artigos 137.° a 143.°

179. O Governo não pretendeu introduzir quaisquer alterações nas disposições complementares que hoje constam dos artigos 176.° a 181.° Apenas propõe que a sua numeração seja alterada, em consequência da supressão de muitas das disposições do título VII da parte II Não há objecção possível a este procedimento.

Artigo 2.° da proposta

180. Nada há a objectar.

III

Conclusões

181. Do exame feito à proposta resulta que se impõem certas adições, algumas modificações de redacção, em alguns casos uma disposição diferente dos preceitos, e umas tantas supressões. Fazem-se, pois, à proposta do Governo as seguintes alterações:

Art. 2.°
§ 2.° Nas províncias ultramarinas, a aquisição por Estado estrangeiro de terreno ou edifício para instalação de representação consular será condicionada pela anuência do Governo à escolha do respectivo local.
Art. 4.°
§ 1.° (O texto do § 2.º da proposta do Governo.)
§ 2.° As normas de direito internacional geral vigoram na ordem interna desde que não haja preceito contrário de direito nacional ou desde que os órgãos e agentes do Estado Português tenham concorrido, com os seus actos ou omissões, para a respectiva formação; por seu turno, as normas constantes de tratados e acordos vinculativos do Estado Português vigoram na mesma ordem interna desde que produzam os seus efeitos na ordem internacional e hajam sido devidamente publicadas em Portugal.
Art. 5.° O Estado Português é unitário, compreendendo as regiões autónomas previstas nesta Constituição e as demais que venham a ser reconhecidas, de acordo com a sua situação geográfica e as condições do respectivo meio social.
§ 1.° A forma de governo é a República Corporativa, baseada na igualdade dos cidadãos perante a lei, no livre acesso de todos os portugueses aos benefícios da civilização e na participação dos elementos estruturais da Nação na vida política e administrativa.
§ 2.° A igualdade perante a lei envolve o direito de ser provido nos cargos públicos, conforme a capacidade ou serviços prestados, e a negação de qualquer privilégio de nascimento, raça, sexo ou condição social, salvas, quanto ao sexo, as diferenças de tratamento justificadas peia natureza e pela unidade da família, e, quanto aos encargos ou vantagens dos cidadãos, as impostas pela diversidade das circunstâncias ou pela natureza das coisas.
§ 3.° (Suprimido.)
Art. 7.° A lei determina como se adquire e como se perde a qualidade de cidadão português. Este goza dos direitos, liberdades e garantias consignadas ma Constituição, salvas, quanto aos que não sejam nacionais de origem, as restrições estabelecidas na Constituição e nas leis.

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Corporativa, de membro do Governo, de presidente do Supremo Tribunal de Justiça, de procurador-geral da República, de governador das províncias ultramarinas, as funções diplomáticas e a participação no colégio eleitoral para designação do Presidente da República.
§ 3.º Sob reserva de igual tratamento em favor dos portugueses no Brasil, os cidadãos brasileiros podem ser equiparados aos portugueses para o efeito do gozo de direitos, exceptuados aqueles a que se refere o § 1.°; o exercício de direitos políticos, porém, só será permitido aos cidadãos brasileiros que tenham a sua residência permanente em território português.
Art. 8.º
8.° Não ser privado da, liberdade pessoal nem preso preventivamente, salvo nos casos e termos previstos aios §§ 3.º e 4.°;
9.º Não ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare puníveis o «acto ou omissão, bem como não sofrer pena mais grave do que a fixada ao tempo da prática do crime nem medida de segurança fora dos casos previstos em lei anterior;
11.° Não haver pena de morte, salvo no caso de beligerância com país estrangeiro e para ser aplicada no teatro da guerra, nos termos da lei penal militar, nem penas ou medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade pessoal com carácter perpétuo, com duração ilimitada ou estabelecidas por períodos indefinidamente prorrogáveis, ressalvadas as medidas de segurança para inimputáveis;
21.º Haver recurso contencioso em caso de lesão de direitos ou interesses legítimos por actos da administração pública,
§ 4.° Fora dos casos de flagrante delito, a prisão em cadeia pública ou detenção em domicílio privado ou estabelecimento de alienados só poderá ser levada a efeito mediante ordem por escrito de autoridade judicial ou de outras autoridades expressamente indicadas na lei, onde se identifique o delito e constem os fundamentos objectivos da prisão ou detenção, devendo, em ambos os casos, submeter-se a prisão sem culpa formada a decisão de revalidação e de manutenção, ouvido o réu, nos prazos estabelecidos na lei. A prisão não será ordenada nem será mantida quando possa ser substituída por quaisquer medidas de liberdade provisória, legalmente admitidas, que sejam suficientes para a realização dos seus fins. O não cumprimento das condições a que ficar subordinada a liberdade (provisória poderá determinar a prisão (preventiva do arguido.
Poderá contra o abuso do (poder usar-se da providência do habeas corpus.
Art. 33.° O Estado só podará tomar a seu cargo actividades económicas de primacial interesse colectivo, em regime de exclusivo ou não, para conseguir benefícios sociais superiores aos que seriam obtidos em regime de simples iniciativa privada, e apenas poderá intervir na gerência das actividades económicas particulares quando haja de financiá-las ou para conseguir benefícios daquela ordem superiores aos que seriam obtidos sem a sua intervenção.

TITULO X

Da liberdade de culto e de organização religiosa e uns relações do Estado com a Igreja Católica e demais confissões.

Art. 45.º O Estado assegura a liberdade do culto de Deus, bem como a de organização das confissões religiosas cujas doutrinas não contrariem os princípios fundamentais da ordem constitucional, nem atentem contra a ordem social e os bons costumes e desde que o culto praticado respeite a vida, a integridade física e a dignidade das pessoas.
Art. 46.° É reconhecida a posição especial da religião católica, entre as várias crenças professadas pelos Portugueses. A Igreja Católica goza de personalidade jurídica, podendo organizar-se de harmonia com o direito canónico e constituir por essa forma associações ou organizações, cuja personalidade jurídica é igualmente reconhecida. As relações do Estado Português -com a Igreja Católica assentam na independência dos dois Poderes na respectiva ordem e na colaboração que, sobre matérias de interesse comum, seja definida em concordatas e acordos. O regime das relações do Estado com as confissões religiosas é o de separação.
§ único. As missões católicas (portuguesas do ultramar e os estabelecimentos de formação do seu pessoal serão protegidos e auxiliados pelo Estado como instituições de educação e promoção social.
Art. 49.°
2.° As águas marítimas, com os seus leitos, e as plataformas continentais;
Art. 51.° (Corpo do artigo.) (O texto vigente.)
§ único. (Suprimido.)
Art. 59° São consideradas de interesse colectivo e sujeitas a regimes especiais, no tocante aos seus deveres, concurso, administração e gerência, pessoal e intervenção ou fiscalização do Estado, conforme as necessidades da defesa nacional, da segurança pública e do desenvolvimento económico e social, as empresas concessionárias de serviços públicos, de obras públicas ou de exploração de coisas do domínio público do Estado, as sociedades de economia mista e de economia pública, as empresas que desempenhem a sua actividade em redime de exclusivo ou com privilégio não conferido em lei geral e, ainda, todas as empresas que exerçam qualquer actividade considerada por lei de interesse nacional.
Art. 70.°
§ 1.º Em matéria de impostos, a lei determinará: a incidência, a taxa ou o seu limite máximo, as isenções a que possa haver lugar, as reclamações e os recursos admitidos em favor do contribuinte.
§ 2.° A cobrança de impostos estabelecidos por tempo indeterminado ou por período certo que ultrapasse uma gerência depende de autorização da Assembleia Nacional, sem prejuízo, porém, da faculdade conferida ao Governo pelo § 1. ° do artigo 93."
Art. 80.°

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impedimento transitório das funções presidenciais, ficará o Presidente do Conselho e, na sua falta, o Presidente da Assembleia Nacional, investido nas atribuições de Chefe do Estado, com prejuízo, neste último caso, do exercício das funções próprias.
Art. 81.°
7.° Representar a Nação e dirigir a política externa do Estado, ajustar tratados e concluir acordos internacionais, por si ou por intermédio de representantes diplomáticos, e ratificar os tratados, depois de aprovados pela Assembleia Nacional ou pelo Governo;
Art. 82.°
§ 1.º
1.º A nomeação e exoneração do Presidente do Conselho;
§ 2.º Deve ser referendada por todos os Ministros a promulgação dos decretos-leis, e a dos de aprovação de tratados internacionais que versem matéria legislativa, quando não /tiverem «ido aprovados em Conselho de Ministros.
Art. 91.°
2.° Velar pela observância da Constituição, podendo declarar com força obrigatória geral a inconstitucionalidade de quaisquer normas, ressalvadas, porém, sempre as situações criadas pelos casos julgados, vigiar pelo cumprimento das leis e apreciar os actos do Governo e da Administração;
7.° Aprovar os tratados internacionais;
10.° (O texto vigente);
11.° (O texto vigente);
12.º (O texto vigente);
13.° (O texto vigente).
Art. 93.°
f) Condições do uso da providência do habeas corpus;
j) Criação de institutos de emissão;
l) Padrão dos pesos e medidas;
m) Regime geral de governo das províncias ultramarinas;
n) Definição da competência do Governo e dos governos ultramarinos quanto à área e ao tempo das concessões de terrenos ou outras que envolvam exclusivo ou privilégio especial;
§ "2.° (O texto do § 3.º da proposta do Governo.)
§ 3.° (Suprimido.)
Art. 94.º A sessão legislativa da Assembleia Nacional compreende dois períodos, o primeiro dos quais de 15 de Outubro a 15 de Novembro e o segundo de 1 de Fevereiro a 31 de Março, salvo o disposto nos artigos 75.°, 76." e 81.°. n.° 5.
Art. 95.°
§ 3.° Os membros do Governo, acompanhados ou não por pessoal técnico, podem tomar parte nas reuniões das comissões, e, sempre que sejam apreciados projectos ou propostas de alterações sugeridas peia Câmara Corporativa, poderá participar nelas um delegado desta Câmara.
Art. 99.°
§ único
b) As deliberações a que se referem os n.º 3. °, 6.°, 7.° e 12.° do artigo 91.° e outras semelhantes.

Art. 101.°
§ único. (Suprimido.)
Art. 109.°
2.° Fazer decretos-leis e aprovar, em casos de urgência e necessidade pública, os tratados internacionais que versem matéria legislativa, bem como em todos os casos, os acordos internacionais em matérias administrativas;
§ 4.º A aprovação dos tratados pelo Governo revestirá a forma de decreto, cuja promulgação será referendada por todos os Ministros, enquanto a aprovação dos abordos se fará por decreto, cuja promulgação será referendada pelo Presidente do Conselho e pelo Ministro competente.
§ 6.º Ocorrendo actos subversivos graves, em qualquer parte do território nacional, poderá o Governo, quando se não justifique a declaração de estado de sítio, adoptar as providências necessárias para reprimir a subversão e prevenir a sua extensão, com a restrição de liberdades e garantias individuais que se mostrar indispensável, devendo, todavia, a Assembleia Nacional pronunciar-se sobre a existência e gravidade da situação. Terminado o estado de emergência a que • este parágrafo se refere, o Governo enviará à Assembleia um relato das medidas tomadas.
Art. 123.° Nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas jurídicas que infrinjam o disposto nesta Constituição ou ofendam os princípios nela consignados, cabendo-lhes, para o efeito, apreciar a existência da inconstitucionalidade, salvo se o seu conhecimento for da competência exclusiva da Assembleia Nacional, nos termos do § 2.° deste artigo.
Art. 133.° Os territórios da Nação Portuguesa situados fora da Europa constituem províncias ultramarinas e formam regiões autónomas, com o seu estatuto próprio, podendo ser designados por Estados, de acordo com a tradição nacional, quando o progresso do seu meio social e a complexidade da sua administração justifiquem essa qualificação honorífica.

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Art. 134.° A autonomia das províncias ultramarinas compreende:

a) O direito de possuir uma assembleia electiva com competência legislativa;
b) O direito de legislar, com respeito das normas constitucionais e das emanadas dos órgãos da soberania, sobre todas as matérias que lhe interessem exclusivamente c não estejam reservadas pela Constituição ou pela lei que defina o regime geral de governo das províncias ultramarinas à competência daqueles órgãos;
c) O direito de, através de órgãos locais, assegurar a execução das, leis e a administração interna;
d) O direito de cobrar as suas receitas e afectá-las às suas despesas, de acordo com o diploma de autorização, votado pela sua assembleia legislativa, em que serão definidos os princípios a que deve obedecer o orçamento na parte das despesas de quantitativo não determinado por efeito de lei ou contrato preexistente;
f) O direito de recusar a entrada no seu território a nacionais ou estrangeiros por motivos de interesse público e de ordenar a respectiva expulsão, de acordo com as leis, quando da sua presença resultarem graves inconvenientes de ordem interna ou internacional, salvo o recurso para o Governo.

Art. 135.° Com vista a preservação da unidade nacional, da integridade da soberania do Estado, das superiores conveniências da Nação Portuguesa e da solidariedade das suas várias parcelas, compete aos órgãos da soberania:
b) Legislar sobre as matérias de interesse comum, ou de interesse superior do Estado, conforme for especificado na Lei a que se refere a alínea m) do artigo 93.°, e revogar ou anular os diplomas locais que contrariem tais interesses ou ofendam as normas constitucionais e as provenientes dos mesmos órgãos da soberania;
c) Designar o governador de cada província ultramarina como representante do Governo e chefe dos órgãos executivos locais;
h) Proteger, quando necessário, as populações contra as ameaças à sua segurança e bem-estar que não possam ser eliminadas pelos meios locais;
§ 1.° Os órgãos da soberana com atribuições legislativas relativamente às provindas ultramarinas são a Assembleia Nacional, sob a forma de lei, nas matérias da sua exclusiva competência e nas de interesse comum à metrópole e a todas ou algumas delas, o Governo, sob a forma de decreto-lei, neste último domínio, e o Ministro ao qual a lei confira competência especial para o efeito, nas matérias de interesse superior do Estado ou que sejam comuns a mais de uma província ultramarina.
§ 2.° Os actos legislativos do Ministro com competência especial para o ultramar revestirão a forma de decreto, promulgado e referendado nos termos constitucionais, adoptando-se a de diploma legislativo ministerial quando o Ministro estiver a exerce as suas funções em qualquer das províncias ultramarinas e a de portaria nos outros casos previstos na lei.
§ 4.° A vigência, nas províncias ultramarinas de qualquer diploma emanado dos órgãos da soberania depende da menção de que devam ser publicado, no Boletim Oficial da província ou províncias onde haja de executar-se.
Art. 136.° Cada província constitui uma pessoa colectiva de direito público, com capacidade para adquirir, contratar e estar em juízo.

Palácio de S. Bento, 11 de Março de 1971.

Fernando Cid de Oliveira Proença.
Henrique Martins de Carvalho. [1. Sem embargo de haver votado o parecer na generalidade e, na especialidade, quase todas as sua disposições, é óbvio que, em texto com a extensão e a complexidade da presente revisão constitucional, não me seria fácil acompanhar sempre as justificações ou as propostas votadas.
2. Assim, votei vencido o § 2. ° do artigo 4.º Reconhecendo embora que a sua primeira parte procura preencher uma lacuna importante da Constituição em vigor, considero-a demasiado teórica para poder figurar, sem riscos, num texto desta natureza. Na verdade, quais são, na prática os limites de um preceito que manda vigorar automaticamente, no nosso país, toda e qualquer forma de direito internacional geral não afastada pela lei interna desde que «os órgãos e agentes do Estado Português tenham concorrido, com os seus actos ou omissões, para a respectiva formação»? Soluções desta índole melhor devem ser deixadas à doutrina e à jurisprudência (com a sua natural moldabilidade à evolução da vida social) do que rigidamente fixadas numa constituição. E, para mais, a redacção aprovada parte de um determinado conceito doutrinário de direito internacional geral: o que dele exclui os tratados universais.
Por isso, considerei preferível uma redacção fundada na proposta do Governo, apesar de entender que, dados os condicionalismos da actual vida internacional, a obrigatoriedade da publicação melhor ficaria estabelecida (e logo regulamentada) na legislação comum.
3. Também não pude aprovar todo o n.° 7.° do artigo 81.°, apesar de haver votado a favor da sua primeira e da sua última parte.

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estes em situação difícil para os não ratificar, nos casos extremos em que assim devam orientar superiormente a política externa e representar os mais lídimos interesses da Nação.
Decerto numerosas constituições mantêm esta fórmula ou outras semelhantes. Mas conhecem-se as objecções que a doutrina e a prática lhe têm feito: nos países do Terceiro Mundo, por exemplo, tornou-se vulgar a união dos cargos de chefe de Estado e de chefe de governo; ora, se foi um chefe de Estado de algum deles que, por si ou por interposta pessoa, ajustou um tratado ou concluiu um acordo, como admitir que o governo o não aprove — e assim impeça a sua ratificação?
Tenho sempre defendido que a intervenção simbólica dos chefes de Estado no ajuste dos tratados e na elaboração dos acordos, muito frequente no passado, constitui hoje uma simples praxe diplomática, traduzida, 4. Igualmente votei a redacção proposta pelo Governo quanto ao n.° 7.° do artigo 91.°
Devem atribuir-se à Assembleia Nacional competências efectivas e com significado real não tendo interesse sobrecarregar o trabalho parlamentar com meras actividades de rotina, onde a margem de decisão seja extremamente limitada. Ora, quando se reconhece à Assembleia competência para aprovar um tratado, é óbvio que se sujeita à sua apreciação, praticamente em todos os casos, um texto já concluído e assinado, relativamente ao qual a mesma Assembleia apenas pode exercer, em globo, o direito de o aprovar ou rejeitar.
Decerto isso se compreende quanto aos «tratados de paz, aliança ou arbitragem» ou aos que associem Portugal com outros Estados, bem como quanto aos que versem matérias da «competência exclusiva» da própria Assembleia e ainda aos que o Governo considere deverem ser submetidos à apreciação parlamentar. Mas a todos estes se refere a proposta do Governo. E não vejo que vantagem possa haver, para o prestígio dos trabalhos parlamentares ou para a eficácia da Administração em passar a submeter à Assembleia Nacional os demais tratados. A complexidade crescente da vida internacional desaconselha, portanto, a meu ver, uma redacção demasiado genérica para o n.° 7.° do artigo 91.°]
João Manoel Nogueira Jordão Cortez Pinto.
João do Matos Antunes Varela. [Votei vencido em três pontos fundamentais. Entendi que não devia riscar-se da Constituição a afirmação de que a religião católica é a religião da Nação Portuguesa, embora reconheça que a ideia está formulada em termos muito (pouco felizes no texto do actual artigo 45.° Agora que o Estado se dispõe a eliminai-os obstáculos que até aqui poderiam ter embaraçado a livre organização, na metrópole e no ultramar, das confissões não católicas, dando plena autenticidade ao princípio da liberdade religiosa, mais à vontade o legislador se deveria sentir para manter no estatuto político fundamental um dos traços fisionómicos que, reflectindo uma constante histórica do povo português, melhor caracteriza, como entidade moral e cultural distinta dos indivíduos que em cada momento a integram, a nossa comunidade nacional.
Quanto ao ultramar, a proposta governamental tem alguns aspectos francamente louváveis. Mas peca, de um modo geral, pelo excessivo relevo que imprime em vários pontos à ideia da autonomia política dos territórios ultramarinos (artigos õ.°, 13&.°, 134.0, 135.° e 136.°). E o parecer da Câmara, na esteira da proposta, mantém a possibilidade da designação honorífica de Estados, bem como a nova categoria político-administrativa das regiões autónomas.
A primeira designação começa, porém, por ser juridicamente inexacta, dentro da estrutura unitária do Estado Português, e nada acrescenta na realidade das coisas, como se reconhece, aliás, no parecer. Ao argumento desconcertante em que este a apoia — não haja medo das palavras! —, apetecer-me-ia replicar: Tenhamos todo o cuidado com as palavras! As palavras possuem uma força emotiva extraordinária, principalmente nas sociedades massificadas dos tempos modernos. Aqueles círculos internacionais que hoje nos peçam palavras, a troco da sua simpatia, serão os primeiros a reclamar amanhã que, por um princípio de coerência, ponhamos a realidade de acordo com as palavras ao serviço de desígnios que fácil será adivinhar quais sejam.
Quanto a expressão regiões autónomas, que nenhuma tradição conta entre nós, reputo-a desnecessária, inoportuna e não isenta de riscos. Desnecessária, porque todas as modificações substanciais previstas no estatuto político-administrativo das regiões do ultramar se adaptam perfeitamente à designação genuína de províncias ultramarinas, Inoportuna, porque, tendo a luta no ultramar conta-a o terrorismo nascido sob o signo da autodeterminação contra a tese da integridade territorial de um estado unitário, tudo quanto desnecessariamente se preste a ser havido por outros como desvio daquela tese pode ter o sabor amargo de uma renúncia ou de uma abdicação perante o inimigo, numa altura, em que uma significativa viragem de muitos círculos da opinião internacional se operou já a nosso favor. Num território como o do Estado Português, sujeito às forças centrífugas de lima pronunciada dispersão geográfica, e numa altura em que as Universidades de Angola e Moçambique começam a lançar para a vida sucessivas gerações de jovens que nenhum contacto tiveram, na sua formação intelectual com o território da Mãe-Pátria ou com outras parcelas do Estado, o que mais nos deve preocupar é o reforço dos laços de solidariedade existentes entre estas várias parcelas da Nação e a multiplicação dos serviços nacionais que, fortalecendo a consciência da nossa unidade moral, melhor facultem o aproveitamento dos valores humanos e dos nossos escassos recursos materiais em todo o espaço económico português. Por isso, votei que não se eliminasse a doutrina expressa nos actuais artigos 135.° e 136.° da Constituição e se acentuasse antes o princípio da descentralização administrativa, em lugar da descentralização política. Ê da descentralização administrativa e da cora-elativa desconcentração de funções, não proclamadas apenas nos textos, mas

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traduzidas em actos, que o ultramar, a meu ver, necessita como de pão para a boca, tanto no plano superior da Administração Central, como ao nível da administração local.]
Joaquim Trigo de Negritos.
Maria de Lourdes Pintasilgo. [1. Votei, vencida, o § 2.° do artigo 5.° Não creio ser adequado fundamentar na «natureza» e na «unidade da família» a ressalva feita quanto ao sexo.
A utilização da palavra «natureza» no contexto deste parágrafo merece reparas, uma vez que a antropologia dos sexos é cada vez menos fixista e insere a natureza numa definição de pessoa humana como ser em devir e fruto de uma cultura também em evolução.
A justificação pela «unidade da família» poderá fixar o privilégio a um dos sexos, por força de conceitos mais ou menos generalizados, na conjuntura socio-cultural, relativos à função de cada sexo dentro da família.
A intenção de protecção à mulher que está possivelmente implícita no presente articulado ficará, aliás, amplamente satisfeita pela última disposição do parágrafo em questão. Aí a «diversidade de circunstâncias» que implica, no parecer da Câmara, «uma diversidade de tratamento legislativo» e a «natureza das coisas» que «justificará que a lei não seja aparentemente igual para todos os cidadãos» (n.° 29 do parecer) serão suficientes para justificar a diversidade de «encargos ou vantagens dos cidadãos».
2. Votei, vencida, o § 1.° do artigo 70.° Dada a função de «política económica e social» que tem a tributação no Estado moderno, parece-me que a lei deverá determinar «os limites» da taxa de imposto e não apenas o seu «limite máximo». A defesa dos contribuintes, quando encarada de forma individual, fica satisfeita com a fixação do «limite máximo» mas, quando encarada do ponto de vista do bem comum, que se reflectirá depois no bem individual, requer a fixação «dos limites» das taxas.]
Diogo Freitas do Amaral.
José Hermano Saraiva.
Álvaro Rodrigues da Silva Tavares.
André Delaunay Gonçalves Pereira. [Vencido quanto aos seguintes pontos:

a) Não votei a inclusão no artigo 4.°, § 2.°, da frase «ou desde que os órgãos e agentes do Estado Português tenham concorrido, com os seus actos ou omissões, para a respectiva formação»; as condições enunciadas no parágrafo para a relevância interna do direito internacional geral são alternativas, pelo que só quando houver preceito contrário de direito nacional é que são relevantes «os actos ou omissões»; tratando-se, assim, de resolver a contrariedade entre a norma interna e a internacional, parece-me pouco prudente sacrificar aquela em virtude de actos ou omissões que podem ser pouco significativos e cuja prova levantará dificuldades por vezes insuperáveis;
b) Quanto ao artigo 8.º § 4.°, dada a consagração no artigo 109.°, § 6.°, da possibilidade de suspensão de garantias individuais, como instrumento excepcional de defesa, do Estado, e sem embargo de reconhecer que quer o texto governamental, quer o da Câmara, representam importante melhoria no sentido da mais efectiva salvaguarda das garantias individuais, penso que se poderia ter ido mais longe: estabelecendo que, fora de casos de flagrante delito, a prisão preventiva só possa ser mantida mediante decisão judicial de revalidação, tomada após audiência do detido, e fixando a própria Constituição o prazo máximo findo o qual só a revalidação permitirá que se mantenha a privação de liberdade. Nenhuma razão de lógica jurídica, mas só a lição da experiência, pode aconselhar a inserção de tais disposições no texto constitucional. O não ficarem assim desde já asseguradas tais garantias em nada impede que a lei ordinária o faça, como se espera;
c) Votei o texto proposto pelo Governo quanto ao artigo 91.°, n.° 7.°; a experiência demonstrou que a dinamização da vida internacional e o incremento da contratação dela resultante não são compatíveis com a aprovação parlamentar de todos os tratados, ainda que ressalvados os casos de urgência. A manter-se, como se propõe no parecer, o texto actual, pensa-se que ele continuará a não poder ser integralmente cumprido;
d) Votei, quanto ao artigo 93.°, a supressão das alíneas n) e o), meras sobrevivências históricas já hoje não efectivamente cumpridas pela legislação ordinária, e que, passado o tempo das companhias majestáticas, nenhuma razão há em manter;
e) Votei, pelos motivos expostos na alínea c) desta declaração, o texto da proposta do Governo quanto ao artigo 109.°, n.° 2.°;
f) Votei a eliminação do § 4.º do artigo 109.°, quer da proposta do Governo, quer do parecer da Câmara; do primeiro, por não ser possível tornar a pôr em causa, depois da ratificação, a validade internacional do tratado e do segundo, por desnecessário quanto aos tratados e inconveniente quanto aos acordos em forma simplificada, em relação a muitos dos quais é de admitir a entrada em vigor pela mera assinatura;

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rece ter discordado-, bem se compreende que a fiscalização da constitucionalidade orgânica seja confiada a órgãos aos quais o particular tem acesso: os tribunais. Tal solução é reforçada pela possibilidade dada no § 1.° da criação de um tribunal constitucional especializado. Votaria, portanto, no sentido de que, quando estivesse em funcionamento tribunal constitucional nos termos do § 1.°, a excepção do § 2.° se restringisse aos casos de inconstitucionalidade formal e de inconstitucionalidade orgânica não derivada de violação do artigo 93.° (o que pode acontecer na legislação ultramarina). Caberia então, por alargamento da regra do artigo 123.º, § 1.°, ao tribunal ou tribunais nele referidos a apreciação da inconstitucionalidade orgânica resultante da não observância pelo Governo da reserva de competência da Assembleia Nacional.]

Fernando de Castro Fontes.
Francisco José Vieira Machado.

[1.° Creio seria muito preferível a afirmação de que o Estado Português é unitário, sem qualquer referência à autonomia das províncias ultramarinas. Esta referência tira vigor à declaração de unidade e é inútil na medida em que esta autonomia nada tem que ver com unidade nacional;
2.° Conceder a designação "Estado" a qualquer província ultramarina que preencha determinados requisitos parece-me, na conjuntura presente, altamente perigosa para a unidade nacional. Se se trata de uma mera distinção honorífica, as províncias passam muito bem sem ela. E a Constituição não deve conter palavras vazias de sentido. Mas as palavras têm em si próprias uma força de sugestão, uma força dinâmica que, em meu modesto entender, desaconselha absolutamente a concessão de título de Estado a qualquer parcela do território nacional.
A palavra "Estado" aplicada a uma determinada província gera confusão nas pessoas, que não são na sua imensa maioria versadas em direito constitucional; e não concebem que à palavra não se dê o sentido que normalmente ela tem.
Para efeitos internacionais, a designação é inútil -- e é até, talvez, prejudicial. Em todo o caso, não conquistaremos um único amigo por chamar Estado a uma determinada porção do território nacional;
3.º Houve o propósito de não fazer qualquer referência a Ministério do Ultramar ou a Ministro do Ultramar. Esta atitude significa o propósito de extinguir aquele Ministério? Significa mesmo que se pretende estender ao ultramar a competência dos vários Ministérios? É que eu não alcanço bem a razão do propósito.
Seja como for, no estado actual das coisas só vejo que possa ser unificada a organização da justiça, integrando-se o respectivo pessoal e as normas que o regem num quadro único sujeito às mesmas regras.
Sendo assim, a manutenção do Ministério do Ultramar parece-me indispensável, como organismo coordenador e orientador especializado, porque se não pode esquecer que cada província ultramarina tem características e problemas próprios que devem ser encarados, tendo em atenção a sua particularidade. Ao mesmo problema pode até não convir dar a mesma solução em províncias distintas. Se cada Ministério começasse a dar ordens ao ultramar, sem serem filtradas por um órgão coordenador, teríamos uma confusão desastrosa. E esse órgão coordenador não pode ser outro senão o Ministério do Ultramar.
Tem-se, por várias razões que não vêm à colacção, exagerado extraordinàriamente as deficiências do Ministério do Ultramar. Algumas tem, sem dúvida, mas o que há a fazer é corrigi-las e não suprir o Ministério.
Desejaria, por isso, que se mantivesse no texto constitucional a referência ao Ministro e ao Ministério do Ultramar.
4.° No artigo 135.°, alínea d), consigna-se o direito das províncias ultramarinas disporem das receitas ordinárias e de as afectar às despesas, mas não se fala no equilíbrio orçamental das receitas e despesas ordinárias, o que julgo indispensável.
0 disposto na alínea f) do mesmo artigo, a que corresponde a alínea e) do parecer da Câmara, é de tal maneira amplo que é de perguntar se qualquer província pode estabelecer o regime socialista, por exemplo;
5.° No artigo 136.° proíbe-se às províncias ultramarinas contraírem empréstimos externos. Creio que os empréstimos internos e os avales deviam ser condicionados por autorização do poder central, tanto mais que este se obriga a prestar às províncias assistência financeira e a proporcionar-lhes as operações de crédito que forem convenientes;
6.° Preferia que se não fizesse na Constituição qualquer referência às missões católicas, dado que, segundo a minha maneira de ver, teremos de negociar um novo acordo missionário com o Vaticano, por forma que convém que os nossos negociadores não tenham limitações constitucionais;
7.° Creio que o poder de lançar impostos deve ser da exclusiva competência da Assembleia Nacional.]

Manuel Pimentel Pereira dos Santos.
Vasco Lopes Alves.
António José de Sousa.
António Jorge Martins da Motta Veiga.
António Júlio de Castro Fernandes.
Armando Gouveia Pinto.
Augusto da Penha Gonçalves.
Emílio de Oliveira Mertens.
Hermes Augusto dos Santos.
José Alfredo Soares Manso Preto.
Manoel Alberto Andrade e Sousa.
Afonso Rodrigues Queiró, relator.

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PARECER N.º 23/X

Projecto de lei n.° 6/X

Alterações à Constituição Política

A Câmara Corporativa, consultada, nos termos do antigo 103.° da Constituição, acerca do projecto de lei n.° 6/X, sobre alterações à Constituição Política, emite, pela sua secção de Interesses de ordem administrativa (subsecções de Política e administração geral e de Política e administração ultramarinas), à qual foram, agregados os Dignos Procuradores António José de Sousa, António Jorge Martins da Motta Veiga, António Júlio de Castro Fernandes, Armando Gouveia Pinto, Augusto da Penha Gonçalves, Emílio de Oliveira Mentens, Hermes Augusto dos Santos, José Alfredo Soares Manso Preto e Manoel Alberto Andrade e Sousa, sob a presidência de S. Exa. o Presidente da Câmara, o seguinte parecer:

I

Apreciação na generalidade

1. O projecto de lei n.° 6/X inclui alterações à parte, e da Constituição, respeitante às garantias fundamentais, e à parte II, respeitante à organização política do Estado.
Um bom número das alterações projectadas refere-se a preceitos constitucionais que o Governo considerou também na sua proposta de lei n.° 14/X, proposta que esta Câmara já analisou no seu parecer n.° 22/X, em que teve o ensejo de se debruçar sobre os assuntos em questão e de exprimir a respeito deles todo o seu pensamento - nada mais de útil e de mais esclarecedor lhe sendo agora possível acrescentar. Estão nestas condições as alterações referentes aos artigos 5.°, 7.°, 8.°, n.ºs 9.°, 10.º e 1l.°, seus §§ 2.°, 3.° e 4.°, e ainda aos artigos 45.°, 46.°, 93.°, 94.°, 95.° e 123.° - para só falar daqueles que foram nominativamente considerados pelo Governo e objecto directo de análise por parte desta Câmara.

2. Um outro lote de alterações desejadas pelos Srs. Deputados que tiveram a iniciativa do projecto sob consideração redunda em levar o legislador de revisão a entrar em especificações e pormenorizações sobre determinadas matérias - o que não é pelo menos habitual, em termos de direito constitucional comparado. Os textos constitucionais, na parte respeitante aos direitos fundamentais e à chamada constituição social, são habitualmente constituídos por declarações muito sintéticas, por meras directrizes muito gerais, cujo alcance não é, apesar disso, menos vinculante para o legislador ordinário.
Está a Câmara a pensar, especialmente, na remodelação que no projecto se aconselha para as disposições que se incluem no título VI da parte I. Aliás, não se descortina nenhuma vantagem ou interesse fundamental na solenização de tais alterações, advogadas no projecto, mediante a sua inclusão na Constituição. 0 órgão que delibera sobre a revisão constitucional - a Assembleia Nacional - tem competência reservada para legislar sobre a matéria constitucionalmente versada no referido título VI,- dado o hoje disposto no antigo 93.°, alínea f), da Constituição, preceito que provàvelmente será mantido, aprovada que venha a ser a proposta de lei de revisão n.° 14/X. A Assembleia Nacional terá sempre ocasião, portanto, de se pronunciar legislativamente sobre todos os problemas respeitantes aos meios de comunicação e à opinião pública. Nem parece que, conservando-se a directriz mais ou menos elástica, hoje fixada particularmente no antigo 22.°, esse órgão da soberania fique sem a discricionaridade legislativa bastante para adoptar, relativamente a esses assuntos, uma regulamentação do tipo individualista liberal preferido pelos signatários deste projecto, se acaso ele vier a entender que a conjuntura nacional não requer a instituição de um específico dispositivo intervencionista de defesa da opinião pública. Pode muito bem suceder, com efeito, que a Assembleia Nacional entenda que a muito pouco ou pràticamente a nada se deva reduzir o contrôle preventivo do exercício da liberdade de expressão do pensamento. A Constituição, considerada a elasticidade daquele preceito, não vincula o legislador a adoptar sempre e necessàriamente esse contrôle, nem, adoptando-o, a fixar-lhe uma extensão imoderada e ampla.

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A consagração na lei fundamental de uma directriz e de um princípio de regulamentação estritamente neutralista e liberalizante teria, aliás, o muito real inconveniente de vincular o legislador comum a disciplinar a matéria nessa orientação, o que importaria a impossibilidade de, em tempos como os de hoje, em que o País se encontra a braços com sérias dificuldades no âmbito da sua defesa e da sua integridade, preservar a frente interna contra os seus inimigos. A única forma por que lhe seria dado mantê-la coesa contra a propaganda mais ou menos persistente, insidiosa e hábil desses inimigos seria a de suspender parcialmente garantias constitucionais, de acordo com a faculdade que, na sua proposta de lei n.° 14/X, virá porventura a inscrever-se na Constituição. Ora normalmente não há-de ser preciso nem se deverá ir tão longe.

3. Salientam-se, por outro lado, no projecto em apreço, algumas alterações que nada de substanciai representam em relação ao que já hoje se encontra estatuído e articulado na Constituição, e vêm a ser pràticamente reformulações desnecessárias, sempre de condenar, justamente por isso mesmo. Estão nestas condições, segundo se crê (para só falar nas que respeitam a preceitos não analisados pela Câmara no seu parecer n.° 22/X), as referentes ao artigo 6.°, n.ºs 1.º e 3.°, ao artigo 8.°, n.ºs l.° - A, 4.°, 6.º, 19.°, e § 1.°, e ao artigo 11.°
a) Não custa admitir que o artigo 6.°, n.°s 1.° e 3.°, interpretado no contexto dos restantes números e de acordo com o pensamento neles subjacente, contenha o que no projecto se pretende que eles expressamente consignem como directriz sobre os fins do Estado Português - que é um Estado social, melhor, que é um Estado social de direito.
Do que se trata, no conjunto do artigo 6.°, é de traduzir na Constituição as linhas mestras da concepção cristã social sobre os deveres do Estado nas relações com os elementos estruturais da comunidade nacional. Não se requer, realmente, nenhuma melhoria formal para expressar um pensamento e uma doutrina que constituem o essencial do "regime" consagrado na Constituição. Não se exige mais para significar que esta se não encontra apegada aos cânones liberais e individualistas e se acha, pelo contrário, dominada ou informada pelos princípios de solidariedade ou da socialidade. Não se exige mais para caracterizar o regime constitucional estabelecido, para evidenciar as correspondentes directrizes endereçadas ao legislador ordinário, para impulsionar a acção política do Governo e para balizar e orientar a actividade interpretativa das leis e demais normas pelos juizes.
b) Não acrescenta nada ao significado da actual a nova redacção sugerida no projecto para o artigo 8.°, n.° l.° -A. Por um lado, o direito ao trabalho não pode deixar de ser concretizado por leis ordinárias. A lei, portanto, é que há-de efectivar este direito, é que há-de prescrever sobre os termos em que ele se exerce. Nem se diga que, a ser assim, o legislador pode chegar a negá-lo, como direito fundamental - porque uma lei que procedesse desta maneira, comprimindo-o até o desconhecer e aniquilar, seria inconstitucional.
Aliás, a declaração constitucional sobre o direito ao trabalho não significa senão que o legislador deve promover a realização das condições que o tornem efectivo, designadamente legitimando intervenções da Administração no âmbito da economia privada, em ordem a conseguir o pleno emprego. Em correlação com esta directriz, são de ter em conta os artigos 31.°, n.° 1.°, e 35.°
De modo nenhum, supõe-se, se terá querido ir, no projecto, ao ponto de inculcar que os trabalhadores têm um direito à conservação do seu emprego, não podendo, por isso, ser despedidos, e um direito à obtenção de uma ocupação. Sobre este último ponto, vejam-se as considerações desta Câmara, constantes do seu parecer n.° 13/V (Diário das Sessões, n.° 74, de 24 de Fevereiro de 1951) cuja actualidade se mantém.
c) A alteração proposta para o artigo 8.°, n.° 4.°, que se traduz no adicionamento de um novo número, nada de substancial acrescenta ao que nesse n.° 4.° já se encontra dito. A liberdade de expressão do pensamento sob qualquer forma implica, numa das suas conotações que é a liberdade de imprensa, o direito ou liberdade de informação, afinal um dos meios pelo uso dos quais aquela liberdade se exprime, posto que será restringida ou anulada na medida em que este uso não seja livre. É de resto por esta fórmula que os Anglo-Saxões e os Franceses hoje geralmente se referem à liberdade de imprensa. A liberdade de imprensa é, afinal de contas, também a liberdade de informação.
d) A modificação no n.° 6.° do artigo 8.° não pode significar mais, nem coisa diversa, do que o que neste preceito hoje se encontra expresso. Constituiria um exagero manifesto e inadmissível a consagração da absoluta inviolabilidade de domicílio, que não tem, segundo se crê, correspondência no direito comparado. Veja-se, por exemplo, o que se dispõe na Constituição da democrática Itália (artigo 14.°) e na da igualmente democrática República Federal da Alemanha (artigo 13.°).
e) A nova formulação do mesmo número do artigo 8.°, quanto ao sigilo da correspondência, seria, também, tomada à letra, demasiado absoluta, já que não se prevê que circunstâncias excepcionais (como a guerra e graves perturbações da ordem pública) possam implicar uma limitação do segredo da correspondência (postal, telegráfica e telefónica), nem que ao legislador ordinário seja lícito introduzir-lhe restrições em desfavor dos que estejam em certas condições (por exemplo, dos que estejam a cumprir pena). Crê-se que o projecto de lei não quererá ir tão longe - pelo que se tem de interpretar como não querendo dizer, afinal de contas, senão o que já se encontra dito.
f) Constituiria uma melhoria, meramente formal, substituir, no artigo 8.°, n.° 19.°, a expressão "garantias individuais", hoje usada neste preceito, por "direitos, liberdades e garantias individuais", como vem projectado. O sentido das duas expressões é, no caso, manifestamente o mesmo.
Não se nega que a segunda parte do preceito, que consagra o direito de legítima defesa perante agressões, esteja deficientemente redigida, restingindo-o às agressões particulares. Mas o facto não tem impedido o legislador ordinário de dispor sobre a matéria nos termos cientificamente mais correctos, não distinguindo entre as agressões, para efeitos de legítima defesa (artigos 44.°, n.° 5.°, e 46.° do Código Penal e artigo 337.°, n.° 1, do Código Civil). O que verdadeiramente poderia interessar mais seria mencionar que a agressão que legitima a defesa do agredido é a agressão ilícita. Mas nem tanto é estritamente necessário. Decorrido o processo interpretativo, é assim que o texto em causa deve ser e vem sendo lido.
g) O projecto, no que respeita às alterações que pretende ver introduzidas no título II da parte I e, em especial, no artigo 8.°, caracteriza-se pela preocupação de ver constitucionalmente consagrados ou reconhecidos, tanto quanto possível sem limitações, mesmo as que se estabeleçam em lei ordinária, todos os direitos fundamentais que

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o sejam segundo uma concepção jusnaturalista - individualista - quando, pelo contrário, a Constituição, na sua redacção actual, é, pelo menos formalmente, mais restritiva, na medida em que no §1.° do artigo 8.° perfilha uma orientação enumerativa (devolvendo, aliás, completamente, para outros lugares da mesma lei fundamental) e em que, por outro lado, consigna, numa visão solidarista e comunitária, directrizes sobre os termos em que geralmente os cidadãos deverão fazer uso deles. Julgou o legislador constituinte não dever devolver, pura e simplesmente, para uma doutrina ou concepção filosófica sobre os direitos fundamentais, até pelo que tal orientação importaria de incerteza. E não se mostraram, até hoje, inconvenientes que pretensamente tenham resultado desta posição do legislador constituinte. E igualmente se não vislumbram prejuízos do facto de se prescrever, como se prescreve no § 1.° do artigo 8.°, sobre as limitações em geral ao uso dos direitos em questão.
h) Não pode, por seu turno, haver dúvidas de qualquer ordem sobre que a redacção sugerida para o artigo 11.° não acrescenta absolutamente nada ao que já se encontra expresso no texto actual desta disposição.

4. No projecto em análise, pretende-se ver reconhecido, dentro da sobredita orientação individualista estreme, um ilimitado direito fundamental de circulação e de residência no território nacional, um direito de saída e entrada e um direito de emigração, os quais se nos apresentam, assim, como assumindo, ao lado dos outros, uma espécie de preferred position, como sendo uma espécie de superdireitos fundamentais. Já no parecer n.° 22/X se mostrou como em dias de hoje não é possível reconhecer um incondicionado direito de permanência, mesmo a nacionais, em território ultramarino. Por outro lado, além de motivos de ordem pública e de segurança, razões de salubridade podem justificar restrições aos direitos de livre residência e de livre circulação no território nacional, em geral. Em matéria de direito de aller et venir, há que lembrar que ele é ou deve poder ser por lei condicionado à obtenção de passaporte. Em tal matéria, e na referente ao direito de emigração, não são despiciendas as limitações a estabelecer a liberdade individual, designadamente tendo em conta razões atinentes à prestação do serviço militar obrigatório, de ordem económica, de ordem penal e outras. A própria Constituição italiana, no seu artigo 35.°, prevê expressamente limites à liberdade, de emigração, já que a consagra, "salvas as obrigações fixada na lei no interesse geral". Tenha-se em conta, especialmente, o facto de a emigração por motivos de trabalho poder assumir um carácter colectivo.
São, pois, variadíssimas e amplas as limitações que o interesse comum requer ao exercício dos referidos direitos de deslocação, residência, entrada e saída e emigração. E é por essas limitações poderem, em alguns casos, ir até à negação deles que o legislador constituinte terá julgado preferível, de um modo geral, não os consagrar como direitos fundamentais, constitucionalmente garantidos - deixando inteira liberdade ao legislador ordinário para os definir e regular. E a direitos como estes que o § 1.° do artigo 8.º se terá querido referir quando diz que "a especificação destes direitos e garantias não exclui quaisquer outros constantes... das leis..." 1.

Não se vê que considerações fundadas em uma concepção que faz do indivíduo um ser absolutamente independente, dotado de direitos naturais superiores ao interesse geral ou ao bem comum, devam forçar a conceber a necessidade de os referidos direitos surgirem como constitucionalmente previstos, reconhecidos e garantidos.

5. Fecha o projecto o quadro das modificações que pretende ver introduzidas na parte I da Constituição com uma alusão específica do artigo 56.° Entretanto, a redacção deste preceito, que nele se propõe para substituir a actual, esquece a necessidade ou, quando menos a vantagem de que na nossa época, mesmo em tempo de paz, se adaptem e canalizem as energias morais dos cidadãos para a finalidade suprema, que é e será a defesa da Nação e a sua vitória sobre quantos adversários se lhe deparem. Em determinadas circunstâncias, as instituições civis de que hoje naquele artigo se fala hão-de mesmo poder ser organizadas militarmente (como já se acentuou no parecer desta Câmara n.° 40/VI- Actas de Câmara Corporativa, 1956, n.° 86).
0 que no projecto em apreciação se sugere não corresponde às necessidades ou conveniências mencionadas, segundo parece.
Não é que o texto do projecto contenha qualquer ideia menos feliz. Ele é até, por sinal, pràticamente decalcado num preceito em vigor, a base XXVII da Lei n.° 2084, de 16 de Agosto de 1956. Simplesmente, reproduzi-lo na Constituição não adianta nada, e suprimir o actual artigo 56.° da Constituição é certamente nocivo.

6. O projecto visa alterar a parte II da Constituição em vários pontos relativos aos quatro órgãos da soberania.
Em primeiro lugar, as modificações respeitam ao Chefe do Estado, sua eleição e sua competência e, bem assim, às atribuições do Conselho de Estado, órgão que, como se sabe, coadjuva o Presidente da República.
Sobre a alteração que se pretende introduzir na forma de eleição do Presidente da República, a Câmara perfilha o ponto de vista do Sr. Presidente do Conselho, expresso no seu discurso relativo à revisão constitucional em curso e, em especial, à proposta de lei n.° 14/X, proferido perante a Assembleia Nacional em 2 de Dezembro de 1970, pelas seguintes palavras:

Será discutível a forma de eleição do Chefe do Estado. Mas não se afigurou conveniente, a tão curta distância da resolução tomada sobre o assunto na última revisão, voltar a controvertê-lo. Há que prosseguir na experiência da fórmula adoptada e colher daí lição para mais tarde formar um juízo fundado sobre a conveniência de a conservar ou substituir.

A Câmara não vai, portanto, repetir aqui, neste momento, a argumentação que, em favor do sistema de designação hoje consagrado, expôs no seu parecer n.° 10/VII (Actas da Câmara Corporativa, 1959, n.° 49). Nem vai contrapor a essa a que se pode alinhar em defesa do sistema que, no projecto em apreço, agora de novo se advoga. Os dois sistemas têm naturalmente os seus adeptos e ambos são consagrados no direito constitucional comparado. Tudo, em substância, começa por depender das atribuições, simplesmente políticas ou políticas e administrativas, que se pretenda conferir ao Presidente da República. Num sistema presidencialista puro ou tão aproximado quanto possível dele, a eleição tenderá a ser formal ou substancialmente realizada por sufrágio universal e directo. Nos sistemas de presidencialismo diárquico, e, so-

1 Note-se que será legítimo dizer-se que o direito de emigração está constitucionalmente definido, podendo o legislador ordinário, tão-só, discipliná-lo ou regulá-lo. Será esse, porventura, o entendimento que melhor quadra ao artigo 31.°, n.° 5.°

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bretudo, na medida em que os poderes presidenciais se restrinjam ao domínio político, e, dentro deste domínio, a velar pelo respeito da Constituição e a assegurar o funcionamento regular dos órgãos da soberania e a continuidade do Estado, concebe-se uma eleição indirecta por colégio ampliado, como a que se admite actualmente na nossa lei constitucional. Como já houve quem notasse, a mobilização do sufrágio universal e directo impõe-se quando se pretenda fazer do Chefe do Estado um órgão que detenha os mais amplos poderes políticos e de administração, mas pode dispensar-se quando esse órgão detém limitados poderes de ordem política 2.
Contando-se o nosso regime constitucional entre os de presidencialismo bicéfalo ou diárquico, em que o poder presidencial pràticamente não intervém na função administrativa, encontramo-nos justamente perante o problema de saber qual desses dois sistemas de eleição corresponde melhor à ideia que na Constituição se faz do Chefe do Estado.
É esta a posição que o Sr. Presidente do Conselho a tal respeito expressou no mencionado discurso, posição que é perfilhada pela Câmara Corporativa. Prevê-se nesse discurso que há-de ser, no futuro, a lição da experiência que virá a ditar a necessidade ou a desnecessidade de una revisão do sistema hoje consagrado. Não adianta, por isso, agora esta Câmara uma palavra sequer sobre o sentido em que, até este momento, lhe parece depor a experiência já vivida à sombra do sistema consagrado pela Lei n.° 2100, de 29 de Agosto de 1959.
Do que vem de dizer-se decorre que se não justificam, nesta altura, as alterações e supressões de vários preceitos da Constituição relativos à eleição do Chefe do Estado.
A primeira das alterações previstas nas atribuições do Conselho de Estado também não tem, em face disto, razão de ser.

7. Não se justifica a alteração e a adição desejada no que respeita à competência do Presidente da República.
a) Não se vê, efectivamente, que seja recomendável amputar os poderes presidenciais de dissolução, ratione temporis.
Tal viria a traduzir-se em, no primeiro ano do seu mandato quadrienal, a Assembleia Nacional deter pràticamente a totalidade das competências de direcção política do Estado. Em França, uma tal limitação temporal não existe. Apenas se prescreve (artigo 12.° da Constituição de 1958) que, uma vez dissolvida a Assembleia Nacional, o Presidente da República não pode proceder a nova dissolução no ano seguinte ao das eleições - o que é bem diferente e pode ter uma certa justificação, não tanta, porém, que ao Presidente da República não seja possível vencer as dificuldades que assim se lhe poderiam criar nas suas relações com a Assembleia, utilizando as faculdades que lhe confere o célebre artigo 16.° Em Itália, o Presidente da República o que não pode é dissolver uma ou ambas as Câmaras nos últimos seis meses do seu mandato. É o chamado semestre branco. Isto com vista a evitar que o Presidente em funções possa, por este processo, assegurar a sua reeleição.
b) Que o Presidente da República é o chefe supremo das forças armadas de terra, mar e ar, já hoje resulta dos artigos 75.°, 81.°, n.° 7.°, e 91.°, n.° 6.°, da Constituição (como oportunamente foi observado por esta Câmara, no seu parecer n.° 40/VI). É por isso que na citada Lei n.° 2084, base VI, se pôde formalmente prescrever, sem se amputar a competência constitucional de qualquer outro órgão, exactamente o que no projecto de lei de revisão se pretende transportar para o texto da Constituição.
Não há, portanto, dúvidas de que o que vem sugerido no projecto é desnecessário e que o Presidente da República não pode ser despojado, pelo legislador ordinário, do comando superior das forças armadas. Como se sabe, não se trata do comando técnico das forças, antes apenas do chamado "alto comando", isto é, da coordenação da acção política, com a acção militar.

8. O exacerbamento das paixões políticas e outras razões particularmente fortes e graves (de um modo geral, os superiores interesses do País, como se diz no § único do artigo 87.°) podem levar a que o prazo de sessenta dias posteriores à dissolução da Assembleia Nacional deva ser prorrogado até seis meses. O ter de ser ouvido, a este respeito, o Conselho de Estado, e as responsabilidades políticas que o Presidente da República, a quem compete marcar o dia para as eleições de Deputados, assume perante a opinião pública, se fizer um caprichoso e arbitrário uso da faculdade que esse § único lhe confere, conduzem a não se dever recusar a outorga deste poder e a sugerir que ele se mantenha ( e, conjuntamente, a que se mantenha com a actual redacção a alínea b) do artigo 84.°].

9. As modificações sugeridas no projecto sob apreciação desta Câmara, em matéria de imunidades e regalias dos membros da Assembleia Nacional, são, de um modo geral, inspiradas pela ideia de as reforçar. Assim, pretende-se ver restringidas as hipóteses e condições em que os Deputados podem ser detidos ou estar presos, deseja-se pràticamente isentá-los da prestação do serviço militar efectivo, defende-se que devem ficar definidos na Constituição problemas protocolares relativos à precedência entre eles e outras entidades e intenta-se tornar permanentes, em geral, as imunidades e regalias consagradas em favor deles na Constituição.
a) A gravidade das infracções imputadas e a circunstância de a detenção se fazer em flagrante delito ou em virtude de mandato judicial aconselham a que se mantenha o texto da alínea c) do artigo 89.° Quer num caso, quer noutro, não há possibilidade de a prisão ser arbitrária ou abusiva.
b) O problema da dispensa das obrigações do serviço militar, especialmente da mobilização, foi, ainda, não há muito, versado por esta Câmara, no seu citado parecer n.° 40/VI, concluindo-se ai em sentido divergente do do texto que ora no projecto se recomenda. A Câmara mantém o seu ponto de vista. De qualquer modo, o problema encontra-se resolvido numa lei formal - a Lei n.° 2084, citada, base XXIV, 5 -, sendo dispensável encará-lo e tomar nele partido no próprio texto da Constituição.
c) Os problemas protocolares a que, por último, em matéria de regalias, no projecto se pretende dar solução, são de tão insignificante relevo que custaria vê-los enca-

2 Quando o general De Gaulle pretendeu fazer da Presidência da República o órgão constitucional competente para definir a política nacional e para assumir a sua condução, quando desejou fazer dele a chave da abóbada das instituições e verdadeiramente o único detentor da autoridade do Estado (o que sucedeu em 1962), modificou o sistema de eleição do Presidente da República, perfilhando o sufrágio universal e directo. Recordem-se as suas palavras na conferência de imprensa de 31 de Janeiro de 1964:
"Le Président est naturellement le seul détenteur de l'autorité de l'État . . .
L'autorité indivisible de l'État est déleguée toute entière au Président par le peuple qui l'a élu, est il n'y en a aucune autre, ni ministérielle, ni civile, ni militaire, ni judiciaire qui ne puisse être conférée ou maintenue autrement que par lui, et il lui appartient d'ajuster le domaine suprême que lui propre avec ceux dans lesquels il délègue l'action à autres. "

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rados na Constituição. A lei ordinária, ela mesma, poderá muito bem solucioná-los - e nada impede que a própria Assembleia, Nacional, por sua iniciativa, os resolva.
d) Já a Constituição de 1911 limitava a regalia hoje prevista na alínea d) do artigo 89.° aos períodos de sessão legislativa, para garantia do exercício e da independência das funções parlamentares. O mesmo se diga da regalia a que se refere a alínea e): expressamente era limitada ao período das sessões. Coisa diferente não se justifica para um sistema em que as sessões legislativas são curtas e em que os parlamentares não estão profissionalizados.

10. Em matéria de incompatibilidades (designadamente daquelas de que o projecto fala), sabe-se que elas são estabelecidas, de um modo geral, para assegurar a maior imparcialidade possível no exercício da função parlamentar. Tem sido sublinhado que elas só muito imperfeitamente conduzem ao fim desejado e que podem levar ao afastamento do Parlamento de individualidades altamente qualificadas, cuja isenção não pode, apesar de tudo, ser posta em dúvida. Há, portanto, que ser especialmente prudente no alargamento do quadro dos impedimentos ao exercício daquela função - não esquecendo o facto, que deve pesar nas soluções a consagrar, de o nosso regime não ser parlamentar e de, portanto, o Governo não estar dependente, das opiniões e votos da Assembleia. De qualquer modo, nada impede que, no seu regimento, e usando do seu poder de auto-organização interna, esta prescreva normas mais estritas do que as que constam da Constituição, se realmente as considerar requeridas pelo interesse primordial da sua dignidade e prestígio. É possível que, além ou em vez das ora sugeridas, outras incompatibilidades, com diverso alcance, mas não menos explicáveis, devam ser pela Assembleia consideradas. Assim, por exemplo, será eventualmente oportuno prescrever-se, como em França, que os parlamentares que forem advogados não poderão praticar actos da sua profissão (além do mais) a favor dos acusados de infracções contra a coisa pública (cf. M. Duverger, Institutions Politiques et Droit Constitutionnel, ll.ª ed., 1970, p. 762). Donde resulta que o assunto merece consideração mais ampla e aprofundada do que a que mereceu no projecto. Um reexame do assunto não fica precludido pelo facto de a Constituição não ser agora alterada neste ponto.

11. A Câmara já tomou posição, no seu parecer n.° 22/X, sobre as alterações que reputa desejáveis em matéria de competência legislativa reservada da Assembleia Nacional.
Quanto à alteração prevista no projecto, no âmbito das atribuições ditas não legislativas da Assembleia Nacional (artigo 91.°, n.° 4.°), visa fazer da Assembleia Nacional a entidade que decide em última instância, anualmente, do montante máximo dos gastos públicos com cada um dos grandes sectores da Administração, dentro de cada Ministério ou departamento e com cada um dos grandes capítulos dos encargos extraordinários da Nação.
No fundo, trata-se de conferir ao Parlamento a competência para votar o orçamento das despesas ordinárias e extraordinárias, ao nível idos capítulos orçamentais. Não podendo a Assembleia, por falta de tempo e de competência técnica, fazer uma votação pormenorizada e especializada do orçamento das despesas, quer-se que ela fixe ao menos o montante (máximo) das grandes massas de gastos, correspondentes aos capítulos estabelecidos nos termos da legislação orçamental em vigor.
Ora, crê-se, por um lado, que à Assembleia falece capacidade técnica para se pronunciar com o rigor pretendido
neste domínio; por outro lado, à Assembleia, no sistema constitucional fixado em 1933, é reservado apenas pronunciar-se sobre as grandes directrizes, que significam ou implicam opções políticas, em matéria de gastos não previstos em leis anteriores, em obediência às quais o Governo distribuirá as receitas públicas disponíveis - e constituiria uma autêntica subversão dos princípios constitucionais estabelecidos e firmados pôr a Assembleia Nacional a decidir sobre o mapa n.° 2 do Orçamento pròpriamente dito. Isto redundaria numa mudança dos centros, de decisão política, num importante domínio da actividade estadual - a actividade financeira. Seria um passo mais e não dos menos importantes, no sentido da instituição da democracia parlamentar.

12. Não se reconhece nem oportunidade nem vantagem no que vem sugerido no projecto sobre o funcionamento da Assembleia. Refere-se a Câmara apenas à modificação do § 1.º do artigo 95.°, porque o seu ponto de vista quanto ao § 2.°(também considerado no projecto) já foi exposto no parecer n.° 22/X. Basta lembrar que não é a presença do público nas galerias da sala das sessões da Assembleia que rigorosamente assegura a publicidade dos debates parlamentares e o contrôle, por parte do corpo eleitoral, dos trabalhos da Assembleia Nacional. Como é geralmente sabido, o que serve para a consecução destes objectivos é a publicação da minuciosa "acta" das sessões parlamentares no chamado Diário das Sessões, nos termos regimentalmente estabelecidos (Regimento da Assembleia Nacional, artigo 19.°). A presença do público nas galerias pode mesmo ser, em alguma ocasião, inconveniente, pela dificuldade que possa haver em: garantir que ele observe a necessária compostura e em que não perturbe intoleràvelmente o desenvolvimento dos trabalhos parlamentares.
É curioso notar que, se os presidentes dos corpos legislativos franceses não têm poderes próprios para, por sua iniciativa, determinar que eles funcionem em sessão secreta, podem fazê-lo a pedido do Primeiro- Ministro. Coisa idêntica se passa com o Bundestag na Alemanha: este pode funcionar à porta fechada, a pedido do Governo Federal.
Não repugna, portanto, que ao Presidente da Assembleia Nacional se atribua competência para resolver que uma sessão plenária decorra à porta fechada. Aliás, o não exercício que se vem verificando desta competência comprova que não há que recear que dela se faça um uso arbitrário.

13. Ainda relativamente à Assembleia Nacional, o projecto encara outras alterações da Constituição.
a) Não se vê vantagem especial em que os Deputados possam consultar a Câmara Corporativa sobre projectos de lei a apresentar, quando estes projectos, uma vez presentes à Assembleia Nacional, estão sujeitos a parecer desta Câmara. Só por uma questão de simetria com o que se passa quanto aos projectos de propostas de lei do Governo é que se poderia transigir em uma solução destas.
Simplesmente, esta equiparação não parece viável, uma vez que os projectos de lei estão sujeitos a não terem seguimento por uma série de motivos indicados no Regimento da Assembleia Nacional - não fazendo sentido que esta Câmara seja obrigada a pronunciar-se sobre o fundo de cada um deles antes da summaria cognitio a que têm de se submeter por parte da própria Assembleia. Tratar-se-ia, porventura, de um trabalho inglório, porque inútil.
Com as propostas de lei não se passa o mesmo. Não há este perigo. E compreende-se que a Constituição, desde a alteração que ao artigo 105.° foi introduzida pela Lei

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n.º 1963, de 18 de Dezembro de 1937, tenha providenciado no sentido de facultar ao Governo consultar esta Câmara sobre propostas de lei a representar à Assembleia Nacional: assim se assegurou que esta, na primeira fase de cada sessão legislativa, "tenha que fazer" e que se não concentre na segunda fase o grosso das suas tarefas.
b) A modificação desejada para o corpo do artigo 97.º envolveria, quando aprovada, os maiores perigos para a ordem financeira do Estado. A "lei travão" deve funcionar com igual rigor na hipótese de o aumento de despesa ou de a diminuição de receita do Estado criada por leis anteriores resultarem directamente de projectos de lei ou de propostas de alteração, ou de resultarem indirectamente. Esta Câmara, mantém, a este respeito, os pontos de vista que já teve ocasião de expressar no seu parecer de 16 de Junho de 1945, in Diário das Sessões, n.° 176, da mesma data. Ver ainda os termos do debate parla-mentar sobre tal assunto no mesmo Diário das Sessões, n.º 190, de p. 764 a p. 767.
c) Dada a posição tomada no seu parecer n.° 22/X sobre a fixação da ordem do dia da Assembleia, considera-se desnecessário o § 2.° adicionado ao artigo 97.°
d) É difícil recomendar que se inscreva na própria Constituição um preceito segundo o qual (como vem sugerido no projecto de lei em estudo) a apresentação dos projectos de lei não ficará dependente de voto de comissões. Há toda a possibilidade de fazer prevalecer esta norma numa simples alteração ao Regimento da Assembleia Nacional. Note-se que, de qualquer modo, um filtro, se não fundamentalmente idêntico, ao menos substancialmente tão eficaz como este, está instituído na Constituição francesa em vigor. As propositions de loi {equivalentes aos nossos projectos de lei) têm sempre na sua frente uma passagem apertada, difícil de transpor, que é a inscrição na ordem do dia. Nos termos do seu artigo 48.°, a ordem do dia comporta, prioritàriamente e pela ordem fixada pelo Governo, a discussão dos projets de loi (correspondentes às nossas propostas de lei) apresentados por ele e as propositions por ele perfilhadas. Daqui resulta que basta o Governo decidir fazer uso das suas prerrogativas, colocando sempre à cabeça da ordem do dia os seus projets ou as propositions que aceitou, para impedir qualquer discussão sobre as propositions que lhe não convêm (Duverger, ob. cit. e ed. cit., p. 776). E recorda André Hauriou (Droit Constitutionnel et Institutions Politiques, 1966, p. 754) que a referida passagem é tão estreita e difícil de ultrapassar que, na primeira legislatura, em 291 leis que foram promulgadas, sòmente 20 foram de origem parlamentar, enquanto, na III e IV Repúblicas, a proporção era, em geral, de um terço de propositions de loi para dois terços de projets apresentados pelo Governo.
Recordar isto serve apenas para mostrar que há um problema no que respeita à admissibilidade dos projectos de lei e que a solução que o actual Regimento da Assembleia Nacional lhe dá, no § 1.° do seu artigo 11.°, não é, a final de contas, mais drástica do que a que lhe é dada numa grande democracia moderna ocidental.
e) 0 mais que no projecto em análise se pretende que conste do Regimento da Assembleia Nacional é òbviamente expressão do chamado poder de auto- regulamentação desse órgão, o qual não precisa de ser expressamente consignado, ou é assunto que está prejudicado pela posição já assumida por esta Câmara em matéria de ordem do dia.

14. As intenções reformadoras do projecto atingem também a Câmara Corporativa.
a) O que se pretende alterar do § 1.º do artigo 103.° não merece concordância. Uma parte encontra-se prejudicada pela posição desta Câmara, no que toca ao texto sugerido para um segundo parágrafo do artigo 97.° A outra não se justifica porque o prazo para a elaboração dos pareceres da Câmara Corporativa não deve ficar dependente da natureza constitucional ou ordinária das modificações ou adições à ordem jurídica interna que constituam o objecto das propostas ou projectos de lei. Uma proposta ou um projecto de lei de revisão constitucional não são forçosamente mais difíceis e complicados que outras propostas ou projectos, nem necessàriamente requerem um maior período de reflexão. A Câmara sente geralmente dificuldades em observar os curtos prazos que tem para exercer a sua competência consultiva. Mas não se queixa mais da angústia do tempo numa oportunidade como a actual (em que tem de se debruçar simultâneamente sobre três iniciativas de revisão constitucional, extensas e complexas) do que em tantas outras, em que tem tido, estudando iniciativas no domínio da legislação ordinária, de fazer milagres de esforço, para poder, cumprir com um mínimo de dignidade a sua obrigação de colaborar com a Assembleia Nacional e com o Governo.
É, em todo o caso, necessário recordar que esta Câmara já advogou solução diferente, indo mesmo mais longe do que o actual projecto, propondo noventa dias para ela dar parecer sobre as propostas ou projectos de revisão (parecer n.° 13/V) - mas a Assembleia não seguiu a sua sugestão.
b) O problema resolvido no texto apresentado no projecto para substituir o actual do § 3.° do artigo 103.° foi especialmente encarado em 1935 pelo então Deputado Prof. Mário de Figueiredo (Diário das Sessões de Janeiro - Abril, p. 222), o qual lembrou que uma proposta do Governo também, evidentemente, pode ser rejeitada na generalidade na Câmara Corporativa, à qual será lícito elaborar outro texto - um "projecto", em suma, com orientação fundamentalmente diversa. Aquele Deputado entendeu, porém, que, em tal caso, só o próprio Governo poderia converter o "projecto" da Câmara Corporativa em proposta sua. Ora não é, pelo menos, líquido que outra deva ser a solução e que devam, como agora vem sugerido, ser equiparadas as hipóteses da rejeição na generalidade dos projectos de lei dos Deputados e da rejeição das propostas de lei do Governo. Inclina-se a Câmara para que se deva deixar exclusivamente ao Governo, como foi entendido em 1935, a iniciativa de perfilhar os "projectos" da Câmara Corporativa, elaborados após rejeição na generalidade das suas propostas, para serem na Assembleia discutidos em conjunto com as propostas rejeitadas e independentemente de nova consulta à Câmara Corporativa. Parece que deve deixar-se ao Governo decidir da conveniência política de levar a discussão da Assembleia Nacional, para confronto com uma proposta sua, um "projecto" que é radicalmente diverso, de principio a fim, dessa proposta.
c) Parece não se justificar estritamente que, tendo a Assembleia Nacional encarregado o Governo de legislar sobre certa matéria, este órgão seja rigorosamente obrigado a consultar a Câmara Corporativa, como vem sugerido no texto desejado para o corpo do artigo 105.° É natural que o Governo o faça, em obediência a normas não jurídicas "de correcção constitucional", sobretudo se uma grande urgência não impuser ou justificar o contrário - o que não será comum, mas poderá suceder.
d) Dada a posição da Câmara no que concerne à possibilidade de os Deputados a consultarem sobre projectos de lei a apresentar à Assembleia Nacional, fica prejudicada a procedência do projecto no que toca à alteração do § 1.º do artigo 105.°

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e) A actual redacção do artigo 106.°, tendo em conta que o exercício das faculdades de auto- organização da Câmara Corporativa já lhe proporcionam disciplinar a apresentação das sugestões de providências, a que alude o § 2.° do artigo 105.°, e que se não vê por que às suas secções e subsecções há- de ser lícito exercer a competência que aos Deputados é conferida pelo n.° 2.° do artigo 96.°, deve considerar-se mais aconselhável do que a que vem sugerida no projecto.

15. Não se mostram claramente dignas de apoio as modificações que o projecto visa introduzir no que respeita ao exercício da competência legislativa do Governo.
a) Convém que a iniciativa da ratificação expressa não seja facultada a um número demasiado exíguo de membros da Assembleia, obrigando esta a ocupar-se com problemas que, no entendimento presumivelmente mais generalizado entre os Deputados, não carecem de ser abordados.
b) Desde que os Deputados têm iniciativa legislativa, podem - e não precisam de ser tantos como o projecto requer para a iniciativa da ratificação expressa - apresentar projectos de revogação ou modificação de decretos- leis publicados fora do funcionamento efectivo da Assembleia Nacional.
Há uma restrição a fazer a este ponto de vista, conforme resulta do já exposto no parecer n.° 22/X desta Câmara e que diz respeito à legislação em matéria de impostos, fora do funcionamento efectivo da Assembleia.
A Câmara pensa que estes decretos- leis devem ser sujeitos a ratificação. Aliás, é essa a proposta do Governo.
c) A última parte do § 3.° do artigo 109.º foi nele inserida em 1951, no seguimento de um projecto de lei apresentado pelo Deputado Paulo Cancella de Abreu (Diário das Sessões, n.° 93, de 6 de Abril de 1951, p. 750), objecto do parecer n.° 18/V (Diário das Sessões, n.° 98, de 16 de Abril de 1951 - Suplemento) desta Câmara. No referido Diário das Sessões, a pp. 986 e seguintes e 998 e seguintes, estão expostas as razões pelas quais se não julga viável ou simplesmente recomendável a alteração ora pretendida. Para esses lugares devolve a Câmara neste momento.

16. É sabido que a garantia da igualdade dos cidadãos, da justiça e da imparcialidade e independência dos juizes está, em geral, associada à atribuição da função jurisdicional aos tribunais ordinários - mas que, apesar disso, no contencioso civil, no contencioso administrativo e no contencioso penal, as legislações admitem, em regra, tribunais especiais, isto é, tribunais estranhos à organização judiciária comum. Não há, no nosso direito, obstáculo constitucional à criação de tribunais especiais no domínio daquelas duas primeiras formas de contencioso - mas há limitações à liberdade do legislador comum para a criação de tribunais criminais especiais, as quais constam do artigo 117.°
Pretende-se, no projecto em análise, não apenas que deixe de ser possível a criação de novos tribunais especiais para o julgamento de crimes sociais ou contra a segurança do Estado, mas ainda que os que estão instituídos ou criados sejam abolidos, por não serem mais permitidos.
Entende a Câmara, por seu turno, que se não requer uma medida tão drástica como a sugerida no projecto. Há dois limites práticos e actuantes à proliferação dos tribunais criminais especiais. Um consiste em que a criação ou a manutenção daqueles que circunstâncias muito particulares não imponham ou justifiquem não causam apenas danos, antes de tudo morais, aos que estão ou ficam sujeitos à sua competência: causam-nos também (e são então danos políticos) aos regimes que os instituam ou não procedam à sua oportuna abolição. Outro consiste em que, cabendo a definição das bases do regime jurídico
da organização dos tribunais à Assembleia Nacional - que aliás, pode ir nesta matéria tão longe quanto queira -, sempre a Representação Nacional poderá estabelecer, relativamente a tais tribunais, normas que os aproximem tanto quanto possível e necessário, do ordenamento judiciário comum e lhes outorguem uma confiança aproximada da que geralmente se deposita, com boas razões, nos tribunais ordinários.
Acrescente-se, como razão de prudência a observar no estabelecimento de modificações tão substanciais neste domínio, que em França se criou em 1963 a Cour de Sûreté de l'État, caracterizado tribunal criminal especial - e a França é um país que recebe poucas lições tem matéria de garantias dos direitos dos cidadãos. Passadas embora as condições em que semelhante tribunal foi criado, não se decretou até hoje a sua abolição.
Por último, não se vê que seja isenta de reparos a orientação de retirar da competência dos tribunais militares, que são tribunais especiais, os crimes acidentalmente militares, ou seja, os crimes comuns que, em razão da qualidade militar dos delinquentes, do lugar ou de outras circunstâncias, tomam aquele carácter (n.° 2.° do artigo 1.º do Código de Justiça Militar). É o caso de tais crimes serem praticados em tempo de guerra ou de emergência (cf. o parecer n.° 6/IX desta Câmara - Actas da Câmara Corporativa, n.° 49, de 27 de Abril de 1967).
Por todas estas razões, não se inclina esta Câmara para recomendar a alteração sugerida do artigo 117.°

17. De acordo com o preceituado no artigo 121.°, dispõem hoje o artigo 98.° do Estatuto Judiciário e o artigo 407.° do Código de Processo Penal. Não consta que em nome dos interesses do Estado os tribunais tenham arbitràriamente declarado secreta alguma audiência; não parece que se deva recear que uso menos razoável dos seus poderes na matéria venham os juizes a fazê-lo no futuro; nem parece que nas audiências se devam passar a praticar em público actos que as leis de processo considerem secretos. Assim, não se impõe a alteração do referido artigo 121.°

18. Finalmente, o projecto pronuncia-se também sobre três das actuais disposições complementares da Constituição, relativas à revisão constitucional.
a) Quem pensa em usar da iniciativa em matéria de revisão constitucional prepara naturalmente o projecto a apresentar com grande ou, de qualquer modo, com a conveniente antecedência. Não deve proceder de improviso. De qualquer modo, não se tem revelado exíguo o prazo para a apresentação, pelos Deputados, de projectos de revisão; não se tem sentido a necessidade de o alargar.
b) Não concorda esta Câmara com que seja facilitada a iniciativa dos Deputados em matéria de revisão constitucional, pondo-a em pé de igualdade com a normal iniciativa legislativa. Requer-se, como está hoje estabelecido, que a iniciativa tenha de pertencer conjuntamente a um número suficientemente representativo de membros da Assembleia Nacional. A Câmara, tal como em 1951 (parecer n.° 13/V), "deseja uma vez mais acentuar que a sua posição é abertamente contrária às facilidades em matéria de revisão constitucional". Lembremo-nos de que por alguma razão seria que na Carta Constitucional se requeria para a iniciativa parlamentar em matéria de revisão o apoio da terça parte dos Deputados (Carta, artigo 140.°; Acto Adicional de 1885, artigo 9.°). Trata-se, em

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16 DE MARÇO DE 1971 683

suma, de uma especialidade que perfeitamente se compreende, dado que é normal, nas constituições rígidas, prever-se um processo legislativo "agravado" para a revisão, fazendo ele próprio, por sua vez, parte de um mecanismo, mais amplo e complexo, de "conservação da constituição" e de limitação consequente ao poder de revisão.
c) Explica-se perfeitamente que a Assembleia Nacional deva ter um prazo conveniente para o estudo dos projectos e propostas de lei de revisão - e nas constituições rígidas, em geral, prevê-se seja o que for que assegure a devida reflexão sobre as modificações previstas. "Qualquer alteração à Constituição - afirmou esta Câmara no seu parecer n.° 13/V, - deve ser rodeada de cuidados e de garantias de reflexão."
Simplesmente, esta Câmara pensa hoje que há duas formas de assegurar que as iniciativas de revisão sejam submetidas ao indispensável estudo - a um estudo profundo. Uma consiste em vincular ratione temporis, por uma norma como a proposta, a competência deliberativa na Assembleia Nacional. A outra consiste em confiar nas presidências da Assembleia e do Conselho de Ministros (aprovada que venha a ser a proposta de lei n.° 14/X, no que respeita à fixação da ordem do dia das reuniões da Assembleia Nacional), ou apenas na primeira dessas presidências (se se seguir a sugestão desta Câmara), esperando que o seu sentido das responsabilidades e a sua consciência da gravidade dos problemas geralmente postos pelas iniciativas de revisão as conduzam, no exercício do seu poder discricionário neste domínio, à solução mais adaptada e aconselhável para cada caso, dando assim aos Deputados todo o tempo razoàvelmente requerido pelas dificuldades e amplitude das propostas e projectos de revisão para o estudo dos pareceres da Câmara Corporativa. A primeira orientação, que é a do projecto, foi também advogada pela Câmara, no seu parecer n.° 13/V, citado. Hoje, porém, ela inclina-se para a outra solução, porque a julga mais de acordo com o grau muito variável de dificuldades oferecidas por cada iniciativa de revisão e, em especial, com o número e com a extensão das propostas e projectos deste tipo. Não faria grande sentido, por exemplo, que uma proposta ou projecto que abrangesse um apenas, ou muito poucos preceitos da Constituição, tivesse de esperar, para ser discutido na Assembleia Nacional, pelo menos, noventa dias sobre a publicação do respectivo parecer da Câmara Corporativa.
Assim, crê-se que se não recomenda um preceito como o sugerido no projecto em apreço para constituir o § 4.° do artigo 176.°
d) Não é também de recomendar, por último, que ao Presidente da República não seja lícito opor veto suspensivo aos decretos da Assembleia Nacional sobre revisão constitucional.
Em favor da tese contrária (que foi entre nós a consagrada no artigo 112.° da Constituição de 1822, e é a tese do projecto sob consideração) poderá dizer-se que o veto suspensivo, previsto no § único do artigo 98.° da Constituição vigente, não se justifica em relação aos decretos de revisão, dado que se destina a permitir ao Chefe do Estado exercer um contrôle preventivo da constitucionalidade - o que só tem sentido em relação aos decretos da Assembleia Nacional visando o estabelecimento de normas de direito ordinário.
A isto a Câmara responde, primeiro, que há um processo constitucional de revisão, e que o Presidente da República deve velar pela observância das normas relativas à sua regularidade; e, segundo, de acordo com a melhor doutrina, a qual impugna o velho e o novo positivismo jurídico, que há mesmo limites substanciais ao poder de revisão constitucional. Esses limites são vários e dizem respeito à chamada "constituição material", "regime" ou "forma de Estado" - expressões que aludem a uma espécie de ordenação inicial, definida por elementos materiais e morais, que é, tão-só, susceptível de adaptações ou adequações às ulteriores circunstâncias cambiantes, a isso se devendo confinar o poder "constituído" de revisão. A revisão constitucional supõe uma faculdade de alteração da Constituição, não um direito de afastar a constituição. (Cf. H. Ehmke, Grenzen der Verfessungsänderung, Berlim, 1953; Costantino Mortati, "Concetto, Limiti, Procedimento della Revisione Costituzionale", in Rivista Trimestrale di Diritto Pubblico, 1952, pp. 28 e segs.; Carl Schmitt, Teoria de la Constitución, México, 1966, pp. 105 e segs.; Francisco António Lucas Pires, O Problema da Constituição, Coimbra, 1970, pp. 68 e segs.)
Considere-se, por último, que no nosso sistema constitucional semipresidencialista a promulgação exprime um poder de contrôle político do Presidente da República em relação à Assembleia, de acordo com o qual aquele pode alertar esta sobre as que entenda serem as mais altas exigências do interesse nacional, embora, por sua vez, a sua direcção política, neste campo, não seja suprema, já que a última palavra cabe, observada a two third rule, consignada no § único do artigo 98.°, à própria Assembleia Nacional. [No sentido de que a promulgação entre nós tem carácter meramente declarativo de que os diplomas foram elaborados pelo órgão competente e segundo o processo regular, não sendo envolvida a concordância pessoal ou a vontade do Presidente da República, v. Marcello Caetano, Constituição de 1933, Estudo de Direito Político, 1956, p. 55. Cf. bibliografia portuguesa sobre o assunto, em mais que um sentido, em Miguel Galvão Teles, Eficácia dos Tratados na Ordem Interna Portuguesa (Condições, Termos e Limites), 1967, pp. 78 e seg.].
Ora, esta faculdade de velar pela salvaguarda dos interesses superiores do Estado justifica-se em relação aos decretos da Assembleia sobre revisão constitucional, ainda mais que a respeito dos outros decretos deste órgão da soberania.

II

Conclusões

19. A Câmara, respeitando as intenções dos Srs. Deputados que subscreveram o projecto de lei que vem de ser analisado, entende não dever recomendar a sua aprovação na generalidade.

Palácio de S. Bento, 15 de Março de 1971.

Fernando Cid de Oliveira Proença.
Henrique Martins de Carvalho.
João Manoel Nogueira Jordão Cortez Pinto.
Maria de Lourdes Pintasilgo. (Votei, vencida, pelas seguintes razões:

1.ª Tendo sido feita pela Câmara a apreciação dos vários artigos constantes do projecto em moldes que permitiram o seu agrupamento e síntese em torno de pontos que a Câmara considerou significativos, parece-me que seria lógico e desejável que a análise feita se traduzisse numa "apreciação na especialidade", quaisquer que viessem a ser as conclusões a que esse exame conduzisse.
2.ª Creio que a verificação de eventual inoportunidade ou redundância do articulado do projecto de lei não deveria implicar a sua

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Rejeição. Para além do grau de elaboração técnica que o projecto de lei possa apresentar, permanece, a meu ver, o seu significado como expressão da fracção do órgão legislativo que o subscreve. Com efeito, no mesmo momento em que aumenta a capacidade técnica subjacente às propostas de lei, o encorajamento da expressão das aspirações dos cidadãos através dos seus legítimos representantes na Assembleia Nacional é indispensável para garantir a participação de todos no Estado social que formamos. Tal importância é particularmente forte quando se trata da lei fundamental da Nação.)

Diogo Freitas do Amaral. [Vencido. Discordo da não aprovação na generalidade porque, além de outras razões, entendo que no presente projecto há várias emendas à Constituição que merecem aprovação. Estão, a meu ver, nessas condições, entre outras, na redacção com que foram apresentadas ou com redacção diferente que as aperfeiçoasse, as emendas relativas aos seguintes artigos da Constituição: 6.°, n.ºs 1.° e 3.°; 8.°, n.° 19.°; 11.°; 23.°-A; 81.°, n.° 10.°; 89.°, alíneas e) e f); 90.°, n.os 1.° e 5.° e § 2.°; 93.°, alíneas f), h), i) e j); 97.°, § 2.°; 101.°, alíneas c) e d); 103.°, §§ 1.º e 3.°; 105.°; 106.º e §§ 1.° e 2.º; 109.°, § 3.°; 123.°, § único e 176.°, §§ 2.° e 4.°]
José Hermano Saraiva.
Álvaro Rodrigues da Silva Tavares.
André Delaunay Gonçalves Pereira. (Vencido quanto à não aprovação na generalidade. Parece esta fundar-se, não só na falta de bondade ou oportunidade das propostas que integram o projecto de lei n.° 6/X, mas também em exceder o seu espírito os limites em que deve manter-se a revisão constitucional. O problema dos limites do poder constitucional de revisão é dos mais melindrosos em ciência política; mas não penso que tais limites se devam aqui considerar excedidos. A mais importante das alterações propostas - o regresso no sufrágio directo na eleição do Chefe do Estado - decerto se contém dentro dos limites adequados a uma revisão ordinária da Constituição, como o demonstra a alteração sobre este mesmo ponto introduzida, com solução contrária à agora proposta, pela revisão constitucional de 1959.
Ora, para além de disposições que penso não devem ter estabilidade constitucional - como as alterações propostas aos artigos 23.° e 89.° -, outros pontos haveria, como as alterações propostas aos artigos 72.º e 93.°, que bem mereceriam ser discutidos na especialidade.)
Fernando de Castro Fontes.
Francisco José Vieira Machado.
Manuel Pimentel Pereira dos Santos.
Vasco Lopes Alves.
António José de Sousa.
António Jorge Martins da Motta Veiga.
António Júlio do Castro Fernandes.
Armando Gouveia Pinto.
Augusto da Penha Gonçalves.
Emílio de Oliveira Mertens.
Hermes Augusto dos Santos.
José Alfredo Soares Manso Preto.
Manoel Alberto Andrade e Sousa.
Afonso Rodrigues Queiró, relator

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PARECER N.º 24/X

Projecto de lei n.º 7/X

Alterações à Constituição Política

A Câmara Corporativa, consultada, nos termos do artigo 103.° da Constituição, acerca do projecto de lei n.º 7/X, sobre alterações à Constituição Política, emite, pela sua secção de Interesses de ordem administrativa (subsecções de Política e administração geral e de Política e administração ultramarinas), à qual foram agregados os Dignos Procuradores António José de Sousa, António Jorge Martins da Motta Veiga, António Júlio de Castro Fernandes, Armando Gouveia Pinto, Augusto da Penha Gonçalves, Emílio de Oliveira Mertens, Hermes Augusto dos Santos, José Alfredo Soares Manso Preto e Manoel Alberto Andrade e Sousa, sob a presidência de S. Exa. o Presidente da Câmara, o seguinte parecer:

I

Apreciação na generalidade

1. Se a intenção dos Srs. Deputados que subscreveram o projecto de lei n.° 7/X foi, quanto ao seu artigo 1.°, a de, mediante uma declaração preambular, deixar entendido que as demais declarações de princípios, de que se encontra recheada sobretudo a parte I da Constituição, deverão ser interpretadas à luz de uma certa concepção da vida, que é a concepção cristã, dessa declaração não se carece, porque, como já se notou no parecer n.° 17/VII (Actas da Câmara Corporativa, 1959, n.° 58), a nossa lei fundamental está, de um modo geral, inequivocamente inspirada pela concepção católica da sociedade e do Estado e perfilha a doutrina social da Igreja.
Se o objectivo é outro e se pretende sublinhar a posição muito especial que a religião católica goza em Portugal em relação às outras confissões religiosas, então a Câmara chama a atenção para que, quer no texto actual dos artigos 45.° e 46.°, quer naquele que, para esses preceitos, o Governo advoga na proposta de lei n.° 14/X, quer, por último, no que esta Câmara, ela própria, sugere no seu parecer n.° 22/X, essa posição especial é mais que suficientemente acentuada, não podendo deixar dúvidas a ninguém.
Não se pode atribuir aos subscritores do projecto o simples propósito de, pela invocação do Ente Supremo, concorrer para dar aos cidadãos a ideia de que o direito fixado na Constituição é qualquer coisa de particularmente estável e de particularmente merecedor do respeito de todos.
A Câmara Corporativa, no seu já mencionado parecer n.° 17/VII, mostrou, por outro lado, o que há de anómalo em se adicionar, ex post factum, um pórtico ao edifício constitucional - um pórtico que, assim, surgiria como que enxertado na Constituição, como algo de postiço, de que só fora de prazo houve lembrança. Ter-se-ia aceitado sem relutância, teria mesmo sido digno de aplauso, que o Poder Constituinte, em 1933, se tivesse orientado para uma solução dessas. Noutros países fez-se a invocação do nome de Deus, em preâmbulo às suas respectivas constituições, aquando da sua votação ou adopção. Foi o que sucedeu na República Federal da Alemanha, na Tunísia e no Gabão, para falar apenas de alguns. Não tem a Câmara conhecimento de que, a título de revisão, alguma vez, em qualquer parte, se haja procedido a um adicionamento deste género.
A Câmara, no seu parecer n.° 22/X, já teve ocasião de dizer o que se lhe afigura razoável a respeito da menção do nome de Deus na Constituição, no presente momento- ou seja na ocasião de uma revisão constitucional. Para esse lugar, bem como para o seu parecer n.° 17/VII, com vista a uma elucidação mais completa, remete a Câmara Corporativa. [V. também, por último, mas no sentido do projecto, P.° António Leite, Alguns Aspectos da Reforma Constitucional, separata da Brotéria, vol. XCII, 68-69 (1971), pp. 22 e segs.]

2. É francamente difícil encontrar utilidade nas modificações desejadas em matéria de "constituição económica". Basta reparar em que não se descortina impedi-

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mento, nos textos vigentes em tal domínio, para a realização de uma intervenção do Estado na economia, com os objectivos enunciados no projecto em apreço. O Estado surge, na Constituição, em relação à economia, como Estado árbitro, que vela pelo supremo interesse nacional, estimulando a actividade dos indivíduos e dos grupos, coordenando-a e inclusivamente dirigindo-a. (Cf. J. J. Teixeira Ribeiro, "Princípio e Fins do Sistema Corporativo Português", in Boletim da Faculdade de Direito, vol. XVI, 1939-1940, pp. 64 e segs.) Não se vê que os textos propostos sejam mais expressivos de uma doutrina que se julga não ser intenção dos Deputados signatários do projecto em discussão ver modificada e que, de qualquer modo, nunca constituiu de per si obstáculo ao desenvolvimento e à justiça social no nosso país. E não se crê, de toda a maneira, que seja necessário prever que o Estado assuma um comando mais dirigista e centralizado da economia nacional. Aliás, é duvidoso que isso resulte da nova redacção proposta para os artigos 31.° e 32.°

3. Aborda o projecto em estudo o problema das competências do Presidente da República.
Esta Câmara já se pronunciou, no seu parecer n.° 23/X, sobre uma delas: a respeitante à chefia suprema das forças armadas, remetendo agora naturalmente para esse lugar.
0 Presidente da República conserva (não só no nosso direito, como em direito comparado) a posição, que antigamente era reservada ao rei, de fons honorum. Não é inédito, no direito comparado, que os chefes do Estado tenham atribuições não fixadas na respectiva Constituição. Assim, sucede, por exemplo, em Itália, como pode ver-se em P. Biscaretti di Ruffia, Diritto Costituzionale, 8.ª ed., 1969, pp. 439 e seg. Não se vê inconveniente em que entre nós suceda o mesmo.

4. Outro ponto encarado pelo projecto é o respeitante à competência da Assembleia Nacional. Mas não parece que se careça da adição e das alterações nele sugeridas.
Não se pronuncia a Câmara, neste lugar, sobre a modificação prevista para o n.° 4.° do artigo 91.°, pois já no seu parecer n.° 23/X apreciou uma alteração sugerida para este preceito, não tendo encontrado motivos para o remodelar. Para o que nesse parecer se disse se remete agora.
Quanto ao preceito cuja modificação neste projecto, e só nele, se pretende ver introduzida, não se vislumbra a necessidade da sua consagração.
Note-se que no projecto se não pretende que as contas dos institutos e organismos autónomos e as da previdência social sejam aprovadas pela Assembleia Nacional. Prevê-se, apenas, que elas lhe sejam apresentadas a título de elementos necessários para a apreciação da Conta Geral do Estado e das contas das províncias ultramarinas. De maneira que, uma de duas: ou tais elementos são por vezes necessários - e a Assembleia pedi-los-á ao Governo -, ou não são, por princípio, rigorosamente necessários para o específico fim do contrôle das contas em causa, e não faria sentido estabelecer na Constituição a obrigação da sua sistemática apresentação à Assembleia Nacional.
Outra coisa é saber se convém ou não que as contas de tais organismos, que estão sujeitas à fiscalização ou tutela do Governo, inclusive no plano financeiro, sejam ou não publicadas, para o efeito de ficaram também sob o domínio da opinião pública, dados os números globais das suas receitas, bastante superiores, no conjunto, às previstas no Orçamento Geral do Estado. Nada impede que, em legislação ordinária, que a própria Assembleia, por iniciativa parlamentar, pode elaborar, se prescreva o necessário para instituir o contrôle da opinião pública neste domínio. Não se pronuncia, entretanto, esta Câmara neste lugar e nesta oportunidade, sobre a lógica e a conveniência de qualquer eventual providência legislativa sobre o assunto em semelhante direcção. Alude apenas mera possibilidade, deixada em aberto para a Assembleia Nacional.
O proposto n.° 14.° do artigo 91.° redunda em fazer da programação económica nacional reserva da lei, que é como quem diz, matéria da competência exclusiva da Assembleia Nacional.
Entende-se geralmente que são verdadeiras normas umas cogentes, outras meramente directivas, as disposições de um plano de fomento - normas dirigidas ao Governo umas, outras a serviços autónomos sob a sua super- intendência ou fiscalização, a empresas públicas, a empresas de interesse colectivo e a empresas particulares puras e simples. Em relação a estas, o plano contém ou pode conter limitações à iniciativa privada, de entre as consentidas pela Constituição, além de incentivação e directrizes meramente indicativas.
Vem sendo hábito, entre nós, ser a Assembleia Nacional a legislar nesta matéria e, em parte, nem poderá pràticamente deixar de suceder assim, dado que dos planos fazem parte vinculações plurianuais em matéria de princípios sobre a realização de despesas públicas - e não faria sentido que a Assembleia Nacional, anualmente, viesse depois a fixar princípios diferentes, nesse domínio, no exercício da competência que lhe confere a parta final do artigo 91.°, n.° 4.º Não há, pois, qualquer urgência nem necessidade de uma prescrição constitucional no sentido de fazer desta matéria reserva de lei (formal).
Quanto ao relatório anual e ao relatório geral sobre a execução dos planos, compreende-se que devam ser enviados à Assembleia Nacional, para eleitos de o País deles tomar conhecimento. É o que, por exemplo, se prescreve na base XI da Lei n.° 2133, de 20 de Dezembro de 1967, relativa ao III Plano de Fomento. Não é natural que a Assembleia Nacional alguma vez volte a prescindir de prescrever sobre tais obrigações nas leis de aprovação dos futuros planos.
Não se vê, portanto, que haja necessidade ou especial conveniência de incluir no antigo 91.° um novo número.

5. A Câmara não abordará de novo aqui o problema de uma nova redacção para o artigo 94.°, porque já se lhe referiu nos seus pareceres n.os 22/X e 23/X. 0 seu ponto de vista consta desses documentos.

6. É muito discutível que se deva conferir à Câmara Corporativa iniciativa legislativa, mesmo limitada aos termos em que vem sugerida no aditamento proposto para o artigo 97.° Os princípios, a partir da natureza consultiva deste órgão, são no sentido de que se lhe não deve conferir o poder de propor. É o que resulta do corpo do artigo 103.° e do seu § 3.° (Constitui um desvio a esta orientação o disposto no § 2.° do artigo 105.° - mas da competência aí conferida tem a Câmara feito um uso muito moderado.) Não parece oportuno, e por isso não merece a pena, insistir numa orientação que não deve reunir apoios na Assembleia Nacional. É natural que nesta se continue a preferir a orientação de reservar para os Deputados a apresentação de propostas de eliminação substituição ou emenda.

7. Uma outra pretensão, expressa no projecto em estudo, respeita à situação que se deve gerar, em relação ao Governo em funções, com a posse de um novo Presi-

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dente da República. Sugere-se aí que cessem automàticamente as funções do Governo com a posse de cada novo Chefe do Estado.
Observando, neste particular, os cânones do regime presidencialista ou constitucional, a Constituição de 1933 confia ao Presidente da República competência para a nomeação e exoneração do Governo, livre quanto ao Presidente do Conselho e condicionada a proposta deste aos seus restantes membros. Todo o Governo é da confiança do Presidente da República e só dele.
Parece, assim, à primeira vista, que, tendo cessado funções, por qualquer razão, o Presidente da República que nomeou o Governo, as funções deste devam cessar logo que haja tomado posse um novo Presidente da República. Para se concluir assim, será necessário presumir que o novo Chefe do Estado, em regra, não terá confiança no Governo preexistente e que essa falta de confiança é tão forte que se não deve admitir a presença do Governo ao seu lugar, por unia hora mais que seja, após aquela posse. E será também necessário admitir que não haja nenhuma espécie de inconvenientes sérios ligados a tal
solução.
Ora a falta de confiança do novo Chefe do Estado não é de presumir, digamos, iuris et de iure, a tal ponto que automàticamente o Governo nomeado pelo seu predecessor deva ser logo, e ope legis, arredado. É preciso, inclusive, pensar em que a escolha de um novo Presidente do Conselho pode não se fazer ou pode não se concretizar imediatamente. A solução do projecto redundaria, nestas condições, em ficar o País sem Governo por um certo período que se não pode, em abstracto, prever se seria curto, se seria relativamente longo. Isto vai contra o princípio da continuidade de exercício dos poderes constitucionais e redundaria numa situação de vácuo político e administrativo intolerável. Nos regimes parlamentares, o Governo que perde a confiança do Parlamento fica sempre em funções, para despacho dos negócios correntes ou de administração ordinária, até ser substituído por outro. A solução do projecto contrariaria este princípio e esta necessidade - e não pode ser adoptada. Aliás, se se não erra, é neste sentido a única até ao presente momento no nosso país, depois da entrada em vigor da vigente Constituição.

8. Por último, o que vem projectado quanto à eliminação do actual § 4.° do artigo 176.°, em matéria de iniciativa de revisão constitucional, já foi abordado por esta Câmara no seu parecer n.° 23/X, não tendo ela podido dar-lhe o seu assentimento.

II

Conclusões

9. Ante as considerações que acabam de ser produzidas, a Câmara Corporativa desaconselha- a aprovação na generalidade do projecto de lei n.° 7/X, sem embargo de reconhecer os altos propósitos dos Srs. Deputados que o subscrevem.

Palácio de S. Bento, em 15 de Março de 1971.

Fernando Cid de Oliveira Proença. (O artigo 1.º do projecto, sobre a invocação do nome de Deus, tem a minha inteira concordância. Votei, por isso, no sentido da aprovação ido projecto na generalidade.)
Henrique Martins de Carvalho. [Vencido. Só há vantagem - e a Câmara já em concreto a reconheceu - em que as revisões constitucionais sejam feitas a partir de propostas do Governo e de projectos dos Srs. Deputados, embora, normalmente, estes últimos não disponham de elementos de estudo e informação tão extensos e completos como os que os serviços públicos podem reunir. Ora, o presente projecto de lei contém várias disposições que poderiam ser incluídas no texto constitucional, denta-o da sua natural adaptação às condições de cada época. Um intróito semelhante ao agora proposto (e ao qual, segundo a imprensa, deram a sua concordância entidades religiosas de diversos credos) melhor teria sido incluído desde início? Mas, na prática, quem lê uma constituição lê-a como ela vigora nesse momento; e o respectivo texto, muitas vezes, nem sequer indica se a redacção é antiga ou recente. Tão-pouco haveria desvantagem - apenas para dar outro exemplo - em aceitar, com os necessários ajustamentos, algumas das disposições de carácter económico que os Srs. Deputados sugeriram. E o mesmo se poderia dizer quanto ao reconhecimento expresso do Chefe do Estado como comandante supremo das forças armadas nacionais, aliás na linha dos factos e da nossa própria tradição.
A análise e a votação em pormenor dos projectos poderiam, em meu entender, ser úteis para a necessária evolução das instituições, dentro da continuidade na prossecução e na defesa dos valores essenciais do País.]
João Manoel Nogueira Jordão Cortez Pinto.
Maria de Lourdes Pintasilgo. (Votei, vencida, pelas mesmas razões alegadas na minha declaração de voto relativa ao parecer n.° 23/X.)
Diogo Freitas do Amaral. (Vencido. Discordo da não aprovação na generalidade porque, além de outras razões, entendo que no presente projecto há várias emendas à Constituição que merecem aprovação. Estão, a meu ver, nessas condições, entre outras, na redacção com que foram apresentadas ou com redacção diferente que as aperfeiçoasse, as emendas relativas ao preâmbulo constitucional e aos seguintes artigos da Constituição: 31.°; 32.°; 91.°, n.ºs 3.°, 4.° e 14.°; 94.° e § único; 97.°, § 1.°, e 107.°, § 2.°)
José Hermano Saraiva.
Álvaro Rodrigues da Silva Tavares.
André Delaunay Gonçalves Pereira. (Vencido quanto à não aprovação na generalidade. Entendo que o projecto cabe dentro dos limites do poder constitucional de revisão e que algumas das soluções propostas, tais como as alterações aos artigos 31.°, 91.°, n.° 3, e 94.º, bem poderiam ser discutidas na especialidade.)
Fernando de Castro Fontes.
Francisco José Vieira Machado.
Manuel Pimentel Pereira dos Santos.
Vasco Lopes Alves.
António José de Sousa.
António Jorge Martins da Motta Veiga.
António Júlio de Castro Fernandes.
Armando Gouveia Pinto.
Augusto da Penha Gonçalves.
Emilio de Oliveira Martins.
Hermes Augusto dos Santos.
José Alfredo Soares Manso Preto.
Manoel Alberto Andrade e Sousa.
Afonso Rodrigues Queiró, relator.

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Página 688

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